2.6.   O processo falimentar

Uma vez sendo a sentença de procedência e não tendo sido realizado o depósito elisivo, a falência do devedor será decretada, o que iniciará o processo falimentar propriamente dito, ou seja, a execução concursal do empresário individual ou da sociedade empresária.

Conforme já destacamos, o objetivo primordial do processo falimentar, segundo o art. 75 da LRE, é “promover o afastamento do devedor de suas atividades” visando a “preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa”. O mesmo art. 75 da LRE, em seu parágrafo único, ainda prevê que o processo falimentar deve atender “aos princípios da celeridade e da economia processual”.

O grande responsável pelo bom desenvolvimento do processo falimentar é o administrador judicial, que ficará encarregado de proceder, concomitantemente, ao (i) procedimento de arrecadação dos bens do devedor falido, o que dará origem à massa falida objetiva, e ao (ii) procedimento de verificação e habilitação dos créditos, o que dará origem à massa falida subjetiva.

2.6.1.   O procedimento de arrecadação dos bens do devedor

Já vimos que a decretação da falência produz efeitos jurídicos relevantes sobre os bens do devedor. Também já ressaltamos que não se deve confundir a pessoa jurídica (sociedade empresária) com a pessoa natural dos sócios que a integram. Sendo assim, tratando-se de decretação da falência de uma sociedade empresária, situação muito mais comum na prática, os bens atingidos pela instauração da execução concursal, em princípio, são os bens da sociedade, e não os dos sócios que a integram.

Dizemos em princípio porque, em se tratando de sociedades nas quais a responsabilidade é ilimitada – hipótese não muito comum, visto que a grande maioria das sociedades empresárias é limitada ou anônima, cuja responsabilidade dos sócios é limitada –, a decretação da falência da sociedade também acarreta a decretação da falência dos sócios, que se submetem aos mesmos efeitos, conforme disposto no art. 81 da LRE, já analisado. Ademais, ainda que se trate de sociedade cuja responsabilidade dos sócios seja limitada, eles poderão ter o seu patrimônio pessoal atingido, conforme previsto no art. 82 da LRE, também já examinado. Não se pode esquecer, ainda, da possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida (art. 50 do Código Civil), caso em que os sócios também poderão ser pessoalmente atingidos pelos efeitos da falência.

Já se viu que “desde a decretação da falência o devedor perde o direito de administrar os seus bens ou deles dispor” (art. 103 da LRE). Em razão disso, a administração dos seus bens passa para o administrador judicial, o qual, assim que assinar o termo de compromisso, “efetuará a arrecadação dos bens e documentos e a avaliação dos bens, separadamente ou em bloco, no local em que se encontrem, requerendo ao juiz, para esses fins, as medidas necessárias” (art. 108 da LRE).

Vê-se, então, que também é efeito específico da falência a arrecadação de todos os bens do devedor – com exceção dos bens absolutamente impenhoráveis (art. 108, § 4.°, da LRE), os quais deverão ser vendidos para que o produto da venda seja utilizado para o pagamento dos credores. Os bens arrecadados constituem, pois, a chamada massa falida objetiva, que corresponde, então, ao ativo do devedor submetido à execução concursal falimentar.

Arrecadados os bens, ou seja, formada a massa falida objetiva, estes “ficarão sob a guarda do administrador judicial ou de pessoa por ele escolhida, sob responsabilidade daquele, podendo o falido ou qualquer de seus representantes ser nomeado depositário dos bens” (art. 108, § 1.°, da LRE). Caso seja necessário, para facilitar os trabalhos de arrecadação, o juiz poderá até mesmo determinar a lacração do estabelecimento (art.109 da LRE).

A arrecadação será formalizada por meio da lavratura do auto de arrecadação (art. 110 da LRE), que será composto do inventário e do laudo de avaliação dos bens, os quais, sempre que possível, deverão ser individualizados. No inventário, serão referidos: “I – os livros obrigatórios e os auxiliares ou facultativos do devedor, designando-se o estado em que se acham, número e denominação de cada um, páginas escrituradas, data do início da escrituração e do último lançamento, e se os livros obrigatórios estão revestidos das formalidades legais; II – dinheiro, papéis, títulos de crédito, documentos e outros bens da massa falida; III – os bens da massa falida em poder de terceiro, a título de guarda, depósito, penhor ou retenção; IV – os bens indicados como propriedade de terceiros ou reclamados por estes, mencionando-se essa circunstância” (art. 110, § 2.°).

O juiz também poderá, se houver necessidade, autorizar a remoção dos bens arrecadados, para a sua melhor guarda e conservação, “hipótese em que permanecerão em depósito sob responsabilidade do administrador judicial, mediante compromisso” (art. 112 da LRE).

Tratando-se, por outro lado, de bens perecíveis, deterioráveis, sujeitos à considerável desvalorização ou que sejam de conservação arriscada ou dispendiosa, o juiz poderá autorizar a sua venda antecipada, ouvidos o comitê de credores, se houver, e o falido no prazo de 48 horas (art. 113 da LRE). Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

Falência. Leilão. Venda antecipada. Risco. Invasão. In casu, o Tribunal a quo reconheceu a necessidade da venda antecipada de duas fazendas de propriedade da massa falida, a fim de evitar invasões do MST, até porque já ocorreram no passado, além de serem dispendiosos os gastos para fiscalizar e guardar os imóveis. Ao prosseguir o julgamento, a Turma não conheceu do REsp. Embora a matéria requeira apreciação de fatos, o Min. Relator argumentou que, apesar de ainda não terem sido apreciados todos os créditos declarados no processo de falência, inviabilizando a confecção final do quadro geral de credores, justifica-se a medida devido ao risco de invasão pelo MST. Ademais, a título de cautela, a situação de urgência reclama e até autoriza o juízo falimentar a deferir a venda antecipada do bem, evitando prejuízos à massa falida e aos empregados sem pagamento. Outrossim, invocando palavras do MPF, destacou-se que a interposição do recurso contra a decisão de venda antecipada indica o exercício do direito ao contraditório pelo recorrente (REsp 648.014/RJ, Rel. Min. Castro Filho, j. 05.04.2005, Informativo 241/2005).

Outra medida que pode ser tomada pelo juiz, com a oitiva prévia do comitê, se houver, é a autorização para que alguns credores, de forma individual ou coletiva, em razão dos custos e no interesse da massa falida, adquiram ou adjudiquem, de imediato, os bens arrecadados, pelo valor da avaliação, atendida a regra de classificação e preferência entre eles (art. 111 da LRE). Essa medida é muitas vezes interessante, porque evita a realização de leilão para a venda dos bens, acelerando o trâmite do processo falimentar.

Por fim, regra muito importante quanto aos bens arrecadados do devedor é a prevista no art. 114 da LRE, segundo o qual “o administrador judicial poderá alugar ou celebrar outro contrato referente aos bens da massa falida, com o objetivo de produzir renda para a massa falida, mediante autorização do Comitê”. Trata-se de medida extremamente relevante, em alguns casos, podendo servir de modo deveras útil para a maximização do ativo do devedor falido. Com efeito, nos processos de falência que se prolonguem no tempo, é um desperdício deixar bens do devedor inutilizados, sobretudo quando há terceiros interessados em alugá-los, por exemplo. O valor dos aluguéis é uma renda extra que poderá ser de extrema valia no futuro, quando for realizado o pagamento dos credores.

2.6.1.1.   A investigação do período suspeito

A arrecadação dos bens do devedor falido não deve se restringir ao ativo que o devedor possui no momento em que sua falência foi decretada. Afinal, é bem possível que o devedor tenha se desfeito de bens que compunham seu ativo antes da decretação da quebra com o objetivo de evitar que tais bens fossem arrecadados no processo falimentar.

É justamente por esse motivo que, quando estudamos a sentença que decreta a falência do devedor, vimos que uma das principais medidas tomadas pelo juízo falimentar quando da sua prolação consiste na fixação do termo legal da falência, que irá delimitar o chamado período suspeito.

A principal finalidade da fixação do termo legal, como visto, é delimitar um lapso temporal prévio à decretação da falência que será investigado pelos credores, uma vez que durante esse período o empresário individual falido ou os administradores da sociedade empresária falida, por exemplo, pressentindo a futura decretação da quebra e temerosos quanto aos efeitos patrimoniais negativos advindos da instauração do processo falimentar, podem eventualmente ter praticado alguns atos que prejudiquem os interesses de credores.

Diante dessa inexorável realidade, a LRE contempla uma série de regras específicas que estabelecem a ineficácia de certos atos praticados pelo devedor falido antes da decretação da falência, e o reconhecimento da ineficácia desses atos perante a massa, consequentemente, permitirá que mais bens sejam incorporados a ela.

2.6.1.1.1.   Os atos do falido objetivamente ineficazes perante a massa

Segundo o art. 129 a LRE, alguns atos praticados pelo devedor falido antes da decretação de sua quebra, previstos nos seus incisos I a VII, “são ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante conhecimento do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores”.

Trata-se do que a doutrina chama de atos objetivamente ineficazes, uma vez que o reconhecimento de sua ineficácia independe da demonstração de fraude do devedor ou de conluio com o terceiro que com ele contratou. Veja-se que os atos objetivamente ineficazes estão previstos em rol taxativo e sua prática, em geral, ocorreu em certo lapso temporal específico – que muitas vezes é justamente o denominado período suspeito, delimitado a partir da fixação do termo legal da falência.

No inciso I do art. 129 da LRE, prevê-se como ato objetivamente ineficaz “o pagamento de dívidas não vencidas realizado pelo devedor dentro do termo legal, por qualquer meio extintivo do direito de crédito, ainda que pelo desconto do próprio título”. Ora, se a dívida não estava vencida, não era ainda exigível. O seu pagamento antecipado, por devedor que estava em situação pré-falimentar, é deveras estranho, justificando plenamente a previsão legal de sua completa ineficácia perante a massa. O pagamento antecipado de dívida ainda não vencida, enfim, viola a par condicio creditorum, pois concede a credor específico vantagem desarrazoada.

No inciso II, prevê-se também a ineficácia objetiva do “pagamento de dívidas vencidas e exigíveis realizado dentro do termo legal, por qualquer forma que não seja a prevista pelo contrato”. Nesse caso, veja-se, a dívida já estava vencida e era, portanto, exigível. Todavia, o seu pagamento por meio diverso do previsto contratualmente é que causa estranheza e justifica a previsão de sua ineficácia perante a massa.

No inciso III, prevê-se que é objetivamente ineficaz “a constituição de direito real de garantia, inclusive a retenção, dentro do termo legal, tratando-se de dívida contraída anteriormente; se os bens dados em hipoteca forem objeto de outras posteriores, a massa falida receberá a parte que devia caber ao credor da hipoteca revogada”. Caso semelhante já foi analisado quando do estudo do ato de falência constante do art. 94, inciso III, alínea e, da LRE. Tem-se em ambos os casos uma conduta do devedor que viola, frontalmente, a par condicio creditorum. Afinal, se a dívida já tinha sido contraída, sem que no momento de sua assunção tivesse sido exigida garantia, não há razão para o devedor dar essa garantia posteriormente. Com efeito, dar ou reforçar uma garantia só é interessante, para o devedor, no momento da obtenção do crédito, podendo servir, por exemplo, para a consecução de mais prazo ou para o acerto de menores taxas de juros. Se a dívida já foi contraída, todavia, o oferecimento de garantia ou o reforço da garantia já existente perdem a sua utilidade prática, sendo razoável imaginar que nessa hipótese o devedor está agindo para beneficiar um credor em detrimento dos demais.

No inciso IV, por sua vez, é prevista como ato objetivamente ineficaz “a prática de atos a título gratuito, desde 2 (dois) anos antes da decretação da falência”. Embora nesse caso não se utilize o termo legal como referência, também se exige, para o reconhecimento da ineficácia do ato, que o mesmo tenha sido praticado em determinado lapso temporal prévio à decretação da quebra. Ora, já vimos, no capítulo II, que é da essência do direito empresarial lidar com situações onerosas, dados a especulação e o intuito lucrativo típicos das atividades econômicas exercidas pelos empresários e pelas sociedades empresárias. O simples fato de o devedor falido ter praticado atos gratuitos, de mera liberalidade, em período no qual, supõe-se, ele já tinha consciência do seu estado de crise, por si só justifica o dispositivo em questão. Devem ser ressalvados, entretanto: (i) os atos gratuitos de valor irrisório, como as doações a entidades beneficentes e os brindes promocionais, e (ii) as gratificações pagas a diretores e empregados.

No inciso V, por outro lado, está prevista a ineficácia objetiva da “renúncia à herança ou a legado, até 2 (dois) anos antes da decretação da falência”. Mais uma vez não se usou o termo legal como referência temporal, mas o prazo de dois anos anterior à quebra. A justificativa desse dispositivo é a mesma do dispositivo analisado no parágrafo anterior. A renúncia pode ter sido feita de forma premeditada, na certeza de que os valores herdados seriam inevitavelmente arrecadados para a massa quando da decretação da quebra.

