Depois de gravar sete álbuns em menos de quatro anos, lançando, no espaço de tempo entre eles, incontáveis singles que não faziam parte dos álbuns e quase se despedaçando depois de uma caótica turnê mundial, a maior banda da Grã-Bretanha anunciou que seus integrantes tirariam três meses de férias uns dos outros. Era setembro de 1966 e a banda se chamava Beatles. John Lennon atuou num filme; Paul McCartney fez música para um filme; George Harrisson foi à Índia estudar com Ravi Shankar; e Ringo Starr ficou em casa. A imprensa adorou especular sobre sua possível separação e observou que os Monkees estavam vendendo mais discos, de qualquer forma. Mas quando a “separação experimental” acabou, os Beatles rapidamente se reuniram. “Não conheci ninguém mais de quem gostei”, disse Paul McCartney. Eles passaram os próximos três anos fazendo alguns dos melhores discos da história da música popular.
Poderiam os Smiths ter também se beneficiado de um período sabático decidido oficialmente? Os mais próximos à banda certamente achavam que sim. “Se eles apenas tivessem deixado Johnny sair de férias por três meses, ainda estariam tocando”, disse Geoff Travis quase 25 anos depois. Olhando de uma distância temporal igualmente grande, Grant Showbiz foi capaz de observar, sobre sua fatídica sessão de produção com a banda: “Há que se dizer que cancelar aquelas sessões e dar [a Johnny Marr] um descanso teria sido a resposta.” John Featherstone viu o problema da seguinte maneira: “Não havia ninguém dizendo: ‘Ei, não é nada de mais dar um tempo. Não é nada de mais ir mais devagar.’ Tudo o que a banda tinha feito era gravar, fazer shows, gravar, fazer shows... Ninguém tinha se tocado de que era possível fazer algo diferente.”
Outras bandas tinham se tocado, não apenas os Beatles vinte anos antes. Correspondentes americanos dos Smiths, o R.E.M. tinha reconhecido desde o início que, por mais duro que desse (um álbum por ano durante seis anos seguidos, além de turnês muito mais consistentes do que as dos Smiths), cada um tinha uma vida fora da banda. Para seu guitarrista hiperativo, Peter Buck, isso significava tocar com outros músicos sempre que tivesse oportunidade; não no nível dos convites de primeiro escalão de Johnny Marr, talvez, mas fazendo bicos, de qualquer forma. Ele tinha direito a essa liberdade crucial, em grande parte, porque o resto do grupo, mas especialmente o vocalista, letrista, ídolo da geração das rádios universitárias e cofundador da banda, Michael Stipe, tinha autoconfiança suficiente para saber que seu guitarrista retornaria mais feliz e mais saudável. É uma tragédia para os Smiths o fato de Morrissey parecer não ter essa autoconfiança para permitir a seu parceiro uma liberdade semelhante. Mas também é uma tragédia — pelo menos para fãs que queriam vê-los juntos — que Marr não conseguisse fazer o papel de Peter Buck tão bem. Como Ken Friedman, que, mais tarde, atrairia o U2 e Michael Stipe como investidores em seu restaurante de Nova York, observou: “Johnny é um guitarrista tão bom. Johnny é melhor do que The Edge [do U2], ele é melhor do que qualquer um, mas o ego de Johnny é grande demais para aceitar um papel secundário em relação a qualquer vocalista. Culpo Morrissey por 98 por cento da separação dos Smiths, mas Johnny deveria ter sabido como deixar Morrissey ser o vocalista. Como ser apenas o guitarrista. Johnny queria ser igual, e essas coisas nunca são assim. Michael Stipe e Peter Buck não são realmente iguais.”
Talvez não; talvez o ponto de referência devesse ser Keith Richards e Mick Jagger. Embora essa dupla, no fim, fosse vista dividindo igualmente o poder, a responsabilidade e a credibilidade nos Rolling Stones, aquela não era uma observação imediata da parte dos fãs, ou mesmo dentro do grupo. Foi apenas numa briga por poder nos anos 1980, mais de 25 anos depois de a banda ter se formado, que Richards foi capaz de demonstrar sua importância inequívoca, e só depois de entrar numa guerra verbal na imprensa com seu amigo de infância e de lançar um disco solo mais bem-recebido do que o de Jagger. Marr, evidentemente, não tinha a paciência para um casamento tão longo.
Morrissey parecia entender aquilo. “Quando ele saiu”, falou o vocalista sobre Marr não muito depois da ocasião, “queria fazer um nome para si mesmo, e conseguiu. Ele queria ser reconhecido como Johnny Marr. Ele não estava mais satisfeito com um papel secundário de viver à minha sombra. Ele sabia que, se ficasse no grupo, ele sempre seria o guitarrista. Aquilo não era mais suficiente para ele.”
Obviamente, é fácil apontar o dedo para o problema real nesse fracasso de comunicação e empatia, a incapacidade de um acreditar no outro para passarem um tempo afastados: a falta de um empresário. Tanto o U2 quanto o R.E.M. tinham empresários desde o começo, indivíduos confiáveis, que não apenas mantinham relações profissionais com gravadoras e garantiam viagens tranquilas nas turnês, mas eram capazes de interferir entre os integrantes quando as relações azedavam e podiam juntar as tropas quando a ocasião exigia. Johnny Marr acabou sendo capaz de admitir que ligar para a NME a fim de confirmar sua saída dos Smiths “foi uma das muitas coisas que teriam sido feitas de forma melhor se tivéssemos uma cabeça objetiva, orientadora e mais inteligente por perto. Como Joe [Moss]”. (Um dos primeiros atos de Marr depois de sair foi acertar a dívida dos Smiths com Moss.) Mas Morrissey nunca depositaria confiança o bastante em nenhum empresário qualificado por tempo suficiente para que ele pudesse oferecer essa orientação. Assim sendo, ele tinha apenas a si mesmo para culpar quando não havia ninguém por perto para convencer Marr a ficar.
