Chegando ao fim de 1984, depois de menos de um ano na capital britânica, todos os Smiths se mudaram de volta para Manchester. Foi uma decisão consciente, pela qual Marr assumiu a responsabilidade. O retorno ao norte nasceu parcialmente da necessidade de fugir dos boatos da capital, do circo da mídia e da tentação de infinitas reuniões de negócios, mas, acima de tudo, nasceu de um desejo de se reconectar aos amigos de Manchester, suas influências e o ambiente que os havia cercado enquanto cresciam. Havia uma sensação de que, tendo se tornado conhecidos em escala nacional, eles podiam voltar para casa com as cabeças erguidas. Também havia o fato de que Morrissey e Marr tinham ganhado dinheiro suficiente para comprar casas — pelo menos nos subúrbios de Manchester, se não no centro de Londres. A de Marr era a metade de uma casa paroquial na Marlborough Road, em Bowdon, perto da escola de Altrincham, e ele e Angie rapidamente transformaram o lugar em “casa de máquinas” do grupo, no estilo do ídolo de Marr, Keith Richards, chegando ao ponto de ele estar com sua guitarra pendurada no ombro mesmo na cozinha, “todos os roadies dormindo no chão”, e de eles terem dois pastores alemães para companhia e segurança. Todos ficavam acordados até tarde, o clima era barulhento e os vizinhos da casa paroquial sem dúvida ficaram perplexos, mas aquilo serviu para dar ao grupo um quartel-general, que lhes fazia muita falta em Londres, e teria um efeito positivo imediato nas composições e gravações dos Smiths.

Morrissey optou por uma rua sem saída no vilarejo próximo de Hale Barns, perto das quadras de tênis e do campo de golfe locais. A casa isolada que ele comprou era surpreendentemente parecida com a casa geminada na Kings Road, que agora ficava apenas na memória, pois ele também instalou sua mãe na nova moradia, de onde ela cuidava dos negócios e dos visitantes quando ele estava ocupado com outras coisas em Londres.1 Ele não tinha nenhuma vergonha da relação próxima que os dois tinham, tendo dito à Melody Maker, apenas alguns meses antes: “Ela analisa com detalhes tudo o que acontece. Ela lê cada uma das entrevistas. Ela produz longos monólogos... Ela está muito, mas muito envolvida com o que faço. E a dela é a única opinião que eu levo minimamente a sério.” (É provável que ele não tenha tido a intenção de deixar seu parceiro, Marr, de fora dessa equação.)

Com a mudança de cidade, veio a percepção de que seu segundo disco não poderia ser como o primeiro, cheio de falhas, tampouco como os singles que o seguiram, por mais brilhantes que fossem. A maior qualidade de John Porter, como eles descobriram — tratar cada música como um possível single de sucesso —, era também seu principal inconveniente, porque nem todas as músicas precisavam de uma abordagem tão comercial. Os Smiths agora viam a necessidade de lidar com seu último lote de canções como um álbum, uma obra coerente que os levaria ao próximo estágio como artistas, mesmo que isso atrapalhasse a venda de singles. Para aquilo acontecer eles precisavam não apenas se mudar de volta para Manchester, mas também voltar a gravar no norte. Acima de tudo, precisavam assumir a responsabilidade pelo processo.

“Talvez Morrissey acreditasse mais em mim do que eu mesmo”, disse Marr, que achava que qualquer decisão de produzir por conta própria um disco como The Smiths acabaria caindo em suas costas. Apesar disso, disse ele, a decisão foi tomada rapidamente. “Foi apenas: ‘Certo, então sou capaz de fazer isso.’ Então muitas coisas não tiveram que ser discutidas por horas e horas, porque estávamos exatamente na mesma página.”

Ou, como disse Morrissey: “A ideia era controlar aquilo totalmente e, sem um produtor, as coisas eram melhores. Vimos tudo de forma mais clara.”

