Na mesma sessão do começo do ano, no Ridge Farm, em que gravaram a instrumental “Oscillate Wildly”, os Smiths tinham gravado um riff que Marr acabara de apresentar a Morrissey quando voltava a Surrey vindo de Manchester. Embora Marr estivesse tentando emular a pegada de seus singles favoritos dos Stones, do meio dos anos 1960, o ritmo e o estilo eram mais influenciados estilisticamente pelo começo do rock e do rockabilly, tendo como referência a música “You Can’t Catch Me”, de Chuck Berry. Imediatamente inspirado, Morrissey criou o que parecia ser uma espécie de bilhete de suicídio apressado e, de alguma forma, espremeu as palavras no espaço alocado. A letra era, na verdade, uma ode engenhosa a um de seus panfletos feministas preferidos, Um teto todo seu, de Virginia Woolf, que argumentava em parte que, se Shakespeare tivesse tido uma irmã de intelecto natural igual, ela teria sido levada ao suicídio pela falta de oportunidades na Inglaterra elisabetana, e a canção foi intitulada de maneira adequada, porém enigmática, “Shakespeare’s Sister”.
Todos os quatro Smiths se superaram no estúdio, embora ninguém mais do que Mike Joyce, que replicou sua performance agitada de “What She Said” com uma série igualmente confiante de viradas precisas junto de um trinado acelerado na caixa. Andy Rourke pegou o violoncelo novamente, além do baixo; e Johnny Marr não conseguiu evitar sobrepor várias guitarras e violões com o familiar arsenal de efeitos como acompanhamento. O resultado, todos os 130 segundos, foi uma descarga frenética de sangue até a cabeça que teria sido uma maravilhosa adição de última hora para Meat Is Murder ou um lado B perfeitamente adequado. Mas os Smiths estavam tão genuinamente entusiasmados com ela que insistiram que “Shakespeare’s Sister” fosse lançada ao público em março, no meio da turnê do Reino Unido, como um lado A. (A frenética “What She Said” foi selecionada como um lado B apropriado.)
Na verdade, os Smiths ficaram tão entusiasmados com “Shakespeare’s Sister” que a revelaram no Oxford Road Show, na semana do lançamento de Meat Is Murder, quando eles deveriam estar tocando “How Soon Is Now?” — uma decisão que certamente não ajudou no progresso daquela música em particular nas paradas. Os Smiths não pareciam desnecessariamente preocupados com o fato de que nenhuma dessas duas músicas fazia parte do novo álbum. Eles estavam seguindo novamente os passos consagrados de bandas dos anos 1960, como os Beatles, os quais habitualmente lançavam novos singles que não estavam nos álbuns (por exemplo, “Day Tripper/We Can Work It Out”) exatamente na mesma semana em que lançavam um novo álbum (por exemplo, Rubber Soul).
Se “Shakespeare’s Sister” tivesse as características daquele tipo de hit, teriam ocorrido poucas reclamações. Mas não tinha. “Não acho que a música estava dentro do padrão necessário para ser um single dos Smiths”, disse Stephen Street, que, como engenheiro de som da sessão, ainda não tinha autoridade para dizer aquilo à banda. “Considerando o padrão que eles mesmos tinham estabelecido, achei que era um pouco desleixada.” Os Smiths nunca haviam trabalhado no formato estrofe/ponte/refrão/solo, mas, em sua série inicial de hits do top 30 todas as músicas tinham se beneficiado da repetição frequente do título da música. Como metade do material em Meat Is Murder, no entanto, o título de “Shakespeare’s Sister” nunca aparecia na letra, e o mais próximo que ela chegava de qualquer forma de gancho era um bastante simplista “Oh, Mama, let me go”. Em contraste, a música que eles então voltaram ao estúdio para gravar como faixa bônus do single de 12 polegadas, “Stretch Out and Wait”, não apenas tinha um refrão de verdade, que incorporava o título, e uma adorável caída em tom menor enquanto Morrissey cantava, junto de um lindo arranjo ritmado em 6/8 que, todavia, era rápido o suficiente para evitar a associação familiar de “balada”, como também incluía a melhor letra de Morrissey sobre o ato sexual. Era uma espécie de atualização da revolucionária composição de 1961 de Goffin e King, “Will You Love Me Tomorrow”, em que uma protagonista mulher se prepara para entregar sua virgindade. Morrissey projetou a música de forma semelhante à discussão de sexo como natureza, no que parecia ser o personagem feminino da música: “Ignore all the codes of the day, let your juvenile impulses sway” [Ignore todos os códigos de hoje, deixe que seus impulsos juvenis tomem conta].1 Essa era uma das letras mais claras, mais empáticas e mais poéticas de sua vida, um dos melhores arranjos da banda também, e com o típico desrespeito dos Smiths pela posteridade, ela foi condenada à relativa obscuridade.
