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A última década já me ensinou que os milagres acontecem, mas não são nada daquilo que sempre nos levaram a acreditar. Esperamos que nos tragam esperança, ressurreição e união – que nos ergam num tapete mágico e nos ponham frente a frente com o sagrado. Em vez disso, revelam a nossa extrema desesperança e afastamento da transcendência. Pegam-nos pela mão e guiam a nossa descida por lúgubres escadas até ao Mundo Inferior.

Um exemplo, Carlos, um dos muitos que nunca ousei referir:

Certo dia, Henry, o Colosso, falou-me de uma amiga chamada Anny, uma jovem de Düsseldorf que tinha sida. Há um ano que estava acamada no apartamento dos pais e não tinha forças para…

ir sozinha à casa de banho;

plantar os seus bolbos de tulipas;

pegar numa revista de jardinagem;

segurar um garfo.

Um dia, os pais tiveram de sair de casa por um motivo qualquer. Era a primeira vez em meses que ela ficava sozinha. Foi então que aconteceu o milagre:

Anny arranjou forças para sair da cama, escrever um bilhete de despedida, abrir a janela do apartamento num oitavo andar, pôr-se de pé no peitoril e saltar.

A notícia de que mais gostei no El País do dia seguinte foi uma breve nota acerca da boa saúde gastrointestinal do rei Juan Carlos, depois de uma crise aguda de disenteria, em França. Eis as palavras exatas: «Un excremento bien normal.» Teríamos progredido alguma coisa desde a Idade Média? Estávamos na última década do século XX, e a saúde da nação espanhola ainda dependia de o seu monarca ter ou não dificuldades na retrete.

António confessou ao pequeno-almoço que, afinal, não tinha visitado o Prado dois dias antes e, como tal, resolvemos acompanhá-lo nessa manhã. Subi rapidamente ao quarto para escovar os dentes e emborcar dois calmantes não fosse o Diabo tecê-las… Estava outro glorioso dia de sol e segui pela rua cantando baladas irlandesas revolucionárias como se marchássemos para Emerald City.

No museu, Miguel ficou fascinado com a pintura clássica espanhola e holandesa. António passou pelos quadros sem dizer palavra. Fi-lo parar diante dos Riberas e Goyas e El Grecos, mas ele não mostrou qualquer interesse.

Deixei a obra de Bosch para o fim. O rapaz limitou-se a baixar a cabeça, como se cumprimentasse conhecidos na rua.

– António, não tens nenhum comentário a fazer?

– Ainda não.

Enfiou o braço no meu e arrastou-me para uma sala circular com esculturas, pelo que não insisti mais. Miguel ia ficando para trás, estudando cada quadro como fosse uma pista para qualquer coisa que tivesse perdido.

O rés-do-chão do Prado é dedicado à pintura flamenga e espanhola.

– Agora quero voltar ao princípio e tornar a ver tudo sozinho – anunciou António, terminada a visita. – Desculpa, mas não consigo concentrar-me contigo a olhar para mim, à espera de que eu me manifeste.

Com um baque no peito, apercebi-me de que as minhas expectativas lhe pesavam demasiado.

– Ouve – disse ele, sorrindo –, à terceira volta, digo-te quais são as que adorei e as que detestei.

– Parece-me bem.

Sentei-me num banco de madeira, à espera de Miguel.

– E então? – perguntei, quando ele se sentou pesadamente ao meu lado.

– Viu o Cristo Abraçando São Bernardo?

– Passámos diante dele – respondi. – O António não quis parar para ver.

Miguel anuiu pensativamente. Pareceu-me que queria dizer alguma coisa, mas calou-se.

– Agora compreendo que é simbólico – disse, quebrando o silêncio que se instalara. – Ele não está realmente com Cristo. A ideia de Cristo é o seu apoio.

– Como a água no deserto – concordei.

– Não. Como a certeza que se tem, ao atravessar o deserto, de que há água à nossa espera.

– Sim, é uma imagem melhor.

Olhei com admiração para aquele ser bonito e inteligente ao meu lado. António tinha razão – havia uma ligação genética. Se Miguel tivesse tido uma oportunidade, por pequena que fosse, que coisas magníficas não teria criado com as suas poderosas mãos ou a sua voz de barítono! Por outro lado, ele tinha criado algo transcendentemente belo com a sua semente, se não tivesse…

– Não acredito nele – disse Miguel.

– Nele quem?

– Em Deus.

– Porquê?

– Não me parece que haja um Deus a velar pelo meu filho. – Deu-me uma palmadinha na perna. – Mas não censuro o artista pela sua fé. É um belo quadro. Faz-nos pensar. – Anunciou que iria continuar a visita e que nos encontraríamos na cafetaria dali por duas horas.

António acercou-se de mim pouco depois.

– Pronto para o meu tour?