John Porter via as coisas de forma igualmente clara: ele tinha sido demitido e, em sua opinião, a mando de Morrissey. No começo de sua relação de trabalho o vocalista lhe mandava cartões-postais, “me agradecendo por ajudá-lo”, mas, quase imediatamente, disse Porter, “ele pareceu ficar desconfiado de mim. E acho que o fato de Johnny e eu sermos tão próximos, de andarmos juntos e fumarmos montes de maconha juntos... nós tínhamos nos tornado bons amigos. Acho que Morrissey pensou que eu talvez estivesse escolhendo lados dentro da banda”. Ciente dessa divisão detectada, disse ele: “Realmente tentei trazer Morrissey para junto de nós, para que fizéssemos algo a três. Eu sabia que aquilo apenas melhoraria as coisas. E eu, provavelmente — sem ter declarado isso na época —, sabia que, se eu não fosse capaz de fazer aquilo, não haveria nenhum futuro para mim de qualquer forma.” Num gesto de amizade, Porter inclusive convidou Morrissey para jantar em sua casa, e sua esposa, Linda Keith, “preparou um delicioso banquete vegetariano. E ele simplesmente não apareceu. Ele não telefonou, não disse ‘Não vou poder ir’, simplesmente não apareceu”. A conclusão de Porter? “Não acho que Morrissey gostava muito de mim.”

Na opinião do guitarrista: “eu teria deixado [John Porter] produzir tudo.” Vista à luz de tal comentário, a insistência do vocalista em se livrar de Porter, no fim de uma série de quatro singles consecutivos no top 20, e exatamente no momento em que o produtor tivera todo o trabalho para gravar dois lados B que estavam sendo saudados como as melhores gravações da carreira dos Smiths, pareceu nada menos que insensível.2 Mas, embora Morrissey nem sempre cuidasse de suas decisões da forma certa, seus instintos até aquele momento tinham se mostrado corretos e estavam prestes a ser confirmados novamente quando ele sugeriu que eles contratassem Stephen Street, que os Smiths tinham conhecido no estúdio da Island Records quando ele trabalhou na sessão de “Heaven Knows I’m Miserable Now”.

Street tinha 24 anos na época — mais velho do que todos os Smiths, exceto Morrissey, mas mais de uma década mais jovem do que John Porter. Era um músico capaz, que fora baixista da banda de pop/ska Bim, e tinha abandonado o circuito de shows havia dois anos para se concentrar no que acreditava ser seu primeiro amor, o estúdio de gravação. E por ser parte de sua geração e estar sujeito às mesmas influências e experiências do pós-punk, ele já era fã dos Smiths quando teve chance de trabalhar com eles. (Na verdade, ele se voluntariou para a sessão do single.) “Havia algo mágico ali logo de cara”, disse ele sobre conhecer a banda. “A forma de tocar guitarra de Johnny era fantástica. E havia algo em Morrissey. Pela forma como ele se portava e a forma como ele agia em geral, dava para perceber que ele estava ficando bastante acostumado à ideia de aparecer no Top of the Pops. Havia, definitivamente, um ar de estrela emanando dele.”

A presença de Street no estúdio da Island Records tinha imediatamente feito soar um alarme dentro de Porter. “Assim que Morrissey entrou, ele olhou para Steve e eu pensei: ‘É isso, você ficou sem emprego.’” Quando, no fim da sessão, Morrissey pediu o telefone do engenheiro de som e, principalmente, quando foi oferecido a Street “agradecimentos especiais” atrasados na capa de “William”, a decisão estava tomada.

“Lá estava alguém que era cauteloso, muito entusiasmado, inteligente e obviamente muito talentoso”, disse Marr, defendendo a contratação de Street. “E ele parecia um de nós.” Em outubro, Street foi nomeado engenheiro de som para o segundo álbum dos Smiths e se mudou para uma longa estadia num hotel de Manchester. De lá ele se juntava ao grupo numa viagem de carro diária, na Mercedes branca maltrapilha da banda, até o Amazon Studios, em Kirby, nos arredores de Liverpool, onde o Echo & the Bunnymen tinha gravado grande parte de seu álbum de sucesso, Porcupine. As sessões foram surpreendentemente rotineiras. Às oito horas, na maioria das noites, Morrissey estaria pronto para voltar a Manchester e, como o grupo estava sendo transportado junto, como uma equipe, aquilo significava que todos voltavam com ele. Aquilo convinha a Street; apesar de sua juventude, ele não era favorável às sessões de Porter, que varavam a madrugada. “Se você vira a noite, tudo o que acaba fazendo é começar cada vez mais tarde no dia seguinte. Você não produz mais. Um dia de dez horas de trabalho é o suficiente para mim.”