Na Radio 1, o lançamento de ainda mais um single dos Smiths, apenas seis semanas depois de o último ter um desempenho fraco nas paradas, foi visto como algo apressado. “Shakespeare’s Sister” ainda chegou ao top 30 do Reino Unido, mas não porque alguém a escutou frequentemente no rádio e certamente não porque alguém os viu tocá-la no Top of the Pops. Pela primeira vez desde que os Smiths tinham chegado às paradas, eles não receberam o convite para aparecer no programa musical mais influente da televisão. O single desapareceu quase antes de ter chegado. Até mesmo os vários licenciados estrangeiros dos Smiths tiveram que admitir que não conseguiam mais acompanhar o ritmo. “Shakespeare’s Sister” foi lançada em apenas alguns países.
Isso poderia não ter importado se os Smiths, como um todo, aceitassem a responsabilidade por suas ações e os consequentes resultados (ou falta deles). “Eu, pessoalmente, nunca me importei se os singles não entravam no top 20, nunca”, insistiu Johnny Marr, que nunca repudiou publicamente a escolha do single. “O importante era que fizéssemos coisas boas e estimulantes.”
Morrissey tinha uma visão totalmente diferente, contradizendo o temperamento casual de seu parceiro. “Shakespeare’s Sister” era, disse o vocalista, “a música da minha vida. Eu coloquei tudo naquela música e eu queria, mais do que qualquer coisa, que ela fosse um grande sucesso”. Quando aquilo não aconteceu, ele procurou pessoas para culpar. “Ela foi colocada na lista negra da BBC porque denunciei o prêmio da BPI”, disse ele a Danny Kelly, da NME, que imediatamente reconheceu aquilo como uma clamorosa teoria da conspiração e exigiu uma desculpa melhor. “Acho que a Rough Trade lançou o disco com uma quantidade monstruosa de derrotismo”, Morrissey então aceitou. “Eles não tinham nenhuma fé nele. Eles não o trabalharam ou divulgaram de nenhuma maneira... A Rough Trade fez seu trabalho e nada mais. Eles estão entediados com os Smiths. Vi provas máximas disso.”
Levando em consideração que Meat Is Murder tinha acabado de tirar Bruce Springsteen do topo das paradas, sem o benefício de um single que o acompanhasse, o selo, naturalmente, pensava diferente. “Eles eram incrivelmente prolíficos”, observou Richard Boon, da Rough Trade, sobre os Smiths, “mas se você saturar seu próprio mercado até certo ponto, em vez de ampliá-lo, você não consegue acompanhar. E as expectativas deles se tornaram cada vez mais loucas.”
“A banda queria mais”, disse Simon Edwards, da Rough Trade, sobre a abordagem dos Smiths à promoção em 1985. “Eles queriam mais profissionalismo, o que quer que fosse. Eles queriam anúncios de página inteira, o que começamos a fazer, [embora] todos soubessem que aquilo não significava porra nenhuma, na realidade. É uma coisa de ego. Então, eles têm que estar a cores. As exigências aumentaram.”
A mais questionada dessas exigências foi a de colar cartazes pelas ruas, “o que Geoff Travis achava ser um desperdício de dinheiro”, disse Mayo Thompson, novo gerente do selo da banda na Rough Trade. Thompson, vocalista do Red Krayola, nascido nos Estados Unidos, adorava a criatividade da Rough Trade, mas também compreendia a importância dos negócios. “Publicidade é efêmera, mas o simbolismo é importante”, observou ele, ficando do lado dos Smiths. “Se você divulga um disco sem comprar publicidade, você está indo contra a natureza da economia. Então, existe alguma desculpa filosófica que é conveniente para a identidade da gravadora moralista que não quer anunciar, e você pode defender aquilo como... idealismo político se quiser, mas o preço que se paga é que tudo está bem — contanto que você tenha entusiasmo.”