No inciso VI, por sua vez, é considerada ato objetivamente ineficaz “a venda ou transferência de estabelecimento feita sem o consentimento expresso ou o pagamento de todos os credores, a esse tempo existentes, não tendo restado ao devedor bens suficientes para solver o seu passivo, salvo se, no prazo de 30 (trinta) dias, não houver oposição dos credores, após serem devidamente notificados, judicialmente ou pelo oficial do registro de títulos e documentos”. Esse caso também já foi analisado quando do estudo do ato de falência constante do art. 94, III, alínea c (ver ainda o tópico do capítulo II sobre estabelecimento empresarial). Com efeito, dentre as regras especiais previstas pelo Código Civil para a realização do trespasse, destaca-se a constante do art. 1.145, segundo a qual o alienante do estabelecimento deve guardar bens suficientes para solver o seu passivo ou então notificar os credores para que estes consintam com a venda. O trespasse irregular do estabelecimento, pois, além de ser considerado ato de falência, é fulminado com a previsão de ineficácia objetiva perante a massa.

Por fim, no inciso VII, a lei prevê a ineficácia objetiva dos “registros de direitos reais e de transferência de propriedade entre vivos, por título oneroso ou gratuito, ou a averbação relativa a imóveis realizados após a decretação da falência, salvo se tiver havido prenotação anterior”. Sabe-se que a oneração ou a alienação de bem imóvel só se aperfeiçoa, produzindo efeitos perante terceiros, depois de devidamente registrada no órgão competente, isto é, o cartório de registro de imóveis. Ora, se até a decretação da falência não tinha sido levado a efeito o registro, ele será completamente ineficaz perante a massa se feito após a sentença de quebra. A única exceção aberta pela norma em questão é a existência de prenotação anterior. Isso nos leva a concluir, pois, a contrario sensu, que a simples operação de venda de bens imóveis do devedor ou a mera constituição de garantia sobre eles, antes da decretação de sua falência – ainda que dentro do período suspeito –, é plenamente válida e eficaz. Esse sempre foi o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça, conforme demonstram os julgados a seguir transcritos:

Ação revocatória. Art. 52, VII, da Lei de Falências. Precedentes da Corte. 1. Como assentado na jurisprudência da Corte, “inocorrendo demonstração de fraude, é eficaz em relação à massa falida a alienação de imóvel de sua propriedade ocorrida dentro do termo legal da falência, também denominado período suspeito, mas anteriormente à declaração da quebra” (REsp n.° 246.667/SP, Relator o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 14.04.2003; na mesma linha: REsp n.° 168.401/RS, relator o Ministro Barros Monteiro, DJ de 17/2/03; REsp n.° 228.197/SP, de minha relatoria, DJ de 18/12/2000). 2. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 681.798/PR, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 22.08.2005, p. 271).

Ação revocatória. Venda de bem imóvel no período suspeito. Súmula n.° 07 da Corte. Dissídio. 1. Precedentes da Corte já assentaram que “se a transferência se deu no período suspeito, mas antes da decretação da falência, sua nulidade depende da prova da fraude” (REsp n.° 139.304/SP, Relator o Ministro Ari Pargendler, DJ de 23.04.2001). 2. Não cabe em recurso especial fazer um novo exame da prova dos autos para desmontar aquele constante do acórdão recorrido sobre o cenário fático relativo à operação com os imóveis, à fraude em relação à certidão para a operação e ao preço vil. 3. O dissídio sem a devida demonstração analítica, com a mera transcrição de ementas, no caso, não tem como ter êxito. 4. Recurso especial não conhecido (STJ, REsp 510.404/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 29.03.2004, p. 232).

Falência. Alienação. Imóvel. Período suspeito. A Turma reafirmou que, se não existir demonstração de fraude, é eficaz a alienação de imóvel de propriedade da massa falida ocorrida durante o termo legal da falência (período suspeito), mas anterior à declaração da quebra. Precedentes citados: REsp 246.667/SP, DJ 14.04.2003; REsp 168.401/RS, DJ 17.02.2003, e REsp 228.197/SP, DJ 18.12.2000 (REsp 681.798/PR, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 12.05.2005, Informativo 246/2005).

Ocorre que, se a venda foi feita, mas o registro respectivo não foi efetuado, não se poderá fazê-lo depois da sentença de quebra. É isso o que a regra em comento preceitua. E a razão para essa regra é bastante simples: caso se admitisse o registro posterior, estar-se-ia abrindo uma brecha perigosa, isto é, permitindo que se forjasse um contrato de compra e venda anterior à sentença, para justificar o registro posterior à quebra. Isso explica, ademais, o fato de a lei fazer uma única ressalva: a existência de prenotação anterior.

Pois bem. Descoberta a prática de um dos atos acima descritos e analisados, “a ineficácia poderá ser declarada de ofício pelo juiz, alegada em defesa ou pleiteada mediante ação própria ou incidentalmente no curso do processo” (art. 129, parágrafo único, da LRE). Trata-se de novidade interessantíssima trazida pela nova legislação falimentar, uma vez que na vigência da legislação anterior o reconhecimento da ineficácia objetiva se submetia ao procedimento da ação revocatória, hoje restrita às hipóteses de ineficácia subjetiva, analisadas adiante.

É preciso destacar, entretanto, que, segundo o art. 131 da LRE, “nenhum dos atos referidos nos incisos I a III e VI do art. 129 desta Lei que tenham sido previstos e realizados na forma definida no plano de recuperação judicial será declarado ineficaz ou revogado”.

2.6.1.1.2.   Os atos do falido subjetivamente ineficazes perante à massa

Além dos atos objetivamente ineficazes, previstos no rol exaustivo do art. 129 da LRE, ela também prevê, no seu art. 130, que “são revogáveis os atos praticados com a intenção de prejudicar credores, provando-se o conluio fraudulento entre o devedor e o terceiro que com ele contratar e o efetivo prejuízo sofrido pela massa falida”. Trata o dispositivo em questão, pois, dos atos com ineficácia subjetiva, os quais só terão reconhecida a sua ineficácia se forem provados (i) a intenção de prejudicar os credores, (ii) o conluio fraudulento entre o devedor e o terceiro que contratou com ele e (iii) o real prejuízo da massa.

Perceba-se ainda que, no caso dos atos subjetivamente ineficazes, não há a previsão específica de condutas típicas do devedor nem a utilização de nenhum marco temporal como referência. Em princípio, portanto, qualquer ato do devedor que os credores julguem encaixar-se na previsão do art. 130 da LRE, independentemente da época de sua prática, pode ser questionado com o requerimento de declaração da sua ineficácia perante a massa.

2.6.1.1.2.1.   A ação revocatória

Ao contrário do que ocorre com os atos de ineficácia objetiva previstos no art. 129 da LRE, a declaração de ineficácia subjetiva não poderá ser reconhecida de ofício pelo juiz, alegada em defesa ou pleiteada incidentalmente. Nesse caso, será necessário o ajuizamento de ação própria, a chamada ação revocatória, a qual, segundo o art. 132 da LRE, “deverá ser proposta pelo administrador judicial, por qualquer credor ou pelo Ministério Público no prazo de 3 (três) anos contado da decretação da falência”. Aqui houve mais uma novidade importante trazida pela legislação falimentar atual. É que na lei anterior o prazo para a sua propositura era de apenas 1 (um) ano, e a legitimidade ativa, no primeiro mês, era exclusiva do síndico. Na LRE, além de o prazo ter sido aumentado para três anos, a legitimidade, desde o início, é concorrente entre administrador judicial, credores e Ministério Público.

Embora o art. 132 da LRE confira legitimidade ativa ao administrador judicial, a melhor interpretação, de fato, é a de que tal legitimidade é da própria massa falida, agindo o administrador judicial como seu representante – ou presentante. Com efeito, muitas vezes, na prática quem ingressa com a ação é o próprio administrador judicial, em seu nome, e isso, na nossa opinião, configura vício formal sanável, devendo o juiz, com base no art. 284 do CPC, determinar a emenda da inicial para a sua correção, e não extinguir o processo por ilegitimidade ad causam, como fazem alguns magistrados. Nesse sentido, confira-se o seguinte julgado do STJ, o qual, embora tenha analisado a questão à luz da lei antiga, vale também para a lei atual:

Direito Falimentar. Ação revocatória. Legitimidade ativa. 1. A redação do art. 55 do antigo Decreto-Lei n. 7.661/1945 gerava dúvidas quanto à legitimidade ativa para a ação revocatória, embora a melhor interpretação fosse a que conferia tal legitimidade à própria massa, agindo o síndico como seu representante. 2. No entanto, o fato de o síndico ingressar com a ação em seu nome configura vício formal sanável, que pode ser corrigido com a determinação de emenda da inicial (art. 284 do CPC). 3. Aplicação, ao caso, do princípio da instrumentalidade das formas. 4. Recurso especial conhecido e provido (STJ, 4.ª T., REsp 919.737/RJ, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 18.10.2011, DJ 24.10.2011).

A ação revocatória, que corre perante o juízo universal da falência e segue o rito ordinário do Código de Processo Civil (art. 134 da LRE), pode ser ajuizada contra: (i) todos os que figuraram no ato ou que por efeito dele foram pagos, garantidos ou beneficiados; (ii) os terceiros adquirentes, se tiveram conhecimento, ao se criar o direito, da intenção do devedor de prejudicar os credores; (iii) os herdeiros ou legatários das pessoas indicadas nos dois casos ora mencionados (art. 133 da LRE).

Julgada procedente a ação revocatória pelo juiz da falência, este “determinará o retorno dos bens à massa falida em espécie, com todos os acessórios, ou o valor de mercado, acrescidos das perdas e danos” (art. 135 da LRE). Esses bens ou valores obtidos por meio da ação revocatória, é óbvio, servirão no futuro para pagamento de todos os credores, respeitada a ordem de preferência de cada um deles. Da sentença proferida na ação revocatória cabe apelação (art. 135, parágrafo único).

Ressalte-se ainda que durante o curso da ação revocatória o juiz pode, exercendo o seu poder geral de cautela, “a requerimento do autor da ação, ordenar, como medida preventiva, na forma da lei processual civil, o sequestro dos bens retirados do patrimônio do devedor que estejam em poder de terceiros”.

Por fim, o ato objetivamente ou subjetivamente ineficaz pode assim ser reconhecido “ainda que praticado com base em decisão judicial, observado o disposto no art. 131 desta Lei” (art. 138 da LRE). Nesse caso, “ficará rescindida a sentença que o motivou” (art. 138, parágrafo único).

2.6.1.2.   Os pedidos de restituição

Acabamos de ver que a arrecadação dos bens do devedor, como medida que visa à definição do seu ativo, com a consequente formação da massa falida objetiva, é procedimento que determina que o administrador judicial arrecade todos os bens do falido, ficando estes sob os seus cuidados. Assim, o administrador judicial se responsabilizará pela sua guarda e conservação até o momento da realização da venda, cujo produto será usado para pagamento dos credores.

Ocorre que o procedimento de arrecadação abrange tanto os bens de propriedade do devedor falido quanto os bens que apenas se encontram na sua posse, como, por exemplo, bens dos quais ele é mero locatário ou comodatário. Sendo assim, pode ser, eventualmente, que a arrecadação atinja bens de terceiros, os quais, logicamente, não poderão de forma alguma ser utilizados para pagamento dos credores do falido. Portanto, para que se complete a correta definição do ativo que será executado no processo falimentar, é preciso proceder, após a arrecadação, à restituição de alguns bens aos seus reais proprietários.

Alguns doutrinadores, pois, dividem o procedimento de definição do ativo do devedor falido em duas fases: (i) a integração, que corresponde à arrecadação de todos os bens em posse do falido, e (ii) a desintegração, que corresponde à restituição de alguns desses bens arrecadados.

Há basicamente quatro hipóteses que ensejam a possibilidade de pedido de restituição de bens, para as quais a LRE estabelece procedimento específico, regulado nos seus arts. 85 a 93.

2.6.1.2.1.   Os fundamentos dos pedidos de restituição

O primeiro caso de restituição de bens arrecadados está consagrado no art. 85 da LRE, segundo o qual “o proprietário de bem arrecadado no processo de falência ou que se encontre em poder do devedor na data da decretação da falência poderá pedir sua restituição”. Tem-se, aqui, caso em que o bem arrecadado é de propriedade de terceiro. Pode ser, por exemplo, que o bem tivesse sido entregue ao falido em comodato.

O segundo caso está previsto no art. 85, parágrafo único, da LRE, que dispõe o seguinte: “também pode ser pedida a restituição de coisa vendida a crédito e entregue ao devedor nos 15 (quinze) dias anteriores ao requerimento de sua falência, se ainda não alienada”. Aqui a situação é um pouco diferente. Trata-se de bem que foi vendido a crédito ao falido, entregue a este até quinze dias antes da decretação de sua quebra e ainda não alienado. O objetivo do legislador, nesse caso, foi proteger o terceiro de boa-fé que contratou com o falido às vésperas de sua falência. Afinal, nos quinze dias anteriores à quebra é bastante provável que o empresário devedor ou os administradores da sociedade devedora soubessem da situação de crise da empresa, fato que deveria fazer com que não adquirissem mercadorias a crédito, haja vista a grande possibilidade de não poderem honrar o compromisso assumido.