Assim que começaram a trabalhar juntos, Street reconheceu o óbvio: “parte da razão pela qual Morrissey não queria trabalhar com John Porter era que ele achava que [Porter] estava dando muita ênfase às guitarras e não o suficiente a seus vocais”. Morrissey e Street logo ficaram confortáveis juntos, em parte porque o novo engenheiro de som estava disposto a parar tudo quando Morrissey dissesse que estava pronto para cantar e a trabalhar dentro dos limites do vocalista. “Em nove de cada dez vezes, eu conseguia gravar em três takes ou menos”, disse Street, embora, com igual frequência, ele tivesse que juntar versos diferentes de takes diferentes para conseguir o melhor vocal possível. “Podiam [inclusive] ser palavras dentro de versos”, disse ele.

Ao longo das sessões do álbum, a inexperiência do engenheiro de som o fez aceitar um vocal desafinado que acabou impedindo que a música em questão — “I Want the One I Can’t Have” — se transformasse no que seria um single com potencial para tocar no rádio. (Morrissey a havia anunciado como o próximo single de 45 rotações da banda na turnê irlandesa, no fim de 1984, depois que a maior parte do álbum já havia sido gravada.) Mas aquilo era parte do apelo do vocalista. “Você tinha uma sensação de performance dele”, disse Street. “Não dá para superar isso. Eu preferia que estivesse um pouco fora do tom e que fosse uma verdadeira performance a ter a nota perfeita completamente sem emoção.”

Enquanto se acostumava à sua relação profissional com a banda, Street sentiu que Marr poderia estar agora compensando excessivamente por seus hábitos anteriores com Porter. “Eu sempre tinha a impressão de que Johnny estava sendo muito econômico”, disse Street. “Ele não estava gravando várias guitarras só por gravar.”

“Deixamos muita música pairando no ar”, confirmou Marr, citando a balada “Well I Wonder” como o exemplo principal. “Ela, intencionalmente, tem uma sensação de suspensão e é muito delicada. Eu poderia ter acrescentado muitos overdubs naquela canção, mas a deixei como estava.” “Well I Wonder” acabou sendo baseada num violão com uma levada simples (junto com bateria, baixo e efeitos sonoros para criar textura), acompanhando a letra minimalista e miserável de Morrissey, roubada, em grande parte, do romance By Grand Central Station I Sat Down and Wept, de Elizabeth Smart (embora isso não fosse um problema para as pessoas que descobriram), e que tinha um vocal final em falsete que soava muito menos forçado do que tentativas anteriores. O som da chuva caindo no fim da música era, disse Marr, “o som de se mudar de volta para o norte”. Para Marr a sensação que o álbum que eles estavam gravando passava era de que fora “feito numa propriedade industrial num inverno muito, muito úmido de Liverpool. E estávamos muito drogados. É música de drogados”. A dura realidade do Amazon Studios, no entanto, era não ser um estúdio à altura. Stephen Street chegou a implorar para que a banda se mudasse para um estúdio melhor, e overdubs futuros, mixagem e, de acordo com Street, toda a gravação de duas músicas foram feitos no Ridge Farm Studios, no condado de Surrey, cercado de árvores.3