Entusiasmo tinha, pelo menos até então, sido sempre evidente entre os funcionários do selo dos Smiths. “Se você falar com pessoas que trabalharam na Rough Trade, elas vão dizer que foi o período mais animado de suas vidas”, disse Richard Scott, da distribuição. “De longe. Era muito intenso.” Mas, agora, ele achava que “aquilo ia repentinamente chegar ao fim”. Em parte, ele culpava mudanças no mercado: ninguém sabia exatamente o que o lançamento de Meat Is Murder em CD pressagiava, por exemplo, e alguns podiam alegar não ter se importado, levando em conta que o formato era caro e parecia de interesse apenas dos devotos da alta-fidelidade, que podiam comprar o equipamento, não o tipo de fã dos Smiths que ainda corria para comprar os singles de 7 polegadas. Mas para os que estavam prestando atenção, estava evidente que a música digital tinha chegado e que não havia como voltar atrás. De forma mais marcante, Richard Scott viu o adeus dos dias prósperos da empresa por conta de seu foco implacável no sucesso dos Smiths a todo custo. “As pessoas com quem eu estava lidando no Cartel e outras pessoas estavam aborrecidas, porque teriam que se preparar em áreas de marketing em que elas não estavam interessadas.” Para muitos dos que trabalhavam nos telefones, um emprego na área de “vendas” da Rough Trade nunca tinha se baseado em posições nas paradas; era baseado na sensação de vender música independente nova e entusiasmante para lojas de discos, para que as pessoas pudessem encontrar aquilo, escutar e comprar. Mas agora, nos dias em que as paradas eram divulgadas, disse Scott, Travis chegava antes de todos, furioso para saber a posição mais recente dos Smiths, exigindo saber de Scott e sua equipe “por que vocês ainda não estão no telefone?”. A distribuição teria que explicar que havia dias e horários pré-aprovados para ligar para certos atacadistas e que o momento depois que as paradas tinham sido anunciadas não era um deles. Mayo Thompson recordou que, quando voltou a trabalhar na Rough Trade, em 1983, “a distribuição era um campo armado e o selo era um campo armado, e eles tinham uma relação de inimizade entre si. Era como o Congresso dos Estados Unidos”.
No fim das contas a questão era se a Rough Trade era incapaz de dar aos Smiths os consistentes singles de sucesso que eles mereciam ou se, na verdade, era o contrário. “Por que ‘Shakespeare’s Sister’ não está no top 10?”, perguntou Richard Boon, de forma retórica. “Há uma resposta muito simples para isso. Não é um disco muito bom. Por que criar caso?” (Na verdade, era um disco muito bom. Só não era um single muito bom.)
“Eles não estavam fazendo música que venderia duas vezes mais, três vezes mais”, insistiu Simon Edwards. “O trabalho estava sendo feito. Era possível ter feito aquele trabalho um pouco melhor e um pouco pior. Não acho que teria dado aquele enorme salto até o megaestrelato.”
“Acho que, se você escutar os Smiths”, disse Travis sobre o grupo, em 1984-85, “eles não são tão populistas quanto os grupos que estão povoando o top 5. Eles são bons demais, eles são inteligentes demais, eles são muito incomuns. Não há uma linhagem até os Smiths que esteja no subconsciente do público britânico.” Citando o sucesso do Pigbag e do Depeche Mode como prova de que “o sistema estava em seu lugar”, ele fez sua própria pergunta retórica: “Teriam eles feito mais sucesso com seus singles em outro lugar?”
Seymour Stein certamente achava que não. “Eu tive sorte de assinar com a Madonna”, disse ele sobre a artista, que havia se tornado uma das maiores superestrelas do mundo em 1985. “Ela teria acontecido com qualquer um. Não acho que os Smiths teriam acontecido sem Geoff Travis... Ele colocou sua vida em jogo por eles.”
