Com o surgimento do Paris Valentinos a notícia das habilidades aprimoradas de Johnny Marr se espalhou entre os guitarristas de Wythenshawe. Ele foi convidado para tocar com David Clough um dia e “foi importante”, recordou ele. Robin Allman o trouxe para ver o vocalista dos Freshies, Chris Sievey, imaginando que Marr era bom o suficiente para se tornar o novo guitarrista da banda, mesmo com apenas 14 anos. Sievey não discordou, mas, preocupado com o fato de aquilo ser visto como algo exótico, deu o trabalho a outro local de Wythenshawe, Barry Spencer. Marr tinha, certa vez, parado do lado de fora da janela daquele sujeito, escutando Spencer tocar músicas do Thin Lizzy em seu quarto. O fato de ele estar circulando entre aquelas pessoas era um sinal de sucesso.
“O que aconteceu com Johnny é que ele foi aceito pelos rapazes mais velhos porque conhecia música”, disse Phil Fletcher. “Eu me lembro de ele chegar perto de mim e dizer: ‘Posso pegar emprestado quatro ou cinco dos seus discos dos Rolling Stones?’, e se qualquer outro garoto de 14 anos tivesse me pedido aquilo, eu provavelmente teria batido nele. Mas eu disse que não tinha problema, emprestei os discos, e ele os devolveu para mim na semana seguinte. Ele era um rapaz muito empenhado.”
Marr continuou a entrar escondido em shows com seus amigos mais velhos, como em março de 1977, no Free Trade Hall, para um show do Uriah Heep, em que tanto a banda principal quanto a de abertura tinham integrantes dos Spiders from Mars. Quem também estava com Marr naquela noite era Andrew Berry, que frequentava outra escola católica de ensino médio, St. Gregory’s, e reconheceu o rapaz das festas noturnas para pré-adolescentes no centro comunitário de West Wythy. A dupla se encontrou novamente no Free Trade Hall para o show de Ian Hunter, em junho, quando ambos os garotos apareceram na passagem de som com a esperança de encontrar o guitarrista de Hunter e Bowie, Earl Slick, e daquela vez os dois realmente se deram bem. Naquela época, recordou Marr, Berry usava “cabelo vermelho como o de Bowie, dividido de lado e virado na ponta, uma camiseta de manga cortada do Roxy com pregadores de roupa”, o que o tornava a própria imagem do soul boy, ou o que, na cultura mod da década de 1960, teria sido considerado como face, gíria utilizada para definir pessoas estilosas. Tão importante quanto isso, disse Marr, era o fato de Berry ser “um personagem notório e sempre muito agradável”. A amizade que a dupla desenvolveu, como as que Marr já tinha com Rourke e Powell, estava pronta para se mostrar crucial para os Smiths.
Uma semana depois do show do Uriah Heep, o grupo de Wythenshawe foi ver um T. Rex cada vez mais ultrapassado no Manchester Apollo, em Ardwick Green, perto da antiga casa de Marr. O cinema tinha acabado de começar a funcionar como casa de shows e se mostraria bem-sucedido em suas ambições a ponto de logo substituir o Free Trade Hall como a principal parada em Manchester no circuito de shows. Marr considerava aquilo um desastre, não apenas porque “o Free Trade Hall era simplesmente melhor”, mas também porque “era muito mais difícil conseguir entrar escondido no Apollo”. Lealdades adolescentes podem se transformar em ressentimentos para a vida toda e, consequentemente, os Smiths nunca tocaram no Apollo; eles tocaram, no entanto, duas vezes no Free Trade Hall.
