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Em retrospetiva, tenho a impressão de ter andado à procura de António toda a minha vida. Não de alguém por quem me pudesse apaixonar loucamente, como tu (isso para mim foi sempre demasiado fácil), mas de um homem cujas ações me ajudassem a preencher o vazio. Consigo ouvir-te rir disto. Mas tanto melhor; a tua condescendência fará com que continues a ler.

Quando ainda era um aprendiz cheio de entusiasmo juvenil, bastava que alguém com quem eu tivesse dormido me passasse o braço pelo ombro numa sala de cinema, ou me desse um pequeno beliscão na face antes de adormecermos, ou me escrevesse um bilhete de duas linhas no papel timbrado do escritório para eu me apaixonar. Um desses simples gestos de afeição, mais a partilha dos nossos corpos em lençóis de algodão de boa qualidade, e ficava pronto a entregar o meu coração qual Cyrano de Bergerac judeu que nunca tivesse ouvido falar em ser cauteloso e ser magoado por um amigo.

Era uma característica minha. Os meus olhos azuis transbordantes de confiança deviam lembrar o olhar de corça ferida de Mary Pickford a pensar no marido aviador, perdido numa tempestade. Mais de um homem me disse que eu estava mesmo a pedi-las – traição, nódoas negras, sermões bombásticos sobre a natureza das coisas; coisas essas que eram, entenda-se, a crueldade do homem para com o próprio homem. O primeiro de todos foi Vincent, formado em Andover e Harvard, fã de Mozart e sempre a snifar poppers, que comprou o falso sotaque inglês por $10.95 num outlet da fábrica BBC da sua vila natal – Lexington, Massachusetts; que conhecia Jackie Kennedy pessoalmente e que uma vez tomara o pequeno-almoço em Gray Gardens com cerca de cem mulherengos da família Bouvier a lamber-lhe as mamas; que, assim que me conheceu, me leu A Vénus das Peles, de Masoch, às quatro da manhã, depois de me ter comido duas vezes por trás e devorado todo o sémen armazenado como leite de camela nos meus jovens tomates de dezoito anos. Ele não acreditou, mas nessa altura eu era virgem. A Vénus das Peles, claro, tinha por tema as fantasias dele, as fantasias de um homem vestido apenas com uma pele de marta e de chicote na mão, dominando o seu escravo. Levei muito a sério as palavras da Vénus: «O amor… perdoa e sofre tudo, porque tem de o fazer. Não é o nosso julgamento que nos guia; não são nem as vantagens nem os defeitos que descobrimos que nos fazem abandonar-nos a nós próprios, ou que nos repelem. É um poder doce, suave, enigmático, que nos leva a continuar. Deixamos de pensar, de sentir, de querer; somos levados por ele, e não perguntamos de onde vem.»

Enquanto estive com Vincent, aprendi a aceitar esta versão do amor sempre sofrida. Fiz a minha própria cama, acabando por levar com uma porta do Upper East Side na cara, quando me tornei uma fonte de trabalhos e embaraço, mas, especialmente, quando deixei de ser divertido. Sabes, é que divertido é um objetivo fundamental para um certo tipo de americanos, sejam hétero ou homossexuais, e, se as coisas deixam de ser divertidas, então preferem crivar-nos o corpo de balas. Da próxima vez que ouvires sociólogos a especular sobre o motivo que terá levado um americano a entrar num restaurante com uma metralhadora e matar tudo o que mexesse, lembra-te de que o fez simplesmente porque não se estava a divertir.

Pelo menos, Carlos, esse não é um dos teus defeitos.

Consigo ver Vincent a ler-me antes de dormir, em tom poético e com maneiras afetadas, a cabeça apoiada numa almofada de penas da Bloomingdale’s e os óculos bifocais na ponta do nariz. Era um homem tenso e nervoso, como um terrier, com um corte de cabelo à escovinha. Mas tinha os olhos de Sal Mineo, mãos fortes e peludas, e um pénis que lembrava uma boca de incêndio. Depois de fechar o livro por essa noite, costumava cair-me em cima como um martelo pneumático, durante dez minutos de loucura, nunca mais do que isso, porque não havia nada mais importante para ele do que armar-se em macho e ser aquilo a que chamava eficiente. Como na velha anedota australiana, a ideia que Vincent tinha de preliminares consistia em rosnar: «Segura-te!» Mas não importa, adormecíamos seguros e enroscados um no outro como duas peúgas gastas. De manhã, ele tirava a mão da minha cintura, entrava em modo de advogado de divórcios e dirigia-se para o escritório Pierce and Hollbrook para infernizar a vida a uma qualquer pobre divorciada que nunca esperara ser feita em fanicos pelo assassino a soldo de fato Armani que o marido tivera o bom senso e os muitos dólares para contratar. Vincent, que me levou ao Sign Of The Dove e pediu veado e uma garrafa de Bordeaux de 1957 de 125 dólares; que me fez sexo oral enquanto subíamos de elevador para o Rainbow Room, e que não se importava de que nos apanhassem a beijar-nos antes de irmos ver Os Dois Cavalheiros de Verona no Festival Shakespeare, em Central Park.