Marr tinha pouco tempo para todas as coisas que podiam ter sido feitas de forma diferente ou que podiam ter sido evitadas. “Acho que a banda precisava se separar quando se separou”, disse; o máximo que ele estava disposto a explicar era: “Se tivéssemos continuado, teríamos nos separado no ano seguinte, de qualquer forma.” Suas razões eram não apenas a natureza da direção musical dos Smiths, que claramente estava gerando conflito, mas a própria essência do que tinha tornado os Smiths únicos: as personalidades. “Como pessoas, somos simplesmente diferentes demais. Tenho minha forma de fazer as coisas e ele tem a dele.” Marr se considerava “um músico de estúdio arrastado para o palco”. Morrissey, disse ele, “sabe que é um show man”.1
Se é verdade, o vocalista demorou algum tempo para perceber: mais de dois anos se passaram entre o último show dos Smiths e o primeiro show solo de Morrissey. Logo após a separação dos Smiths, Morrissey não era capaz de concordar com seu antigo parceiro em que eles haviam acabado no momento certo. “Os Smiths eram quase como uma pintura”, explicou ele, eloquentemente, a Len Brown na NME, enquanto a poeira baixava. “Todo mês você adicionava um pouquinho aqui e um pouquinho ali... mas ela não estava totalmente completa e foi tomada à força. E acho muito difícil me adaptar a isso.” O tempo curou apenas parcialmente a ferida: “Sinto uma sensação de completa impotência com relação à separação dos Smiths”, disse Morrissey em 1991. Em 2004, conversando com a Mojo depois de sete anos sem lançar um disco, ele ainda insistia em que “ficou absolutamente aterrorizado” quando os Smiths acabaram, mas pelo menos agora era capaz de rir daquilo. “Tive tempo para lidar com esse fato”, continuou, “e tive muito aconselhamento, e juntei os pedaços da minha vida, e estou marchando na direção... do abismo.”
O arrependimento, no entanto, permaneceu (especialmente para o baixista e o baterista malpagos) de que os Smiths não ficaram juntos tempo suficiente para capitalizar adequadamente com sua credibilidade. Eles ainda estavam em ascensão na época em que se separaram, como é provado pelo fato de Strangeways, Here We Come ter vendido tão bem no Reino Unido quanto seus antecessores, e muito melhor do que eles nos Estados Unidos, onde se tornaria o disco da banda que alcançou a posição mais alta nas paradas (e seu segundo álbum de ouro) apesar da ausência de quase qualquer ferramenta de promoção válida. Em termos de aceitação nos Estados Unidos, os Smiths vinham logo atrás do Depeche Mode e do The Cure (que chegaram a álbuns de platina múltiplos e shows em estádios), tendo já passado a frente do Echo & the Bunnymen e do New Order; estavam quase no mesmo patamar do U2 e do R.E.M. em pontos semelhantes de suas carreiras americanas. Se tivessem sido capazes de acalmar as tempestades que parecem desafiar a estabilidade de todos os grupos de rock depois de cinco anos de constante trabalho árduo e a inquietação que caracteristicamente grita para suas forças criativas, eles certamente teriam colhido os frutos.
“Eles poderiam ter sido uma das maiores bandas do mundo”, disse Ken Friedman, que não estava sozinho ao expressar essa opinião e, como último empresário da banda, foi capaz de oferecer uma perspectiva de dentro sobre o fracasso do grupo em alcançar tal posição. “Não estou convencido de que Morrissey não queria isso. Acho que ele tinha medo. Morrissey é preguiçoso. Morrissey não lida com a realidade. Ele não lida com o fato de que você deve pagar as pessoas ou de que, se você diz que vai fazer algo, tem que fazer. Morrissey ama dinheiro tanto quanto qualquer pessoa que eu conheço, mas ele apenas não está disposto a fazer o trabalho.”
Outros achavam que os Smiths já haviam alcançado tudo que seria possível. “Eles fracassaram?”, perguntou Billy Bragg. “Ou se mantiveram fiéis às coisas em que acreditavam? Eu acho que eles fizeram o que se propuseram a fazer — que era tocar fogo no mundo. O que eles não se propuseram a fazer foi se tornar o novo Pink Floyd.”
“O sucesso teria sido estarrecedor e a trajetória teria sido brilhante de uma forma muito clichê se eles tivessem um ótimo empresário”, disse Grant Showbiz. “Mas o fato de eles não terem e, ainda assim, terem chegado aonde chegaram... O fato de a agência de talentos não ser tão maravilhosa e de a gravadora não ser tão brilhante e de Mozzer e Johnny não saberem tanto quanto achavam que sabiam — e graças a Deus não sabiam, e graças a Deus eles achavam que sabiam, porque eles nos levaram àquele lugar brilhante. Gosto sempre de lembrar do quanto o sucesso deles foi construído completamente no brilhantismo da música. E talvez de algumas das entrevistas. Os Smiths são um milagre do início ao fim. O fato de Johnny ter encontrado Morrissey e de Morrissey ter aquele lado solitário, mas, de alguma forma, ser atraído para aquilo por Johnny e seguir adiante. E então permanecer o suficiente para fazer tudo aquilo. É a história perfeita, porque eles fizeram esses discos incríveis. Talvez cinco anos sejam o suficiente para uma banda.”
Talvez sejam. Na verdade, para cada R.E.M. e cada U2, que, com a organização certa por trás deles, podem desacelerar o suficiente para garantir sua longevidade, há bandas (tipicamente britânicas) como The Jam e The Clash, que lançam uma enchente de trabalho brilhante numa corrente flamejante de glória exaustiva e se despedaçam depois de cinco ou seis anos como resultado. Os Smiths se juntaram à lista muito curta de grupos verdadeiramente maravilhosos que nunca passaram vergonha, seja por persistir em se manterem juntos apesar da mediocridade, seja por se reunirem no futuro. Dessa forma, sua reputação musical permaneceria intacta.