À medida que o punk tomava conta de Manchester, Marr expressava seu interesse pelas novas bandas britânicas (especialmente heróis locais, como os Buzzcocks), mas, assim como acontecia com Morrissey, e muito como acontecia, na verdade, com Manchester de forma geral, ele se mostrava muito mais motivado com a música dos Estados Unidos. O grupo mais antigo de Wythenshawe mostrou-lhe os New York Dolls, com atraso suficiente para que ele pudesse apenas expressar seu entusiasmo pelo guitarrista, Johnny Thunders, por meio da nova banda do músico, The Heartbreakers. (Ao contrário de Morrissey, Marr era também, havia muito, fã dos Heartbreakers de Tom Petty e pegou carona até Knebworth, em junho de 1978, onde Petty se apresentou no meio de uma escalação de festival tipicamente bizarra, que tinha como principal atração o Genesis, mas que também apresentava os futuristas new wave de Ohio, Devo.) Billy Duffy, que Marr considerava seu “aliado mais próximo” e “exemplo” na época, apresentou-o também a Iggy and the Stooges, especificamente o álbum Raw Power, e o guitarrista dessa banda, James Williamson, tornou-se mais uma influência importante. (“Eu e meus amigos éramos obcecados pelos Dolls, por Iggy e por todas as coisas de Nova York por volta de 1974”, recordou Duffy, que, a respeito de si mesmo e de Marr, falou que “tudo o que queríamos era ser astros do rock; era nosso grande sonho”.) E ele ficou boquiaberto com Patti Smith. “Eu era uma daquelas raras pessoas que amavam Radio Ethiopia”, disse Marr sobre o comumente ridicularizado segundo disco da cantora. Como resultado, ele deixou de lado sua aversão ao Apollo e se juntou a Duffy e ao baixista do Slaughter, Howard Bates, quando Smith foi à cidade em agosto de 1978.
Mais tarde Marr descreveu o show como “uma reviravolta em minha vida”, apesar da escolha do local. “Era quase como se o palco fosse uma janela para um outro mundo, um mundo de verdadeiro rock moderno, e aquelas pessoas estivessem vivendo nele. Foi como assistir a uma peça. Algo como: ‘preciso estar ali dentro; esse é o meu lugar.’” O show devia ter sido também digno de nota por marcar a primeira ocasião em que Marr encontrou seu futuro parceiro musical — desconsiderando o fato de que nada saiu daquilo. Marr tinha ouvido falar de Steve Morrissey como um fanático pelos Dolls e por Patti Smith que ousara brevemente liderar os Nosebleeds, por isso o rapaz talvez imaginasse um personagem com a persuasão de Ed Garrity. Mas quando Billy Duffy os apresentou, Marr ficou decepcionado. Houve uma “completa falta de interesse, desinteresse, por parte de Morrissey”, recordou ele. E quanto às suas primeiras impressões, houve apenas “uma curiosidade reservada... porque ele não era exatamente como eu o imaginara”.
DE FORMA INVOLUNTÁRIA, pois os Buzzcocks prensaram o EP apenas como uma lembrança para distribuir em shows, Spiral Scratch começou uma revolução. Selos independentes sempre tinham feito parte da indústria musical britânica, mas, com sua presença constante, surgiu a suposição — posteriormente confirmada pela banda londrina pretensiosa Stiff, que tocava punk rock em pubs — de que precisavam de financiamento, um contrato de distribuição, um escritório e uma equipe com algum tipo de experiência na indústria musical. A New Hormones — que não era nada além de Richard Boon do outro lado da linha telefônica — refutou completamente essa ideia. Quando ele e a banda pararam de prensar Spiral Scratch, o disco tinha vendido 16 mil cópias.
Um número significativo dessas cópias foi distribuído pela loja de discos londrina Rough Trade, aberta numa rua secundária em Ladbroke Grove, no ano de 1976, por Geoff Travis, um rapaz formado pela Universidade de Cambridge e, mais importante, fã obsessivo de música, mas sem preferência por nenhum gênero musical específico. Estocando punk dos Estados Unidos, reggae da Jamaica, fanzines xerocadas de todas as partes do Reino Unido e encorajando tanto pesquisas na loja quanto atividades políticas, a Rough Trade rapidamente se tornou o point para fãs de música underground em Londres, com um negócio de encomendas estável em paralelo. Enquanto o sucesso de Spiral Scratch convencia um grande número de músicos, produtores, trapaceiros, outros proprietários de lojas de discos e meros fãs de música, de longa data e reputação razoável, de que era possível gravar, prensar, preparar a arte e vender um disco sem a permissão, muito menos o patrocínio, de uma empresa musical de nome, a Rough Trade era cada vez mais valorizada como uma, se não a, principal fonte de vendas.
Então, enquanto os Sex Pistols pulavam de uma gravadora grande para outra, e bandas como The Clash, The Jam e, finalmente, os Buzzcocks também assinavam a antiquada linha pontilhada corporativa, uma segunda geração decidiu fazer aquilo por conta própria. A maioria dos artistas era amontoada como parte da “New Wave”, mas era evidente que algo mais profundo estava sendo criado naquele mundo livre da manipulação das grandes gravadoras — algo que não seguia fórmulas instrumentais, estrutura de canção ou valores de produção; algo que muitas vezes refletia as cercanias geográficas do artista. No futuro, aquilo passaria a ser conhecido como pós-punk.