A terceira hipótese de restituição, por sua vez, está assegurada pelo art. 86, II, da LRE, que faz referência a outro dispositivo normativo. Com efeito, prevê a norma em comento que caberá a restituição em dinheiro “da importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3.° e 4.°, da Lei n.° 4.728, de 14 de julho de 1965, desde que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não exceda o previsto nas normas específicas da autoridade competente”. Destaque-se que, nesse caso, conforme será reiterado adiante, a restituição deve ser feita em dinheiro. O dispositivo em questão foi uma importante inovação da LRE, mas que tem causado muita polêmica entre os doutrinadores. Enquanto uns o defendem de forma veemente, destacando a importância da reforma do direito falimentar brasileiro para a redução dos juros e o desenvolvimento da economia nacional, outros o criticam severamente, vendo nele apenas mais uma medida da lei em defesa do capital financeiro e em detrimento dos demais credores do falido. Em nossa opinião particular, o dispositivo é bem vindo. Com efeito, já afirmamos aqui mais de uma vez que um dos principais objetivos da LRE foi conferir mais segurança ao crédito e, com isso, reduzir os juros cobrados nessas operações. Portanto, regras como a ora analisada servem bem a essa finalidade, conferindo a ela um custo-benefício positivo.

Ademais, não custa lembrar que há bastante tempo os Tribunais Superiores pátrios já vinham entendendo que os valores referentes a adiantamento a contrato de câmbio deveriam mesmo ser restituídos, e não habilitados junto aos demais créditos para recebimento posterior. Isso porque a própria Lei 4.728/1965 determina isso expressamente, em seu art. 75, § 3.°. O Supremo Tribunal Federal, analisando essa norma, entendeu pela sua constitucionalidade.

Lei de Mercado de Capitais. Adiantamento feito por instituição financeira a exportador, por conta do valor do contrato de câmbio. Concordata. A restituição a que alude o par. 3.° do art. 75 da Lei 4.728/65, não viola o princípio da isonomia (par. 1.° do art. 153 da Constituição Federal). Inexistência de dissídio com a Súmula 417 que, por ser anterior à Lei de Mercado de Capitais, não se refere à restituição em causa. Recurso extraordinário não conhecido (STF, RE 88.156, Rel. Min. Rodrigues Alckmin).

Após a promulgação da atual Constituição, o mesmo Supremo Tribunal Federal voltou a decidir sobre o assunto, entendendo que a questão é de índole infraconstitucional (AI 435.032, Rel. Min. Cezar Peluso). E o Superior Tribunal de Justiça, competente para uniformização da interpretação da legislação infraconstitucional, também entendeu, em vários julgados, da mesma forma que o STF, consolidando seu posicionamento no Enunciado 307 de sua súmula de jurisprudência dominante, que assim dispõe: “a restituição de adiantamento de contrato de câmbio, na falência, deve ser atendida antes de qualquer crédito”.

(...) É pacífica a jurisprudência deste Tribunal Superior no sentido de que, em processo de falência, os pedidos de restituições adiantadas à conta de contrato de câmbio (art. 75, § 3.°, da Lei n. 4.728/1965) devem efetivar-se antes do pagamento de qualquer crédito, ainda que trabalhista, pois os bens a que se referem não integram o patrimônio do falido. (...) (REsp 439.814/RS, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 18.11.2004, Informativo 229/2004).

(...) Consoante jurisprudência consolidada nesta Corte Superior, é cabível o pedido de restituição baseado no adiantamento de contrato de câmbio, pois os valores dele decorrentes não integram o patrimônio da massa falida ou da empresa concordatária (art. 75, § 3.°, da Lei 4.728/65 – Lei do Mercado de Capitais). 4. A teor da Súmula 133 do STJ, “a restituição da importância adiantada, a conta de contrato de câmbio, independe de ter sido a antecipação efetuada nos quinze dias anteriores ao requerimento da concordata” ou da falência, não incidindo, portanto, a condição temporal prevista no art. 76, § 2.°, da antiga Lei de Falências. 5. “A restituição de adiantamento de contrato de câmbio, na falência [ou concordata], deve ser atendida antes de qualquer crédito” (Súmula 307 do STJ), ainda que seja o mesmo de natureza trabalhista. (...) (AgRg no Ag 510.416/RJ, Rel. Min. Vasco Della Giustina (desembargador convocado do TJ/RS), 3.ª Turma, j. 04.02.2010, DJe 23.02.2010).

Ainda segundo o adiantamento em contrato de câmbio, a Súmula 36 do STJ dispõe que “a correção monetária integra o valor da restituição, em caso de adiantamento de cambio, requerida em concordata ou falência”.

Há ainda uma quarta hipótese de restituição, prevista no art. 86, III, da LRE, que está disciplinada no art. 136 da LRE. Trata-se da situação em que o juiz declara a ineficácia de ato praticado pelo falido antes da decretação da quebra, caso em que “as partes retornarão ao estado anterior, e o contratante de boa-fé terá direito à restituição dos bens ou valores entregues ao devedor”. Nesse caso a restituição também será feita em dinheiro, conforme será reiterado no tópico seguinte.

Destaque-se também uma situação especial, relativa aos valores descontados pelo devedor falido no salário de seus empregados, a título de contribuição social para o INSS. De acordo com o art. 51, parágrafo único, da Lei 8.212/1991, nos processos de falência “o Instituto Nacional do Seguro Social-INSS reivindicará os valores descontados pela empresa de seus empregados e ainda não recolhidos”. Portanto, tratando-se dos valores devidos pelo devedor falido relativos à contribuição social dos seus empregados – que cabe a ele, empresário, descontar do salário dos funcionários e recolher –, deve o INSS formular pedido de restituição, e não habilitar tais créditos no quadro-geral. A habilitação é feita apenas em relação aos valores devidos pelo próprio devedor falido, relativos à contribuição social devida por ele mesmo. Nesse sentido, entende o Superior Tribunal de Justiça:

Falência. Recolhimento. Contribuição previdenciária. Os valores recolhidos dos empregados a título de contribuição previdenciária não podem incorporar-se à massa falida porque não fazem parte do ativo da empresa. Sequer há que se falar em preferência de créditos trabalhistas, pois há, sim, a não incorporação ao patrimônio do falido, que é mero intermediário entre empregados e o INSS (REsp 596.797/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 11.05.2004).

Execução fiscal. Contribuição previdenciária. Massa falida. Trata-se de execução fiscal interposta pelo INSS em processo falimentar, pedindo a restituição das contribuições previdenciárias descontadas dos salários dos empregados, mas não repassadas à autarquia. O Tribunal a quo admitiu a procedência do pedido, considerando incabível a inclusão de juros no valor a restituir e, ainda, determinou que a restituição fosse processada após a satisfação dos créditos trabalhistas. A Turma deu parcial provimento, entendendo que não houve prequestionamento quanto à questão dos juros, porém reconheceu que os valores dos salários dos empregados retidos a título de contribuição previdenciária pela empresa devem ser devolvidos independentemente de rateio (art. 76 da Lei de Falências). Ressaltou-se a jurisprudência da Segunda Seção deste Tribunal, no sentido de que esse crédito não integra o patrimônio do falido. Precedente citado: REsp 90.068/SP, DJ 15.12.1997 (REsp 506.096/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 18.11.2003, Informativo 192/2003).

Em suma: o INSS deve (i) pedir restituição das contribuições sociais devidas pelos empregados – que o devedor falido devia ter descontado dos seus salários e recolhido – e (ii) habilitar como crédito fiscal as contribuições devidas pelo empregador, na qualidade de créditos fiscais. E a razão é bem simples: no que se refere às contribuições dos empregados, os valores não podem ser incorporados à massa, conforme descrito na decisão do STJ acima transcrita, uma vez que não se trata de dinheiro do devedor falido. Cuida-se, na verdade, de dinheiro do INSS, que o falido apenas tinha a obrigação de descontar dos seus funcionários e recolher aos cofres públicos. Se não o fez, o INSS deve tão somente pedir a sua restituição.

Por fim, cumpre fazer uma observação relevante, referente aos valores dos correntistas de instituições financeiras – bancos – que eventualmente tenham a sua falência decretada. Pergunta-se: nesse caso, poderiam os correntistas fazer pedido de restituição em relação aos valores depositados em suas contas bancárias, alegando que os valores em questão não seriam da instituição financeira, mas deles? A resposta é negativa. A matéria, ainda na vigência da legislação falimentar anterior – que cuidava dos pedidos de restituição em seu art. 76 –, já estava pacificada no âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

Agravos contra decisão monocrática proferida em recurso especial. Restituição de depósitos bancários. Indevida. Honorários advocatícios. Reduzidos. Art. 20, § 4.°, do CPC. Os depósitos bancários não se enquadram na hipótese do art. 76 da Lei de Falências, pois neles, em particular, ocorre a transferência da titularidade dos valores à instituição bancária, ficando o correntista apenas com o direito ao crédito correspondente. A verba honorária fixada “consoante apreciação equitativa do juiz” (art. 20, § 4.°, CPC), por decorrer de ato discricionário do magistrado, deve traduzir-se num valor que não fira a chamada lógica do razoável, pois em nome da equidade não se pode baratear a sucumbência, nem elevá-la a patamares pinaculares. Improvido o agravo da Massa Falida do Banco do Progresso S.A. e provido o agravo do correntista, para reduzir a verba honorária (AgRg no REsp 660.762/MG, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 13.06.2005, p. 316).

Direito comercial. Agravos no recurso especial. Ação de restituição. Falência de instituição financeira. Correntista. Depósito bancário. Impossibilidade de restituição. Decisão unipessoal. Precedente da Segunda Seção não publicado. Na falência de instituição financeira, o titular de contrato depósito de dinheiro em conta-corrente não possui direito à restituição dos valores depositados. Não há nulidade na decisão unipessoal que, ao utilizar precedente não publicado, aponta as razões adotadas pelo Colegiado. Precedentes do STF. Agravos não providos (AgRg no REsp 509.467/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 28.06.2004, p. 306).

Recurso especial. Depósito. Caderneta de poupança. Instituição bancária. Decretação de falência. Artigo 76, do DL 7661/45. Inexistência de afronta ao artigo 535, II, do Código de Processo Civil. Aplicação in casu da Súmula 417/STF. Provimento do recurso. 1. No contrato de depósito bancário, o depositante transfere à instituição financeira depositária a propriedade do dinheiro, passando esta a ter sobre ele total disponibilidade. Este contrato, por construção doutrinária e jurisprudencial, é equiparado ao contrato de mútuo. É chamado de depósito irregular (depósito de coisas fungíveis). 2. Decretada a falência da instituição financeira, os depósitos decorrentes de contrato autorizado em lei passam a incorporar a massa falida, e não podem ser objeto de ação de restituição, exceto nos casos em que possa haver a individuação das notas ou do metal que as represente, nos termos do artigo 76, da Lei de Falências (DL 7661/45). Sobre a matéria manifestou-se o colendo Supremo Tribunal Federal mediante a edição da Súmula 417: “pode ser objeto de restituição, na falência, dinheiro em poder do falido, recebido em nome de outrem, ou do qual, por lei ou contrato, não tivesse ele a responsabilidade”. 3. Ocorrendo a liquidação extrajudicial da Instituição Financeira os depósitos denominados irregulares, passam a integrar a massa falida gerando direito de crédito e não à restituição dos valores depositados, concorrendo o correntista com os demais credores quirografários. 4. Recurso especial provido para, reformando o acórdão, negar o direito à restituição dos depósitos dos recorrentes, cujos valores deverão ser incluídos no quadro geral de credores, em liquidação, sem qualquer privilégio (REsp 492.956/MG, Rel. Min. José Delgado, DJ 26.05.2003, p. 268).

Civil e processual. Recurso especial. Falência. Restituição de depósitos bancários. Impossibilidade. Precedentes. Provimento. I. “Os depósitos bancários não se enquadram na hipótese do art. 76 da Lei de Falências, pois neles, em particular, ocorre a transferência da titularidade dos valores à instituição bancária, ficando o correntista apenas com o direito ao crédito correspondente” (AgRg no REsp 660762/MG, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 13.06.2005 p. 316). Precedentes. II. Recurso especial provido para julgar improcedente a ação de restituição de depósitos (REsp 810.390/MG, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4.ª Turma, j. 03.09.2009, DJe 13.10.2009).

Em resumo: havendo a decretação da falência de instituição financeira, os correntistas não fazem jus ao pedido de restituição dos valores depositados, devendo, pois, requerer habilitação do crédito respectivo, concorrendo na classe dos credores quirografários.

2.6.1.2.2.   As hipóteses de restituição em dinheiro

A restituição, em geral, poderá ser feita em dinheiro ou por meio da devolução do próprio bem. Em alguns casos, porém, a LRE impõe que a restituição seja feita em dinheiro, matéria que está regulada nos incisos I, II e III do seu art. 86. Assim, a restituição em dinheiro ocorrerá em três situações: (i) quando “a coisa não mais existir ao tempo do pedido de restituição, hipótese em que o requerente receberá o valor da avaliação do bem, ou, no caso de ter ocorrido sua venda, o respectivo preço, em ambos os casos no valor atualizado”; (ii) quando se tratar de restituição de valores adiantados em decorrência de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3.° e 4.°, da Lei 4.728/1965; e (iii) quando se tratar de restituição “dos valores entregues ao devedor pelo contratante de boa-fé na hipótese de revogação ou ineficácia do contrato, conforme disposto no art. 136 desta Lei”.