QUASE NÃO FOI assim. A matéria da NME do dia 8 de agosto, que imprimiu as palavras “Por que saí” de Johnny Marr em sua capa, também trazia uma declaração apressada “dos Smiths” por intermédio da Rough Trade, declaração essa que não foi aprovada pelo integrante fundador da banda. “Os Smiths anunciam que Johnny Marr deixou o grupo. No entanto, eles gostariam de confirmar que outros guitarristas estão sendo considerados para substituí-lo.”
Mesmo tantos anos depois, é difícil compreender o que podia estar passando pela cabeça dos Smiths remanescentes quando eles fizeram esse anúncio — ainda por cima por terem levado a ideia adiante. Deixando de lado, por enquanto, as questões altamente complexas de criatividade e credibilidade em risco ao continuar sem Marr, a questão essencial permanece: por que a pressa? Não apenas Strangeways estava prestes a chegar às lojas e, provavelmente, cuidar da demanda do público pela maior parte do ano seguinte, mas tinha sido precedido por um número tão grande de singles que tanto a Rough Trade quanto a Sire tinham lançado coletâneas bem-sucedidas com o material durante a primavera. O mercado estava, mais uma vez, saturado; não havia simplesmente nenhuma necessidade de inundá-lo ainda mais com músicas novas. A única razão lógica para os Smiths — liderados por Morrissey e sem Marr — continuarem seguindo naquele exato momento teria sido para entrar em turnê e divulgar o novo álbum, mas aquilo nunca foi mencionado aos possíveis guitarristas; além disso, Morrissey tinha quase anunciado sua aposentadoria dos palcos em sua matéria de capa para a Q naquele mês, quando declarou: “Não sinto mais que é algo que eu quero continuar a fazer.”
A desculpa oferecida na época, pelo menos ao “substituto” que chegou a ir até o estúdio de gravação, era que havia um desejo de gravar lados B para futuros singles de Strangeways, mas, mesmo que fosse essa a razão, ainda não existia uma necessidade: os Smiths em geral lançavam apenas dois singles de cada álbum no máximo, e havia suficientes versões alternativas guardadas para satisfazer qualquer demanda que pudesse existir para preencher até o último single de 12 polegadas. Por que arriscar tudo e mudar a formação para uma última faixa “bônus”?
O guitarrista que foi até o estúdio era, talvez não surpreendentemente, Ivor Perry. Depois de um grande número de telefonemas de Jo Slee, agindo como encarregada de Morrissey na ausência de um empresário oficial, Perry foi se encontrar com o cantor na Cadogan Square. Lá, ele se recordou de Morrissey lhe dizer: “Não acho que os Smiths deveriam acabar”, ao que Perry se lembrou de ter respondido: “Acho que deveriam acabar. Não há nenhuma forma de você ter um grupo de rock em que eu substitua Johnny Marr. Não será autêntico. Não sou idiota e não toco como ele.” Morrissey, disse ele, respondeu: “Não está confirmado, mas, se você gravar alguns lados B que tenho, você será muito bem-recompensado.” Perry disse que recebeu pressão adicional de Geoff Travis; se isso era uma busca genuína por lados B potenciais para os Smiths, ou se Travis (e Slee) estavam agindo com a ilusão de que a Rough Trade continuaria a gravar e lançar os Smiths ou um grupo pós-Smiths, nunca foi explicado. No fim, Perry concordou. “Fiquei intrigado com o modo como aquilo soaria”, disse ele, justificando para si mesmo como “artisticamente desafiador e interessante”. Depois de investigar sua reserva considerável de material, ele compareceu a uma sessão em agosto, bem na época em que a saída de Marr dos Smiths tinha chegado à imprensa musical, no Power Plant.
O produtor da sessão foi Stephen Street. Como os próprios Smiths, Street via Strangeways como seu álbum “favorito”. (“Eu tinha evoluído em meu trabalho, eles tinham evoluído no deles, e eu achava que tínhamos feito um disco que soava muito bem.”) Ele estava também entre várias pessoas dos círculos próximos aos Smiths a expressar espanto com o anúncio da separação da banda: “Eu realmente achei que era apenas uma pequena desavença e que eles estariam juntos dentro de um ano.” Ao saber, no entanto, que a sessão no Power Plant era “uma tentativa de manter os Smiths na ativa com um novo guitarrista”, as razões para Street participar como produtor eram tão difíceis de compreender quanto as dos três Smiths remanescentes. “Eu falei: ‘Obviamente, quero ajudar, mas espero que Johnny não me odeie por fazer isso.’” Ele deveria saber a resposta de Marr e deveria saber que tal fato serviria para estabelecer a suposição anteriormente não confirmada de que Street sempre fora aliado de Morrissey.2
Morrissey, Rourke e Joyce deveriam saber, também, que, ao seguirem adiante com um novo guitarrista, eles estavam garantindo que qualquer vestígio possível de boa vontade ainda existente entre eles e Johnny Marr e qualquer esperança de que algum tempo afastado da banda viesse a convencer seu guitarrista a repensar o futuro estavam prestes a ser erradicados por completo. A situação era, para falar de maneira simples, uma questão de vingança impensada — e teve o mesmo efeito que tais ações muitas vezes têm num romance problemático. “Eu fiquei muito, muito magoado”, disse Marr. “Ser substituído tão rapidamente por seus amigos, antes mesmo de você ter a chance de mudar de ideia, foi o fim de tudo.”