Vincent que, quando já não estava assim tão divertido, me pediu para lhe fazer um broche no salão de chá deserto do Carlisle Hotel à meia-noite, e que fez uma birra digna da Maria Callas e me entornou chá quente no colo quando me recusei. Vincent, que deixou de me convidar para o visitar no seu escritório num 17.° andar da Sixth Avenue para ver a vista, que começou a fingir que eu não estava na cama quando o telefone tocava, que deu de caras com Gore Vidal no Rizzoli’s, que conhecia de uma festa na «pequena e confortável casa de campo» de Edward Albee, em Montauk, e me apresentou como «um pequeno fura-vidas da Universidade de Nova Iorque com um belo traseiro». Comentários que, todos juntos, me levaram a contemplar o suicídio nos seis meses que durou a nossa descida vertiginosa para a humilhação, mas nenhum dos quais me levou a deixá-lo, porque estava apaixonado. E porque pensava que o amor significava entregar a nossa independência e o nosso corpo sem questionar, sem sequer suspeitar de que há notas de rodapé no contrato.

E depois, certa manhã, vestiu um dos doze fatos da Barney’s, deu o nó na gravata Hermès e acordou-me com uma navalha de madrepérola que comprara num bazar israelita encostada à minha garganta. «Conheci uma pessoa. Pega nos teus ténis malcheirosos e nos teus jeans imundos, e é bom que não estejas cá quando eu regressar», atirou com desprezo. Ficarás a saber como eu era ingénuo, querido Carlos, quando te disser o que lhe respondi: «Mas eu amo-te.» Estás a rir-te à gargalhada? Devias. Que simplório que eu era! Imagina achar que o amor era uma resposta adequada! Imagina ser tão estúpido que nem por uma vez sonhei que ele andasse a vender o seu sotaque inglês a outra pessoa. Fez-me um favor ao expulsar-me. Meu Deus, quando penso no que tive de aturar… Mas o que vais achar ainda mais engraçado é que, depois de Vincent veio Pietro, professor de Literatura Italiana no Hunter College, romântico, cinquenta e dois anos de idade, cabelo grisalho, molto elegante, que me fazia olhinhos por cima da espuma do cappuccino, no Café Dante, e que me levou, com o seu sorriso confiante, ao apartamento onde vivia, na West 11th Street, e que me cantava baladas napolitanas todo nu, sobre o tapete persa que comprara «pelo preço de um broche», em Isfahan, e que prometeu «construir uma vida à volta do nosso… amore». Pietro que costumava amarrar-me à cama de barriga para baixo com algemas de cetim e que nunca me magoava, mas que uma noite se embebedou com Fra Angelico e que, depois de muito se contemplar ao espelho, explorando as rugas mais recentes que lhe marcavam a cara, resolveu bater-me selvaticamente com o primeiro tomo de um dicionário italiano-inglês de cinco volumes só porque lhe apeteceu, enquanto me gritava que eu era «demasiado jovem e bonito, e precisava de ser destruído!» De Pietro fiquei com uma costela partida que ainda me dói quando chove. Depois dele, veio Moishe, o motorista de táxi israelita bissexual, que engendrou Miller, o sósia do James Dean, que engendrou Steven dos trinta centímetros; que finalmente engendrou o querido Mark, licenciado em Filosofia pela Columbia. Mark que, durante um mês, me comprou flores diariamente e que eu achei mesmo que seria o meu parceiro para a vida, mas que certo dia me pediu para me ir embora, pouco antes de celebrarmos seis meses juntos, dizendo-me que abrira uma vaga de professor assistente no Carlton College, no Minnesota, e acrescentando «Não vou levar-te comigo», como se eu fosse bagagem.

Mas isso curou-me. Depois, satori!3 Para a maior parte das pessoas, o sexo nada tinha a ver com amor, e para as outras o amor nada tinha a ver com a verdade. Ponto parágrafo. Entendido! Depois disso experimentei homens pela América e Europa fora, porque tinha compreendido que desta vida só poderia esperar a euforia momentânea de um linguado bem dado e o cheiro de uma noite de sexo. Era a única forma de conseguir preencher o vazio da ausência de amor. Não te atrevas a sentir pena de mim, Carlos. Tive sorte, fui um dos mais sortudos. Porquê? Porque toda esta promiscuidade ocorreu antes de 1980 e da invasão de cossacos invisíveis que cheiram a pneumonia e te deixam lesões na pele com as suas minúsculas espadas. Quando apareceram os primeiros, eu já estava exausto e desistira de encontrar alguém com quem partilhar a minha cama para sempre. Praticava o sexo mais seguro possível, ou seja, nada de sexo, à exceção do que a minha mão direita me pudesse dar. As pessoas safam-se como podem, e eu comecei a dizer que «a amizade é o que realmente importa».

E foi aí que a minha sorte falhou. Porque, mal tinha acabado de me render a essa racionalização outrora conveniente, os meus amigos começaram a ser decapitados pelos cossacos invisíveis. O primeiro a ir foi Malcolm, o viciado em gelado de hortelã e chips de chocolate, poeta surrealista de Toronto, que chegou à Village em 1976, com ar de Cary Grant com uns quilos a mais, e que acabou como uma vítima escanzelada dos Campos da Morte. Em testamento, deixou-me toda a sua poesia por publicar, um candelabro inglês de prata do século XVII e a cadela, uma border collie com doze anos chamada Nancy – em homenagem a Nancy Drew –, que deixou de reconhecer o dono, o boneco de trapos repleto de manchas na pele a quem eu dava puré de maçã e papa de brócolos no seu último mês de vida. Foi Malcolm quem me avisou, logo em 1983: «Isto vai piorar muito antes de começar a melhorar.» Será que a dor adicional de ser um dos primeiros a partir lhe permitiu ver que muitos dos nossos amigos em breve seriam apenas cinzas? Quando fui viver para Los Angeles, em 1990, já todos os meus colegas da equipa de basquetebol de West Village tinham morrido, assim como uma dúzia de fãs e membros da claque. Tirando eu, os cinco iniciais partiram muito antes de terminar a primeira metade do jogo.