Estes dois últimos casos foram analisados detalhadamente nos parágrafos anteriores.

Ressalte-se, entretanto, que todas essas hipóteses de restituição em dinheiro “somente serão efetuadas após o pagamento previsto no art. 151 da LRE” (art. 86, parágrafo único). O art. 151, por sua vez, determina que “os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores à decretação da falência, até o limite de 5 (cinco) salários mínimos por trabalhador, serão pagos tão logo haja disponibilidade em caixa”. Vê-se, pois, que os ataques de diversos autores à LRE, que a classificam como a “lei dos banqueiros”, muitas vezes é puro discurso ideológico. O legislador preocupou-se, realmente, em dar mais garantias ao crédito, com o intuito de reduzir os juros e fomentar o desenvolvimento econômico, mas não se esqueceu de assegurar prerrogativas a outros credores importantes, como, por exemplo, os trabalhadores.

2.6.1.2.3.   O procedimento do pedido de restituição

De acordo com o art. 87 da LRE, “o pedido de restituição deverá ser fundamentado e descreverá a coisa reclamada”. Uma vez formulado, o mesmo “suspende a disponibilidade da coisa até o trânsito em julgado” (art. 91 da LRE).

É óbvio que o requerimento será formulado perante o juízo universal da falência, o qual “mandará autuar em separado o requerimento com os documentos que o instruírem e determinará a intimação do falido, do Comitê, dos credores e do administrador judicial para que, no prazo sucessivo de 5 (cinco) dias, se manifestem, valendo como contestação a manifestação contrária à restituição” (art. 87, § 1.°). Poderá o juiz, inclusive, se entender necessário, determinar a realização de audiência de instrução e julgamento (art. 87, § 2.°).

Julgado procedente por sentença o pedido de restituição, o juiz determinará, imediatamente, que a coisa seja entregue ao autor do pedido no prazo de 48 horas (art. 88 da LRE). Logicamente, a massa só será condenada ao pagamento de honorários advocatícios se contestar o pedido de restituição formulado (art. 88, parágrafo único). Não há razão para condená-la em honorários quando ela não oferecer contestação, uma vez que, conforme já estudamos, a arrecadação do bem a ser restituído não se deu por erro ou má-fé, mas porque a própria LRE determina que todos os bens em posse do falido sejam arrecadados, mesmo os que não sejam de sua propriedade. Trata-se de etapa normal do processo falimentar.

Caso o pedido de restituição seja julgado improcedente pelo juiz da falência, mas este entenda que o requerente é credor do devedor falido, determinará na própria sentença a sua inclusão no quadro-geral de credores, na ordem de classificação respectiva (art. 89 da LRE).

Contra a sentença, de procedência ou improcedência, cabe recurso de apelação, apenas com efeito devolutivo (art. 90). Em caso de pedido julgado procedente, o requerente pode pleitear o recebimento do bem ou do valor reclamado antes do trânsito em julgado da sentença, mas para tanto deverá prestar caução idônea (art. 90, parágrafo único).

Não se deve esquecer que muitas vezes a massa teve custos para guardar e conservar o bem arrecadado que será restituído. Diante disso, determina o art. 92 da LRE que “o requerente que tiver obtido êxito no seu pedido ressarcirá a massa falida ou a quem tiver suportado as despesas de conservação da coisa reclamada”. Ora, a massa, no mais das vezes, possui recursos escassos para saldar suas dívidas perante os credores concursais. Não seria nada justo, pois, que esses parcos recursos fossem utilizados para a conservação de bens de terceiros, sem que estes, posteriormente, os cobrissem.

Finalmente, a LRE ainda assegura ao interessado que “nos casos em que não couber pedido de restituição, fica resguardado o direito dos credores de propor embargos de terceiros, observada a legislação processual civil”.

2.6.2.   O procedimento de verificação e habilitação dos créditos

Já destacamos reiteradas vezes que a falência, na qualidade de execução concursal do devedor empresário insolvente, tem como finalidade reunir os credores (massa falida subjetiva) e arrecadar todos os bens (massa falida objetiva) do devedor.

A formação da massa falida subjetiva se dá com o procedimento de verificação e habilitação dos créditos, para o qual a LRE trouxe interessantes inovações, visando a dar mais celeridade ao processo falimentar. Em síntese, a LRE, ao contrário do que fazia a lei anterior, segundo a qual a habilitação dos créditos era feita pelo juiz, previu a “desjudicialização” dessa matéria, determinado, em seu art. 7.°, que “a verificação dos créditos será realizada pelo administrador judicial, com base nos livros contábeis e documentos comerciais e fiscais do devedor e nos documentos que lhe forem apresentados pelos credores, podendo contar com o auxílio de profissionais ou empresas especializadas”.

Com efeito, já vimos, quando do estudo da sentença que decreta a falência, que uma das medidas específicas ditadas pelo juiz é a determinação para que o devedor falido apresente, em cinco dias, a relação completa e detalhada de todos os seus credores. Da mesma forma, o juiz fixa na sentença o prazo para a habilitação dos créditos perante o administrador judicial (quinze dias, conforme dispõe o art. 7.°, § 1.°, da LRE).

Segundo o art. 9.° da LRE, a habilitação do crédito deverá conter: “I – o nome, o endereço do credor e o endereço em que receberá comunicação de qualquer ato do processo; II – o valor do crédito, atualizado até a data da decretação da falência ou do pedido de recuperação judicial, sua origem e classificação; III – os documentos comprobatórios do crédito e a indicação das demais provas a serem produzidas; IV – a indicação da garantia prestada pelo devedor, se houver, e o respectivo instrumento; V – a especificação do objeto da garantia que estiver na posse do credor”. Além do mais, conforme determinação do parágrafo único do dispositivo em comento, “os títulos e documentos que legitimam os créditos deverão ser exibidos no original ou por cópias autenticadas se estiverem juntados em outro processo”.

De acordo com o STJ, uma vez que o procedimento de habilitação de crédito tem caráter contencioso, com instrução probatória, o título que o embasa não precisa ser um título executivo, entendimento que vale tanto para a lei anterior quanto para a lei atual.

Direito Falimentar. Falência regulada pelo Decreto-lei n. 7.661/1945. Procedimento de habilitação de crédito. Desnecessidade de embasamento em título executivo. 1. O requerimento de habilitação de crédito não precisa estar lastreado em título executivo, em razão do caráter cognitivo e contencioso do seu procedimento. 2. O contrato de abertura de crédito, a despeito de não ser considerado título executivo (Súmula n. 233 do STJ), é documento hábil a embasar requerimento de habilitação de crédito em processo falimentar. 3. Recurso especial conhecido em parte, mas desprovido (REsp 992.846/PR, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4.ª Turma, j. 27.09.2011, DJe 03.10.2011).

Após o período de habilitação, o administrador, com base na relação fornecida pelo devedor e nos documentos apresentados pelos credores que se habilitaram, terá prazo de 45 (quarenta e cinco) dias para “publicar edital contendo a relação de credores (...), devendo indicar o local, o horário e o prazo comum em que as pessoas indicadas no art. 8.° da LRE terão acesso aos documentos que fundamentaram a elaboração dessa relação” (art. 7.°, § 2.°, da LRE). Não havendo nenhuma impugnação, a relação de credores estará formalizada (art. 14 da LRE).

Caso, todavia, algum credor, o próprio devedor – ou sócio da sociedade devedora – ou mesmo o Ministério Público verifiquem algum equívoco na relação apresentada pelo administrador judicial, consistente, por exemplo, na ausência de algum crédito ou na inclusão de crédito ilegítimo, poderão apresentar impugnação ao juiz, no prazo de dez dias, contados da publicação do edital que contém a relação, acima referido.

O procedimento de impugnação segue o rito previsto nos arts. 13 e 15 da LRE, podendo ainda o juiz determinar, “para fins de rateio, a reserva de valor para satisfação do crédito impugnado” (art. 16 da LRE).

Em princípio, cada impugnação, dirigida por petição com a documentação necessária, será autuada em separado e julgada pelo juízo universal da falência. Havendo, porém, mais de uma impugnação sobre o mesmo crédito, serão autuadas e julgadas conjuntamente (art. 13, parágrafo único, da LRE).

O juiz mandará intimar o credor cujo crédito foi impugnado para apresentar contestação, no prazo de cinco dias (art. 11 da LRE). O devedor e o comitê de credores, se houver, também serão intimados para se manifestarem sobre a impugnação no mesmo prazo de cinco dias (art. 12 da LRE), e o administrador judicial, por fim, terá também cinco dias para apresentar parecer (art. 12, parágrafo único). Instruídos os autos, inclusive com a possibilidade de produção de prova em audiência de instrução (art. 15, IV, da LRE), o juiz proferirá decisão, contra a qual caberá agravo de instrumento (art. 17 da LRE). Destaque-se que, conforme entendimento consolidado do STJ, são devidos honorários advocatícios nos casos em que a habilitação de crédito é impugnada, pois nesse caso a impugnação confere litigiosidade ao procedimento. Nesse sentido:

Processo civil. Julgamento monocrático de embargos de declaração contra decisão colegiada. Presença dos requisitos do art. 557 do CPC. Possibilidade. Posterior ratificação pelo órgão colegiado. Nulidade. Suprimento. Recuperação judicial. Habilitação de crédito. Impugnação. Honorários advocatícios. Cabimento. Sucumbência recíproca. Sucumbência. Distribuição. Proporção de ganho e perda de cada parte sobre a parte controvertida do pedido.

(...)

2. São devidos honorários advocatícios nas hipóteses em que o pedido de habilitação de crédito (...) for impugnado, conferindo litigiosidade ao processo. Precedentes.

(...)

4. Recurso especial parcialmente provido.

(REsp 1197177/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j. 03.09.2013, DJe 12.09.2013).

Agravo Regimental em Agravo (art. 544 do CPC). Recuperação judicial. Impugnação de crédito. Decisão monocrática que negou provimento ao agravo. Irresignação da autora.

(...)

2. É impositiva a condenação aos honorários de sucumbência quando apresentada impugnação ao pedido de habilitação de crédito em concordata ou falência, haja vista a litigiosidade da demanda.

Precedentes.

3. Agravo regimental não provido.

(AgRg no AREsp 62.801/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, 4.ª Turma, j. 20.08.2013, DJe 30.08.2013).

Ressalte-se que a perda do prazo para a habilitação do crédito não significa que o credor perdeu o direito de receber seu crédito no processo falimentar. O art. 10 da LRE determina, apenas, que as habilitações, nesse caso, sejam recebidas como retardatárias, o que, por óbvio, trará algumas consequências negativas.

Se as habilitações retardatárias forem apresentadas antes da homologação do quadro-geral de credores, serão elas recebidas como impugnação e processadas na forma dos arts. 13 a 15 da LRE (art. 10, § 5.°). Se, no entanto, a habilitação for feita com tanto atraso que já tenha sido homologado o quadro-geral, será necessário requerer ao juízo universal da falência, em ação própria que obedeça ao procedimento ordinário do CPC, a retificação do quadro, para a inclusão do crédito retardatário (art. 10, § 6.°).

Ademais, não se deve esquecer que os credores retardatários, conforme já mencionado acima, sofrerão algumas consequências negativas, previstas nos parágrafos do art. 10 da LRE, em razão do seu atraso na habilitação dos respectivos créditos. Assim, por exemplo, os credores retardatários, “excetuados os titulares de créditos derivados da relação de trabalho, não terão direito a voto nas deliberações da assembleia-geral de credores” (§§ 1.° e 2.°). Da mesma forma, os credores retardatários “perderão o direito a rateios eventualmente realizados e ficarão sujeitos ao pagamento de custas, não se computando os acessórios compreendidos entre o término do prazo e a data do pedido de habilitação” (§ 3.°).

Definidos, enfim, todos os incidentes acima descritos, caberá ao administrador judicial consolidar, definitivamente, o quadro-geral de credores, que será então homologado pelo juiz (art. 18 da LRE).

Mas ainda assim o referido quadro poderá ser alterado, até o encerramento do processo falimentar, por meio de ação própria a ser ajuizada pelo administrador judicial, por qualquer credor, pelo comitê de credores ou pelo Ministério Público (art. 19 da LRE). Nesta ação, que seguirá o rito ordinário do CPC, poder-se-á “pedir a exclusão, outra classificação ou a retificação de qualquer crédito, nos casos de descoberta de falsidade, dolo, simulação, fraude, erro essencial ou, ainda, documentos ignorados na época do julgamento do crédito ou da inclusão no quadro-geral de credores”.

Destaque-se que referida ação deverá ser ajuizada no juízo universal da falência ou, nas hipóteses previstas no art. 6.°, §§ 1.° e 2.°, da LRE, perante o juízo que tenha originariamente reconhecido o crédito (art. 19, § 1.°). Ademais, o eventual pagamento ao titular do crédito que ajuizou a ação em comento só poderá ser efetuado mediante a prestação de caução no mesmo valor do crédito questionado (art. 19, § 2.°).

