Quando chegou a vez de a família Maher ser removida de sua rua de casas idênticas em nome da eliminação de cortiços, ela foi realocada, como muitos de Ardwick, Hulme e Moss Side, numa comunidade crescente — na verdade, transbordante — 13 quilômetros ao sul. A “cidade-jardim” de Wythenshawe — para chamar o que seria amaldiçoado como o “maior conjunto habitacional da Europa” pelo verdadeiro nome — fora planejada na década de 1920. Era produto tanto da necessidade (a urgência em criar novas moradias para uma Manchester superpovoada) quanto do idealismo (o desejo de fazer isso de uma forma positiva), e seus planejadores se inspiraram nas originais cidades-jardim do sul da Inglaterra: Letchworth, concluída em 1904, e Welwyn, terminada logo após a Primeira Guerra Mundial. Eles fixaram seus olhares nas terras vazias em volta dos antigos vilarejos de Northenden e Baguley, em Cheshire, ambos mencionados no Domesday Book de 1086, e na própria Wythenshawe (“Floresta de Salgueiros”), relativamente novata com seus meros 700 anos de existência. O rio Mersey e as várzeas ao redor havia muito eram uma barreira psicológica e física para tal invasão urbana, permitindo que os lordes das mansões de Cheshire desfrutassem de seus feudos em relativa paz e tranquilidade — embora a decisão da Câmara dos Distritos de Wythenshawe de ficar ao lado dos legalistas na Guerra Civil inglesa tivesse resultado em canhões sendo despachados da parlamentarista Manchester para encorajar uma mudança de ideia. A Câmara de Wythenshawe sobreviveu ao cerco de quatro meses quase intacta, mas não foi capaz de deter o curso da história. Em 1926 os distritos venderam 1.052 hectares à cidade de Manchester, enquanto o empresário local Ernest Simon comprou a Câmara de Wythenshawe e a propriedade de 100 hectares à sua volta para criar o Wythenshawe Park, que ele então presenteou “como uma recompensa por tudo que devemos a Manchester”. Mais do que um mero filantropo, Simon insistiu implacavelmente para que o projeto da cidade-jardim fosse levado adiante; muitas vezes vereador da cidade de Manchester, presidente do comitê de habitação, prefeito honorário e membro do Parlamento dos Liberais, ele esteve no Parlamento para votar o projeto de lei de 1930 que transferia as terras ao redor dos vilarejos de Cheshire à cidade de Manchester para construção. Além disso, Simon foi o autor de The Smokeless City, How to Abolish Slums e The Rebuilding of Manchester, entre outros livros, e foi, por isso, considerado o principal responsável por Wythenshawe se transformar numa das primeiras áreas com controle de fumaça da Grã-Bretanha.1
Apesar dos planos mais bem-traçados, a visão de uma cidade-jardim que preservaria florestas e lagos locais, incluiria amplas áreas de lazer e permitiria um número de comunidades menores e “conscientes”, com aproximadamente 10 mil pessoas cada, foi dificultada pela realidade fiscal e física. O início da Depressão, a interrupção da Segunda Guerra Mundial e a corrida para construir habitações abaixo do padrão logo depois dela significaram que, em 1964, a população de Wythenshawe já havia atingido sua meta de quase 100 mil pessoas, mas que as lojas, cinemas, espaços para apresentações artísticas e coisas do gênero haviam ficado para trás. Os jornais locais estavam cheios de notícias sobre “vandalismo”, e moradores de Manchester que nunca haviam ido até lá passaram a ver Wythenshawe como um “enorme conjunto habitacional barra-pesada e decadente, com jovens baderneiros”, de acordo com um dos habitantes que atingiu a maioridade na década de 1970. Mas quando os Maher foram removidos, junto com uma grande quantidade de outras famílias de Manchester — irlandesas, inglesas, indianas e caribenhas entre elas —, para o novo conjunto habitacional na Shady Lane, bem próximo à Altrincham Road, seu filho mais velho, Johnny, olhou para suas novas redondezas e entendeu aquilo exatamente como os planejadores da cidade-jardim tinham pretendido: uma Utopia.