Acabou sendo o fim de tudo de qualquer forma. Para começar, Johnny Marr não tinha nenhuma intenção de deixar os outros usarem o nome dos Smiths, do qual ele também era dono. Além disso, a sessão foi um desastre. Apesar de Perry ficar impressionado com a habilidade de Morrissey para rearranjar sua música — “Ele falou: ‘A estrofe é o refrão, o refrão é a estrofe e a ponte é o começo’” —, não havia química ali. Street e Perry já sabiam que não gostavam um do outro desde uma tentativa fracassada de Street produzir o Easterhouse para a Rough Trade; aquela estava longe de ser a relação produtiva que Street tivera com Johnny Marr. Depois de dois dias, Morrissey abandonou a sessão e voltou a Manchester. Ele deixou a cargo de Mike Joyce informar Perry. Como um dos maiores fãs dos Smiths, Joyce assumira a possível posição de diretor musical, em grande parte porque não tinha intenção de deixar seu grupo favorito (e, com isso, sua carreira) chegar ao fim da linha sem dar tudo de si. Mas ele não gostou de dizer a um dos amigos do próprio Morrissey que o cantor o havia demitido. Perry, como era de se esperar, sentiu-se insultado por não ser informado pessoalmente. “Eu estava ciente de seus relacionamentos com outras pessoas, e de que ele não gosta de conflito, ele simplesmente afasta as pessoas. E éramos bons amigos. Então, escrevi uma carta dura para ele. Ele realmente estava tentando fazer os Smiths continuarem e não tinha sido honesto comigo.”
Eles nunca se falaram novamente. (Tampouco Perry foi pago.) Mas Morrissey respondeu. Perry resumiu sua carta da seguinte forma: “Suas canções eram boas demais para serem lados B. Era apenas o momento de seguir em frente.” Morrissey vinha dando uma série de entrevistas para divulgar Strangeways, Here We Come em que ele vinha sendo pressionado pela imprensa a justificar a continuação da banda mesmo sem Marr, e ele tentara fazer o melhor que podia. “Há algumas coisas sobre as quais eu não tenho nenhum controle e realmente não posso impedir que elas aconteçam, como a saída de Johnny”, disse a Chris Heath, da Smash Hits, garantindo que “as poucas pessoas que se apresentaram para o trabalho foram muito boas, muito interessantes e certamente possíveis, então é apenas uma questão de fazer um pequeno cálculo matemático”. Quando um incrédulo Dylan Jones, da i-D (revista que tinha feito a primeira entrevista com os Smiths), insistiu em que Johnny Marr era “metade da equipe criativa”, Morrissey tentou confortá-lo: “Sei que isso é angustiante, mas não é o funeral dos Smiths, de forma alguma.”
Mas era. Na sexta-feira, dia 4 de setembro, Mike Joyce publicou uma declaração dizendo que havia “cumprido seu papel” com os Smiths. No dia seguinte, Pat Bellis, tendo retomado sua função como porta-voz de Morrissey (apesar do fato de isso entrar em conflito com seu emprego como assessora de imprensa tanto dos Smiths quanto da própria Rough Trade), anunciou que o vocalista confirmava o que os advogados de Marr já haviam garantido de qualquer forma: o fim dos Smiths. Quando a notícia chegou, na semana seguinte, à imprensa musical, deveria ter dado um fim aos rumores e às contestações do mês anterior, mas, ainda assim, foi acompanhada por todos os tipos de novas imprecisões: que Joyce e Rourke tinham pendido para o lado musical de Marr e que “os testes para substituir Johnny nunca tinham sido realmente levados a sério”. Um elemento central, no entanto, mostrou-se totalmente correto: Stephen Street havia começado a compor músicas com Morrissey, que gravaria com seu próprio nome para a EMI. Fora a velocidade disso tudo (novamente, por que a pressa de Morrissey para gravar o que era, para ele, o equivalente a um terceiro disco de material em apenas 18 meses?), aquilo fazia sentido; era, talvez, como as coisas deveriam acabar. Com Street no baixo, o vocalista buscaria, para a guitarra — segundo sugestão de Geoff Travis, que se mostrou incapaz de não se envolver —, Vini Reilly, rapaz de Wythenshawe e músico de estúdio do Durutti Column que chamara atenção, pela primeira vez, na capa daquele single de 1977 de Ed Banger and the Nosebleeds, usando um blazer da escola de ensino médio de Johnny Marr. Era estranho como o mundo dava voltas. Mas ele dava. O álbum de estreia de Morrissey estaria pronto antes do Natal.
Marr, enquanto isso, aceitou quase todas as oportunidades que lhe foram oferecidas. Depois de participar da sessão de gravação do Talking Heads (ele participou de em quatro músicas do álbum Naked), tinha o single de Bryan Ferry para divulgar. Chrissie Hynde, então, convidou-o para se juntar aos Pretenders e Matt Johnson, percebendo que aquele era “o momento perfeito”, convidou-o a se juntar ao The The; ele concordou com os dois, apesar de, durante algum tempo, isso significar literalmente ir da sessão de gravação de uma banda para a outra no mesmo dia. (Ele pode ter resistido à responsabilidade de liderar outra banda, mas não conseguia resistir à tentação de trabalhar tão duro.)3 Em setembro de 1987, no entanto, antes de começar essas novas empreitadas, Marr voltou aos Estados Unidos e seguiu a turnê conjunta do Echo & the Bunnymen com o New Order. As duas bandas do norte da Inglaterra estavam passando por suas próprias dificuldades, com as quais lidaram de forma completamente diferente dos Smiths. Ian McCulloch deixaria o Echo & the Bunnymen em 1998; no caso desse grupo, uma distribuição igualitária da receita não salvou a banda dos conflitos de personalidade. Assim que ficou claro que ele não voltaria imediatamente, os Bunnymen remanescentes permitiram que sua gravadora, a WEA, os convencessem a fazer testes para um vocalista substituto; o álbum seguinte não foi levado a sério e acabou encalhado. McCulloch acabaria voltando ao grupo depois de dois álbuns solo que não foram bem-recebidos, mas a banda nunca mais seria a mesma; o legado tinha sido irreversivelmente prejudicado.