2.6.2.1.   Habilitação de créditos fiscais

Como as execuções fiscais não se suspendem em razão da decretação da falência, a Fazenda Pública não precisa formular pedido de habilitação de crédito ao administrador judicial. O próprio juízo da execução fiscal comunica ao juízo falimentar o valor do crédito tributário exequendo, o qual será devidamente inscrito no quadro geral de credores. No entanto, o STJ entende que a Fazenda Pública pode, se quiser, optar por habilitar o crédito como os demais credores. Nesse sentido, confira-se:

Agravo regimental. Agravo de instrumento. Comercial e processo civil. Falência. Habilitação de crédito tributário. Possibilidade. Ausência de obrigatoriedade de propositura de execução fiscal. Admissibilidade de opção da via adequada ao caso concreto. 1. A jurisprudência desta Corte Superior se firmou na vertente de que os arts. 187 do CTN e 29 da LEF (Lei 6.830/80) conferem, na realidade, ao Ente de Direito Público a prerrogativa de optar entre o ajuizamento de execução fiscal ou a habilitação de crédito na falência, para a cobrança em juízo dos créditos tributários e equiparados. Assim, escolhida uma via judicial, ocorre a renúncia com relação a outra, pois não se admite a garantia dúplice. 2. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no Ag 713.217/RS, Rel. Min. Vasco Della Giustina (desembargador convocado do TJ/RS), 3.ª Turma, j. 19.11.2009, DJe 01.12.2009).

Processual civil e tributário. Apresentação de créditos na falência. Prestação de contas apresentada pelo síndico. Créditos tributários de pequeno valor. Habilitação. Caso concreto. Possibilidade. (...) 2. Os arts. 187 e 29 da Lei 6.830/80 não representam um óbice à habilitação de créditos tributários no concurso de credores da falência; tratam, na verdade, de uma prerrogativa da entidade pública em poder optar entre o pagamento do crédito pelo rito da execução fiscal ou mediante habilitação do crédito. 3. Escolhendo um rito, ocorre a renúncia da utilização do outro, não se admitindo uma garantia dúplice. Precedentes. (...) (REsp 1.103.405/MG, Rel. Min. Castro Meira, 2.ª Turma, j. 02.04.2009, DJe 27.04.2009).

2.6.2.2.   Necessidade de demonstração da origem da dívida

Na vigência da legislação falimentar anterior, o STJ entendia que o credor tinha o dever de comprovar a origem do seu crédito do pedido de habilitação, uma vez que o art. 82 do antigo Decreto-lei 7.661/1945 assim determinava, expressamente. Nesse sentido, confira-se:

Direito Empresarial. Recurso especial. Habilitação de crédito em falência. Nota Promissória. Ausência de demonstração da origem do crédito. Improcedência do pedido de habilitação reconhecida. – Nas habilitações de crédito regidas pelo Decreto-lei 7.661/45, é imprescindível que seja demonstrada a origem do crédito, mesmo nas hipóteses em que o valor reclamado encontra-se lastreado em título de crédito dotado de autonomia e abstração. Precedentes. – A exigência legal de demonstração da origem do crédito justifica-se pela necessidade de verificação da legitimidade dos créditos, com o intuito de impossibilitar que fraudes e abusos sejam cometidos em detrimento dos verdadeiros credores da falida. – Não indicado o negócio, o fato ou as circunstâncias da quais resultariam as obrigações do falido, impõe-se a improcedência do pedido de habilitação do crédito. Recurso especial provido. Ônus sucumbenciais redistribuídos (REsp 890.518/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j. 20.10.2009, DJe 17.11.2009).

Habilitação de crédito em falência. Art. 82 da Lei Falimentar. Origem do crédito. 1. A jurisprudência da Corte tem entendido que é necessária a correta demonstração da origem do crédito, o que, segundo as instâncias ordinárias, não ocorreu no presente caso. 2. Recurso especial não conhecido (REsp 556.032/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, 3.ª Turma, j. 14.06.2004, DJ 20.09.2004, p. 285).

Comercial. Falência. Habilitação de crédito. Indicação da origem. A indicação da origem do crédito, para sua habilitação em falência, é exigência destinada a dar segurança à massa e aos credores, cabendo fazê-lo sobretudo quando os mesmos são representados por títulos cambiais de fácil emissão fraudulenta (REsp 10.208/SP, Rel. Min. Dias Trindade, 3.ª Turma, j. 01.10.1991, DJ 28.10.1991, p. 15.254).

Civil. Concordata preventiva. Habilitação. Cheque. Ordem de pagamento. Eficácia de título de crédito. Art. 82, do Decreto-lei n. 7.661/45. IConsoante afirma a doutrina, “deve a declaração conter a origem do crédito. Essa exigência é de suma importância e se acha consagrada nas legislações falimentares. É um meio fácil de controlar a legitimidade dos créditos. O credor que não explica satisfatoriamente a causa ou origem do seu crédito, ou lhe atribui causa diversa, deve ser excluído”. II – Tem-se que, no caso, o cheque permaneceu com sua natureza e eficácia de título de crédito íntegra, eis que, na fase instrutória, não logrou o recorrente desnaturá-la. Razão suficiente para que como ordem de pagamento de efeito cambiário fosse habilitado. III – Recurso não conhecido (REsp 18.995/SP, Rel. Min. Waldemar Zveiter, 3.ª Turma, j. 01.09.1992, DJ 03.11.1992, p. 19.762).

Na legislação falimentar atual, como o art. 9.°, inciso II, também exige expressamente que o credor demonstre a origem do crédito, o entendimento manifestado nos acórdãos acima transcritos deve permanecer válido.

2.6.3.   A realização do ativo do devedor

Ultimadas as etapas de definição da massa falida objetiva, que corresponde, como visto, ao ativo do devedor que será utilizado para o pagamento dos credores habilitados (a massa falida subjetiva), proceder-se-á ao início da fase chamada pela lei de realização do ativo (art. 139 da LRE), que consiste, grosso modo, na venda dos bens da massa.

Veja-se que a LRE, em seu art. 140, § 2.°, determina que a venda dos bens deve ser iniciada antes mesmo de formado o quadro-geral de credores, e a determinação é realmente correta. Afinal, a demora na venda dos bens é extremamente prejudicial ao atingimento das finalidades do processo falimentar.

Quanto maior for a demora na venda dos bens, maiores serão as chances de eles se deteriorarem, desvalorizarem ou às vezes até desaparecerem, dada a dificuldade encontrada, em muitos casos, de guardá-los e conservá-los.

2.6.3.1.   Os procedimentos de venda dos bens

No art. 140 da LRE, estão previstas as modalidades de venda dos bens do falido. Perceba-se que o legislador estabeleceu uma interessante ordem de preferência, sempre em atenção ao princípio da preservação da empresa, que norteou a reforma de nosso direito falimentar.

Em primeiro lugar, a LRE previu, no inciso I do art. 140, “alienação da empresa, com a venda de seus estabelecimentos em bloco”. Mais uma vez acertou o legislador. A prioridade conferida à venda de todo o estabelecimento empresarial (trespasse) visa à manutenção da atividade econômica, em obediência ao princípio da preservação da empresa, grande inspiração da LRE. Daí por que alguns autores afirmam, com razão, que a falência deve atingir o empresário (empresário individual ou sociedade empresária), mas não a empresa, vista esta como atividade econômica organizada. Se for possível a continuação da atividade econômica, ou seja, da empresa, agora conduzida por outro agente econômico, que irá adquirir o estabelecimento empresarial do devedor falido, esta possibilidade deve ser privilegiada, e foi exatamente isso o que o legislador fez, merecendo aplausos a sua atuação.

Em segundo lugar, na ordem de preferência, previu a LRE, em seu art. 140, II, a “alienação da empresa, com a venda de suas filiais ou unidades produtivas isoladamente”. A mesma ideia do inciso I está presente, implicitamente, também nesse caso. A única diferença é que, na situação descrita no inciso II, pode ocorrer que se trate de uma grande sociedade empresária, com diversas filiais espalhadas pelo País, por exemplo. Nessa hipótese, pode ser mais conveniente vender as unidades produtivas correspondentes a cada filial de modo separado, sobretudo se uma das filiais é muito mais valiosa do que as outras. De fato, a venda de todo o estabelecimento empresarial, nesse caso, não é interessante, porque os defeitos das demais filiais afetarão o preço da filial mais valorizada. Sua venda isolada, pois, poderá render muito mais do que sua venda em conjunto com as demais unidades.

Já no inciso III, previu a LRE a hipótese de “alienação em bloco dos bens que integram cada um dos estabelecimentos do devedor”. Só se deve privilegiar essa hipótese quando as duas primeiras, analisadas acima, se mostrarem economicamente inviáveis. Assim, quando não se conseguir um bom preço no trespasse, ou seja, na venda de todo o estabelecimento empresarial (inciso I), nem na venda autônoma das filiais (inciso II), a terceira melhor solução é tentar vender os bens do estabelecimento em bloco, sempre na busca de conseguir arrecadar o máximo de recursos.

Por fim, a última alternativa de venda dos bens está prevista no inciso IV do art. 140, que prevê a “alienação dos bens individualmente considerados”. Trata-se de regra que só deve ser aplicada quando a situação do devedor falido for realmente de crise econômica gravíssima e conjuntural, de modo que seu estabelecimento empresarial não oferece nenhum atrativo para o mercado e seus bens estão completamente desarticulados uns dos outros, impedindo sequer a consecução de sua venda em bloco.

Não se deve esquecer ainda que, segundo o § 1.° do art. 140, “se convier à realização do ativo, ou em razão de oportunidade, podem ser adotadas mais de uma forma de alienação”. Assim, em determinado processo falimentar de uma sociedade empresária com cinco filiais, por exemplo, pode ser feita a venda autônoma de duas delas, a venda em bloco dos bens de outras duas e a venda em separado dos bens da última. Caberá aos órgãos do processo falimentar avaliar a melhor alternativa para a maximização do ativo do devedor.

2.6.3.1.1.   Modalidades típicas de venda

Definida(s) a(s) melhor(es) forma(s) de realização do ativo do devedor falido, proceder-se-á à venda, o que em regra se dará sob uma das modalidades típicas previstas no art. 142 da LRE, segundo o qual “o juiz, ouvido o administrador judicial e atendendo à orientação do Comitê, se houver, ordenará que se proceda à alienação do ativo em uma das seguintes modalidades: I – leilão, por lances orais; II – propostas fechadas; III – pregão”.

Segundo o § 1.° do referido dispositivo, “a realização da alienação em quaisquer das modalidades de que trata este artigo será antecedida por publicação de anúncio em jornal de ampla circulação, com 15 (quinze) dias de antecedência, em se tratando de bens móveis, e com 30 (trinta) dias na alienação da empresa ou de bens imóveis, facultada a divulgação por outros meios que contribuam para o amplo conhecimento da venda”. O objetivo dessa norma é propiciar a ampla divulgação da venda dos bens, permitindo que o maior número de empresários tome conhecimento dela, para que possam comparecer no dia de sua realização e avaliar seu interesse em adquiri-los. Afinal, quanto mais pessoas interessadas comparecerem, maior será a possibilidade de obter um bom preço na negociação. Em contrapartida, se poucas pessoas interessadas comparecerem, é provável que o preço obtido nas vendas não seja o melhor, sobretudo porque, segundo o § 2.° da norma em comento, “a alienação dar-se-á pelo maior valor oferecido, ainda que seja inferior ao valor de avaliação”. Assim, repita-se, se poucos comparecerem no dia da venda, dificilmente se conseguirá um bom preço no negócio, o que trará prejuízos, em última análise, para a massa e, consequentemente, para o cumprimento do principal objetivo do processo falimentar: a satisfação dos credores.

Segundo o art. 146 da LRE, “em qualquer modalidade de realização do ativo adotada, fica a massa falida dispensada da apresentação de certidões negativas”. Trata-se de interessante novidade da legislação atual. Quase sempre o devedor falido possui pendências fiscais. Caso a apresentação de certidões negativas fosse necessária, isso com certeza obstaria invariavelmente a realização da venda.

Registre-se ainda que a própria LRE explica, em detalhes, o procedimento de cada modalidade típica de venda acima mencionada. Assim, segundo o § 3.° do art. 142, “no leilão por lances orais, aplicam-se, no que couber, as regras da Lei n.° 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil”.

Por outro lado, tratando-se de venda pela modalidade de propostas fechadas, a venda dos bens do devedor, segundo o § 4.° do art. 142, “ocorrerá mediante a entrega, em cartório e sob recibo, de envelopes lacrados, a serem abertos pelo juiz, no dia, hora e local designados no edital, lavrando o escrivão o auto respectivo, assinado pelos presentes, e juntando as propostas aos autos da falência”.