A animação de Marr era compreensível. Shady Lane era uma cul-de-sac, o que dava liberdade para as crianças brincarem sem o tráfego constante e, apesar de as casas no bloco dos Maher, Churchstone Walk, não terem o espaço e o conforto da casa geminada da família Morrissey em Stretford, a simples existência de banheiros internos e linhas telefônicas parecia realmente luxuosa depois da Ardwick vitoriana. Os Maher tinham chegado exatamente quando Wythenshawe sofria uma mudança; um centro cívico (com quadras esportivas), esperado havia muito, e, para acompanhar, um fórum (com capacidade para abrigar shows) tinham sido inaugurados em 1971; um novo hospital chegou em 1973. Wythenshawe tinha suas áreas problemáticas, sem dúvida, mas as piores delas — Benchill, Woodhouse Park e Peel Hall — ficavam bem para o sul e a leste, perto da nova autoestrada M56, que se estendia do centro da cidade até o aeroporto de Manchester. Os Maher estavam em Baguley, na periferia norte, no limite de Sale e Altrincham, onde havia conjuntos habitacionais originais da década de 1930, com qualidade consideravelmente alta. Do outro lado da Altrincham Road, vindo da Shady Lane, ficava a Brookway High Scholl, escola que recebia a maior parte dos habitantes locais não católicos, inclusive garotas, não apenas de Baguley, mas dos distritos de Brooklands, Northern Moor e Royal Oak, os quais eram quase de classe média — ou, no mínimo, o que Johnny Marr viria a considerar “boêmios”. Logo a leste da escola ficava o próprio Wythenshawe Park, sua velha casa em estilo Tudor sendo menos interessante para os jovens do que os vários campos de futebol ou a perspectiva do parque de diversões itinerante que era montado todo ano no fim de semana de Páscoa, onde Johnny e sua irmã, Claire, logo aprenderam a passar cada hora em que estivessem acordados absorvendo a música alta que saía dos autofalantes dia e noite.
Em Ardwick, como ele mesmo admitiu, Johnny era “um rapaz muito quieto e introspectivo”, oprimido pelo comportamento selvagem da jovem comunidade de imigrantes irlandeses; em sua escola primária por lá, “todos eram muito tensos e agressivos, e eu ficava muito intimidado”. Mas em seu primeiro dia na Sacred Heart Roman Catholic Primary School, próxima à igreja de mesmo nome, ele se recordou de olhar ao seu redor e pensar: “todo mundo é muito simpático.” As crianças não tinham que usar uniforme, e Johnny podia ostentar seu gosto pela moda do futebol na forma de Oxford “bags” (um tipo de calças baggy), suéteres com estrelas bordadas e gola V, jaquetas Budgie (como as que eram usadas por Adam Faith no programa de TV de mesmo nome) e calças jeans pretas Brutus. Usando tais roupas na escola primária, Johnny disse: “Eu sabia que era considerado quase exótico.” Ele descobriu que as pessoas estavam interessadas nele, talvez até impressionadas com ele. “Vi, aos 11 anos, que eu tinha saído de um lugar intimidante e ido parar naquele mundo, e uma certa imagem se refletiu sobre quem eu era, e isso me deu uma confiança que eu realmente não tinha.”
