Apresentação
Este livro, em continuidade à obra No anfiteatro de Anatomia: o cadáver e a morte, publicada sob o selo da Cultura Acadêmica (Talamoni, 2013), constitui-se na segunda etapa de uma pesquisa mais ampla de doutoramento que teve como objetivo realizar uma análise interpretativa dos processos de ensino e de aprendizagem engendrados no âmbito das aulas da disciplina Anatomia Geral e Humana ministrada para uma turma de estudantes de um curso de licenciatura em Ciências Biológicas.1 Na tarefa de observação e interpretação das aulas, buscou-se focar o processo de familiarização dos estudantes com o laboratório de Anatomia e, consequentemente, com o acervo anatômico ali existente. Para cumprir essa proposta, utilizou-se como abordagem teórico-metodológica os preceitos das Pesquisas Qualitativas em Educação e, sobretudo, os apoios oferecidos pela Antropologia Interpretativa representada por Clifford Geertz.
A opção pelo recorte centrado no processo de familiarização dos estudantes com o acervo anatômico deveu-se ao fato de conceber-se a aula, e mais especificamente a aula de Anatomia, não apenas em seus aspectos didático-pedagógicos, mas também enquanto um fato social, um entrecruzamento de momentos históricos para o qual fluem aspectos sociais, científicos, psicológicos e culturais pertinentes não só à própria Anatomia, mas também às noções polifônicas de vida, de morte e de ciência que, a seu tempo, permitiram a formatação e também a consagração do saber anatômico e do seu ensino acadêmico.
As perspectivas adotadas de pesquisa e de aula cobraram da autora a peregrinação por diversas áreas do conhecimento, marcadamente da Educação, da História, da Antropologia e da Biologia. Cumpriu-se, assim, a proposta de uma iniciativa voltada para uma pesquisa interdisciplinar que aborda a aula de Anatomia a partir de suas interfaces com a cultura científica, com o ensino de Ciências e, em linhas gerais, com o território abrangente da cultura.
Tanto a disciplina anatômica quanto o processo de familiarização dos indivíduos com o laboratório de Anatomia e seu acervo anatômico espelham, em seus meandros, uma prática científica plurissecular cuja trajetória mostra-se precariamente sistematizada nos estudos acadêmicos, quer os gerados pelos biólogos, quer pelos historiadores e filósofos das ciências. Entendendo-se a ciência – e, portanto, a própria Anatomia – como produto sui generis da cultura, seu desenvolvimento se dá conjuntamente com o movimento de (re)definições das sensibilidades sociais próprias da civilização ocidental.
Em consequência, postulou-se que, no cenário que culminou na consagração da Anatomia como um campo inquestionavelmente científico, existiria uma série de ocorrências, conhecimentos e sensibilidades que, se em um primeiro momento poderiam ser considerados externos ao saber especializado, na verdade afloraram como fundamentais para a compreensão dos fenômenos focados neste livro.2 Em resultado dessa postura, admitiu-se que a produção do conhecimento e sua transmissão mediante o ensino formal poderiam ser definidas como exercícios intelectuais de longa duração, o que impôs a necessidade e a urgência da realização de um estudo pautado pela perspectiva etnológica.
Nesse cenário, ganhou especial significado para a compreensão dos processos de ensino e aprendizagem da Anatomia a análise das imagens arquitetadas pelos indivíduos, também sujeitos da pesquisa, sobre a morte, os mortos e os cadáveres, já que estes se constituem em contingências indiretas do processo de familiarização dos indivíduos com a referida disciplina.
Mais do que um organismo desprovido de vida, o cadáver é uma construção sociocultural e nas sociedades ocidentais é o signo mais forte que temos da morte. O mal-estar gerado pela presença do defunto, seja nos velórios, seja nos laboratórios, museus ou exposições de Anatomia, advém de uma reação dúbia e secular. Por um lado, o sentimento de curiosidade frente aos mistérios do corpo humano que apenas a manipulação e a dissecação dos cadáveres permitem desvelar; por outro lado, os sentimentos de medo, de nojo e de repulsa causados tanto pelas condições orgânicas do defunto quanto pela sua presença, potencialmente ameaçadora.