“A Rough Trade fez o que foi capaz por nós”, concordou Andy Rourke, falando de vendas de discos. “Se estivéssemos na Virgin ou em qualquer outro selo, seria a mesma coisa. Mas tem que haver um bode expiatório. Logo, se nossa música não entrou no top 10, então alguém sofre as consequências.”
“Shakespeare’s Sister” foi essa música. E assim, se o single deve ser lembrado por algo (além de se somar ao catálogo musical já considerável do grupo), foi por marcar oficialmente o desgaste na relação com a Rough Trade.
PARA SUA TURNÊ de seis semanas na Inglaterra, na primavera de 1985, em que todas as casas de show, menos uma, lotaram com antecedência, os Smiths novamente convidaram o James como banda de abertura. Os dois grupos tinham se aproximado na turnê irlandesa e, em sua própria lista de melhores do ano, Morrissey tinha escolhido o James como “Melhor Banda” — o que não era um pequeno aval considerando que eles haviam passado todo o ano de 1984 sem lançar um disco. Aquilo seria corrigido logo antes da turnê com os Smiths, por meio de um novo e agitado single lançado pela Factory (“Hymn From a Village”), que rendeu à banda uma grande cobertura na imprensa e o interesse de todas as grandes gravadoras do país — pois o James tinha decidido que, apesar de sua própria recusa em se comprometer comercialmente, a Factory não era mais um lar apropriado para eles.
Juntos, os Smiths e o James apresentaram uma espécie de frente unida ao público: bandas com nomes comuns, de uma sílaba, da capital musical da Grã-Bretanha, em dois dos principais selos independentes do Reino Unido e ambos vegetarianos fervorosos, um importante ponto de partida para uma turnê chamada Meat Is Murder. Como mais um sinal de solidariedade e um ato de princípio não anunciado de sua parte, os Smiths se recusaram a pensar na ideia da típica banda de abertura paga por uma gravadora — o que podia ter lhes rendido pelo menos 20 mil libras —, e, em vez disso, pagaram ao James um pequeno cachê todas as noites.
A presença do James na turnê tinha um efeito colateral possivelmente não intencional. As grandes gravadoras, que estavam aparecendo com força para garantir a assinatura da banda de abertura num contrato de longa duração, faziam isso não necessariamente porque entendiam o grupo, mas porque viam o potencial de marketing do James como “os próximos Smiths”.2 Enquanto o leilão chegava a proporções astronômicas, não podia ter passado despercebido por Morrissey, em particular, que se o James valia 150 mil libras em adiantamento da MCA (como eles alegaram ter sido oferecido), então os Smiths, com seus provados singles de sucesso e álbuns que chegavam ao topo das paradas, tinham que valer muito mais do que isso. No fim, o James assinou diretamente com a Sire. (Eles insistiram que não tinha nada a ver com o fato de os Smiths fazerem parte daquele selo nos Estados Unidos.) Se pudessem ter visto o futuro, o James poderia ter desejado dizer aos Smiths que eles acabaram se arrependendo dessa decisão, que acabaram se perguntando o que tinham visto de errado na Factory em primeiro lugar. Quando eles perceberam isso, no entanto, já era tarde demais para os dois grupos.
HÁ UM MOMENTO na carreira de cada banda de sucesso em que ela está visivelmente, audivelmente, emocionalmente e visceralmente no seu auge — e a turnê Meat Is Murder representou esse momento para o quarteto The Smiths. Na última vez que eles haviam cruzado a Grã-Bretanha de verdade, muitas das casas de shows eram universidades; agora, eles estavam tocando nos principais teatros e não apenas nos antigos cinemas convertidos Apollo e Gaumont, mas no Royal Albert Hall, em Londres, no Royal Court Theatre, em Liverpool, e no Palace Theatre, em Manchester. (A última escolha de local tinha “a ver com história e tradição”, disse Marr. “O Palace era onde você ia ver os Hollies.”)