O grupo tinha chegado ao Amazon com três músicas completamente testadas na estrada: a já antiga “Barbarism Begins at Home”, além de “Nowhere Fast” e “Rusholme Ruffians”, que tinham sido gravadas em demos com John Porter e foram, então, gravadas com ele numa terceira Peel Session, em agosto.4 Foram os ritmos rockabilly dessas duas novas músicas — ou o que Morrissey chamou de “aquela pegada da Sun Records” —, não o exercício funk da mais antiga, que deram a indicação mais clara da nova direção da banda no estúdio. Em relação às letras, também essa dupla ajudou a dar o tom do novo álbum, pois Morrissey estava evidentemente determinado a se afastar de temas dos Smiths que já tinham se tornado clichês — seus supostos hábitos sexuais (ou a falta deles) —, enquanto traziam uma afinidade ainda mais próxima aos dilemas, aos hábitos e aos alvos políticos das classes trabalhadoras. Em “Nowhere Fast” ele começava a segunda estrofe com a afirmação “I’d like to drop my trousers to the Queen, every sensible child will know what I mean” [Eu gostaria de abaixar minha calça para a rainha, qualquer criança sensata saberá o que quero dizer]. O espírito sugeria um elemento teatral do music hall, um estimado traço britânico que se estendia dos contemporâneos dos Smiths, Madness, aos Kinks e a George Formby, sendo que o último foi citado por Morrissey numa entrevista como “um dos maiores letristas de todos os tempos”. (Isso também ajudou a abrir o caminho para o tema do terceiro álbum.)

“Rusholme Ruffians” era uma ode aliterativa aos “parques de diversão itinerantes” da Manchester da infância dos Smiths. Embora as lembranças que Marr tinha de tais eventos fossem calorosas, de ser deixado sozinho com sua irmã para curtir a música pop que tocava alto nos brinquedos do Wythenshawe Park, as de Morrissey eram de violência gratuita, de levar cabeçadas sem nenhuma razão em Stretford, e, como ele era o letrista, foram suas lembranças que prevaleceram. Na primeira estrofe, “a boy is stabbed and his money is grabbed” [um menino é esfaqueado e seu dinheiro é roubado], enquanto, mais adiante, “someone falls in love and someone’s beaten up” [alguém se apaixona e alguém apanha] e uma menina pensa em suicídio no topo do brinquedo. Aquela era, de longe, a maior e mais literal letra de Morrissey até ali, e seu fascínio pela violência era visível, na medida em que, apesar de fazer seu narrador ir sozinho para casa, exatamente como tinha feito em “How Soon Is Now?”, nesse caso ele estava animado com a experiência em vez de querer morrer, proclamando: “My faith in love is still devout” [Minha fé no amor ainda é sincera].5 Reduzida em mais de dois minutos da versão exuberante da demo feita com John Porter, “Rusholme Ruffians” apresentava uma homenagem tão óbvia a “(Marie’s the Name) His Latest Flame”, de Elvis Presley, que o grupo logo incluiria uma parte dessa música na versão ao vivo.

Apenas por seu título, sem falar na letra, “Rusholme Ruffians” exacerbava a sensação de que o novo álbum seria uma empreitada mais nortista e física. (“Acho que a forma como componho é muito característica do norte”, disse Morrissey na época. “Não estou nem um pouco infectado por Londres ou pelo sul.”) Nesse sentido, é notável que “What She Said” — um ataque frenético de menos de três minutos com guitarras como serras elétricas e viradas de bateria constantes que anunciavam uma tensão previamente inexplorada nos Smiths — mencionasse “um rapaz tatuado de Birkenhead”, o porto de Liverpool, a apenas alguns quilômetros do Amazon Studios. Mas a declaração geográfica mais poderosa foi reservada para o verso inicial da primeira música do disco, “The Headmaster Ritual”: “Belligerent ghouls run Manchester schools” [Espíritos bélicos dirigem as escolas de Manchester].