Os uniformes de Bob Jenkins, de Henry, o Colosso, Davenport, de Izzy Epstein e de Carlo Foggia estão todos pendurados num cabide especial no Madison Square Garden da minha memória.

Bob foi o tipo mais esperto e mais talentoso que conheci; fazia imitações perfeitas de Patty Duke, Kevin Costner, Cher, do Pato Donald, do Bullwinkle e de mais uma centena de desenhos animados. Tinha uma pele negra que ficava dourada ao pôr do sol. Escreveu um musical com cowboys gays que nunca foi representado – chamado Oklahomo – e trabalhava na Columbia University, numa vertente qualquer de Álgebra Linear tão avançada que só havia três pessoas no mundo capazes de falar com ele sobre isso. O seu maior sonho era lamber o suor dos dedos dos pés do seu único deus, Julius Erving.

Henry, o Colosso, convenceu-me a escrever artigos de viagens dizendo: «Tu viajas, és relativamente esperto e reparas em coisas em que mais ninguém repara, por isso, porque não?» Contactou uns amigos no Dallas Morning News e conseguiu que me publicassem os primeiros artigos, embora fossem uma merda. Pretendia atravessar os Estados Unidos, antes de ficar doente de mais, porque queria morrer no deserto do Novo México e deixar o corpo entregue aos abutres, fruto de uma ideia romântica que o levava a pensar que assim iria acabar como um esqueleto de marfim polido numa tela de Georgia O’ Keeffe.

Izzy fora expulso do Yeshiva College em 1982 por ter tido a compaixão de alimentar um esfomeado rabi ortodoxo chamado Koppelman na casa de banho da cave da biblioteca principal com o seu impressionante apontador do Antigo Testamento. Foi ele quem me iniciou na leitura da Cabala e me ensinou o alfabeto hebraico, escrevendo-me as letras nas costas da mão e deixando-me em testamento um exemplar autografado de A History of the Marranos, de Cecil Roth, e um talismã russo-judaico do século XVII contra os demónios Lilith e Asmodeus.

Depois havia Carlo, o nosso armador principal, que tinha apenas um metro e setenta e que teria preferido ser um jogador semiprofissional nos confins da Dakota do Norte a ser um advogado especializado em Direito Empresarial com um rendimento de cem mil dólares ao ano. Todos os domingos às oito da manhã, vinha ter comigo ao campo da esquina da 6th Avenue com a 4th Street para jogarmos uma hora, antes que os miúdos do secundário invadissem o campo. Ele driblava como Isaiah Thomas e fazia os mais incríveis lances de dez metros uns atrás dos outros. No leito de morte agarrou-me na mão e disse: «Se aprenderes a avançar pelo lado esquerdo, nunca mais perdes num mano a mano com ninguém.»

Claro que, nas duas semanas seguintes, me levantei às seis da manhã e fui cedo para o campo, onde aprendi a avançar pela esquerda como Bernard King, mas Carlo morreu na mesma.

E, contudo, de todas elas, a morte de Henry foi a que mais me abalou; o seu sonho de se transformar em marfim no deserto do Novo México parecia-me tão bonito. E acabou de maneira tão feia, impedido pelos pais e irmãs de sair do hospital e enterrado como qualquer outra pessoa, num cemitério florido em Croton-on-Hudson. Nessa altura, já eu deixara de ir a funerais, por isso fizemos uma cerimónia privada em casa – só eu, Nancy e um altar composto por duas velas brancas e um poster de Georgia O’ Keeffe com uma caveira de animal abandonada no Deserto Sonora.

Depois da morte de Henry, perdi toda a resiliência e comecei a rezar ao Deus que se aninhava dentro daqueles pequenos comprimidos amarelos a que a minha mãe me habituara. Ele, o deus do Valium, anestesiava-me a dor, e era como se a vida fosse uma caminhada sobre dunas de areia quente.

Um psiquiatra que conheci através de Carlo sugeriu uma «change de locale». Por isso, aluguei uma carrinha Honda e fui para Los Angeles com Nancy, quando abriu uma vaga como professor de Música na Escola Montessori onde Phil, o ex-amante de Henry, o Colosso, era diretor. Contudo, por essa altura já as pessoas andavam a morrer em catadupa em Los Angeles, pelo que, catorze meses mais tarde, quando Nancy teve cancro do fígado e foi eutanasiada, resolvi ir para a Europa.

Estávamos em maio de 1991. Harold começou a ficar muito doente pouco depois, e eu descobri que Ele, o deus do Valium, era volúvel e que precisava de rezar cada vez mais para conseguir atravessar os dias.

Harold, que partilhou um quarto comigo durante os primeiros quinze anos da minha vida, que se queixava de que eu tinha sempre a luz acesa, que estava sempre a fazer troça de mim por eu gostar de desporto e porque ele se sentia infeliz e desconfortável no seu próprio corpo.