Toda noite o grupo se preparava no camarim com uma coletânea de singles dos Buzzcocks; para a plateia, o sinal da iminente chegada da banda ao palco vinha com o som de “Dança dos Cavaleiros”, de Prokofiev, do balé Romeu e Julieta, tocado no volume máximo. (Introduzida em 1984, a peça de Prokofiev tinha substituído “Love of the Loved”, de Cilla Black.) O show, relativamente curto segundo alguns padrões, refletia o desejo do grupo de olhar para a frente, não para trás: não tinha “This Charming Man”, nem “What Difference Does It Make?”, mas, como sempre, tinha material novo, e durante a maior parte da turnê, inédito, no lugar dos sucessos óbvios. Johnny Marr tinha passado a usar uma Gibson Les Paul tanto no estúdio quanto no palco: embora ela fosse a eterna guitarra favorita dos deuses do hard rock, “eu sempre achei que poderia fazer a Les Paul ficar mais leve”. Em vez de usar power chords ou volume só pelo volume, ele a tocava basicamente como tocaria uma semiacústica, com um som intencionalmente limpo que ia na direção do jazz às vezes, um processo auxiliado pela habilidade cada vez maior de Andy Rourke no baixo. (Apesar disso, o uso da Les Paul era, Marr admitiu, considerado “traição da maior ordem” por alguns de seus contemporâneos indies.) O único efeito especial era uma linha de slide guitar lúgubre tocada com um pedal em “How Soon Is Now?”, que tinha um ar mais desolador do que o pulsante ritmo dance da versão gravada. Em comparação, “Hand in Glove” tinha se transformado do single de 7 polegadas malgravado original numa espécie de canção pop perfeita, com o riff de guitarra transformado numa melodia distintamente simples. “Miserable Lie”, uma das poucas outras canções antigas, tinha gradualmente desenvolvido sua própria nova introdução. A maior parte do show, obviamente, era tirada de Meat Is Murder, a única de suas nove músicas rotineiramente excluída do set era “Well I Wonder”, difícil de replicar.3
A turnê parecia uma celebração coletiva do sucesso dos Smiths, com invasões de palco não mais apenas rotineiras, mas cada vez mais fora de controle. Tim Booth, do James, usou a palavra “extasiado” para descrever a reação do público a Morrissey, em particular, e no sentido religioso. “Era mais como ir ver um guru, jogar flores aos seus pés.” Levando em consideração que Booth já tinha um guru (ele e outros integrantes do grupo tinham aderido a um culto de meditação chamado Lifewave, comandado por um ex-operador de telégrafo da SAS que agora se chamava Ishvara), Booth sabia sobre o que estava falando. Então, ele conseguia ver como a devoção estava tomando proporções assustadoras, num bom sentido. “Algumas noites, eu percebia que eles não estavam fazendo um show muito bom, ou que Morrissey parecia estar realmente assustado no palco, e muito tímido, e então, em outras noites, eu via que ele estava claramente se divertindo e aproveitando aquilo, e sendo extrovertido. Eu conseguia ver essa variação, porque o conhecia suficientemente bem. Mas isso não fazia nenhuma diferença para a plateia: eles estavam apenas assistindo aos grandes Smiths.”
Para Booth foi um choque descobrir que ele não era mais capaz de conversar com seu amigo Morrissey como ainda se mostrara possível durante a turnê irlandesa. “Ele se tornou um prisioneiro de quartos de hotel e da segurança. E essas coisas são realmente confusas. Eu me lembro de ficar com muita pena dele, era simplesmente devastador.” O James admirava os Smiths: “Nós os amávamos como pessoas, eles eram as pessoas mais gentis conosco, tentando nos promover” — mas aquilo não significava que eles queriam ser os Smiths. “Nós vimos o que estava acontecendo com os Smiths e intencionalmente evitamos aquilo. Era muito assustador, era como uma montanha-russa. As pessoas olham de fora e pensam, especialmente jovens rapazes ou garotas, que você quer aquele nível de adoração mas, quando chega àquele nível e você está perto daquilo, não existem tantas pessoas que estão tão desesperadas para querer aquilo... Acho que nenhum ser humano passa por algo assim sem ficar fodido até certo ponto.”