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EM SUMA, AQUELA era uma experiência completamente oposta à de Steven Morrissey em seu novo ambiente, e permanece a interessante pergunta hipotética sobre o que teria sido de Morrissey (e, consequentemente, de qualquer banda como os Smiths) se sua própria família tivesse seguido o caminho de realocação forçada mais comum de Hulme e Moss Side para Wythenshawe. Algumas coisas, no entanto, pareciam coerentes, independente do local. Embora Johnny Marr tivesse sido aprovado em seu 11-plus, deixando o ensino fundamental em Sacred Heart no começo do verão de 1975 (na mesma época em que Morrissey deu adeus ao ensino médio em St. Mary’s), quando o próximo ano letivo começou, na St. Augustine’s Grammar School, um estabelecimento católico 5 quilômetros a leste pela Altrincham Road, na direção de Gatley, a escola provou ser uma enorme decepção. O diretor de St. Augustine, monsenhor McGuiness, era um alcoólatra cujo hálito fedia a gim; todos os professores usavam capelos e becas; uniformes eram novamente obrigatórios, o blazer listrado da escola fazendo do rapaz um alvo natural para a gozação dos alunos da Brookway High School; latim era obrigatório durante os dois primeiros anos; a disciplina era severa, o açoite era usado constantemente por um grande número de professores abertamente cruéis; música era restrita às associações católicas de coros e orquestras e havia uma constante doutrinação religiosa, inclusive com sermões matinais sobre o santo do dia. A escola, por ser de primeira linha, era um local melhor de aprendizado do que St. Mary’s, em Stretford, mas a filosofia permanecia quase idêntica: adestrar os alunos religiosamente no catolicismo e espancá-los de forma destemida se saíssem da linha. (Como em St. Mary’s, os espancamentos não eram restritos às punições oficialmente registradas. Um antigo aluno se recordou de um professor de matemática “chegando a um nível de brutalidade que, tenho certeza, não o deixaria deslocado numa briga de rua”.)
Rapidamente frustrado com a rigidez de sua escola, Marr preferia passar suas noites não com os deveres de casa, mas na Associação de Jovens de West Wythenshawe, localizada na faculdade de mesmo nome. Lá ele podia se misturar não apenas com amigos de St. Augustine’s, mas com rapazes de Brookway — e também garotas. A associação de jovens abrigava todo tipo de gente, oferecendo xadrez e outras atividades, patinação e excursões para escalada, bem como ajudando a manter os jovens longe de confusões, por meio das discotecas nas noites de quarta-feira, quando o DJ tocava música dançante e ia além das canções que ocupavam o topo das paradas, como ABBA ou Tina Charles, apresentando Marr à Fatback Band e a Hamilton Bohannon, os quais se mostrariam as principais influências de um rapaz que, até então, tinha seguido seu amor por T. Rex por um caminho convencional, através do glitter adolescente: David Bowie, Roxy Music e Sparks. Outras apresentações foram feitas no West Whythy, essas pessoalmente: por meio de seus companheiros de Ardwick, Marc Johnson e Chris Milne, rapazes mais velhos que estudavam em Brookway, Marr se viu rapidamente sob o encanto de um grupo de rapazes daquela escola, espalhados nos distritos chiques (comparativamente) do lado norte da Altrincham Road. Mais do que meros companheiros de obsessão por música, muitos deles eram guitarristas talentosos. Nomes como Dave Clough, Robin Allman, Billy Duffy e Barry Spencer exerceriam, todos eles, de formas variadas, enorme influência sobre os anos de adolescência de Johnny Marr.
O próprio Marr, àquela altura, já não era um iniciante na guitarra. O potencial sempre esteve ali, fomentado pela música constante da época de Ardwick, pelo hábito que sua mãe tinha de deixá-lo não apenas sozinho em frente ao rádio enquanto ela cuidava da limpeza da casa, mas em frente aos amplificadores nas lojas de instrumentos do centro de Manchester enquanto ela fazia compras. Ainda muito jovem, Marr ganhara uma gaita e participara algumas vezes de jams na sala de estar com sua família e seus vizinhos. Ao longo de vários Natais e aniversários ele pediu, e recebeu, uma série de guitarras cada vez melhores, até que, “da que eu levei comigo de Ardwick, consegui trocar as cordas e produzir acordes”. Em seu novo quarto, em Churchstone Walk, ele aprendeu a acompanhar muitos dos sucessos de sua infância: para ser exato, com o clássico “All the Young Dudes” ele viria a incorporar as melodias nas estruturas de acordes. Em Sacred Heart, Marr ficara famoso por isso — “acho que o que trouxe comigo de Ardwick foi minha identidade como guitarrista” —, mas ali, no ensino médio, muito jovem e com o glam recuando nas paradas, ele sentiu necessidade de emular os gostos musicais dos guitarristas mais velhos de Brookway.