Harold, que era tão precoce que, aos sete anos, usava palavras como «ostensivo» e que metia medo aos adultos, que achavam demasiado inteligente a maneira fixa como ele os olhava, como se tivesse acabado de sair do Children of the Damned4.

Harold, que tinha joelhos ossudos e era relegado para a equipa do «mata» nos dias de campeonatos interescolas e gozado pelos outros miúdos por ter orelhas de abano e ser magricela, e que começou a fazer exercício já muito mais velho, mas perdeu toda a sua recém-descoberta musculatura quando os cossacos atacaram.

Harold, cuja vingança contra todos nós era a sua maldadezinha cáustica, que estudou Dante e Psicologia em Swathmore como se alguém o fosse chicotear caso não tivesse sempre nota máxima em tudo, que passou meses a trabalhar como voluntário com um miúdo autista chamado Eric até conseguir que ele tocasse no nariz com o dedo, que fez a sua tese de doutoramento sobre o ensino para crianças surdas à nascença, que encontrou Deus e perdeu um pouco da sua causticidade, e que só confiou em mim seis meses antes de morrer, quando finalmente percebeu que eu não era um palerma qualquer com sorte em tudo e que alimentava a secreta esperança de que o irmão mais velho morresse.

Harold, que não conseguia estar na mesma sala com os nossos pais sem explodir como uma granada gay, que me disse um dia «Se não fosses tu, eu seria órfão» e que me obrigou a jurar que não o abandonaria.

Mas abandonei. Vim viver para Portugal e só fui a Nova Iorque visitá-lo cinco vezes nos seus dois últimos anos de vida, e três delas já ele estava tão mal que podia morrer a qualquer instante.

Quando o sofrimento de Harold finalmente se extinguiu, o meu médico português disse que eu precisava de me desabituar do Valium, antes que «chocasse acidentalmente de frente com um autocarro». O que não teria mal nenhum, pensei, não fosse o trauma que causaria ao pobre do condutor para o resto da sua vida.

Sabias que tentei chegar até ti através de uma morna neblina de Valium durante metade do tempo que passámos juntos?

Peço desculpa também por isso, Carlos. Quem sabe quantas das tuas críticas interpretei como ataques à minha pessoa e quantas vezes te magoei com a única intenção de me defender?

Entretanto, foram tantos os conhecidos que foram arrastados para o Submundo que só a lista levar-te-ia a pousar este papel, por isso, não vou continuar. Porém, recordo-os a todos. Porquê? Para ser capaz de seguir pelo futuro adentro, como me disse o brasileiro Ricardo? Será que é isso? Ou para poder passar um qualquer conhecimento sagrado que ainda não aprendi? Porque é tão importante assim?

Alguém que eu pudesse ensinar… não sabia na altura, mas acho que aquilo de que estava mesmo à procura quando vim para a Europa era um homem de coração e espírito abertos que quisesse aprender. E alguém que me pudesse ensinar também, porque em novo tinha aprendido todas as coisas erradas e precisava de as desaprender. Não que eu hoje saiba quais as coisas certas. Só agora começo a ter uma vaga ideia do significado da tua vida e da minha.

E qual será ele?

Paciência, Carlos, ainda agora iniciámos esta correspondência.

Então, comecei por ensinar a António o funcionamento da guitarra. António, com os seus olhos de gato cor de avelã, que deixa uma linha penugenta por baixo do nariz porque tem medo de cortar uma narina.

Com as chaves sempre a tilintar quando desce a rua.

Jeans apertados a contornar umas coxas musculadas, esculpidas pelo futebol e pela ginástica. As mãos enfiadas nos bolsos da frente.

Meias brancas e grossas que absorvem o suor juvenil até tresandarem a chulé.

Cabelo louro-escuro encaracolado.

Sentado aos meus pés, a implorar-me que lhe leia qualquer coisa em inglês «só para ouvir o som».

A roer as peles das unhas.

A ensinar-me palavrões em português como piça, pito, cona, cabra, enquanto se rebola no chão a rir com a minha pronúncia grotesca.

A perguntar aos empregados qual o ano da Coca-Cola que eu peço ao jantar, só para eles sorrirem e nós podermos rir juntos.

A saltitar alternadamente do passeio para a rua quando deambulamos pela Baixa.

Um ninho de pelos castanhos no meio do peito, que é o melhor sítio para lhe fazer cócegas e obrigá-lo a defender-se e a lutar, e a seguir a dar-me o beijo mais profundo que se possa dar.

Decorando músicas novas tão depressa que me pergunto se não será um alienígena metamorfoseado de humano.

Concertos que espera dar em Carnegie Hall e na Ópera de Paris, e até no Estádio das Antas, no Porto, antes de um desafio de futebol entre a equipa da casa e um rival lisboeta.

António, que será famoso e homenageado e reconfortado pela bondade de estranhos se…

Quando entrou na sala de ensaio para ter a audição comigo, eu não sabia nada disto, claro. Não fazia ideia de que ele iria mudar a minha vida. Embora tenha percebido imediatamente que era gay. Ele também me topou. Trocámos um olhar urgente e esperançado, que é o aperto de mão natural da nossa espécie, e depois ele desviou o olhar, à procura de segurança. Nessa altura, tinha o cabelo cortado tão rente que parecia um recruta do Exército, com medo do halo suave que lhe pudesse enquadrar o rosto.