O último show da turnê, no Royal Albert Hall, intimidou muito. Para a plateia, o palco baixo e o espaço totalmente aberto criava “linhas de visão” perfeitas; para o artista, havia a sensação de estar completamente exposto, sem uma área lateral onde se esconder, mesmo que por um momento. Para os Smiths, em particular, a sensação de um grande acontecimento, especialmente por ser a última noite da turnê, transformou-se numa distração. Todos queriam ingressos, e a Rough Trade não conseguia satisfazer todo mundo, por não ser o tipo de gravadora que comprava uma grande quantidade de assentos com antecedência. O selo, no entanto, tratou o show como seu próprio desfile de vitória e colocou o grupo sob ainda mais pressão promocional. “Havia um incrível burburinho”, disse Marr, “o que nunca é bom quando você tem algo importante para fazer. E o som no palco estava horrível. Foi muito, muito difícil. Morrissey estava tendo muitos problemas em fazer o que ele faz. E acho que ele estava no meio de uma batalha.”
“Provavelmente escolhemos o lugar errado”, Morrissey admitiu à plateia no começo do bis. No entanto, ele então trouxe ao palco Pete Burns, do Dead or Alive, para se juntar a ele nos vocais de “Barbarism”. A jogada talvez não fosse uma total surpresa: o vocalista dos Smiths tinha frequentemente expressado um entusiasmo quase fanático pelo cantor de Liverpool, que crescera na mesma cena que Holly Johnson, do Frankie Goes to Hollywood, maior banda do Reino Unido em 1984. Mais recentemente, Burns fizera uma transição do pós-punk gótico para o dance pop extravagante e afetado como um carrossel da metade dos anos 1980; enquanto “Shakespeare’s Sister” lutava para ganhar uma posição estável comercialmente durante a turnê de março, “You Spin Me Round (Like a Record)” do Dead or Alive, passou a maior parte do tempo no número um. A dupla tinha se conhecido, alguns anos antes, num show dos Cramps, em que Morrissey observou que Burns “era estonteante, mas não me passava a sensação de ser alguém particularmente preocupado com música. E essas coisas importam”. Se importaram algum dia, já não importavam tanto, não mais, o que fez a futura amizade entre os dois vocalistas parecer, à distância, uma amizade incomum, difícil para os fãs puristas dos Smiths aceitarem. Como sempre, Morrissey era irredutível. “Ele é uma das poucas pessoas com quem posso sentir uma grande afinidade. Especialmente porque ele diz o que quer, o que, obviamente, é um pecado nacional no mundo da música, principalmente levando em consideração as coisas que ele quer dizer.” A amizade entre Morrissey e Burns persistiria e, mais adiante no ano, levaria a uma capa compartilhada da Smash Hits.
Ainda assim, durante a última música do bis naquela noite, no Royal Albert Hall, “Miserable Lie”, Morrissey saiu do palco mais cedo e Marr foi obrigado a bater em retirada também para consolar seu parceiro atrás de portas fechadas do camarim. Para Marr, esse foi um dos momentos-chave na história dos Smiths. Tudo em relação à banda se separou. “Aquilo me fez voltar diretamente a 1982”, disse Marr. “Porque em 1982 éramos eu e ele.” (“Houve um longo tempo quando éramos eu e Morrissey, lutando”, elaborou ele sobre aquele período.) Quaisquer que fossem as pressões, em 1985, Morrissey e Marr permaneciam inquestionavelmente devotados um ao outro.
Da perspectiva do público, então, a turnê foi vista como um completo e total triunfo, confirmação de que os Smiths se posicionavam como o grupo mais importante da nação. Pessoalmente, aquilo pareceu tirar Morrissey um pouco do sério. No dia seguinte ao show do Royal Albert Hall, um domingo, ainda por cima, quando ele poderia (e provavelmente deveria) ter descansado longe da banda e de seus vários problemas, o vocalista se sentou e escreveu para Chris Wolfe, a pessoa com que ele falava de finanças na Rough Trade. Em sua carta, Morrissey exigiu pagamento por todas as capas dos Smiths, presumivelmente pela arte; perguntou sobre a lista de custos promocionais compartilhados do selo e os repreendeu por seu tratamento aos Smiths no dia anterior, observando que, de todos os empregados da Rough Trade, apenas Jo Slee foi vista aplaudindo a banda em algum momento. O fato de o selo não conseguir ou não querer armar uma festa pós-show foi visto como prova adicional de que “a Rough Trade está de saco cheio do sucesso dos Smiths”.