Por fim, dispõe o § 5.° do art. 142 sobre a modalidade de venda chamada de pregão, a qual “constitui modalidade híbrida das anteriores, comportando 2 (duas) fases: I – recebimento de propostas, na forma do § 3.° deste artigo; II – leilão por lances orais, de que participarão somente aqueles que apresentarem propostas não inferiores a 90% (noventa por cento) da maior proposta ofertada, na forma do § 2.° deste artigo”. Vê-se, pois, que o pregão representa, grosso modo, uma combinação do leilão com a venda por propostas fechadas. Em primeiro lugar, o juiz recebe e abre as propostas realizadas. Posteriormente, notifica aqueles que fizeram as melhores propostas, nos termos da lei, para a fase dos lances orais, na qual será usado, como valor de abertura, o montante da maior proposta oferecida na fase anterior, cujo ofertante ficará obrigado a cumprir. Com efeito, “caso não compareça ao leilão o ofertante da maior proposta e não seja dado lance igual ou superior ao valor por ele ofertado, fica obrigado a prestar a diferença verificada, constituindo a respectiva certidão do juízo título executivo para a cobrança dos valores pelo administrador judicial” (art. 142, § 6.°, III, da LRE).

Destaque-se ainda que, “em qualquer modalidade de alienação, o Ministério Público será intimado pessoalmente, sob pena de nulidade” (art. 142, § 7.°). O dispositivo em questão, todavia, deve ser interpretado com cautela pelo julgador, levando-se em consideração, sobretudo, o veto ao art. 4.° da LRE, já comentado. De fato, o referido veto demonstrou a opção clara por um processo falimentar com menor participação do membro do Parquet, em nome da celeridade processual. Portanto, se por acaso o Ministério Público não for intimado pessoalmente acerca de determinado leilão ou pregão para venda de bens do falido, isso por si só não deverá ser visto, posteriormente, como causa de nulidade absoluta do procedimento de alienação. Deve o juiz observar o caso com prudência e só declarar a nulidade do ato se realmente essa medida for recomendável. Por outro lado, se ele perceber que, a despeito da ausência de intimação do órgão ministerial, a alienação tenha sido realizada em obediência aos ditames legais, deve manter o ato e dar seguimento ao processo.

O art. 143 da LRE ainda prevê a possibilidade de apresentação de impugnação em qualquer das três modalidades de alienação estudadas. A impugnação poderá ser oferecida “por quaisquer credores, pelo devedor ou pelo Ministério Público, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas da arrematação, hipótese em que os autos serão conclusos ao juiz, que, no prazo de 5 (cinco) dias, decidirá sobre as impugnações e, julgando-as improcedentes, ordenará a entrega dos bens ao arrematante, respeitadas as condições estabelecidas no edital”. Voltando ao assunto comentado no parágrafo anterior, pois o melhor caminho a ser seguido, em caso de ausência de intimação pessoal do membro do Ministério Público, é o oferecimento de impugnação por parte deste, desde que o mesmo verifique a ocorrência de alguma irregularidade relevante. Se a única irregularidade encontrada, porém, for a mera ausência de sua intimação pessoal, sua impugnação deve ser julgada improcedente. Ressalte-se que essa é uma opinião particular nossa, fundada na necessidade de redefinição do papel do Parquet nos processos falimentares após o veto ao art. 4.° da LRE. Em nossa opinião, frise-se, todos os dispositivos da lei que preveem a atuação do Ministério Público no processo falimentar devem ser interpretados à luz do referido veto presidencial, restringindo-se, sempre que possível, a sua participação, em nome da celeridade e economia processuais.

2.6.3.1.2.   Modalidades atípicas de venda

Além das modalidades típicas de venda dos bens analisadas no tópico antecedente, a LRE permite ainda que a venda seja realizada por meios atípicos, desde que isso, é óbvio, seja mais interessante sob o ponto de vista da maximização dos ativos do devedor falido.

Nesse sentido, prevê o art. 144 da LRE que, “havendo motivos justificados, o juiz poderá autorizar, mediante requerimento fundamentado do administrador judicial ou do Comitê, modalidades de alienação judicial diversas das previstas no art. 142 desta Lei”. Veja-se que nesse caso a decisão sobre a utilidade da modalidade atípica de venda dos bens compete exclusivamente ao juiz, quando provocado pelo administrador judicial ou pelo comitê de credores. Assim, por mais que estes entendam que uma modalidade atípica de venda dos bens – diversa do leilão, da proposta fechada e do pregão – é mais adequada, ela não se efetivará se o juiz não se convencer de tal fato. A última palavra, nesse caso, é da autoridade judicial.

Prevê também a LRE, em seu art. 145, que “o juiz homologará qualquer outra modalidade de realização do ativo, desde que aprovada pela assembleia-geral de credores, inclusive com a constituição de sociedade de credores ou dos empregados do próprio devedor, com a participação, se necessária, dos atuais sócios ou de terceiros”. Aqui, perceba-se, a opinião do órgão julgador é menos decisiva, uma vez que cabe a ele apenas homologar o consenso formado pelos credores por meio de decisão da assembleia-geral, que deve ser tomada por pelo menos 2/3 dos créditos titularizados pelos credores presentes (art. 46 da LRE).

No caso do art. 145, perceba-se que a lei privilegia a continuação da empresa, que será exercida a partir de então por sociedade de credores ou mesmo de empregados. Estes, aliás, podem até “utilizar créditos derivados da legislação do trabalho para a aquisição ou arrendamento da empresa”.

Registre-se nesse ponto mais uma opinião particular: a possibilidade de continuação da empresa por sociedade de ex-trabalhadores deve ser analisada com extremo cuidado. Uma das grandes causas do alto índice de insucesso empresarial no Brasil é o chamado “empreendedorismo por necessidade”, o qual propomos chamar também de “empreendedorismo por acidente”, muito provavelmente destinado ao fracasso, que se contrapõe frontalmente ao “empreendedorismo por vocação”, este sim com possibilidade real de êxito.

De fato, os altos índices de desemprego e de capacitação profissional brasileiros fazem com que muitas pessoas que não conseguem se posicionar no mercado de trabalho optem por empreender determinado negócio, sem qualquer know-how para tanto. Acredita-se, de forma completamente equivocada, que disciplina financeira e disposição, por exemplo, são requisitos suficientes para o sucesso empresarial. Esse empreendedorismo por acidente aflora em certas pessoas, sobretudo em situações em que elas adquirem, eventualmente, uma quantia elevada de recursos para investir, como no caso do recebimento de herança ou de opção pelos “planos de demissão voluntária” dos grandes grupos econômicos. Quem não conhece pelo menos uma pessoa, parente ou amigo, que em uma dessas situações arriscou-se em um empreendimento sem ter o menor conhecimento em administração de negócios e viu sua “fortuna” esvair-se rapidamente em dívidas? É por isso que, no nosso entender, a regra ora em comento deve ser vista com cuidado. Ela é um incentivo legal ao empreendedorismo por acidente, que pode fazer com que ex-empregados, empolgados com a possibilidade iminente de se tornarem seus próprios “patrões”, ingressem em uma área onde eles provavelmente nem saibam como atuar. Isso, enfim, pode acarretar um novo insucesso empresarial que vai levar mais uma empresa à falência. Em síntese: o meio empresarial não é lugar para aventuras, mas para profissionais vocacionados e preparados.

2.6.3.2.   A disciplina da sucessão empresarial na LRE

Vimos acima que, na ordem de preferência estabelecida pelo art. 140 da LRE para a venda do ativo do devedor falido, está em primeiro lugar a venda da própria empresa (rectius: estabelecimento empresarial), operacionalizada por meio do trespasse.

Pois bem. No capítulo II, analisamos a questão da sucessão empresarial quando da realização do trespasse, que está disciplinada pelo art. 1.146 do CC, o qual estabelece, em suma, que o adquirente do estabelecimento assume o passivo contabilizado do alienante, que, por sua vez, fica solidariamente responsável com o adquirente pelo prazo de um ano.

Todavia, conforme já havíamos adiantado quando do estudo do trespasse, a legislação falimentar trouxe uma interessantíssima novidade em relação ao tema em enfoque, prevendo, em seu art. 141, que “na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, promovida sob qualquer das modalidades de que trata este artigo: I – todos os credores, observada a ordem de preferência definida no art. 83 desta Lei, sub-rogam-se no produto da realização do ativo; II – o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho”. A novidade de que ora se fala, perceba-se, está no inciso II do dispositivo transcrito, que excepciona a regra de sucessão empresarial prevista no art. 1.146 do CC quando o trespasse for realizado em processo falimentar por meio de hasta pública em uma das modalidades constantes do art. 140 da LRE (leilão, propostas fechadas ou pregão).

Mas não é só. A regra de sucessão empresarial do art. 1.146 do CC, conforme já estudamos, refere-se apenas às dívidas negociais do alienante do estabelecimento, não se aplicando, por conseguinte, às dívidas trabalhistas e tributárias, que possuem disciplina especial, respectivamente, na CLT (art. 448) e no CTN (art. 133). Ocorre que o art. 141 da LRE faz expressa menção a estas dívidas, não deixando dúvidas de que as sucessões trabalhista e tributária, quando o trespasse é feito em processo falimentar, também não se produzem, ou seja, o adquirente-arrematante do estabelecimento empresarial está isento de qualquer responsabilidade por dívidas anteriores à compra, ainda que elas sejam de natureza trabalhista ou tributária.

No que se refere às dívidas tributárias, a aplicação do dispositivo inovador da legislação falimentar não trará maiores problemas, uma vez que o art. 133 do CTN foi modificado recentemente para adaptar-se a essa nova realidade. Com efeito, a Lei Complementar 118/2005 acrescentou três parágrafos a ele, ajustando-o de forma perfeita ao disposto no art. 140 da LRE.

No que tange às dívidas trabalhistas, entretanto, a nova disciplina deve gerar polêmicas nos tribunais da Justiça laboral, uma vez que: (i) sua postura é sempre de proteção intransigente do crédito trabalhista, dada a sua natureza alimentar, e que (ii) não houve, assim como ocorreu no CTN, uma alteração da CLT para adaptá-la aos novos ditames do direito falimentar.

De nossa parte, recebemos com aplausos e entusiasmo a inovação em referência, por acreditarmos que ela tornará mais atrativa a venda do estabelecimento empresarial do devedor falido, o que, em última análise, beneficiará os credores, sobretudo os trabalhistas e tributários, que, por serem titulares de créditos privilegiados, provavelmente terão mais chances de os verem satisfeitos com o produto do trespasse. Enfim, “quando a lei expressamente nega a sucessão, amplia as chances de interessados adquirirem o negócio da sociedade falida e, consequentemente, as de mais credores virem a ter seus créditos satisfeitos com os recursos advindos da aquisição”.

Não se deve esquecer, ademais, que a norma da legislação falimentar ora em comento, que excepciona as regras de sucessão empresarial, trabalhista e tributária quando o trespasse é feito em processo falimentar, não se aplica de forma absoluta. De fato, o § 1.° do art. 141 da LRE estabelece que haverá normalmente a sucessão “(...) quando o arrematante for: I – sócio da sociedade falida, ou sociedade controlada pelo falido; II – parente, em linha reta ou colateral até o 4.° (quarto) grau, consanguíneo ou afim, do falido ou de sócio da sociedade falida; ou III – identificado como agente do falido com o objetivo de fraudar a sucessão”. Vê-se, portanto, que o legislador procurou se precaver em relação à tentativa de fraude, identificando situações em que o adquirente-arrematante é o próprio falido – na verdade, sócio(s) da sociedade falida – ou pessoa próxima a ele, quando a sucessão se operará normalmente.

Por fim, merecem destaque ainda duas normas da LRE sobre o assunto em questão. A primeira delas é a constante do art. 145, § 1.°, que prevê a aplicação da regra de não sucessão quando o trespasse do estabelecimento empresarial for realizado para sociedade de credores ou de empregados do devedor falido. Nesse caso, pois, os credores ou empregados que continuarem no exercício da empresa também estarão isentos de qualquer responsabilidade por dívidas negociais, trabalhistas ou tributárias anteriores ao negócio.

A outra norma que merece destaque é a constante do § 2.° do próprio art. 141 da LRE, segundo o qual “empregados do devedor contratados pelo arrematante serão admitidos mediante novos contratos de trabalho e o arrematante não responde por obrigações decorrentes do contrato anterior”. É apenas um reforço ao que já está previsto no art. 141, II, e que foi comentado com detalhes acima.

2.6.4.   Pagamento dos credores

A grande finalidade da realização do ativo do devedor falido, que estudamos em tópico anterior, é a arrecadação de recursos para o posterior pagamento dos credores, descritos no quadro-geral. Nesse sentido, aliás, é a regra do art. 147 da LRE, segundo a qual “as quantias recebidas a qualquer título serão imediatamente depositadas em conta remunerada de instituição financeira, atendidos os requisitos da lei ou das normas de organização judiciária”. Os valores arrecadados, então, ficarão depositados até o momento de serem iniciados os pagamentos dos credores, o que deve ser feito segundo a ordem de preferência de cada crédito, prevista no art. 83 da LRE.

Mas, antes de serem pagos os credores, a massa pode – e deve – utilizar os recursos arrecadados e depositados em conta bancária, conforme visto acima, para atender outras finalidades previstas na própria legislação falimentar. Com efeito, segundo o disposto no art. 149 da LRE, os recursos obtidos com a realização do ativo do devedor falido só serão usados para pagamento dos credores depois de feitas as devidas restituições e de pagos os créditos extraconcursais, descritos no art. 84 da LRE.