Não foi tão fácil. Ele não conseguia se identificar com o Deep Purple, “porque era muito baseado em órgãos”; não conseguia se identificar com o Led Zeppelin, “porque era baseado no groove”; e não conseguia se identificar com Jimi Hendrix, porque “eu não era suficientemente sofisticado para apreciar aquilo”. Os Rolling Stones eram algo com que ele poderia se identificar. Sua mãe sempre havia sido fã — ela costumava cantar “Get Off of My Cloud” para o filho quando ele ficava muito intrometido com ela —, e quando Marr se sentou com uma coleção mais extensa dos singles de 45 rotações da banda ao lado do guitarrista local Dave Clough, aquilo pareceu algum tipo de revelação. Era, em parte, por causa da música o fato de, depois de mais de uma década de carreira, os Stones continuarem a lançar singles de sucesso tão diferentes entre si quanto “It´s Only Rock ’n’ Roll” e “Fool to Cry”. Mas era também relacionado ao estilo, especialmente o de Keith Richards, o qual Marr achava que “simplesmente parecia ser o homem mais bacana na face da Terra”. Para alguns, essa qualidade se devia à reputação que Richards tinha de ficar acordado dias e noites seguidos e de usar drogas não disponíveis em Wythenshawe. Para Marr, era pela forma como ele tocava guitarra — Keith era capaz de pegar o riff mais simples e embelezá-lo com inflexões que o tornavam distintamente e inimitavelmente seu — e liderava a banda sem fazer nenhuma grande declaração sobre isso. O público em geral poderia achar que os Stones eram liderados por seu famoso vocalista, Mick Jagger, mas guitarristas sabiam a verdade; eles viam Keith como o que Marr chamava de “o motor”.
Reconhecendo uma influência dos Stones quando ouviram a banda, alguns dos rapazes mais velhos de Wythenshawe também tinham começado a se interessar pelos New York Dolls e, como devotos obsessivos da imprensa musical britânica, descobriram haver um rapaz em Stretford que compartilhava de seu entusiasmo. Na edição de Natal de 1975 da Sounds, uma carta de Steve (já não mais Steven) Morrissey, da Kings Road, mencionava os Dolls por terem influenciado todo mundo, desde Bruce Springsteen, Kiss e Aerosmith (suposições na melhor das hipóteses), até Wayne County, The Tubes e The Dictators — artistas que você só poderia conhecer se lesse os jornais musicais religiosamente, e que mal podia ter a chance de escutar por si mesmo, ainda que fizesse grande esforço. Os garotos de Wythenshawe decidiram ficar de olho naquele tal de Morrissey.2
Eles tiveram sua chance em julho de 1976, quando fizeram uma jornada até o Free Trade Hall para ver um grupo local tocar no centro da cidade pela primeira vez. O Slaughter & the Dogs tinha sido formado por meio da amizade entre o vocalista Wayne Barrett, afastado dos cortiços de Moss Side, e o guitarrista Mick Rossi. Os dois tinham frequentado o ensino médio em St. Augustine, com um ano de diferença entre si, até serem expulsos (muito antes da época de Johnny Marr) e chutados para a Sharston Secondary Modern, onde se tornaram jovens problemáticos típicos dos anos 1970, que andavam pelas ruas de Benchill e Woodhouse Park procurando e achando encrenca. “Era briga, roubo, furto, apenas isso”, disse Barrett, que se recordou que a Wythenshawe daqueles bairros e daquele período “era um lixo. Não havia nada lá”.
Barrett era parte de um grupo raro daquela época que, apesar disso, tinha uma presença forte em Wythenshawe. Ele se descrevia como “um bootboy”, mas, “ao mesmo tempo, eu estava rodando por aí com sapatos plataforma e pintando meu cabelo. Você ia assistir a jogos de futebol, ia ver o Manchester United aos sábados, brigava com os torcedores dos outros times e então, no sábado à noite, escutava “Ziggy Stardust” e tomava ácido, estimulantes e sedativos, ficava fora de si e fugia da realidade”. (Embora ainda fosse muito jovem para se associar com eles, Marr se identificou, ao se mudar para Wythenshawe, com pessoas que “eram parte do povão e frequentavam jogos, mas tinham ideias a respeito de David Bowie e pensavam livremente — e aquilo era incrivelmente libertador para mim”.)