Em Liverpool, onde existia uma cena próspera em volta da casa de shows Eric’s, Bill Drummond lançou a Zoo Records para divulgar sua banda, Big in Japan; ele logo viria a lançar os álbuns de estreia de A Teardrop Explodes e Echo & the Bunnymen. Bob Last começou a Fast Product apresentando as guitarras afiadas e a política igualmente ferina das bandas Mekons e Gang of Four, de Leeds, e também os ritmos simples e sintetizados e as letras esquisitas do Human League, de Sheffield. Em Londres, um tímido editor de vídeos de vinte e poucos anos chamado Daniel Miller fez um single de 45 rotações noir, também com sintetizadores, sob o nome artístico The Normal; Daniel montou seu próprio selo, Mute Records; e, graças aos ouvidos instintivos e à ávida pressão para vender da equipe da Rough Trade, viu “TVOD”/ “Warm Leatherette” se tornar extremamente bem-sucedido no circuito independente e influenciar outros músicos amadores. Terri Hooley, de Belfast, lançou um selo que levava o nome de sua loja de discos, Good Vibrations, para exibir bandas punk locais. Ele começou com o Rudi, que era liderado pelo correspondente de Morrissey sobre os New York Dolls, Brian Young, e ganhou importância com um grupo de Derry, de orientação pop, The Undertones, cujo single “Teenage Kicks” foi defendido com fervor religioso pelo DJ da madrugada da Radio 1 da BBC, John Peel. Depois de algum tempo, a própria Rough Trade entrou na história, embora, inicialmente, Travis parecesse não ter uma visão mais clara para o selo do que tinha para sua loja, dados os primeiros lançamentos incluírem uma banda punk francesa, uma irlandesa, um grupo de reggae jamaicano, um projeto eletrônico de Yorkshire e um grupo pop independente de Londres — o qual influenciou enormemente tanto Morrissey quanto Marr — chamado The Monochrome Set.
Apesar de toda essa explosão de criatividade, a sabedoria aceita permanecia sendo de que, se uma grande gravadora viesse farejando, o independente liberaria a banda ou, melhor ainda, licenciaria o grupo para lucrar com futuras vendas. Foi esse o processo que fez com que a Rabid Records, de Manchester, se tornasse temporariamente bem-sucedida, vendendo o poeta punk local John Cooper Clarke para a CBS e licenciando o altamente divertido single punk do Jilted John para a EMI, que o levou ao top 10. A Fast também permitiu que o Gang of Four fosse para a EMI; a Zoo vendeu o Bunnymen e o Teardrop Explodes enquanto permanecia envolvida na gestão; a Good Vibrations vendeu os Undertones ao selo americano Sire, cujo fundador, Seymour Stein, tratado como celebridade no Reino Unido por assinar com Ramones e Talking Heads, passara a fazer frequentes viagens de compras às ilhas britânicas; e a Rough Trade, apesar de provar sua habilidade poderosa de distribuição ao levar seu primeiro LP, do Stiff Little Fingers, ao top 20, permitiu que a banda de Belfast assinasse com a Chrysalis em vez de ser vista como um empecilho para eles na busca de um single de sucesso mais atraente.
A mesma filosofia foi inicialmente aplicada pela Factory Records, lançada no final de 1978 por Tony Wilson, da emissora de TV Granada, com Alan Erasmus, um caloteiro de Wythenshawe, e Peter Saville, um designer talentoso que fora atraído ao punk na Manchester Polytechnic pela colega de faculdade Linder. Depois da fundação da Factory, seguiram-se vários meses de sucesso da festa de mesmo nome no Russel Club, na Royce Road, local que os cartazes alegavam ser em Moss Side, embora a localização fosse muito próxima dos notórios Hulme Crescents. Desde o início, a Factory (seu nome uma referência à história industrial de Manchester, não ao artista de Nova York, Andy Warhol) cultivava uma imagem artisticamente sofisticada e pretensiosa, publicando desde catálogos até cartazes, folhas de anotações, produzindo filmes e mesmo um marcador de ciclo menstrual projetado por Linder. Seu primeiro vinil, A Factory Sample, tinha capa de polietileno projetada por Saville, e era embalado em plástico. Apresentava quatro artistas, sendo o Joy Division o primeiro e mais importante, banda essa cuja música tinha sido despida no estúdio por Martin Hannett até sua essência mínima antes de ser reconstruída em volta das letras evasivas e da entrega urgente de Ian Curtis. Os integrantes do Joy Division vestiam-se como idosos, exibiam cortes de cabelo toscos, cortesia de um velho barbeiro local, e foram retratados por um rapaz da cidade, Kevin Cummins, em famosas fotografias granulosas em preto e branco para a NME diante de uma Princess Highway coberta de neve e num estúdio de ensaio mal-iluminado. A combinação musical e visual fez do Joy Division o representante da crise sofrida pela Manchester pós-industrial — não apenas para os que estavam de fora. “O Joy Division era a definição de Manchester”, disse Johnny Marr. “Seu som demonstrava como era viver aqui.”