– Ele conseguiu fazer tanto com tão poucas linhas, e quase sem cor. É espantoso – declarou, diante do desenho da Anunciação, de Cano.

O desenho não me dizia grande coisa. Apercebi-me de que não podemos prever o que comoverá aqueles que amamos.

Agarrou-me na mão e levou-me, como uma criança leva o pai ou a mãe a ver um tesouro, até junto de um desenho de Goya: um homem com um chapéu de burro numa sala de tribunal, escarnecido por uma multidão.

– Estás a ver? – perguntou. – Estás a ver como ele criou uma cena de humilhação e injustiça sem excesso de detalhes?

Comecei a perceber que o que comovia António era a economia de expressão – o gesto único que representa toda uma história. Mais tarde, por simples curiosidade, levei-o a ver o Cristo Abraçando São Bernardo.

– Não suporto este quadro – declarou.

– Não?

– É horrível. Tão falso. Tão inventado. Como se quisesse convencer o artista e todos os outros de uma mentira. Ao fim e ao cabo, todos sabemos que os santos eram uns intolerantes. Isto é propaganda do século XVII. O equivalente a um anúncio que nos promete saúde se comprarmos determinadas multivitaminas. Cristo era o suplemento vitamínico daqueles tempos.

Disse-lhe que achava que estava a ser demasiado crítico em relação ao artista.

– Nem por sombras – respondeu, sublinhando as palavras e abanando fervorosamente a cabeça.

Quando somos novos, temos tantas certezas.

Subimos para ver as salas da pintura da Renascença italiana e permanecemos durante muito tempo diante do quadro de Rafael Retrato de Um Cardeal. Trata-se de um jovem com vestes vermelhas, olhos tristes e a expressão de quem quer estar em qualquer lado menos ali – a posar para um pintor perfecionista.

– Acho que ele era gay – disse António de repente. – Qualquer coisa nele nos diz que está prisioneiro de um mundo que não deseja.

Depois disto, inventámos um jogo que consistia em descobrir gays e lésbicas nos quadros. António fixou-se na Virgem Maria da Imaculada Conceição, de Tiepolo. Vestia uma túnica parda de mangas compridas, nitidamente concebida para esconder todos os contornos femininos. Alvitrei que talvez sugerisse apenas pudor e castidade, mas o rapaz insistiu em que a sua teoria estava certa.

Depois de petiscarmos umas batatas fritas e bebermos uma Coca-Cola na cafetaria do museu, iniciámos o caminho de regresso ao hotel. Dei comigo a ver retratos renascentistas nos rostos dos transeuntes. Entre outros, vi o Homem de Turbante, de Van Eyck, com uma pasta preta na mão, à espera de um autocarro no lado norte da Plaza de Cánovas del Castillo. Tinha exatamente o mesmo rosto, pálido, irritado, feminino. Topei com um dos Cobradores de Impostos, de Reymerswaele, a coxear mesmo atrás de nós, na San Jerónimo; aquelas rugas de preocupação que lhe atravessavam a testa eram inconfundíveis. E quem mais poderia ter um lábio superior arrepanhado num rosnar permanente, revelando uma ruína de dentes orlados de castanho? Acenei cumplicemente ao homem, para lhe mostrar que lhe conhecia a verdadeira identidade. O tipo franziu o sobrolho; não queria revelar o disfarce.

Ao cabo de alguns minutos, comecei a suspeitar de que estava a ter alucinações. Já me acontecera, pelo que não fiquei muito preocupado. Perguntei a António e a Miguel se podíamos parar por um instante e, num café por detrás do Teatro Español, bebi dois copos de água, tentando expulsar a droga do corpo, e comi uma tosta de queijo e presunto, só porque sim.

Nem a comida nem a bebida fizeram grande coisa; o empregado parecia-me o Doge Veneziano Niccolò Marcello, pintado por Ticiano.

– Tem o mesmo nariz bolboso e a papada – confidenciei aos meus dois companheiros.

– Está bem, Professor? – perguntou Miguel.

– Estou ótimo – respondi. Não via razão para preocupar mais ninguém.

De regresso ao hotel, a jovem que tirou a chave do meu quarto de trás da secretária e ma passou mostrou-me o sorriso sem escrúpulos de Beatrix van der Laen, de Hals.

– Acho melhor deitar-me. Julgo estar a ter um ligeiro episódio psicótico – disse a António e ao pai, que me olharam com estranheza.

Eles dirigiram-se-me numa voz branda enquanto subíamos de elevador até aos nossos quartos, mas eu pensava com quem me pareceria.

Miguel ajudou-me a vestir o pijama, e enfiei-me na cama. Quando António me trouxe um copo de água, perguntei-lhe com quem era eu parecido.

– Que queres dizer com isso?

– Com quem é que eu me pareço?