Barrett foi salvo de suas piores tendências por um professor de música em Sharston que reconheceu que a paixão do rapaz por Bowie e pelo Roxy Music ia além da normalidade e o encorajou, assim como a Rossi, a aprender a tocar um instrumento. Selecionando integrantes adicionais para a banda na escola, o que incluía o futuro amigo de Johnny Marr, Howard Bates, no baixo, eles tiraram o nome da banda das músicas “Slaughter on 10th Avenue”, de Mick Ronson, e “Diamond Dogs”, de David Bowie, e então financiaram a banda com o roubo de bueiros das ruas, vendendo-os para mercadores ilegais de sucata e usando o dinheiro para comprar instrumentos e amplificadores. Lentamente, construíram um set com covers de Bowie, Velvet Underground e New York Dolls, e embarcaram em tocar nos conservadores clubes de cavalheiros e da legião britânica locais, onde seus jovens seguidores arruaceiros de Wythenshawe causariam tanto pavor aos frequentadores mais velhos que eles muitas vezes eram convidados a se retirar antes mesmo de a banda começar a tocar.
Tendo desenvolvido um público local, o Slaughter & the Dogs ligou para um “hippie maluco” que vinha anunciando seu estúdio caseiro de gravação na vizinha de Didsbury. Seu nome era Martin Hannett e, no começo de 1976, ele produziu uma demo incluindo uma música intitulada “Love Speed and Beer”, que basicamente resumia as esferas de interesse da banda. (“Todos estavam doidões de remédios na metade do tempo — porque heroína era muito cara”, disse Barrett.) Impressionado, Hannett tomou a responsabilidade de ligar do nada para a única pessoa na mídia de Manchester que ele achou que poderia se interessar pelo resultado, o apresentador do segmento “What’s On” do programa de TV local, Granada Reports: Tony Wilson. Mesmo vindo de uma família de classe trabalhadora de Salford, Wilson conseguira chegar à Universidade de Cambridge, onde ganhou um desejável sotaque típico da BBC, sotaque esse que, ao mesmo tempo, irritava os moradores de Manchester que o viam na TV e enganava os convidados, que ele frequentemente censurava por sua falta de integridade sociopolítica. Na primavera de 1976, Wilson estava se preparando para lançar seu próprio programa de música para a televisão, So It Goes, e, com a recomendação de Hannett viajou até Stockport para ver o Slaughter & the Dogs ao vivo. A energia pura da banda e de seu público jovem o animaram, especialmente porque, quase na mesma semana, ele recebeu pelo correio o bilhete de um tal Howard Trafford convidando-o para ver um grupo chamado Sex Pistols, que Trafford e seu amigo, Peter McNeish, estavam levando de Londres para tocar no Lesser Free Trade Hall — uma sala menor embaixo do salão principal —, em junho. Wilson não conseguiu ir àquele show; apenas cerca de cinquenta pessoas foram. Mas, em julho, Trafford e McNeish — agora usando os nomes Howard Devoto e Pete Shelley, respectivamente — anunciaram que levariam os Sex Pistols de volta a Manchester e que, dessa vez, sua própria banda, Buzzcocks, abriria o show. Como atração principal, de acordo com pôsteres que foram colados pela cidade, estava o Slaughter & the Dogs, de Wythenshawe.