A Factory logo seguiu com o single de outro grupo local, A Certain Ratio, que não soava nada parecido com seu título, “All Night Party”; e o de um duo de sintetizadores de Liverpool, Orchestral Manoeuvres in the Dark (OMD para abreviar), que tinha tudo a ver com o título, “Electricity”, e inspirou a Virgin Records a bater à sua porta em busca de um possível artista de sucesso. Wilson e seus parceiros alegremente venderam o OMD para a grande gravadora e usaram o lucro para montar um escritório na Palatine Road, região boêmia de Didsbury, no sul de Manchester. Mas, quando foi a vez do Joy Division, seu empresário, Rob Gretton, outro produto dos conjuntos habitacionais de Wythenshawe, sugeriu que eles próprios mantivessem a banda. E quando o LP produzido por Hannett, Unknown Pleasures, foi lançado, no verão de 1979, tanto a música, tão euforicamente catártica e ao mesmo tempo (como era acusada de ser) sombria e depressiva, quanto a arte da capa (uma imagem astronômica prateada e abstrata, disposta em tamanho pequeno no centro de um papel granulado preto) foram altamente saudadas como arte. O melhor de tudo foi que essa arte encontrou seu caminho até o público: a Rough Trade era agora não apenas uma varejista da nova música independente, era também atacadista, e supria as outras lojas que se coadunavam com sua forma de pensar. Uma nova rede de distribuição independente estava crescendo dia após dia.
Com isso, veio uma nova estrutura, intencionalmente irrestrita. A Rough Trade mantinha seus contratos iniciais em dois parágrafos; a Factory, em duas frases; a Mute nem mesmo se dava o trabalho. Nos três selos, os royalties eram deixados de lado em favor de uma divisão 50-50 do lucro. Como os artistas eram efetivamente livres, havia algumas sobreposições: tanto a Rough Trade quanto a Factory lançaram discos da banda experimental eletrônica de Sheffield Cabaret Voltaire, enquanto a Fast Products teve um flerte inicial com o Joy Division. Gradualmente, no entanto, cada um dos selos independentes criou sua própria identidade e uma filosofia para acompanhá-la. A Rough Trade era o coletivo esquerdista de Londres, topava tudo. A Mute se tornou conhecida como um selo de música eletrônica. Quanto à Factory, seguiu Unknown Pleasures com outros lançamentos de bandas locais, como The Distractions, Section 25 e a nova banda do antigo guitarrista dos Nosebleeds, Durutti Column, mas a genuína diversidade musical do selo era ofuscada pelas capas projetadas por Saville, que abandonavam as fotos dos próprios artistas em nome da arte. Os Buzzcocks tinham empregado uma tática parecida numa série de cinco singles românticos de 45 rotações, os quais se tornaram a trilha sonora adolescente do país em 1978 e acabaram por levar a banda ao top 30, mas as capas projetadas por Malcolm Garrett (também um produto da Manchester Poly) eram (pop) artisticamente simplistas, para combinar com o punk-pop (art) da música. Além disso, a banda compensava ao se apresentar proeminente nas capas dos álbuns. A música da Factory não era tão popular, os projetos gráficos eram ainda mais obscuros e as capas dos discos não eram mais passíveis de mostrar fotos da banda do que os singles. À medida que o selo ia ficando mais visível, tornou-se aparente que a Factory era vista, em todo o país, como se “representasse” Manchester de uma forma particularmente estilizada — para o bem, pois tornava a cidade um ponto de referência, ou, conforme a influência da Factory crescia e ameaçava obscurecer qualquer coisa que estava acontecendo na cena, para o mal.