E mais: alguns pagamentos devem ser feitos pelo administrador judicial imediatamente, assim que houver disponibilidade de caixa. São os casos dos arts. 150 e 151 da LRE. De acordo com o primeiro, “as despesas cujo pagamento antecipado seja indispensável à administração da falência, inclusive na hipótese de continuação provisória das atividades previstas no inciso XI do caput do art. 99 desta Lei, serão pagas pelo administrador judicial com os recursos disponíveis em caixa”.

De acordo com o segundo, por sua vez, “os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores à decretação da falência, até o limite de 5 (cinco) salários mínimos por trabalhador, serão pagos tão logo haja disponibilidade em caixa”.

2.6.4.1.   Os créditos extraconcursais

Mais uma interessante novidade trazida pela LRE foi a figura dos chamados créditos extraconcursais, que devem ser pagos antes de qualquer outro crédito concursal, por maior que seja a sua preferência na ordem de classificação.

Assim, segundo o art. 84 da LRE, “serão considerados créditos extraconcursais e serão pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 desta Lei, na ordem a seguir, os relativos a: I – remunerações devidas ao administrador judicial e seus auxiliares, e créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho relativos a serviços prestados após a decretação da falência; II – quantias fornecidas à massa pelos credores; III – despesas com arrecadação, administração, realização do ativo e distribuição do seu produto, bem como custas do processo de falência; IV – custas judiciais relativas às ações e execuções em que a massa falida tenha sido vencida; V – obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, nos termos do art. 67 desta Lei, ou após a decretação da falência, e tributos relativos a fatos geradores ocorridos após a decretação da falência, respeitada a ordem estabelecida no art. 83 desta Lei”.

Da leitura atenta do dispositivo acima transcrito pode-se perceber que os créditos extraconcursais, além de serem pagos antes de qualquer outro crédito submetido a concurso, também obedecem a uma ordem de preferência. Assim, primeiro serão pagos credores extraconcursais mencionados no inciso I do art. 84, depois os mencionados no inciso II, e assim por diante.

Deve-se atentar ainda para o fato de que os créditos extraconcursais são créditos que não existiam antes da decretação falência, surgindo, na verdade, em decorrência dela. Essa observação é extremamente importante. Todos os créditos mencionados nos incisos I a V do art. 84 são resultantes de fatos posteriores à decretação da falência.

2.6.4.2.   A classificação dos créditos concursais

Realizados, enfim, os pagamentos que a lei determina sejam feitos com a disponibilidade de caixa existente, as restituições em dinheiro e os pagamentos dos créditos extraconcursais, resta então fazer o pagamento dos credores submetidos a concurso, o que será realizado seguindo-se a ordem de classificação estabelecida no art. 83 da LRE.

2.6.4.2.1.   Os créditos trabalhistas e equiparados

Em primeiro lugar, no inciso I, estão “os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento e cinquenta) salários mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho”. Aqui a lei trouxe importante e polêmica inovação. A limitação da preferência dos créditos trabalhistas a 150 salários mínimos por trabalhador foi objeto de intensos debates no Congresso Nacional e provocou, depois de promulgada a lei, diversas reações negativas advindas das entidades sindicais dos trabalhadores.

Na verdade, o que se tentou foi evitar uma prática recorrente na vigência da legislação falimentar anterior: às vésperas da decretação da falência de grandes companhias, forjavam-se contratos de trabalho com supostos administradores, os quais, vencedores em processos trabalhistas movidos contra a sociedade, passavam a ser credores da mesma em quantias exorbitantes, que, por configurarem crédito trabalhista, deviam ser pagas antes dos demais credores. Os altos valores dessas indenizações forjadas acabavam por exaurir os recursos da massa, em prejuízo dos reais credores da sociedade, inclusive dos trabalhadores titulares de créditos de pequena monta.

O argumento, por si só, já seria suficiente para justificar a inovação legislativa, mas há ainda outros. Com efeito, pesquisas realizadas junto à Justiça do Trabalho demonstraram que a grande maioria – mais de 90% – dos créditos trabalhistas cobrados em processos falimentares não ultrapassa o valor de 150 salários mínimos. A regra, portanto, não irá atingir os trabalhadores mais necessitados.

Registre-se, ainda, que a razão para que a lei atribua preferência ao crédito trabalhista é a sua natureza de verba alimentar. Ora, 150 salários mínimos, hoje, correspondem a exatamente R$ 76.500,00. É esse, pois, o valor máximo que cada trabalhador poderá receber como crédito preferencial. Somente o que eventualmente passar desse montante será reclassificado na categoria dos créditos quirografários. Trata-se de valor expressivo, que com certeza suprirá as necessidades do trabalhador por um bom período de tempo, enquanto ele se recoloca no mercado de trabalho e aguarda o recebimento do restante do seu crédito.

A afirmação de alguns autores de que a LRE teria desprestigiado os trabalhadores em benefício de outros credores, como os banqueiros, não é pertinente. Afinal, não se pode esquecer que os créditos trabalhistas ainda são os primeiros na ordem de classificação e que parte deles é paga de forma antecipada, segundo disposição do art. 151 da LRE, já analisada.

Quantos aos créditos decorrentes de acidentes do trabalho, esses concorrem como créditos preferenciais pela totalidade do seu valor. A limitação de 150 salários mínimos não os atinge, estando restrita aos créditos trabalhistas stricto sensu.

Estes créditos trabalhistas stricto sensu a que nos referimos são, basicamente, os créditos de indenizações determinadas pela Justiça do Trabalho (pagamento de horas extras, décimo terceiro salário, férias etc.), bem como outros créditos a eles equiparados: (i) os devidos aos representantes comerciais autônomos a título de comissões (art. 44 da Lei 4.886/1965) e (ii) os devidos à Caixa Econômica Federal a título de contribuição para o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).

Por fim, há ainda outra norma inovadora da LRE quanto aos créditos trabalhistas que provocou intensos debates e reações negativas das entidades representativas dos trabalhadores. Trata-se do § 4.° do art. 83, segundo o qual “os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários”. A regra em questão tentou evitar outra prática recorrente na vigência da lei anterior, e a sua intenção foi, como se verá, proteger o trabalhador, e não o contrário.

De fato, segundo a legislação comum (arts. 287 e 349 do Código Civil), a cessão de crédito transfere ao cessionário todas as preferências do crédito cedido. Isso fazia com que se estabelecesse um verdadeiro “câmbio negro” de créditos trabalhistas nos processos falimentares. Vários especuladores assediavam empregados que detinham créditos significativos e compravam esses créditos com deságio, aproveitando-se na maioria das vezes do estado de necessidade pelo qual passava o trabalhador. Com a nova regra, essa prática provavelmente desaparecerá, visto que o crédito trabalhista, uma vez cedido, perderá seu privilégio, razão pela qual os especuladores com certeza deixarão de ter interesse na sua aquisição.

2.6.4.2.2.   Honorários advocatícios

Especificamente quanto aos créditos equiparados aos trabalhistas, o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento divergente quanto à natureza do crédito consistente em honorários advocatícios.

Com efeito, apesar de ser pacífico no STJ o entendimento de que os honorários advocatícios, tanto de sucumbência quanto contratuais, ostentam natureza alimentar (EREsp n.° 706.331/PR, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Corte Especial, j. 20.02.2008, DJe 31.03.2008), persiste controvérsia a respeito de sua classificação em processos de falência e de recuperação judicial.

A Primeira Seção, que congrega as Turmas de direito público, tem entendimento de que os honorários advocatícios não se equiparam aos créditos trabalhistas em processos de falência e recuperação judicial, não podendo, pois, sobrepor-se aos créditos tributários. A propósito, confira-se:

Embargos de divergência em recurso especial. Concurso de credores. Créditos referentes a honorários de advogado. Preferência em relação aos créditos de natureza tributária. Inexistência. Artigos 186, caput, do código tributário nacional e 24 da Lei n.° 8.906/1994.

1. Os créditos de natureza tributária têm preferência sobre os créditos relativos a honorários advocatícios.

2. Precedentes de ambas as Turmas que compõem a Primeira Seção.

3. Embargos de divergência acolhidos.

(EREsp 941652/RS, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, 1.ª Seção, j. 24.11.2010, DJe 07.12.2010).

No entanto, as Turmas de direito privado, que compõem a Segunda Seção, têm adotado posicionamentos divergentes quanto ao assunto. A Terceira Turma tem julgados recentes que adotaram posições conflitantes. No julgamento do REsp n.° 988.126/SP e do REsp n.° 1.377.764/MS, os honorários advocatícios de sucumbência foram inseridos na classe dos créditos trabalhistas:

Processual Civil. Recurso Especial. Ação de execução. Prequestionamento. Ausência. Súmula 282/STF. Concurso de credores. Honorários advocatícios. Natureza alimentar. Equiparação dos honorários advocatícios com os créditos trabalhistas para fins de habilitação em concurso de credores. Possibilidade.

Cinge-se a lide em determinar se os honorários advocatícios possuem natureza alimentar e se, em concurso de credores, podem ser equiparados a créditos trabalhistas.

Os honorários advocatícios, contratuais e de sucumbência, têm natureza alimentar. Precedente da Corte Especial.

Assim como o salário está para o empregado e os honorários estão para os advogados, o art. 24 do EOAB deve ser interpretado de acordo com o princípio da igualdade. Vale dizer: os honorários advocatícios constituem crédito privilegiado, que deve ser interpretado em harmonia com a sua natureza trabalhista-alimentar.

Sendo alimentar a natureza dos honorários, estes devem ser equiparados aos créditos trabalhistas, para fins de habilitação em concurso de credores.

Recurso especial provido.

(REsp 988.126/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j. 20.04.2010, DJe 06.05.2010).

Recurso especial. Ação de despejo e cobrança de aluguéis. Cumprimento de sentença. Honorários advocatícios sucumbenciais. Natureza alimentar. Equiparação a créditos trabalhistas. Sujeição à recuperação judicial.

(...)

2 – O tratamento dispensado aos honorários advocatícios – no que refere à sujeição aos efeitos da recuperação judicial – deve ser o mesmo conferido aos créditos de origem trabalhista, em virtude de ambos ostentarem natureza alimentar.

(...)

4 – Recurso especial conhecido e provido.

(REsp 1377764/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j. 20.08.2013, DJe 29.08.2013).

Entretanto, no julgamento do REsp n.° 939.577/RS, a mesma Terceira Turma negou a equiparação dos honorários advocatícios aos créditos trabalhistas:

Recurso especial. Dissídio jurisprudencial não demonstrado. Ausência de similitude fática. Execução de sentença. Concurso de credores. Crédito fiscal e horários advocatícios. Preferência do crédito fiscal. Art. 186 do CTN. Status de lei complementar. Prevalência sobre o art. 24 da lei ordinária n.° 8.906/1994 (estatuto da OAB). Acórdão recorrido em consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial improvido.

(...)

II – Embora esta Corte Superior já tenha reconhecido a natureza alimentar dos créditos decorrentes dos honorários advocatícios, estes não se equiparam aos créditos trabalhistas, razão por que não há como prevalecerem, em sede de concurso de credores, sobre o crédito fiscal da Fazenda Pública;

III – Recurso especial improvido.

(REsp 939.577/RS, Rel. Min. Massami Uyeda, 3.ª Turma, j. 03.05.2011, DJe 19.05.2011).

A Quarta Turma, por sua vez, tem julgados que negam a equiparação dos honorários advocatícios de sucumbência aos créditos trabalhistas, inserindo-os na classe dos créditos com privilégio geral (art. 83, V, da Lei n.° 11.101/2005). Confira-se:

Agravo Regimental no Recurso Especial. Art. 102 da antiga Lei de Falências. Art. 24 do estatuto da OAB. Honorários advocatícios de sucumbência. Caráter alimentar. Privilégio geral. Agravo improvido.

1. O crédito decorrente de honorários advocatícios sucumbenciais, a despeito de se assemelhar a verba alimentar, não se equipara aos créditos trabalhistas, para efeito de habilitação em processo falimentar, devendo figurar na classe de créditos com privilégio geral. Precedentes.

2. Agravo regimental improvido.

(AgRg no REsp 1077528/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4.ª Turma, j. 19.10.2010, DJe 09.11.2010).

Entendo que deve prevalecer o entendimento da Quarta Turma, por corresponder ao disposto no art. 24 da Lei n.° 8.906/1994, que assim dispõe: “A decisão judicial que fixar ou arbitrar honorários e o contrato escrito que os estipular são títulos executivos e constituem crédito privilegiado na falência, concordata, concurso de credores, insolvência civil e liquidação extrajudicial”.

Para equiparar os honorários advocatícios aos créditos trabalhistas, seria necessário, de acordo com nossa opinião, que a lei o fizesse expressa e claramente, tal como fez a Lei n.° 4.886/1965 quanto às comissões do representante comercial, em seu art. 44.

É importante, porém, que a Segunda Seção do STJ, ou então sua Corte Especial, discuta a matéria e pacifique a questão, a bem da segurança jurídica.