“The Headmaster Ritual” era essencialmente uma descrição literal da rotina diária em St. Mary’s, desde as importunas inspeções diárias de uniforme de Jet Morgan às táticas de intimidação de Sweeney nos campos de futebol. Mas, apesar de se passar em Manchester e de vir da experiência pessoal de Morrissey, a música seria reconhecida universalmente, por resumir as emoções de tantas pessoas da mesma geração do grupo. Ao admitir que “I wanna go home, I don’t want to stay, give up life as a bad mistake” [Quero ir para casa, não quero ficar, desistir da vida como um grande erro], por exemplo, Morrissey imediatamente ganhou a simpatia daqueles que tinham temido diariamente ir à escola, todos eles tendo sofrido pessoalmente nas mãos de professores agressivos e colegas violentos. Ainda assim, quando ele então adaptou o verso inicial na segunda estrofe, para cuspir as palavras “spineless bastards all” [todos desgraçados covardes], aquilo foi o equivalente poético a enfrentar tais brutamontes. Com os outros integrantes dos Smiths apoiando-o de forma tão confiante — a introdução de um minuto apresentava os canais de guitarra mais habilidosos de todo o disco sobrepostos de forma densa, justificando, imediatamente, a decisão de produzir o disco por conta própria —, Morrissey foi capaz de mudar para um acompanhamento vocal puramente fonético, do tipo que tinha soado tão falso no passado, mas que ele agora usava como uma segunda pele. E, quando o Departamento de Educação de Manchester, mais adiante, demonstrou ressentimento público com “The Headmaster Ritual”, sugerindo que eles deveriam tentar banir os Smiths de tocar dentro dos limites de Manchester como consequência, aquilo serviu como confirmação de que o ataque tinha acertado o ponto fraco — e de que, dessa forma, tinha sido totalmente eficaz.

No passado, Morrissey tinha sido acusado de obscurecer seus objetivos poéticos, de esconder o que queria dizer por trás de muitas metáforas, e se “The Headmaster Ritual”, intencionalmente, abria o segundo álbum como uma declaração (atrasada) de clareza absoluta, ela foi, contudo, superada nesse sentido pelo final inequívoco do disco, o que lhe deu seu nome: a música “Meat Is Murder”. O vegetarianismo em si estava longe de ser um tabu em 1984, e Morrissey não era o único de seu círculo a não comer carne: sua mãe, Betty; Angie Brown; Grant Showbiz; Sandie Shaw; a banda James e, mais recentemente, o próprio Johnny Marr, todos tinham feito seus próprios compromissos de se abster. Os integrantes da banda James, em particular, tinham causado todos os tipos de divertimento ao levarem um fogão a gás na estrada e preparar suas próprias refeições na van. (Talvez não seja insignificante que o James e Sandie Shaw tenham tentado fazer os Smiths, especialmente Morrissey, empregarem meditação como uma forma de lidar com a pressão intensa, com as críticas e as responsabilidades que vinham com a fama — e tenham fracassado na tentativa.) Em comparação, os Smiths nem eram lactovegetarianos rígidos: Stuart James tinha ficado surpreso ao ver Morrissey comendo peixe nas turnês de meados de 1984 e Marr pedia sanduíches de atum para o camarim. Além disso, coletivamente, eles consumiam tanto leite, queijo e ovos que podiam ser uma banda patrocinada pela indústria de laticínios, a qual confinava os animais. E eles usavam produtos animais com frequência. Ainda assim, Morrissey tinha passado a ver seu vegetarianismo como um ato não apenas de orgulho, mas de princípio, e insistia que aqueles à sua volta seguissem seu exemplo. Mike Joyce achou a transição mais fácil do que Andy Rourke, mas o resultado do decreto foi solidariedade suficiente para que Morrissey pudesse, agora, cantar sobre sua cruzada em favor dos animais com os Smiths não apenas ao seu lado, mas dando apoio total a ele.

Ter o apoio de sua banda era crucial. Morrissey sabia perfeitamente bem que ele corria o risco de alienar pelo menos noventa por cento de seu público com Meat Is Murder e, mesmo assim, aquele era um risco que ele não apenas estava disposto a assumir, mas, ao dar esse nome ao disco, pelo qual ele estava disposto a apostar a carreira da banda. “O artista deve educar o crítico”, Wilde escrevera, o que Morrissey citaria como frase preferida de seu ícone mais confiável. Ele começou o processo de educar não apenas os críticos (dos Smiths), mas também o público em geral, sem sutileza, sem perdão e sem culpa; em vez disso, começou a impor culpa sobre os carnívoros, mesmo aqueles que estavam jogando flores aos seus pés.