STEVE MORRISSEY TINHA quase 19 anos quando se apresentou com os Nosebleeds, mesma idade que Johnny Marr, Andy Rourke e Mike Joyce tinham quando os Smiths começaram a fazer shows no final de 1982. Em grande parte, a personalidade de Morrissey já estava formada. Se ele tivesse conseguido despontar como líder de uma banda naquele estágio de sua vida, não seria uma surpresa para a cena musical, tampouco seria injustificadamente prematuro. O que estava faltando, no entanto, em termos de completar seu pacote, eram os quatro anos seguintes de sua vida antes de encontrar novamente Johnny Marr: quatro anos de frustração e desespero que ajudariam a criar o singular homem de um só nome, Morrissey, o personagem que se mostraria tão atraente (em tantos sentidos) a um grande número de adolescentes e jovens adultos que estavam passando por (ou tinham ocasionalmente saído de) períodos igualmente desastrosos em suas vidas. Sem se tornar um fracasso, Morrissey jamais poderia ter se tornado um sucesso.
De certo modo, foi realmente um período desastroso. Como grande exemplo, Morrissey emendou seu compromisso curto e elogiado com os Nosebleeds com uma ligação ainda menos duradoura com um Slaughter & the Dogs que estava igualmente se desintegrando, quando Wayne Barrett abandonou o trabalho de sua criação no conjunto habitacional de Wythenshawe por uma esposa parisiense. Billy Duffy recomendou Morrissey para o posto de vocalista e ele foi aprovado num teste com a banda — mas não com a gravadora, na visita a Londres. Quando o grupo mudou de nome para The Studio Sweethearts e se mudou para o sul, Duffy foi com eles; Morrissey foi deixado para trás.1
Cada vez mais desesperado para encontrar uma forma de entrar na próspera cena musical de Manchester e já sem a certeza de que seria como cantor, ele começou a se associar com o A Certain Ratio, cujo interesse no “kraut rock” alemão dos anos 1970 e no funk inicialmente sugeria que isso os destacaria de outras bandas de Manchester. Morrissey auxiliou com questões gerenciais, o que, àquela altura, consistia em pouco mais que recolher o dinheiro dos shows (embora, como ocorrera com o Slaughter & the Dogs, ele tenha escrito sobre eles de forma bastante generosa para a The Next Big Thing). Mas, em algum ponto do caminho, sua relação com o vocalista Simon Topping desandou, por causa de abordagens mal-interpretadas, forçando Morrissey a escrever uma carta explicitamente — e dolorosamente — honesta, explicando que ele não era, em essência, um homem sexual, e que escolhia seus amigos exclusivamente por sua personalidade. Embora a sensação de mágoa estivesse evidente, o mesmo se podia dizer de sua capacidade para o humor, o equilíbrio agudo entre escuridão e luz que distinguiria Morrissey como letrista, e ele brincou que estaria disposto a discutir anatomia feminina com Topping na esperança de salvar a amizade entre eles.
O apelo não funcionou, e devido à falta geral de progresso na vida de Morrissey, podia ter parecido o momento de deixar Manchester totalmente para trás. Steven certamente achou que era; no verão de 1978, escreveu para contar a um amigo que em setembro ele se mudaria para Nova York. Sua mãe também achou que deveria deixar a cidade, e como preparação para o que acreditavam ser um novo começo para a família nos Estados Unidos, conduziu Steven e Jackie Morrissey não a Nova York, mas a Arvada, um subúrbio de Denver, no Colorado, no começo de novembro, onde eles viveriam com a irmã de Betty, Mary. Jackie rapidamente conseguiu um emprego por lá; Steve, não, reclamando em carta enviada a Manchester: “Este é um lugar morto. Todo mundo anda como John Wayne, tão duros e machistas. Usei uma gravata rosa e todos pensaram que eu era um travesti.” Em vez de buscar conforto na música americana, ele estava evidentemente saudoso da New Wave britânica, observando que os mais recentes singles do The Jam, do X-Ray Spex e do Public Image Ltd faziam sua vida valer a pena. O fato de ele melancolicamente falar em se mudar para a capital britânica em janeiro devia ter alguma relação com essa recém-percebida admiração por artistas New Wave de Londres. Mas quando o Ano-novo chegou, Morrissey acabou voltando para o conforto familiar, apesar de frio, da Kings Road, em Stretford. Jackie permaneceu no Colorado por ora, mas a mudança para Steven foi descartada.