Carlos, conheces o Retrato de um Homem com Barrete Vermelho, de Ticiano, que está na Frick Collection em Nova Iorque? Claro que sim; a menos que tenhas deitado para o lixo o livro que te ofereci pelos teus trinta e quatro anos. O homem do barrete vermelho é igual a António. Vai lá depressa à estante e vê.

Com ciúmes? Não devias. Ele tem juventude e encanto. Mas tu tens uma tristeza e uma frustração infinitas nos olhos, e isso é muito mais sedutor.

Também o pai de António tem um sósia na Frick Collection. Porém, para já, não nos adiantemos, esse belo malandro ainda não entrou na nossa história. Se quiseres, dá uma olhadela ao livro todo e tenta adivinhar com qual dos retratos ele se parece.

O Cavaleiro Polaco, talvez? Espera um pouco, que eu já te digo.

Adiante, António trazia os seus eternos jeans e o blusão de couro coçado para a audição. Não havia dúvida, nem no meu espírito nem no dele, de que eu lhe despertara a atenção, mas eu não tinha viajado por nove fusos horários, de Los Angeles a Portugal, para acabar com um surfista incipiente à procura de uma desculpa para sair do armário e que depois fugiria disparado à vista da primeira onda perfeita a enrolar-se na praia. Além disso, sempre considerara que os alunos estavam fora de questão. Portanto, nunca imaginei que pudéssemos partilhar a mesma almofada.

A acrescentar a isto, ainda estava com medo de me lançar no mundo sexual depois de dois anos de abstinência.

Apesar de tudo, não vou mentir-te; tinha uma vontade desesperada de enfiar a língua na boca dele e tentar chegar-lhe à alma.

Ele fixou os olhos em mim, os olhos de um miúdo doce, mas de arestas ásperas, imaginando se obteria os favores de um homem mais velho. Num idioma que se aproximava do inglês, perguntou:

– O que quer para eu tocar, Professor?

– Qualquer coisa – respondi.

– Eu não compreender.

– Toca qualquer coisa de que gostes, que seja breve e não faça muito barulho. E, por favor, que não seja espanhola. Acabo de chegar de Espanha e, se ouço outra imitação de tourada para guitarra, ainda fico maldisposto.

Gotas de suor perlavam a testa do meu príncipe. Despiu o blusão, dobrou-o e pousou-o no chão junto à cadeira. Naqueles gestos, adivinhei os anos de repreensões da mãe.

Trazia uma camisa branca bem passada. Inclinou-se para tirar a guitarra do estojo e depois colocou-a sobre os joelhos. Pareceu-me de madeira de balsa, comprada no ToysRus de Gaia, no outro lado do rio; o aspeto era horrível; as cordas estavam a um centímetro dos trastes. Imaginei o som de um cavaquinho. António respirou fundo, como se se preparasse para nadar cem metros livres, e endireitou as costas.

Ao pôr as mãos em posição, lançou-me um sorriso rápido e envergonhado, como quem se desculpa.

– Eu nervoso – disse.

– Eu Tarzan, tu Jane – respondi.

– O quê?

Sorri.

– Vai correr tudo bem. Toca lá.

– Eu muito nervoso.

– Vamos só ver o que acontece. Não entres em pânico, força.

Fitou-me longamente, como que à espera de que eu dissesse qualquer coisa capaz de lhe tirar toda a ansiedade. Quando viu que não, os olhos ficaram vítreos. Recostei-me na cadeira e cruzei os braços. Desviei o olhar. É espantoso como não me apercebi da importância que esta audição tinha para ele.

Limpou o nariz com as costas da mão. Eu tossi.

Finalmente, começou a tocar a primeira Gavotte da Sexta Suite para Violoncelo, de Bach. Foi medonho; a mão direita dedilhava as cordas estridentes do cavaquinho do ToysRus como se estivesse a arrancar penas do rabo de um peru. Fiz-lhe um sinal de aprovação com a cabeça, por curiosidade perversa e porque precisava de estragar o dia a alguém. Mas António, Deus o abençoe, acabou mesmo por se acalmar. Tendo em conta a qualidade do instrumento, tocou com uma técnica admirável. E, mais importante ainda, juntou as notas em frases reconhecíveis sem nunca perder o andamento.

– Chega! – gritei de repente.

O rapaz ergueu os olhos para mim. Observei-o de sobrolho carregado. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

Fiquei a ver as gotas presas nas pestanas e pensei no meu irmão a despedir-se de mim.

– Põe essa guitarra no chão! – ordenei, largando o inglês e passando ao português.

Ele pousou-a em cima do blusão.

Sentia-me livre para dizer o que quisesse, porque ele não iria compreender as palavras inglesas mais complicadas.

– Agora levanta-te, ó tolinho.

Ele deixou-se ficar sentado, boquiaberto.

– Upa, tolinho. – Ergui as mãos como um domador de leões. – Põe-te de pé!

Ele ergueu-se. Limpou os olhos e o nariz. Aproximei-me dele, tomei-lhe as mãos frias nas minhas e apertei-as.