Sentou-se ao meu lado e pousou-me a mão na testa. Depois, dirigiu-se ao pai:

– Não tem febre.

– Talvez o melhor fosse pedir ao gerente do hotel para chamar um médico – propôs Miguel.

– Tenho de ser parecido com alguém – insisti. – Toda a gente se parece com alguém. Se me disserem com quem sou parecido, vai correr tudo bem.

– É melhor telefonar para a receção – lançou Miguel.

– Nada de médicos! – ordenei.

Acabaram por fazer turnos para me vigiar enquanto dormia. Quando acordei, escurecia lá fora, tinha uma dor de cabeça atroz e estava cheio de sede.

– Sumo de maçã – murmurei. Disse-o de mim para comigo, porque não sabia se tinha voz e nesta altura estava convencido de que me encontrava sozinho em Los Angeles.

Uma luz acendeu-se. Miguel afastou-se da janela e veio ter comigo. Pareceu-me normal que ele estivesse em Los Angeles.

– Sente-se melhor? – perguntou.

– Sim. Pode trazer-me qualquer coisa para beber?

Ele foi à casa de banho, trouxe um copo cheio de água e passou-mo para a mão.

– Sente-se melhor?

– Miguel?

– Sim? O que foi?

De repente, tornou-se-me claro que não estava nos Estados Unidos. Estaria no Porto? Em Lisboa? A água parecia-me mais importante. Bebi-a toda de um só trago.

Madrid, ocorreu-me. De súbito, tudo me voltou à memória, como ar a entrar numa caverna que tivesse estado selada.

– Ainda estamos em Madrid?

– Sim.

Senti qualquer coisa peluda na cabeça. Era o gorro de lã com as lamas. Tirei-o.

– Não queria que apanhasse uma constipação – explicou. – Dantes, as pessoas usavam sempre gorros para dormir, sabe? A minha mãe e o meu pai usavam.

De súbito, recordei estar sentado com ele num banco do Prado e lembrei-me de como fora bom descobrir nele tantas semelhanças com António.

– Onde está o seu filho? – perguntei.

– No quarto dele. Vou chamá-lo.

Ele saiu e regressou com António, que se sentou do meu lado esquerdo, e Miguel do direito. Senti-me Dorothy na última cena d’O Feiticeiro de Oz.

Tu estiveste lá, e tu, e tu…

Não disse, porém, qualquer graçola porque sentia um terrível aperto no peito e me custava respirar.

– Precisa de alguma coisa?

– Sim, um calmante. Não sei onde estão. Veja no bolso da camisa.

– Nem pense nisso! – exclamou Miguel, com ar ameaçador. Olhou o filho: – Fazem-lhe mal. E tu não lhe podes comprar mais.

Esbocei um gesto com a mão, tentando chamar a atenção do miúdo.

– Estão no bolso da minha camisa. Não ligues ao teu pai.

O rapaz aproximou-se da cadeira para onde tinha atirado a camisa e inspecionou os bolsos.

– Não estão cá.

– Você tirou-os – rosnei a Miguel.

– Tirei sim, Professor.

– Quero-os de volta. Não são seus.

– Tarde de mais. Deitei-os fora.

Asshole – cuspi em inglês.

– Vamos comer – disse Miguel. – O Professor precisa de comer.

– Vá, nós vestimos-te – prontificou-se António.

– Não quero vestir-me. Não veem que estou prestes a ter um ataque cardíaco? Quero um calmante!

– Não – declarou Miguel.

Pensei em implorar, mas ainda me restava algum orgulho e não queria fazer figuras ridículas diante de António.

– Não faz mal – ripostei alegremente. – Vou à farmácia comprar mais.

– Esta noite não vai de certeza – declarou Miguel. – Estão todas fechadas.

– Estamos numa grande cidade, com quatro milhões de habitantes. Acha mesmo que sou a única pessoa a precisar de uma farmácia ou a ter um ataque de ansiedade neste preciso momento? Há sempre uma farmácia de serviço e, em última instância, vou para um hospital. O Hospital Americano. Os americanos compreendem o Valium.

António trouxe-me a roupa, enquanto eu me sentava a custo na cama. Tinha um corcel desenfreado dentro do peito e não conseguia meter oxigénio suficiente nos pulmões. O quarto rodava lentamente.

– Não me queres ajudar? – pedi a António.

– Vou arranjar-lhe um calmante. Provavelmente até têm lá em baixo, na receção – disse ele ao pai.

– Não sais daqui! – ordenou Miguel.

– Porque estás a ser tão autoritário? – perguntou António.

– Não estou a ser autoritário. Esses comprimidos fazem-lhe mal. E vão fazer-lhe ainda pior, se lhe deres mais.