Nesse sentido, futuras acusações de que a música “Meat Is Murder” era dogmática podem ter sido precisas, mas elas também erravam o alvo. O alvo era simples: carne é assassinato. “The calf that you carve with a smile” [O novilho que você corta com um sorriso]? Assassinato. “The turkey you festively slice” [O peru que você fatia em clima festivo]? Assassinato. “The flesh you so fancifully fry” [A carne que você frita de forma tão pomposa]? Assassinato. “It’s not ‘natural’, ‘normal’, or kind” [Não é natural, normal ou gentil], insistia Morrissey, isso é “assassinato”. Enfeitar o tema com tons mais reconfortantes teria sido o equivalente a enfeitar a carne de uma “linda criatura” com tomates e alface, colocando-a num pão e a apresentando ao consumidor como algo diferente do que Morrissey acreditava que fosse: assassinato.

Se havia um verso na música que fracassava ao enfrentar a análise do público era que “death for no reason is murder” [morte por nenhuma razão é assassinato]. Morte por acidente de carro, por câncer no cérebro ou num incêndio em casa podiam ser interpretadas como morte “por nenhuma razão” e, ainda assim, certamente não como assassinato. Por outro lado, Morrissey não era afeito à análise externa de suas palavras e, para um vocalista que tinha ido tão longe no rebuscamento lírico, o fato de apenas um verso desafiar a lógica era extraordinário.

Quando chegou a hora de pensar na parte musical de “Meat Is Murder”, Morrisey contou a Marr tanto sobre o título quanto sobre o conceito com antecedência, e o guitarrista produziu algo atipicamente sem vida, pesado, mecânico e “perverso” — tanto que levou algum tempo até ele perceber que a música fora composta em compasso 6/8, o ritmo de suas baladas nostálgicas e melancólicas. Morrissey, então, deu a Stephen Street um disco de efeitos sonoros da BBC com vacas mugindo e perguntou ao engenheiro de som se ele poderia fazer aquilo soar como um abatedouro. Street, para sua satisfação pessoal e profissional, teve sucesso ao adicionar outros sons incidentais ao da vaca e passá-los por um efeito de eco reverso. Aquilo foi mixado junto dos acordes de guitarra simples e do piano de Marr, que soava como se tivesse sido gravado originalmente para um filme de terror. O arranjo final não era particularmente mirabolante, abrasivo ou mesmo ríspido. Mas, com mais de seis minutos de duração, “Meat Is Murder” era tão implacável com seus ouvintes quanto Morrissey com carnívoros. Mesmo aqueles cujos hábitos alimentares foram profundamente afetados ao escutar a música tendiam a expressar alguma forma de alívio quando ela terminava.

Era música como propaganda e, dessa forma, não encontraria lugar numa grande gravadora. Mas os Smiths estavam na Rough Trade, cujo braço de distribuição lançava artistas como Crass, Flux of Pink Indians e outras bandas anarco-punk com mensagens igualmente intransigentes e tinha um grande número de funcionários vegetarianos ou veganos como produto natural de suas visões políticas e/ou de seu estilo de vida.6 A notícia de que a galinha dos ovos de ouro do selo lançaria um disco com um título tão militante foi, portanto, recebida, em algumas salas da Collier Street, com entusiasmo genuíno. A coisa ficou ainda mais séria quando Morrissey entregou seu projeto para a capa do álbum: a imagem de um soldado americano no Vietnã, tirada do polêmico documentário de 1968, In the Year of the Pig, com o título do disco, Meat Is Murder, escrito no capacete do soldado no lugar do lema original: “Make War, Not Love” [Faça guerra, não faça amor], a foto repetida quatro vezes como uma serigrafia de Andy Warhol. Por seu design simples de duas cores quase amador, aquilo podia ser a capa de um LP de qualquer banda política distribuída de forma independente da era do pós-punk. Aconteceu de ser dos Smiths, a maior de todas elas, e serviu como confirmação de que, apesar de toda a sua popularidade no mainstream, aquele não era um grupo com nenhuma intenção de ceder.