Na noite do show, uma terça-feira, 20 de julho, o enorme público que veio de Wythenshawe para apoiar seus heróis locais incluía vários dos muitos guitarristas em desenvolvimento da área, como Billy Duffy, Steven Pomfret, Marc Riley e Craig Scanlon, e, entre os não músicos, Phil Fletcher e Jimmy Walsh. Buzzcocks (ainda sem o definitivo artigo definido à frente do nome) deu início aos trabalhos, a primeira banda do norte da Inglaterra a tocar um show diretamente influenciado pelos Sex Pistols. O Slaughter & the Dogs subiu no palco em seguida; acabou que os pôsteres que os colocavam como atração principal tinham sido um trabalho otimista da própria banda. Mesmo assim, eles geraram uma grande quantidade de testosterona adolescente e, em algum momento depois que os Sex Pistols subiram no palco, aquilo explodiu, quando a torcida de Wythenshawe do Manchester United entrou numa batalha acirrada com os fãs dos Sex Pistols que tinham saído de Londres para vê-los. Parcialmente, como resultado desse incidente, mas também por conta de sua simplicidade musical, visual e intelectual, o Slaughter & the Dogs acabou sendo banido do lado artístico da cena punk de Manchester, que foi criada bem ali, naquela noite.
No meio disso tudo, Phil Fletcher avistou alguém num canto, “com um cardigã multicolorido, carregando o primeiro disco do New York Dolls debaixo do braço”, como ele recordou. “Aquele deve ser o tal Steve Morrissey”, Fletcher disse a seus amigos. E era.
HÁ QUE SE dar crédito a Morrissey por saber onde encontrar a ação, pois ele estava entre os poucos selecionados que também estiveram presentes no primeiro dos shows dos Sex Pistols, no Lesser Free Trade Hall no início de junho. Ele sabia que o empresário da banda, Malcolm McLaren, desistira recentemente de tentar ressuscitar a carreira dos New York Dolls, que Morrissey tanto amava, e lera sobre os Sex Pistols nos jornais musicais, veículos em que eles criaram um imediato (embora cauteloso) interesse por conta de sua aparente preferência pelo caos em relação à música. Mas Morrissey provavelmente teria comparecido ao show ainda que nunca tivesse ouvido falar da banda, pela simples razão de a cidade estar gritando por atividade. Manchester, naquela época, como o cantor relatou mais tarde para o autor John Robb com seu habitual senso poético de drama, era:
[...] um labirinto de ruas sujas. A iluminação pública ainda era de um amarelo muito tedioso [...] A violência estava por toda parte — e era aceita. Havia uma escuridão espiritual, assim como uma escuridão literal: ainda havia muitos vagabundos com uniformes de desmobilização do Exército, lojas de discos em prédios sombrios, praças completamente sem iluminação, setenta por cento dos prédios do centro da cidade estavam abandonados e tudo dependia do último ônibus para casa. Tudo ainda era visivelmente de um período do pós-guerra e com uma feiura muito industrial, tudo descolorido com a poeira de cem anos, e o rock era um enxame de infelicidade.
Ele não estava sozinho nesse pensamento. O velho amigo de escola de Howard Devoto, Richard Boon, foi de Reading a Manchester para ajudar a organizar os shows dos Sex Pistols, e apenas descobriu que “Manchester era estruturalmente abandonada, culturalmente abandonada, musicalmente abandonada”. Boon conseguiu um emprego de meio expediente compilando as paradas musicais para o quinzenal New Manchester Review, mas “quase não havia nada para compilar. A impressão que se tinha era de que a maré tinha esvaziado”. Manchester tivera uma grande história de sucesso com o 10cc, cuja música pop sarcasticamente intelectual os tinha transformado numa das maiores bandas do país, e que possuía um estúdio de gravação, Strawberry, em Stockport. Mas o 10cc não representava nada a não ser eles próprios; era talvez um indicativo da doença musical de Manchester que seu artista mais discutido, Alberto y Lost Trios Paranoias, fosse visto, a priori, como uma banda de comédia.