– Sempre pensaste que estas eram apenas as mãos de um rapazinho português – disse-lhe. – Mas são as varinhas mágicas de um feiticeiro. Porquê? Porque conseguem fazer chegar até nós, atravessando dois séculos, a música de Bach. Quando tocam nas cordas de uma guitarra, conseguimos ouvir o compositor a pensar no seu estúdio em Leipzig e a escrever as notas tão velozes como coelhinhos a saltar uns por cima dos outros na sua toca. Consegues visualizá-lo lá, com a sua pena febril?

– Eu não compreender – disse ele.

Desapertei um botão da camisa e pousei-lhe a mão no meu peito, sobre a penugem castanha mesmo em cima do coração.

– Sentes isto? Sentes o meu metrónomo defeituoso?

Começou a respirar devagar e fundo, como se fosse desmaiar. Assentiu o melhor que pôde.

Os nossos rostos estavam apenas a uns trinta centímetros de distância.

– Quando sentires o coração de Bach, então, estarás a tocar esta peça como deve ser. Compreendes?

Claro que tudo aquilo era conversa de chacha, mas o que importava era a teatralidade com que o dizia.

Assentiu outra vez. Os jovens gay não resistem à afeição de homens mais velhos, mesmo que moderadamente atraentes, por isso estreitei-o contra mim, num abraço apertado. O corpo dele ficou hirto, mas depois devolveu-me o abraço e derreteu-se todo.

Contudo, antes que aquilo fosse mais longe, afastei-o, mantendo-o à distância de um metro.

– Se vais estudar comigo, tens de saber uma coisa. Sou uma besta5. – Ele não compreendeu. – Eu besta – disse, apontando para mim.

– Besta?

Nessa altura, desconhecia ainda que «chato» teria sido uma boa tradução, mas conhecia a expressão para «crazy whore», e achei que isso chegava. E, na verdade, até era mais adequado.

– Eu puta louca – expliquei.

Ele riu-se, soltando de seguida um grande suspiro.

– Olha… – disse eu, apontando para a sua guitarra de brinquedo. – Isto não presta, é pura merda! – Saltei a pés juntos sobre o raio da coisa. As cordas gemeram e soltaram-se, lascas de madeira voaram em todas as direções. Reduzi-a a fanicos. António reprimiu uma exclamação, depois ficou boquiaberto. Passei-lhe a minha guitarra para as mãos. – Esta, pelo contrário, não é merda nenhuma. É uma boa guitarra. Uma boa guitarra. – Dei umas palmadinhas ternas no braço do instrumento quando ele lhe pegou, depois levei-lhe a mão a afagar o contorno profundo junto à boca. – Temos de ser delicados. Vai com calma. – Sentei-me. – Agora, começa a tocar outra vez. E tenta não arrancar penas de peru com a mão direita.

António lançou-se na Gavotte. Ao fim de uns momentos, interrompi-o porque me apercebi de que o maior problema com que nos íamos deparar era a sua incapacidade de ouvir as notas à medida que as tocava. Estava tudo demasiado desligado, demasiado staccato.

– Canta! – ordenei.

– Canto o quê?

– A Gavotte… a melodia.

– A melodia?

– Faz o que te digo.

Cantou como um maricas lisboeta de boas famílias, com medo de acordar a avozinha da sesta. Disse-lhe que se calasse. Cantei para ele, zangado, ligando todas as notas como se estivesse a tentar transformá-las numa cadeia em volta dos seus pulsos.

Chegado ao fim da primeira frase, disse:

– Agora canta tu assim.

Como a maior parte dos portugueses, o rapaz era incapaz de se expressar abertamente. Parecia ter a voz presa na garganta, como uma uva-passa incómoda. Só ao cabo de algum tempo conseguiria levá-lo a ouvir a música que produzia. Valeria a pena o esforço? Enquanto me fitava, vi-lhe no olhar a enorme vontade que tinha de aprender. E eu sou um filho da mãe insensível quando estou zangado e com tusa ao mesmo tempo.

– Onde estudaste até agora? – perguntei-lhe.

– Ensino a mim próprio – respondeu.

– Há quanto tempo começaste?

– Há dois anos. Antes disso, também… também… – Falhou-lhe o inglês e refugiou-se num silêncio frustrado.

– E consegues ler bem música?

– Eu não sei ler música.

– Que queres dizer?

– Eu não leio música – disse, enfático.

– Então como aprendeste a Gavotte?

– Dos discos. – Apontou para o ouvido. – Toco de ouvido.

– Ouviste todas as notas que tocaste?

– Sim.

A ser verdade, tinha um ouvido ímpar, um num milhão. Percorreu-me aquele arrepio que sinto sempre que encontro alguém particularmente talentoso ou bonito.

– Estás a gozar com a minha cara? – perguntei. – Que idade tens tu?

– Vinte e um.

– A maior parte dos alunos tem dezoito anos quando entra para aqui. Porque é que esperaste tanto tempo?

– Eu trabalho com o meu pai. Não temos dinheiro.

– Então diz-me porque queres estudar música.

Encolheu os ombros.

– Eu quero… eu gosto. – Passou a língua pelos lábios, nervoso, e os seus olhos assustados seguiram-me quando voltei a meter a guitarra no estojo. – Posso estudar consigo? – perguntou de repente.

– A audição não acabou – repliquei. – Quero que venhas lá a casa comigo.

– Lá a casa?

– Pois. Ao meu apartamento.

– Agora?