Respondendo a um diálogo anterior sobre o apoio da gravadora para a turnê (que tinha sido fixado em 5 mil libras, na suposição de que uma turnê esgotada renderia lucros), ele escreveu: “O fato de existir um limite de custos que a Rough Trade está disposta a compartilhar simplesmente grita mesquinharia. No entanto, sentimos muito e prometemos nunca mais sair em turnê para promover nossos discos.” E, em resposta a algo na correspondência anterior de Wolfe, ele concluiu: “suas constantes referências ao ‘empresário’ dos Smiths são engraçadas. Se os Smiths tivessem um empresário, eu nunca precisaria escrever essas cartas.”
A carta foi devidamente passada a Scott Piering, o suposto empresário dos Smiths, que deve tê-la lido e chorado.
“EM ENTREVISTAS, NINGUÉM me pergunta sobre música”, Morrissey reclamou na Jamming!, no final de 1984, para John Wilde, jornalista musical cujo sobrenome adotado lhe rendia alguma associação ao vocalista dos Smiths. “Apenas como o porta-voz de uma geração, o que é bastante atraente, mas também bastante sufocante.” Havia algo revelador naquilo, pois era verdade que Morrissey tinha se tornado o “porta-voz” de sua geração: Paul Weller tinha abdicado do papel quando acabou com o The Jam, Ian McCulloch não o queria e Bono não conseguia se conectar com a classe trabalhadora britânica. A coroa, porém, não foi entregue a Morrissey por falta de opção, mas porque ele parecia verdadeiramente desejá-la.
Em nenhum lugar isso ficou mais evidente do que na entrevista que foi publicada na Time Out, no início de março de 1985. A revista de eventos de Londres estava longe de ser a publicação mais importante da nação, e sua desatenção editorial foi confirmada pelo título preguiçoso da matéria, “This Charming Man”. O redator, Simon Garfield, no entanto, era mais inteligente (e mais engraçado) do que a maioria, por não ser afeito a hipérboles casuais nem a críticas mesquinhas. Numa matéria que podia ser elogiada por equilibrar opinião pessoal e neutralidade profissional, Garfield forneceu a Morrissey uma plataforma na qual o porta-voz da nova geração se mostrou de forma mais inteligente e espirituosa — e ainda, simultaneamente, revelou um lado paranoico e vingativo.
Os dois primeiros traços de caráter eram, obviamente, os mais atraentes. Morrissey fcou feliz com a oportunidade de explicar sua letra sobre a rainha em “Nowhere Fast”. “Eu desprezo a realeza”, disse. “A simples ideia de sua existência, nesses dias em que as pessoas estão morrendo diariamente porque não têm dinheiro suficiente para ligar um aquecedor em casa, para mim é imoral. Nunca conheci ninguém que apoie a realeza, e, acredite, eu procurei. Certo, existem alguns aposentados surdos e idosos em Hartlepool que têm fotos do príncipe Edward em seus assentos da privada, mas conheço um grande número de pessoas que mal podem esperar para se livrar deles.”
Isso era clássico de Morrissey, criando uma imagem cômica, mesmo caricatural, da decrepitude nortista para justificar suas crenças — que, como ele estava certo em insistir, com certeza não eram as de uma minoria. E no sentido de que aquilo o empurrava para ainda mais longe do suposto mainstream, era um comentário intimamente ligado à sua visão sobre o Band Aid, o grupo de astros pop ricos que tinham se juntado no fim de 1984, estimulados pelo vocalista do Boomtown Rats, Bob Geldof, para gravar um single de caridade e combater a fome na Etiópia: “Não tenho medo de dizer que acho que o Band Aid foi diabólico”, declarou Morrissey. “Ou de dizer que acho Bob Geldof uma pessoa nauseante.” Isso, no início de 1985, era como maldizer a Madre Teresa, e como em seu comentário sobre a realeza, ele seguiu com um epigrama absurdamente espirituoso: “É possível ter uma grande preocupação com as pessoas da Etiópia, mas é outra coisa infligir tortura diária ao povo da Inglaterra.” Por sua vez, pode-se observar que, mesmo que a música dos Smiths tivesse sido esquecida tão rapidamente quanto a de alguns dos cantores do Band Aid, aquela citação em particular ainda viveria na infâmia.