O New Order decidiu não anunciar uma separação quando seus membros deram um tempo uns dos outros em 1989, 13 anos depois de os integrantes originais tocarem juntos pela primeira vez. Em vez disso, sem uma data marcada (ou mesmo um acordo firme) sobre quando voltar à banda, eles começaram projetos paralelos, o mais proeminente dos quais tinha Bernard Summer se juntando a Johnny Marr para formar o Electronic. No curto período desde que os Smiths tinham se separado, o riff de guitarra indie tinha se encontrado com a batida dançante da rave na pista de dança da Haçienda, e produziu o que o Happy Mondays, da Factory Records, rotulou como “Madchester” — um estado de espírito de bacanal, hedonista e alterado por drogas, que fez surgir um grupo formado pelos velhos amigos de faculdade de Si Wolstencroft, John Squire e Ian Brown, os Stone Roses. Enquanto o Madchester se tornou a moda na nova geração de jovens da cena indie que saíam à noite e tomavam ecstasy, a música dos Smiths, supostamente taciturna e baseada em guitarras, repentinamente soou muito antiquada. O Electronic, no entanto, não, e “Getting Away with It”, cantada por Neil Tennant, do Pet Shop Boys, assegurou a Marr seu primeiro sucesso no top 40 americano.4
Mas tudo isso estava no futuro. Nos meses de outono de 1987, tanto Morrissey quanto Marr estavam passando por períodos de muita infelicidade e incerteza. “Ele sabe que, no fim dos Smiths, eu estava num estado muitíssimo deprimido — e que possivelmente o fato de ele ter separado os Smiths poderia ter me matado”, Morrissey contou ao Observer, 15 anos depois, ainda magoado. Ele tinha razão, e foi por isso que Marr tinha pedido a Grant Showbiz para visitar Morrissey na Cadogan Square. “Havia uma preocupação genuína com o que se passava na cabeça de Morrissey”, disse Showbiz. “Eu não consigo me recordar de nenhuma conversa sobre o que acontecera, só de uma série de encantadores aforismos e chá. A lógica diz que, se ele estava deprimido, então Johnny estava mostrando alguma preocupação. Mas também era algo como ‘Estou me afastando disso, não vou fazer isso’.”
Sandie Shaw, em suas memórias, também falou sobre visitar Morrissey na época da separação, quando “ele parecia desgrenhado e cheio de preocupações”. Determinada a “não tomar partido, pois não queria me afastar de Johnny”, ela, no entanto, encontrou seu antigo galanteador “amargurado”. “Na minha opinião, todos os problemas de Morrissey começaram com ele mesmo — suas inseguranças e a forma com que elas o faziam se comportar. Ele parecia nunca ter aprendido a arte da amizade, e eu me sentia desesperadamente triste por ele, aprisionado à solidão que criara para si mesmo”
De sua parte, Johnny Marr insistia que, ao longo do processo de separação, que levou um ano para ser concluído, “eu sempre me senti incrivelmente lúcido. E focado e relaxado”. Grant Showbiz confirmou que, “quando falei com Johnny diretamente depois do acontecido, ele estava feliz. Dava para sentir que um peso tinha sido tirado de suas costas. Não havia absolutamente nenhuma tristeza naquilo. Na época, eu provavelmente me sentia mais triste a respeito da separação do que ele”. De qualquer forma, Marr ficou desolado, porque os Smiths tinham tentado seguir em frente tão rápido sem ele, e igualmente incomodado por ser retratado como o vilão da história, como o homem que tinha separado a melhor banda da Grã-Bretanha. Essa percepção da mídia duraria anos; uma das razões pelas quais Marr participou de tantos trabalhos paralelos (em vez de começar seu próprio projeto) foi uma tentativa de evitar a atenção da imprensa.5 “Muitas pessoas viraram as costas para Johnny na época”, observou John Featherstone, que permaneceu com Marr em Bowdon depois da separação, em grande parte para apoiar seu amigo enquanto guardava esperanças de um final poético para os Smiths. “Morrissey poderia, com a ironia perfeita de um roteiro de cinema, ter batido à porta de Johnny trazendo a resposta do que tinha acontecido no início, e ter dito, apenas: ‘Ei, obrigado por tudo.’ Ou: ‘Podemos conversar sobre isso?’ Ou: ‘O que podemos fazer para isso andar para a frente?’ Eu me lembro de ficar sentado lá, falando: ‘Ele vai aparecer. Ele vai bater à sua porta.’”
Não bateu. Mas no meio daquele período de relações amargamente congeladas, foi, todavia, Morrissey quem buscou quebrar o gelo. Ele ligou para Johnny Marr e sugeriu que os Smiths fizessem um show de despedida, no Royal Albert Hall. Marr recusou.