– Não te preocupes. Não é com segundas intenções. – Com o polegar e o indicador da mão esquerda formei um círculo e enfiei o indicador direito dentro dele. Falei em inglês como Boris Badenov6: – Professor e aluno não tuca-tuca. Só música. – Icei-o até ficar de pé e encostei a mão contra o seu peito, para lhe sentir o coração a bater. Afaguei-lhe os peitorais e dei-lhe uma palmada na barriga. – Eu professor louco … tu príncipe… príncipe louro. Não fazeres nada que não quereres fazer. Eu não ser mau contigo. Mas eu não prometer porque, quando fico revoltado, perco a cabeça. E tu… tu tentares nunca me magoar de propósito. OK?

Ele não fazia ideia do que eu estava a dizer, mas respondeu:

– OK.

– E a minha guitarra? – perguntou.

– Tenho outra guitarra em casa. Para já, usas essa. Agora, pisa a tua de novo, para dar sorte. Esmaga-a de uma vez por todas!

– Agora? – perguntou ele. – Quando confirmei com a cabeça, saltou para cima dela com uma careta cómica, como quem fez uma coisa deliciosamente mazinha esperando que ninguém veja.

Apanhámos um táxi para minha casa. Ele sentou-se ao meu lado todo hirto, como se eu pudesse mordê-lo. Queixei-me do bacalhau, das pessoas que não inspiram confiança e dos engarrafamentos. Ele ia anuindo com a cabeça, as mãos bem presas entre as pernas. Uma vez no meu apartamento, arranjei um lugar para ele no sofá, lançando a roupa de Fiama para cima da cama dela. Depois, pus a tocar os discos da Edith Piaf, um atrás do outro: L’Accordioniste, Milord, La Vie en Rose, Les Trois Cloches… Piaf tem um vibrato que consegue abafar uma orquestra inteira e um legato capaz de encadear as palavras das suas canções, transformando-as nas mais encantadoras correntes ferrugentas. António tinha de aprender de imediato essa técnica e também do legato, caso contrário não iríamos a lado nenhum. Mas ele continuava sentado com as mãos entre as pernas, sem proferir palavra, como um rapazinho ansioso, a morrer de frio à porta da casa dos pais. Eu não queria observá-lo e pus-me a olhar pela janela. Finalmente, depois de termos ouvido vários exemplos, ajoelhei-me ao lado dele:

– Quero que cantes qualquer canção que conheças, mas canta-a como se fosses a Piaf. Compreendes? – pedi-lhe e demonstrei o que queria com o refrão de Like A Prayer, a tua canção preferida da Madonna, Carlos. Lembras-te? – Agora tu – rematei.

– A mesma canção?

– A que quiseres.

António tirou as mãos de entre as pernas e pousou-as nos joelhos. Fechou os olhos. Cantou o hino nacional português. Tinha uma voz linda, uma voz masculina que lhe subia do fundo das entranhas, uma voz muito para além da idade dele.

– Foi fantástico – exclamei. Acariciei-lhe a face, e ele arregalou os olhos. – Muito bom. – Sentia-me estranhamente excitado e pensei que isso se devia ao facto de lhe querer conhecer o cheiro na cama; era óbvio que o tinha seduzido. Ainda não compreendera que estava a acontecer mais qualquer coisa. Peguei na guitarra e toquei as primeiras oito notas da melodia de Les Trois Cloches, com um vibrato exagerado, e a seguir cantei-as da mesma forma para ele ver a ligação: Village, au fond de la vallée… Disse-lhe que o vibrato não era um ornamento, que servia para manter o verdadeiro tom de uma nota. Ele anuiu com a cabeça. – E nada de espaços entre as notas – sublinhei, com o indicador espetado na direção dele. – Nada de espaços, porque espaços mucho maus. Agora faz tu. – Passei-lhe a guitarra.

António só tinha ouvido Les Trois Cloches uma vez, mas conseguiu tocar todas as notas da melodia com o andamento certo e sem se enganar.

Sabes até que ponto isso é raro, Carlos?

Tem o melhor sentido de afinação que já conheci. É um num milhão.

À medida que ele ia tocando, ensinei-lhe a descontrair o pulso esquerdo e a abaná-lo para conseguir o melhor vibrato. Lisonjeei-o, gritei com ele, implorei. Ele respirava fundo para se acalmar. Ao fim de meia hora, tinha-lhe apanhado o jeito.

Enquanto fui à cozinha buscar vinho para celebrar, ele tocou Les Trois Cloches, acrescentando notas baixas para fazer a segunda voz. «Isto para ele é canja. Nunca conheci ninguém com tanto talento. E é um vampiro, porra, tal como eu!», pensei.

– Agora põe-te de pé e canta outra vez a Gavotte – pedi-lhe, quando regressei à sala com uma garrafa e duas flutes.

António afastou os pés, como se se estivesse a preparar para levar um murro. Passei a língua pelos lábios.

O rapaz foi puxar a Gavotte ao fundo da alma e projetou-a pela boca. Estava tão orgulhoso de si e tão abandonado à melodia, com uma semiereção tão bonita a avolumar-lhe as calças, que o amei o mais que me era possível nesse preciso momento e até senti lágrimas de orgulho embargarem-me a garganta. Fechei os olhos. Por detrás da escuridão das pálpebras, eu estava numa estação de comboios a ver partir todos aqueles em cujo leito de morte me sentara, atravessando um ponto de controlo que não se podia passar. Eu era o único sobrevivente. «Estou vivo», pensava, «e conheci um rapaz que tem a grandeza nos dedos!» Era o contraste que me deixava triste e feliz ao mesmo tempo; aqui estava eu, deixado para trás, mas a escutar a doce voz de um jovem português que ainda não vira morrer ninguém que amasse e que tinha todo um futuro pela frente. Quando terminou, disse-lhe que aprendera bem, e depois passei-lhe o copo de champanhe.