Foi muito mais desconcertante o fato de Morrissey sentir necessidade de se defender de ataques semelhantes ao seu caráter. Sua opinião sobre o Band Aid não era nova; ele a vinha expondo desde que o disco tinha sido lançado. Mas para Geldof dizer algo negativo sobre Morrissey — como ele fizera logo antes da entrevista à Time Out — era necessária a aplicação de um padrão diferente. “Foi totalmente gratuito”, disse Morrissey. “O fato de Bob Geldof — essa figura religiosa que está salvando todas essas pessoas por todo o mundo — poder fazer aquelas declarações sobre mim, e ainda assim parecer bastante protegido, parece totalmente injusto. Mas não me importo com essas coisas...” Gratuito? Injusto? Não me importo? Se o leitor não estivesse esperando tão ansiosamente o próximo assassinato de caráter ou gracejo de Morrissey, ele poderia ter jogado a revista de lado com desprezo.
Lamentavelmente, Morrissey estava começando a exibir uma suspeita semelhante em relação ao mundo como um todo. “As pessoas”, sugeriu ele, de uma forma um pouco amorfa, “querem esconder até a menor menção aos Smiths.” Tal comentário teria sido tratado com risos no tribunal da opinião pública, se um julgamento se mostrasse necessário, levando em consideração que era impossível evitar os Smiths, com sua programação agitada de lançamentos, seu considerável sucesso nas paradas, suas turnês constantes e também sua extensa cobertura na mídia. E a única prova de que “a indústria musical detesta os Smiths com todas as suas forças”, o que ele insistia ser o caso, era que a Radio 1 não recebia cada novo single da banda com o mesmo fervor que recebia, digamos, o mais recente disco do Duran Duran. Isso não era uma coisa ruim: as frequentes aparições dos Smiths no Top of the Pops precisavam ser contrabalançadas por um pouco do último bastião da resistência ao sistema. Afinal de contas, os fãs cultuavam os Smiths, em grande parte, por sua independência — política, musical e ética —, o que tornava ainda mais perturbador que Morrissey parecesse estar incluindo sua gravadora na lista de seus supostos inimigos: “Nós éramos realmente seu último vestígio de esperança”, disse a Garfield. “Estou convencido de que, se os Smiths não tivessem existido, então a Rough Trade teria simplesmente desaparecido.” Se algum de seus outros comentários poderia ser levado a sério (em defesa de Morrissey, muitas das coisas que ele dizia na imprensa saíam muito mais stalinistas do que em pessoa, quando a educação tipicamente prevalecia e era possível quase pegá-lo rindo de seu próprio ridículo), esse ataque parecia acertar abaixo da linha de cintura. A noção de que um selo que lançara tantos discos culturalmente significativos (muitos dos quais tinham chegado às paradas de singles ou álbuns) teria, de alguma forma, quebrado se não contratasse os Smiths parecia um golpe baixo nas consideráveis capacidades de A&R, marketing e distribuição da empresa. Se houvesse algum traço de verdade na declaração de Morrissey, era que a Rough Trade tinha caído agora numa armadilha de grande gravadora: ela estava investindo uma parte grande demais do seu tempo e do seu esforço no seu artista mais bem-sucedido, deixando de lado o resto do elenco. O sucesso dos Smiths já havia visto os vizinhos de Manchester do The Fall fazerem suas malas e se mudarem para outro lugar, e embora Travis e companhia estivessem investindo pesado em bandas como The Woodentops, Microdisney e Camper Van Beethoven, enquanto continuavam a lançar um grande número de excelentes discos de reggae (apesar de “reggae ser repugnante”, como Morrissey tinha observado em sua lista de melhores do ano de 1984 para a NME), nenhum daqueles artistas estava vendendo em quantidades remotamente parecidas. O selo certamente não teria “desaparecido” sem os Smiths, mas, ao mesmo tempo, não era mais capaz de viver sem eles.