Morrissey continuou a levantar a bandeira branca — ou a possibilidade de uma — enquanto conduzia as entrevistas para seu primeiro álbum pela EMI, provocativamente intitulado Viva Hate [Viva o ódio], lançado na primavera de 1988 e que alcançou o top 10 de singles que ele sempre tinha suspeitado ser o lugar de direito dos Smiths se eles tivessem assinado com uma grande gravadora. “Eu seria totalmente a favor de uma reunião”, disse ele a Len Brown, da NME, em fevereiro. “Assim que qualquer um quiser voltar à congregação para fazer discos, estarei lá!” Os ritmistas, que estavam ocupados, na época, com Sinéad O’Connor, atenderiam a seu chamado mais tarde naquele ano, assim como Craig Gannon, os três se juntando a Morrissey e Stephen Street para gravar várias músicas, duas das quais chegariam ao top 10 britânico. Quando, no dia 22 de dezembro de 1988, Morrissey finalmente subiu num palco novamente, fazendo um show em Wolverhampton que garantia entrada grátis aos que estivessem usando camisetas dos Smiths ou de Morrissey, os músicos que apareceram ao seu lado foram Mike Joyce, Andy Rourke e Craig Gannon. O próprio Morrissey vestiu uma camiseta dos Smiths e entrou no palco ao som de Prokofiev. Além do material solo de Morrissey, o grupo tocou três canções do fim da carreira dos Smiths, cuidadosamente escolhendo as que sua antiga banda nunca tinha tocado ao vivo.6 Com invasões de palco acontecendo ao longo do show, parecia uma reunião feliz dos Smiths, a não ser pela falta de Marr e do nome. Mas não era para ser. Mike Joyce, Andy Rourke e Craig Gannon estavam, naquela época, no processo de levar tanto Morrissey quanto Johnny Marr ao tribunal por royalties contestados ou não pagos.
DUAS GRANDES TRAGÉDIAS envolvem o lançamento de Strangeways, Here We Come. (Além do fato de esse ser o último disco dos Smiths, obviamente.) Uma é que nenhuma das canções teve a oportunidade de se desenvolver no palco, pelo menos não tocada pelos Smiths. A outra é que ninguém fora dos círculos centrais do grupo teve o luxo de escutar o álbum sem saber que aquele era o último disco dos Smiths. Saber disso arruinou a experiência para muitos. A não ser num experimento científico controlado, com uma nova geração de fãs dos Smiths historicamente desinformados, ninguém nunca será capaz de oferecer uma perspectiva completamente neutra.
A insistência eterna de cada membro da banda de que aquela era sua melhor obra parecia, ocasionalmente, uma defesa retroativa contra a inclinação óbvia de escutá-la como o trabalho de uma banda à beira da separação. Mas a decisão ainda não havia sido tomada quando Morrissey contou à Melody Maker, no verão de 1987, que “Strangeways aperfeiçoa cada noção poética e musical que os Smiths já tiveram... É, de longe, o melhor disco que já fizemos”. Quanto à sonoridade, pelo menos, ele não estava errado. O progresso, em termos de produção, que se dera desde The Smiths — e até de The Queen Is Dead — era grande. “Death of a Disco Dancer” e “Last Night I Dreamt That Somebody Loved Me” eram obras-primas de estúdio. A delicadeza de “Girlfriend in a Coma” e “Unhappy Birthday” refletia a afirmação de Marr de que “há ar nesse disco”. Os arranjos ambiciosos de “Stop Me If You Think You’ve Heard This One Before”, “Paint a Vulgar Picture” e “I Started Something I Couldn’t Finish” fracassaram em enfatizar seu senso de propósito divertidamente direto. E poucos podiam discordar de que “I Won’t Share You” captava um belo senso de melancolia mútua, tanto na letra quanto na música. A banda tinha todo direito de se sentir orgulhosa de si mesma.
Mas isso não quer dizer que o disco era o que os fãs queriam ouvir. Strangeways soava demais como um grupo que estava experimentando no estúdio e não o suficiente como um grupo que anteriormente gravara como se cada respiração de seus integrantes dependesse daquilo. Não havia nada em seus grooves com a urgência de The Queen Is Dead, bem como não havia nada com uma melodia como a de “There Is a Light That Never Goes Out”. Nada que se comparasse ao funk de “Barbarism Begins at Home” — ou à fúria de “What She Said”. O problema geral de Strangeways — problema esse que raramente foi notado na época — era que o álbum não se formava como um álbum. The Smiths, apesar de toda a sua história de gravação complicada, era ainda uma série de canções agrupadas por seu tema central de desespero e isolamento social e sexual. Meat Is Murder era um álbum sobre violência — doméstica, institucional, social, genocida. The Queen Is Dead era, em partes suficientes para torná-lo conceitual, um tributo extravagantemente espirituoso a um império que desmoronava. Strangeways não tinha um tema que o unisse dessa forma. Até a capa do disco — e seu título — pareciam desconectados da música. Strangeways era, no fim, uma série de canções distintas agrupadas num único vinil. E não era nem tão longo: mal tinha 37 minutos numa época em que o compact disc estava, cada vez mais, levando os discos à marca de uma hora. Isso poderia explicar por que, na falta de uma música acabada para tomar seu lugar, o grupo incluiu “Death at One’s Elbow”, uma levada rockabilly convencional e sem inspiração escondida na penúltima posição, como se com a esperança de que ninguém fosse notar que ela estava ali. Os Smiths tinham, muitas vezes, lançado músicas de que alguns de seus fãs não gostavam; isso, de certa forma, era uma marca de sua ambição e de seu encanto. Até então, no entanto, pelo menos num álbum, os Smiths nunca tinham sido culpados de lançar nada inconsequente.
Em relação à falta de um tema aglutinador, aquilo podia não ser tão forte a ponto de sugerir que as letras de Morrissey em Strangeways não diziam nada a seus fãs sobre suas vidas. Nesse sentido, o vocalista estava tentando escrever mais por meio de narrativas, e canções como “Stop Me If You Think You’ve Heard This One Before” e “I Started Something I Couldn’t Finish” eram positivamente intrigantes. (Era totalmente possível ler a última como um resumo da sedução de Oscar Wilde ao jovem lorde Douglas, o que explicaria seu posicionamento imediatamente após a canção que tirou seu nome dos escritos de Lady Wilde.) Mas, apesar de todo o humor maldoso de “Girlfriend in a Coma” e da confissão pessoal elaborada que era “Last Night I Dreamt That Somebody Loved Me”, Strangeways via Morrissey se entregando, de forma incomum, à negatividade absoluta. “Paint a Vulgar Picture”, por exemplo, pedia aos fãs que se juntassem a ele na condenação da ganância voraz da indústria musical, o que era um pouco forte vindo de alguém que tinha acabado de abandonar o setor independente e cuja avareza pessoal era agora um segredo muito malguardado; seu uso das palavras “sycophantic slags” [vadias bajuladoras], mesmo que tivesse uma intenção irônica, via-o se aproximando de um sexismo a que ele sempre tinha se oposto muito enfaticamente. Já em “Unhappy Birthday”, pela primeira vez no que sempre tinha sido uma corda bamba poética e amargamente cômica, ele parecia ter cruzado a linha da pura maldade.