Dessa forma, é difícil exagerar na influência dos Sex Pistols em Manchester naquele verão. Fitas do primeiro show, no qual a banda de abertura era formada por hippies locais, revelam um público exaltado o suficiente para provocar Johnny Rotten a lhes mandar “se foder!” pelo menos duas vezes — e foi exatamente a ideia de um líder de banda que insulta dessa maneira o seu público que ajudou a tornar os Sex Pistols tão revolucionários. Morrissey sentiu-se suficientemente inspirado pela natureza quase secreta do show, a ponto de escrever uma resenha e enviá-la à NME com sua costumeira forma de carta de leitor, mas, como muitas vezes acontece a alguém sujeito a algo essencialmente novo e não comprovado, ele foi comedido em suas conclusões. Observou que “os presunçosos Pistols, vestindo roupas de brechó, fizeram os poucos que compareceram dançarem nos corredores”, mas usou a oportunidade principalmente para mencionar, em vez disso, o que ele considerava que eram seus precursores e superiores: “É bom ver que os britânicos produziram uma banda capaz de produzir a atmosfera criada pelos New York Dolls e seus muitos imitadores, apesar de talvez ser tarde demais.”
Não foi. E houve consideravelmente menos conflito no segundo show dos Sex Pistols, em boa parte porque as bandas de abertura pareciam refletir um desejo similar de mudança musical e social. Wayne Barrett, por exemplo, recordou-se de como ouviu “significado nas letras dos Sex Pistols” que não existiam nas suas. “Apenas observar Rotten no palco... Ele ia totalmente contra tudo...” Depois do show, Barrett e Rossi, apesar da briga na plateia, sentaram-se com os Pistols e descobriram que eles eram feitos do mesmo material: adolescentes desafeiçoados, abandonados por uma decadente sociedade britânica, mas determinados a fazer algo de suas vidas mesmo assim. Imediatamente, Barrett e Rossi perceberam que eles não tinham que imitar mais seus heróis extremamente famosos. Eles podiam fazer tudo que quisessem.
Aquele sentimento — a sensação de completa liberdade artística e pessoal — se tornou predominante entre quase todos que compareceram aos dois shows. Steve Diggle, que havia abandonado o ensino médio em Openshawe com a sensação de que “não havia esperança”, deparou com o primeiro show a caminho do pub; saiu de lá como membro do Buzzcocks. Bernard Summer e Peter Hook, dois rapazes de 20 anos de Salford, ficaram tão inspirados com o show de junho que Hook comprou um baixo no dia seguinte para formar uma banda; Ian Curtis, futuro vocalista dela, sentiu-se igualmente motivado depois de comparecer ao show de julho. O mesmo aconteceu com Mark E. Smith, um estivador de Salford que percebeu que, se os Pistols podiam subir no palco com um vocalista que não sabia cantar, ele também podia, e formou o The Fall, banda à qual tanto Marc Riley quanto Craig Scanlon, de Wythenshawe, viriam se juntar.
Outros, como Billy Duffy, que afirmou que a presença no show de julho “mudou minha vida para sempre”, tiveram que esperar sua vez. Apesar de ser conveniente acreditar que os Sex Pistols foram capazes de mudar o mundo numa noite, a revolução (se é que houve uma) ocorreu lentamente. Era quase impossível distinguir a primeira temporada do programa de TV de Tony Wilson, So it Goes, de The Old Grey Whistle Test, pela escolha de convidados estabelecidos, respeitáveis e que estavam divulgando discos, o que explica por que Steve Morrissey enviou a Tony Wilson uma capa do disco dos New York Dolls (que podia ser, inclusive, a mesma que ele vinha carregando consigo nos shows) com um bilhete dizendo: “Por que você não pode apresentar mais bandas como essa?” (Wilson, atordoado com o que vira no Lesser Free Trade Hall, conseguiu levar os Sex Pistols ao estúdio para o episódio final da temporada, algo por que ele merece crédito eterno; a estreia da banda na televisão britânica não foi nada menos do que incendiária e provavelmente teria um efeito melhor na juventude britânica se sua transmissão não tivesse sido confinada à área de captação da Granada.) Os cabelos continuavam a crescer e as calças continuavam largas segundo a moda. E poucas pessoas, se é que alguma o fez, jogaram fora suas velhas coleções de discos, porque, além da nova música que lentamente saía de Nova York, não existia nada com que os substituir.