Se eu tivesse uma lâmina, teria oferecido a Miguel o espetáculo operático que o seu heroico esforço merecia, apesar de lhe ter declarado uma fraca inclinação para o melodrama. Cortaria os pulsos e salpicá-lo-ia de sangue, até lhe cair aos pés num monte informe de autocompaixão. Não tinha, contudo, nada afiado por perto. Apetecia-me dar-lhe uma resposta carregada de sarcasmo. Apetecia-me chorar. Mas não fiz nem uma coisa nem outra.

– António, põe o banho a correr – ordenou Miguel.

O rapaz não se mexeu e pousou a mão trémula sobre os olhos.

– Não ouviste? – gritou-lhe o pai. – Põe-lhe o banho a correr. Já!

– Não sou a Blanche DuBois18 – observei. – Não é um banho quente que me vai poupar o colapso nervoso. Só mais um – implorei.

O rapaz entrou na casa de banho. Abriu a torneira. O barulho da água era tal que tive de tapar os ouvidos. Miguel sentou-se ao meu lado. Com António fora do quarto, eu estava livre para suplicar.

– Só um. Depois paro. Prometo.

Ele abanou a cabeça.

– Go away, you asshole – resmunguei em inglês.

Ele estendeu-me a mão, mas afastei-o.

Asshole! – exclamei. – Asshole, asshole, asshole!

Miguel franziu o sobrolho. Os olhos dardejavam-lhe.

– O que vai fazer, bater-me outra vez? – murmurei.

Ele fechou os olhos, encheu as bochechas de ar, ajoelhou no chão, pôs-me uma mão sobre cada perna e deixou cair a cabeça no meu colo.

Era como se eu fosse um carrasco e ele me estivesse a oferecer a sua vida. Ou como se fosse São Bernardo entregando-se a Cristo. Fiquei arrepiado ao vê-lo e senti-lo. Foi a primeira vez que percebi que ele imitava aquilo que via – tanto na arte, como nas pessoas. Talvez tivesse ignorado tanto tempo os seus instintos que precisasse dos outros para lhe darem as deixas corretas para atuar. Ou talvez não se conseguisse expressar suficientemente bem por palavras e procurasse outra forma de o fazer.

Querido Carlos, foi por isso que te dedicaste à pintura? Que tentavas tu dizer-me com todos aqueles arabescos e manchas de cor? Houve mesmo muitas coisas a teu respeito que me escaparam por completo.

De qualquer forma, fiquei perplexo, porque me pareceu que a arte poderia mudar Miguel. Na verdade, mudara-o – pelo menos, dera-lhe uma forma de expressar essa alteração. Apercebi-me de que não sabia quem ele era. Tão-pouco António. E que tínhamos de ser brandos com ele. Porque começava a acreditar que ele era mais recetivo do que qualquer um de nós os dois. Talvez sejam os seres mais frágeis quem precisa de uma armadura mais forte? Será possível?

Comecei a massajar-lhe a cabeça. O cabelo era suave. Não sabia o que fazer.

Miguel levantou-se e estendeu-me as mãos. Ainda sentado, abracei-o e escondi a cara no ventre dele.

– Vem cá, ajuda-me a pô-lo no banho – ouvi-o dizer a António, ao cabo de alguns segundos.

Levantei-me. O quarto parecia inclinado num ângulo estranho, como que prestes a cair a qualquer momento. Achei que fosse desmaiar. Senti que me tiravam o pijama e me mergulhavam com cuidado na água quente. Fechei os olhos e deixei que o vapor me toldasse o raciocínio. Miguel sentou-se na borda da banheira. António ficou de pé, à porta da casa de banho. Acenei-lhe um adeus. Ele respondeu-me com um sorriso.

Depois, Miguel deitou-me nu sobre a cama, de barriga para baixo. Sentou-se em cima de mim e começou a massajar-me as costas.

– Na equipa de ginástica, costumávamos massajar-nos uns aos outros depois dos treinos – explicou. – Para relaxar.

Os meus músculos dos ombros estavam tão tensos que a pressão dos dedos de Miguel era deliciosamente dolorosa. Fez-me pensar que o sexo é apenas uma forma extrema de massagem.

Quando me pôs as mãos sob a barriga e me levantou a caixa torácica uns centímetros acima do colchão, comecei a chorar. Não me sentia triste. Não fazia ideia do motivo por que chorava. Ele continuou a erguer-me, e as lágrimas continuaram a correr. Era como se deitasse qualquer coisa fora.

«Pedras orvalhadas de manhã cedo. Pedras a chorar por terem perdido a noite»: eis o que me ocorreu. E também me ocorreu que talvez ele tivesse tocado num ponto de mim nunca antes tocado. Mas isso parecia-me impossível.

18 Protagonista feminina do romance Um elétrico chamado desejo, de Tennessee Williams. Blanche é uma mulher conturbada e psicologicamente frágil. (N. da T.)