“Death of a Disco Dancer”, por sua vez, embora fosse um dos genuínos saltos musicais do álbum, logo se mostraria desatualizada. O grito de Morrissey “If you think peace is a common goal, that goes to show how little you know” [Se você acha que a paz é um objetivo comum, isso mostra como você sabe pouco] podia ser verdade sobre as velhas discotecas-abatedouros de antigamente, mas quando a geração das raves começou a inundar as casas noturnas da nação com camisetas do Smiley, tomando drogas que faziam as pessoas abraçarem completos desconhecidos, aquilo passou a parecer estranhamente antiquado.
Inevitavelmente, foi “I Won’t Share You” que acabou sendo assunto das maiores críticas póstumas. Morrissey raramente era deselegante a ponto de dar nome aos bois em suas letras (e essa é a razão de seus ataques às figuras da indústria musical serem tão deselegantes), e a presença de um personagem feminino na letra ajudou a dispersar a sugestão óbvia de que ela era destinada a Johnny Marr. Mas, com o título [Não vou compartilhá-lo] e versos como “With the drive, the ambition, and the zeal I feel this is my time” [Com o ímpeto, a ambição e o zelo, acho que é minha vez], era difícil não ouvi-la como uma declaração final a seu parceiro de cinco anos. Questionado sobre isso em público, Marr respondeu, na defensiva: “Não sou de ninguém para poderem me compartilhar”, mas, forçado a reconhecer que a letra poderia não ter precisado de uma resposta tanto quanto de reconhecimento, ele foi mais generoso: “Essa é a intriga sobre essa música, não é mesmo? Apenas uma pessoa sabe. Mas eu realmente acho... Obrigado. Obrigado por isso. Se é verdade, obrigado.”
No fim, a forma mais sincera de elogiar Strangeways, Here We Come era reconhecê-lo como um álbum de transição. Era o som de um grupo fugindo da fórmula que o tornara bem-sucedido, apresentando lampejos ocasionais de brilhantismo e inspiração em seu caminho para um destino não determinado. O próximo álbum dos Smiths teria colocado Strangeways num contexto completo e adequado — mas é claro que aquele próximo álbum nunca chegou.
STRANGEWAYS, HERE WE Come chegou ao número 2 das paradas britânicas, o quarto dos seis álbuns da Rough Trade a conseguir isso. (Seriam cinco de sete um ano depois, quando Morrissey compilou o disco ao vivo Rank das fitas da BBC do show no Kilburn National.) Para divulgar “Girlfriend in a Coma”, um vídeo foi preparado de forma apressada por Tim Broad, que apresentava Morrissey, e apenas Morrissey, cantando em close sobre um fundo de cenas de The Leather Boys, de 1963, um de seus filmes favoritos. Era como se, depois de o grupo ter desmoronado à sua volta, Morrissey — o homem que havia menosprezado videoclipes por quatro anos inteiros, que tinha encontrado formas de não ser obrigado a fazê-los, que os criticara aqueles que tinham sido feitos sem ele, que havia custado a si mesmo dezenas de milhares de dólares em royalties e que tinha contribuído para a separação de sua banda ao se recusar a comparecer na mais recente filmagem — pudesse dar as costas aos princípios de sua carreira agora que ele era Morrissey, o artista solo. O disco, vale a pena lembrar, era dos Smiths.
O mesmo aconteceu com o single seguinte. A intenção tinha sido lançar “Stop Me If You Think You’ve Heard This One Before”, provavelmente a música mais comercial de Strangeways depois de “Girlfriend”, mas um tiroteio fatal numa Inglaterra que não estava acostumada a esse tipo de coisa fez com que ela fosse deixada de lado no último instante por causa do uso da expressão “mass murder” [assassinato em massa]. A música foi substituída por “I Started Something I Couldn’t Finish” — e o mesmo vídeo.7 Tim Broad o filmou no domingo, dia 18 de outubro, juntando uma dúzia de “apóstolos” e sósias de Morrissey (topetes, camisetas dos Smiths, óculos do NHS), ao lado de seu ídolo, num passeio de bicicleta por vários pontos de referência de Manchester relacionados aos Smiths (na chuva, obviamente): apartamentos de conjuntos habitacionais caindo aos pedaços em Hulme, o Salford Lords Club, a Coronation Street interditada, a estação Victoria e a casa de apostas de Albert Finney, também em Salford. Novamente, os Smiths foram ouvidos, mas não foram vistos.