– Ao António, que vai conhecer a grandeza – brindei.

Ele sorriu, envergonhado. Pusemo-nos a beber, de pé, medindo-nos um ao outro como dois acrobatas antes de um espetáculo. Estávamos a ponderar se poderíamos confiar um no outro sem rede.

– Se não dou o salto agora, vou explodir – anunciei.

Ele continuou a olhar para mim, bebendo em pequenos goles.

– Temos de o fazer antes que passes a ser oficialmente meu aluno – expliquei. – Depois, não será possível.

Ele continuava a olhar para mim.

– Dá um gole no vinho, mas fica com o líquido na boca – pedi-lhe.

Ele assim fez. Aproximei-me, encostei o meu peito ao dele e agarrei-lhe as nádegas. Beijei-o e suguei-lhe o líquido da boca. António gemeu como se tivesse sido ferido. O seu membro inchou contra a minha perna. Dei um passo atrás. Ele tinha os olhos abertos e assustados.

– Saíste-me um animalzinho bem musculado – disse eu.

Depois disso, devorámo-nos simplesmente um ao outro. Não há nenhuma outra palavra que consiga descrever aquele nosso apetite. Ali mesmo na sala, desapertou-me as calças e caiu de joelhos. Gemeu como se estivessem a bater-lhe. Lambeu-me, chupou-me e deu-me dentadinhas como um escravo treinado para aquele tipo de atividade.

«Ele tem um dom natural», pensei novamente.

Acariciei-lhe o cabelo, massajei-lhe os ombros e caí-lhe sobre as costas, dobrado em dois, quando atingi o clímax.

Sim, Carlos, ele fez aquilo que tu sempre achaste nojento e engoliu a minha oferta. Com avidez, devo acrescentar.

Libertei-o das roupas e vi que tinha escondido nas calças um resplendente apontador do Antigo Testamento.

– Lindo – exclamei. – Aonde foste buscar isso?

– É grande de mais? – perguntou.

– É perfeito – respondi – e não há força neste mundo que me impeça de fazer as rondas que me forem atribuídas.

Fiz o melhor que pude, engasguei-me algumas vezes, mas não desisti; queria que ele se libertasse na minha boca porque sabia que acabaria depressa, e da segunda vez queria que me penetrasse e que fosse capaz de aguentar a ereção durante um bom bocado. O que acontece é que o miúdo tinha mais semente amarga do que o que seria expectável num par de tomates normal. Fez uma careta de dor quando ejaculou. Beijei-lhe o pescoço e disse-lhe que era lindo.

Ao fim de um minuto, começou de novo a gemer e a respirar fundo. E o latex mágico da alma de um jovem erguia-se entre as minhas mãos.

Doía-lhe ficar ereto outra vez, mas estávamos demasiado excitados para parar.

Pus-lhe um preservativo.

Fomos devagar porque tinham passado cinco anos desde a minha última experiência. Ao cabo de dez minutos, o apontador dele estava bem seguro dentro de mim. A arfar de pânico e de desejo, António não sabia o que havia de fazer.

Puxei-lhe as nádegas contra mim, para ele saber que tinha de avançar. Lentamente, começou a aproximar-se das minhas entranhas. Parecia que me abria ao meio, e a dor deixou-me inerte, mas naquele ponto levar a relação até ao fim era uma questão de orgulho – como soldados que se apoderam de uma colina sem qualquer valor estratégico, mas que significa muito para o moral das tropas. Finalmente, o raio da coisa estava toda dentro de mim. Deslizei sobre a cama, com ele deitado em cima de mim.

– Não te mexas! – ordenei-lhe.

Ele estava nervoso, com medo de me magoar, e senti-o a perder a ereção.

– Mato-te se te vais abaixo agora! – disse-lhe. – Avança quando quiseres.

E, como miúdo amoroso que era, ele fez-me a vontade.

A seguir desatei a chorar. Como não chorava havia anos. O rosto de António ficou lívido de medo. Fiz-lhe uma festa na face. Beijei-lhe todos os dedos.

– Não te preocupes – disse-lhe. – Tinha-me esquecido de que o sexo era assim… Há muito tempo e muito longe daqui, tocar num homem conseguia ajudar-nos a curar todas as feridas. – Coloquei as mãos dele sobre os meus olhos fechados. – Não me magoaste – garanti-lhe. – Só me transportaste um pouco de volta ao passado.

3 Palavra japonesa que exprime o conceito de «caminho para a revelação». (N. da T.)

4 Filme britânico de terror/ficção científica que saiu em 1964, sobre seis crianças identificadas pela UNESCO, provenientes de várias partes do mundo, que demonstram ter poderes telepáticos arrepiantes. (N. da T.)

5 «Asshole» no original. (N. da T.)

6 Vilão de desenho animado que fala inglês com sotaque russo e gramática e sintaxe deficientes. (N. da T.)