2.6.4.2.3.   Os créditos com garantia real

Em segundo lugar, no inciso II, estão os “créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado”. Eis mais um dispositivo da LRE que alimenta as teorias daqueles que a qualificam como a “lei dos banqueiros”. Trata-se, no entanto, de apenas mais uma tentativa de dar maior segurança ao crédito bancário, a fim de que a legislação falimentar atual consiga cumprir um de seus objetivos: tornar o crédito menos arriscado no Brasil e permitir, com isso, a diminuição do spread.

Podem ser citados como exemplos de créditos com garantia real os créditos hipotecários, os créditos pignoratícios, os créditos caucionados, os créditos de debêntures com garantia real e os créditos de instituições financeiras decorrentes de cédulas de crédito rural.

Trata-se de créditos não sujeitos a rateio, ou seja, nesses casos, o produto da venda do bem dado em garantia real à dívida será usado para o pagamento do credor garantido. Caso esse produto da venda seja superior à dívida, o saldo restante será usado para o pagamento dos demais credores, na ordem de classificação. Caso, em contrapartida, o produto da venda não seja suficiente para o pagamento da dívida, o restante dela será classificado como crédito quirografário.

Ressalvada, é óbvio, a situação dos credores extraconcursais, das restituições em dinheiro e dos credores trabalhistas e de créditos acidentários. Como eles estão acima dos credores com garantia real, devem sempre receber primeiro. Sendo assim, pode ocorrer de os bens não gravados do devedor serem insuficientes para o pagamento deles (extraconcursais, restituições, trabalhistas e acidentários), caso em que inevitavelmente os bens gravados – os quais, em princípio, deveriam garantir o pagamento dos credores com garantia real – terão que ser usados para sua quitação.

Registre-se que, segundo o § 1.° do art. 83, “para os fins do inciso II do caput deste artigo, será considerado como valor do bem objeto de garantia real a importância efetivamente arrecadada com sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação do bem individualmente considerado”.

2.6.4.2.4.   Os créditos fiscais

Em terceiro lugar, no inciso III, estão os “créditos tributários, independentemente da sua natureza e tempo de constituição, excetuadas as multas tributárias”. Vê-se, de imediato, que a LRE solucionou uma controvérsia existente na vigência da lei anterior, relativa às multas tributárias, as quais, segundo entendimento jurisprudencial, não podiam ser cobradas no processo falimentar. A nova legislação falimentar, todavia, permitiu a cobrança dos créditos decorrentes de multas tributárias no processo falimentar, mas não os classificou como créditos fiscais, deixando-os, na verdade, em sétimo lugar na ordem de classificação, abaixo dos créditos quirografários.

Ainda sobre os créditos tributários, merece menção também o fato de que o próprio Código Tributário Nacional foi alterado pela já referida LC 118/2005, a fim de que ele passasse a dispor sobre o tema em consonância com as novas regras do direito falimentar brasileiro (vide nova redação do art. 186 do CTN).

Por fim, registre-se que, segundo a mesma legislação tributária, há uma hierarquia interna entre os créditos tributários. De acordo com o art. 187, parágrafo único, do CTN, e com o art. 29, parágrafo único, da Lei 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais), devem ser pagos primeiro os créditos tributários da União e de suas autarquias; depois, os créditos tributários dos Estados, Distrito Federal e Territórios e suas respectivas autarquias, conjuntamente e pro rata; por fim, os créditos tributários dos Municípios e suas autarquias, também conjuntamente e pro rata.

2.6.4.2.5.   Os créditos com privilégio especial

Em quarto lugar, no inciso IV, estão os “créditos com privilégio especial, a saber: a) os previstos no art. 964 da Lei n.° 10.406, de 10 de janeiro de 2002; b) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei; c) aqueles a cujos titulares a lei confira o direito de retenção sobre a coisa dada em garantia”.

A própria legislação falimentar, vê-se, já exemplificou alguns créditos com privilégio especial, fazendo menção ao art. 964 do Código Civil. Assim, por exemplo, têm privilégio especial “sobre a coisa salvada, o credor por despesas de salvamento” (inciso II) e “sobre a coisa beneficiada, o credor por benfeitorias necessárias ou úteis” (inciso III).

Perceba-se que os créditos com privilégio especial, tais como os créditos com garantia real, possuem uma particularidade: são créditos que não se sujeitam a rateio, ou seja, o seu pagamento deve ser feito, preferencialmente, com o produto da venda do bem sobre o qual recai o privilégio. Caso o produto da venda seja maior que a dívida, o saldo restante será usado para pagamento dos demais credores, na ordem de classificação. Caso, em contrapartida, o produto da venda não seja suficiente para a quitação da dívida, o saldo remanescente será reclassificado como crédito quirografário.

2.6.4.2.6.   Os créditos com privilégio geral

Em quinto lugar, no inciso V, estão os “créditos com privilégio geral, a saber: a) os previstos no art. 965 da Lei n.° 10.406, de 10 de janeiro de 2002; b) os previstos no parágrafo único do art. 67 desta Lei; c) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei”.

Assim como fez com os créditos com privilégio especial, a LRE também exemplificou alguns créditos com privilégio geral, fazendo menção ao art. 965 do CC. Nessa categoria, então, se enquadram, por exemplo, “o crédito por despesa de seu funeral, feito segundo a condição do morto e o costume do lugar” (inciso I) e “o crédito por despesas com o luto do cônjuge sobrevivo e dos filhos do devedor falecido, se foram moderadas”.

2.6.4.2.7.   Os créditos quirografários

Em sexto lugar, no inciso VI, estão os “créditos quirografários, a saber: a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo; b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento; c) os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo”.

Em qualquer processo falimentar, a lista dos credores quirografários provavelmente será sempre a maior, porque envolve todos os créditos que não possuem nenhuma espécie de privilégio ou garantia. Trata-se, pois, dos credores cujos créditos decorrem de uma obrigação cambial inadimplida (duplicata, nota promissória, cheque etc.), de uma indenização por ato ilícito ou de uma obrigação contratual não honrada. Ademais, a LRE ainda inclui nessa classe o saldo de crédito trabalhista ou equiparado que ultrapassar 150 salários mínimos e o saldo de crédito com garantia real ou privilégio especial cujo montante arrecadado com a venda dos bens vinculados ao seu pagamento não seja suficiente.

2.6.4.2.8.   As multas e penas pecuniárias

Em sétimo lugar, no inciso VII, estão “as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leis penais ou administrativas, inclusive as multas tributárias”.

No regime da lei anterior, os créditos quirografários eram os últimos créditos previstos na ordem de classificação. A LRE inovou mais uma vez, prevendo abaixo dos quirografários os créditos decorrentes de multas e penas pecuniárias, incluindo nessa classe as multas tributárias, as quais, na lei anterior, não podiam ser cobradas no processo falimentar, conforme entendimento jurisprudencial consolidado no Verbete 565 da súmula do STF: “a multa fiscal moratória constitui pena administrativa, não se incluindo no crédito habilitado em falência”.

2.6.4.2.9.   Os créditos subordinados

Por fim, em oitavo lugar, no inciso VIII, estão “créditos subordinados, a saber: a) os assim previstos em lei ou em contrato; b) os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício”.

A inclusão dos créditos subordinados na ordem de classificação dos créditos também foi uma inovação da LRE, visto que, como dito, na lei anterior a última classe era a dos quirografários. São credores que se enquadram nessa categoria, por exemplo, os titulares de debêntures subordinadas e os sócios e administradores da sociedade sem vínculo empregatício. Eles só terão seus créditos satisfeitos depois de pagos todos os demais credores acima estudados.

Ressalte-se que os créditos subordinados titularizados por sócios da sociedade falida sem vínculo empregatício, mencionados pelo inciso ora em análise, não correspondem aos valores de suas ações ou quotas. Trata-se, por exemplo, de crédito decorrente de um empréstimo contraído pela sociedade junto ao sócio. Os valores correspondentes às quotas ou ações, segundo o art. 83, § 2.°, da LRE não são oponíveis à massa: “não são oponíveis à massa os valores decorrentes de direito de sócio ao recebimento de sua parcela do capital social na liquidação da sociedade”. Assim, os sócios – quotistas ou acionistas – só receberão algum valor referente às suas quotas ou ações se a sociedade falida pagar todos os seus credores, e ainda assim restarem recursos em caixa, hipótese obviamente dificílima de verificar na prática.

2.6.5.   Encerramento do processo falimentar

Feitos os pagamentos dos credores, conforme a ordem de classificação já analisada e a disponibilidade de recursos da massa, caberá ao administrador judicial apresentar suas contas ao juiz. É o que dispõe o art. 154 da LRE: “concluída a realização de todo o ativo, e distribuído o produto entre os credores, o administrador judicial apresentará suas contas ao juiz no prazo de 30 (trinta) dias”.

Apresentadas as contas, além de toda a documentação pertinente, formar-se-ão autos apartados que serão apensados ao provavelmente já bastante volumoso processo falimentar (§ 1.°). Ato contínuo, o juiz colocará as contas à disposição dos interessados para que eles possam oferecer impugnações, se assim entenderem, no prazo de 10 (dez) dias (§ 2.°), e depois enviará os autos ao Ministério Público, que oferecerá parecer em 5 (cinco) dias (§ 3.°). Havendo impugnação ou parecer desfavorável, o administrador judicial será novamente ouvido, voltando posteriormente os autos ao juiz para julgamento das contas por sentença (§ 4.°).

Se as contas forem rejeitadas, o juiz, além de fixar as responsabilidades do administrador judicial, poderá determinar a indisponibilidade ou o sequestro dos seus bens, servindo a sentença como título executivo para indenização da massa (§ 5.°), contra a qual caberá o recurso de apelação (§ 6.°).

Após o julgamento das contas, ainda resta ao administrador judicial uma diligência a ser cumprida, consistente na apresentação de relatório final, no prazo de dez dias, no qual ele indicará o valor alcançado com a realização do ativo, o valor do passivo, os pagamentos que realizou e as responsabilidades com as quais continuará o devedor falido (art. 155 da LRE). Após a apresentação desse relatório, o juiz então dará por encerrado o processo falimentar, por meio de sentença (art. 156 da LRE) que será publicada em edital e contra a qual caberá recurso de apelação (parágrafo único).

Por fim, registre-se que, segundo o art. 157 da LRE “o prazo prescricional relativo às obrigações do falido recomeça a correr a partir do dia em que transitar em julgado a sentença do encerramento da falência”.

2.7.   A extinção das obrigações do devedor falido

O encerramento da falência não significa, por si só, a extinção das obrigações do devedor falido, o que só ocorrerá nos casos especificamente previstos no art. 158 da LRE e após a respectiva sentença. Suas obrigações só serão extintas, portanto, se houver: “I – o pagamento de todos os créditos; II – o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% (cinquenta por cento) dos créditos quirografários, sendo facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir essa porcentagem se para tanto não bastou a integral liquidação do ativo; III – o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contado do encerramento da falência, se o falido não tiver sido condenado por prática de crime previsto nesta Lei; IV – o decurso do prazo de 10 (dez) anos, contado do encerramento da falência, se o falido tiver sido condenado por prática de crime previsto nesta Lei”.

O inciso I, que prevê a extinção das obrigações do falido quando há o pagamento de todos os credores, trata de situação ideal, mas que infelizmente não ocorre na grande maioria dos processos falimentares.

O inciso II, por sua vez, confere uma prerrogativa importante ao devedor empresário, não conferida, por exemplo, ao devedor civil insolvente que se submete ao concurso de credores regulado no Código de Processo Civil. No direito falimentar, se o produto da realização do ativo do devedor for suficiente para pagamento de mais de 50% dos seus credores quirografários – os quais, é óbvio, só serão pagos depois de satisfeitos todos os demais créditos acima deles na ordem de classificação legal –, as obrigações do falido podem ser declaradas extintas. Nesse caso, pois, o devedor será exonerado de suas obrigações mesmo sem ter satisfeito todas elas, dado que ainda restaram sem quitação o saldo remanescente dos créditos quirografários, as multas e penas pecuniárias e os créditos subordinados.

Os incisos III e IV, por fim, preveem a extinção das obrigações do falido se transcorrer determinado lapso temporal após o trânsito em julgado da sentença de encerramento do processo falimentar. Se houve a condenação pela prática de algum crime falimentar, esse prazo é de dez anos. Se não houve, o prazo é de apenas cinco anos.

Assim, verificada uma das hipóteses descritas no art. 158, o devedor falido poderá então requerer ao juízo, por meio de petição que será autuada em apartado, a prolação de sentença que declare extintas as suas obrigações (art. 159 da LRE). O requerimento deve ser publicado por edital no órgão oficial e em jornal de grande circulação (§ 1.°), abrindo-se prazo de 30 dias para que qualquer credor possa opor-se ao pedido (§ 2.°), findo o qual o juiz, em cinco dias, proferirá sentença (§ 3.°), contra a qual caberá recurso de apelação (§ 5.°). Transitada em julgado a sentença, os autos do requerimento serão apensados aos do processo falimentar (§ 6.°).

Finalmente, havendo sócio de responsabilidade ilimitada, prevê o art. 160 da LRE que “verificada a prescrição ou extintas as obrigações nos termos desta Lei, o sócio de responsabilidade ilimitada também poderá requerer que seja declarada por sentença a extinção de suas obrigações na falência”.