Em maio de 1979 a frustração de Morrissey com a inércia de sua vida era perceptível numa carta enviada a um de seus correspondentes mais próximos, Lindsay Hutton, da revista escocesa The Next Big Thing, que estava ocupada publicando os textos de Morrissey sobre os Dolls, Sparks, a cena de Manchester e até um poema sobre James Dean. Morrissey anunciou que estava trabalhando agora numa loja de discos em troca de “um salário de fome e condições de masmorra”. (Como seus outros empregos, esse não duraria.) Ele confessou enorme decepção com o novo LP de Patti Smith, Wave, que o Simple Minds o entediava e que estava feliz em descobrir que os Rezillos tinham se separado; mesmo o fato de os Heartbreakers de Johnny Thunders terem voltado à ativa parecia não despertar nenhum interesse. Podia ser porque Morrissey não conseguia encontrar uma gráfica de preço acessível para seu fanzine com tamanho de livro sobre os New York Dolls. Jogando seus braços para o alto em desespero, ele anunciou que estava indo a Paris no mês seguinte, “para ser artístico”.
Eram dias sombrios por todos os lados. Uma semana antes dessa carta o pêndulo político na Grã-Bretanha pendera mais uma vez para a direita. Seguindo o que foi chamado de “inverno do descontentamento” — greves paralisantes tanto no setor público quanto no privado enquanto os sindicatos buscavam e conseguiam aumentos muito além da limitação de 5 por cento imposta pelo governo, tudo isso enquanto a Grã-Bretanha sofria com as piores condições climáticas em 16 anos —, Margaret Thatcher entrou em Downing Street como a nova primeira-ministra conservadora (e a primeira mulher britânica no cargo). Sua conquista deveu-se, em parte, à frustração do povo com a incapacidade do Partido Trabalhista de controlar os sindicatos, mas também se apoiou numa imagem de campanha brilhantemente simples: a de uma fila de desempregados se esticando ao longe debaixo do slogan “O Partido Trabalhista não está funcionando”. Era verdade que o desemprego tinha chegado ao número de um milhão e quinhentas pessoas (de uma população de 50 milhões) na época da eleição. Mas era igualmente verdade que esse número viria a dobrar durante o primeiro mandato de Thatcher, chegando a níveis não vistos desde a Grande Depressão, enquanto o programa da primeira-ministra, linha-dura e sem remorsos de fechar fábricas e estaleiros que davam prejuízo, privatizando outras indústrias controladas pelo Estado, diminuindo os impostos dos ricos e decretando leis para conter os poderes dos sindicatos, via a Grã-Bretanha entrar numa recessão profunda, na qual milhões perdiam seus empregos e era quase impossível encontrar outros, com qualquer que fosse o salário. Para os que vinham de uma família de trabalhadores — o que incluía a maior parte dos habitantes das cidades industriais do norte, como Manchester —, as políticas de Thatcher pareciam uma guerra de classes.
No mesmo mês em que Thatcher foi eleita, Morrissey passou por um aniversário especialmente infeliz. De forma compreensível, ele havia “achado a perspectiva de fazer 20 anos alarmante... Eu não tinha a menor ideia do que iria acontecer”. Tentou afastar a crise iminente com uma enxurrada de duas semanas de filmes na televisão, mas aquilo não ajudou. “Quando eu me deitava à noite, tinha terríveis palpitações, porque estava muito preocupado. Eu acordava às três da manhã e começava a andar de um lado para o outro dentro do quarto.” Tirando seu abraço entusiasmado aos psychobillies americanos, The Cramps, o resto do ano passou batido. Ao seu redor, e apesar — ou muito provavelmente por causa — da ruína da economia de Manchester, a Factory Records estava explodindo, o Joy Division e o The Fall estavam no programa de John Peel quase todas as noites, Tony Wilson estava empresariando o A Certain Ratio, Paul Morley era um elemento permanente na NME e os Buzzcocks tinham lançado seu terceiro álbum em 18 meses. Steven Morrissey, enquanto isso, ainda tinha que sair do lugar. Ele entrou nos anos 1980 em casa, debruçado sobre um exemplar de Orgulho e preconceito.