Dessa forma, se você tocava guitarra no seu quarto aos 12 anos em Wythenshawe e se chamava Johnny Marr, podia tentar se identificar com aquela coisa chamada “punk”, que tinha deixado alguns de seus amigos mais velhos tão repentinamente animados; podia se juntar à multidão naquele mês de agosto, no Wythenshawe Forum, para um dos primeiros shows a que você assistiria, em que o Slaughter & the Dogs era a atração principal acima do Wild Ram, uma banda pesada local na qual tocava o irmão mais velho de um colega de escola, e você podia achar aquilo “assustador”.3 Você podia rir do fato de o Wild Ram ter imediatamente mudado o nome para Ed Banger and the Nosebleeds e, num mundo alternativo, talvez você pudesse se imaginar seguindo aquele caminho. Mas você tinha sido criado para acreditar que a prática levava à perfeição e que o talento prevalecia. Você certamente não estava prestes a abrir mão de todas as suas habilidades desenvolvidas como autodidata por um lixo rápido e sem melodia.
Ansioso para encontrar artistas que ele pudesse chamar de seus, Johnny Marr tinha sido levado até o guitarrista influenciado pelo blues Rory Gallagher: “Ele parecia ter muita integridade e havia algo a respeito de sua ascendência irlandesa com que eu simplesmente me conectava.” Em 1975, Gallagher lançou um disco, Against the Grain, que, no estilo da época, tinha a guitarra do artista como estrela da capa. Mas a Fender Stratocaster de Gallagher fora lixada, o que, embora tivesse sido feito primordialmente para melhorar o som, deu ao dono uma anti-imagem adicional. Marr se apaixonou. O fato de seu novo herói tocar no Free Trade Hall pelo menos uma vez por ano contribui para sua devoção, além do fato de os rapazes mais velhos com quem ele andava terem prometido que o fariam entrar no próximo show que o guitarrista fizesse em Manchester — de graça. (Eles tinham aprendido a abrir as portas laterais do prédio com uma antena arrancada de um carro estacionado nas proximidades.)
O mesmo grupo — incluindo Billy Duffy, antes de sua epifania com os Sex Pistols, e Robin Allman, que morava quase em frente à casa de Marr na Altrincham Road — tinha mostrado a Marr o grupo de folk rock Pentagle, especificamente a guitarra dedilhada de Bert Jansch e como ela interagia com o segundo guitarrista, John Renbourn. Isso exerceria enorme influência, claramente audível, no futuro estilo próprio de Marr: um dos atributos mais notáveis do futuro guitarrista dos Smiths era seu uso da palheta para tocar cordas individuais para cima e para baixo, criando uma melodia no processo, em vez de simplesmente tocar todas as cordas juntas. Na época em que os Smiths surgiram, no entanto, bandas como o Pentagle estavam ultrapassadas; Marr não falaria publicamente sobre Jansch com devoção até muitos anos depois (criando uma sensação de que ele era um prodígio perto daqueles que não conheciam o período de influência criativa do Pentagle).
Marr se mostrou levemente mais declarado em relação ao seu amor por Neil Young e Nils Lofgren. Como Gallagher, Young exalava credibilidade e musicalidade, embora não fosse uma grande estrela na Grã-Bretanha, o que fazia dele um herói cult ideal no meio dos anos 1970. Lofgren, enquanto isso, lançou um disco de estreia em 1975, aclamado não apenas por sua incrível habilidade para tocar guitarra, do tipo que Marr podia apenas sonhar imitar, mas também por causa da canção de destaque, “Keith Don’t Go”, uma súplica para que o guitarrista dos Stones mantivesse seus abusos com as drogas sob controle. Para completar o círculo, Lofgren também participou da gravação e da turnê de lançamento de Tonight’s the Night, de Young. Como símbolo de seu bom gosto, Johnny comprou um bottom de Tonight’s the Night e o prendeu em seu blazer da escola, pouco se importando com as exigências do uniforme. Buttons eram maiores naquela época e difíceis de ignorar. E foi por essa razão que Johnny Marr chamou a atenção de Andy Rourke.4