“Girlfriend in a Coma” se mostrou um sucesso significativo; ela era a canção mais doce (musicalmente, se não em sua letra) que os Smiths já haviam apresentado a uma rádio comercial. “I Started Something I Coundn’t Finish” lutou para ter uma aceitação semelhante; ela não tinha o mesmo balanço da desejada “Stop Me If You Think You’ve Heard This One Before”, embora a revelação da produção de Troy Tate para “Pretty Girls Make Graves”, completa com violoncelo, servisse como um incentivo modesto para os fãs mais ardorosos. Com o apoio de Morrissey, que disse que, “se houvesse mais uma oportunidade para infestar as ondas do rádio, acho que devia ser feito”, a Rough Trade então fugiu da tradição dos Smiths e lançou um terceiro single do álbum logo em seguida. O que eles esperavam provar, além de que os Smiths eram capazes de lançar cinco singles no mesmo ano, ou que Morrissey podia finalmente colocar Billy Furry na capa de um disco dos Smiths, nunca foi esclarecido. Assim como a escolha de canção. “Last Night I Dreamt That Somebody Loved Me” podia ter sido seu maior épico de estúdio, mas não era exatamente o som do ânimo natalino, e nenhum vídeo foi produzido para oferecer qualquer outra mensagem. A introdução instrumental de piano foi cortada; os lados B vinham de velhas sessões de John Peel. Em tais circunstâncias, o fato de a música ter chegado ao top 30 tinha que ser entendido como um sucesso. Aquele era o décimo sétimo single dos Smiths em quatro anos e meio. Aquele seria o último a ser lançado com o nome da banda por outros quatro anos e meio.
Enquanto Morrissey e seus 12 apóstolos guardavam suas bicicletas na noite de domingo, 18 de outubro, uma espécie de última ceia acontecia em forma de South Bank Show, da ITV, sobre os Smiths. Aquela era uma forma apropriada de reconhecimento intelectual à banda, levando em consideração que tinha sido a transmissão do episódio de Leiber e Stoller no programa, em fevereiro de 1982, o que levou Marr à porta de Morrissey antes de mais nada. Nesse sentido, o tratamento reverente deveria ser considerado um triunfo; infelizmente, ele teve que ser visto, como uma despedida. Não havia nenhuma referência à separação a não ser no preâmbulo do apresentador e nos cinco minutos finais editados de forma apressada; fora isso, o grupo era percebido e apresentado como uma unidade em pleno funcionamento. Vários dos amigos mais próximos ou aliados dos Smiths foram levados para fornecer uma perspectiva, incluindo John Peel, Nick Kent, Sandie Shaw e Jon Savage. O próprio vocalista, apesar de não ter nenhuma participação na edição, dominava as ações; entrevistado em grande parte numa escrivaninha coberta de livros (e também numa poltrona, usando uma camisa de rúgbi), ele parecia a personificação do astro pop intelectual. Em seu modo de falar e sua confiança, em sua apresentação e sua sagacidade, aquele era um homem no auge, dedicado ao seu ofício, apaixonado por sua carreira e claramente não abrigando a ideia do que estava prestes a acontecer ao seu redor. (Johnny Marr, usando o topete curto do começo do novo ano, parecia, de certa forma, mais animado, e mesmo antagônico, em sua própria entrevista; Mike Joyce providenciou o tipo de provocação bem-humorada que, como sempre, soava melhor do que quando escrita; Andy Rourke não estava em lugar nenhum.) Era como se toda a vida de Morrissey estivesse levando àquele momento, quando, como dizia o verso de “Paint a Vulgar Picture”, uma “child from the ugly new houses” [criança daquelas novas casas horríveis], esse filho de imigrantes irlandeses da classe trabalhadora, esse católico relapso, que tinha abandonado os estudos no ensino médio, esse recluso social celibatário/assexuado/gay e antigo candidato a tendências suicidas pudesse finalmente demonstrar sua grandeza num palco digno de sua aclamação.
A escolha de declaração final dos produtores, depois de ficarem sabendo da separação dos Smiths, viu Morrissey voltar a um tema e a uma teoria que ele testara frequentemente ao longo dos anos: “Vejo todo o espectro da música pop como se ela estivesse sendo morta, de todas as maneiras concebíveis... Então, com os Smiths, eu realmente acho que isso é verdade, acho que é o fim da história. No fim, a música popular vai morrer. Isso deve ser óbvio para quase todos. E acho que as cinzas estão à nossa volta, se simplesmente pudéssemos notá-las.” Então, ele deu aquele seu sorriso encantador. Até em sua despedida ele era capaz de fornecer inspiração, mesmo que não tivesse sido exatamente pelo motivo que tinha desejado; alguns melhores amigos adolescentes de Colchester, Damon Albarn e Graham Coxon, ambos fãs dos Smiths, sentaram-se para assistir ao programa com muita expectativa, mas se viram ofendidos pela insistência de Morrissey de que “os Smiths eram o último grupo a ter qualquer importância”, como Albarn interpretou aquilo. Ele caminhou até sua casa naquela noite, bolando planos, insistindo que “ninguém vai me dizer que a música pop está acabada”. Albarn e Coxon logo formariam a banda Blur, assinando com uma gravadora independente que, por sua vez, tinha assinado com a EMI, e, com Stephen Street como seu produtor, acabaram liderando um movimento de “britpop” que, ao longo da década de 1990, levou a estética “indie” dos Smiths (menos sua feminilidade, tragicamente) ao topo das paradas; ali, contrapostos ao grupo de Manchester Oasis, que Johnny Marr indicou a seu empresário pós-Smiths em primeiro lugar, eles inclusive chegaram ao noticiário nacional.
Além do próprio Morrissey, a estrela do South Bank Show foi Linder, mentora de Morrissey, sua musa e sua eterna camarada no feminismo e na arte. Ela pintou perfeitamente um quadro da amizade agradável que já durava uma década com Morrissey, de caminhadas vespertinas com ele pelo Southern Cemitery, noites nas pistas de dança da periferia de Manchester e dias passados com seus narizes pressionados contra vitrines de lojas chiques, “olhando através do vidro da loja para alguém”.
“Ele falava: ‘Você acha que eles estão realmente felizes?’, e eu respondia: ‘Acho que sim, espero que sim.’ E ele dizia: ‘Será que um dia eu poderia ser assim?’ Mas não, claro que não, ele nunca poderia ser feliz.” E então Linder riu. “Eu rezo para que um dia ele seja feliz — mas está demorando muito para acontecer.”