Essa ameaça, por sua vez, é gerada pelo estado potencial e repugnante de putrefação do cadáver e pela lembrança – que se quer bastante remota – de que aquela morte que o cadáver representa é, de certa forma, a morte de cada um de nós. O cadáver e as peças cadavéricas, portanto, estão sempre a nos lembrar do caráter transitório da vida e do destino repugnante do corpo que, na melhor das hipóteses, se reduz ao nada.3
Os cadáveres dos laboratórios de Anatomia também são uma construção sociocultural, uma produção do processo de racionalização científica. Em sua grande maioria, pelo menos em âmbito nacional, são corpos de indivíduos considerados “indigentes”, ou “não reclamados”, portanto, desprovidos de identidade e, quiçá, da própria humanidade. A condição social dos cadáveres que compõem os acervos anatômicos não só responde a questões jurídicas mais amplas que englobam os direitos do Estado e da família sobre os defuntos, bem como as leis que garantem os direitos do cadáver, como também se mostra fortuita àqueles que fazem uso de peças cadavéricas em seus estudos e pesquisas científicas. Reitera-se com a desumanização do cadáver a condição de corpo-objeto-de-estudo, que se pretende asséptico, impessoal. Uma prova disto é que corpos desprovidos de face, unhas e cabelos costumam ser mais fáceis de manusear e são, portanto, um objeto didático mais eficaz nas aulas de Anatomia do que as peças que guardam indícios de humanidade do cadáver, como unhas sujas, tatuagens, barbas por fazer etc.4
Quando um aluno adentra o laboratório,5 portanto, ele tem várias tarefas a desempenhar a fim de que possa construir conhecimentos anatômicos relevantes naquele novo ambiente de aprendizagem. Uma das primeiras é conformar-se com as peculiaridades do próprio local, como o cheiro de formol e a presença de peças cadavéricas. Além disso, precisa obedecer a uma série de regras disciplinares, a maioria delas baseada na primeira e mais importante – o respeito e agradecimento ao cadáver –, como a pontualidade, o cuidado com as peças, o uso de jalecos e luvas, a proibição do uso de máquinas fotográficas e telefones celulares, e, sobretudo, não usar das peças cadavéricas para fins que não sejam de estudo.6
Vê-se, portanto, que todos os indivíduos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem em um laboratório de Anatomia se encontram sempre em uma situação incômoda e contraditória. Ao mesmo tempo que são representantes de uma cultura maior que teme e abomina a morte, representam outra cultura, a científica, que trabalha pela vida através da morte e de sua naturalização.
Sobre o cadáver, o peso da história, da cultura e das sensibilidades frente à morte. Sobre professores e alunos de Anatomia, a tarefa de desenvolver seus próprios mecanismos de defesa, a fim de se conterem, de silenciarem seus medos, de superarem suas angústias e desenvolverem, juntos, um aprendizado relevante.
Captar as formas como essas contradições e sensibilidades se expressam, ou não, na cultura científica do laboratório didático de Anatomia ao longo de um processo de ensino e aprendizagem mostra-se uma tarefa árdua para o investigador. Um dos primeiros desafios refere-se aos suportes metodológicos necessários, problemática sempre presente nas pesquisas qualitativas em Educação, sobretudo no que tange às restrições, limites e possibilidades proporcionados pelas pesquisas participantes, pelas técnicas de observação e a descrição dos dados coletados.
As problemáticas que norteiam este livro são, portanto, de duas ordens, e ambas serão contempladas: a) a questão metodológica, seja ela a da descrição densa, utilizada na pesquisa da qual este livro é um recorte; b) a questão de como se dá o processo de familiarização de licenciandos de um curso de licenciatura em Ciências Biológicas com o ambiente do laboratório de Anatomia e seu acervo, contemplada da forma mais aprofundada possível, através da elaboração de uma descrição densa.
O livro ainda cumpre com três objetivos fundamentais: o primeiro consiste em apresentar a aula, e mais especificamente a aula de Anatomia, enquanto um espaço-tempo para o qual confluem momentos históricos, aspectos sociais, científicos, psicológicos e culturais pertinentes não só à própria Anatomia e à ciência, mas também às representações intersubjetivas de vida e de morte que, a seu tempo, permitiram a formatação e também a consagração do saber anatômico e do seu ensino acadêmico. O segundo refere-se à apresentação e à análise minuciosa da descrição densa enquanto metodologia de pesquisa pertinente para as investigações no campo das Ciências Sociais e da Educação, por assegurar um local privilegiado de observação, análise e interpretação de dados ao investigador, que, por certo período, se encontra mergulhado na cultura específica da sala de aula durante sua pesquisa. Por fim, apresentar-se-á a descrição densa, enquanto resultado e também produto da pesquisa supramencionada.
O livro está dividido em cinco capítulos. O Capítulo 1 objetiva apresentar um breve histórico da Anatomia no mundo, a fim de proporcionar ao leitor um panorama geral da constituição da disciplina anatômica no âmbito da cultura ocidental, bem como as contingências nas quais se desenvolveu. O Capítulo 2 aborda a constituição da disciplina anatômica no Brasil. O Capítulo 3, teórico e de revisão bibliográfica, visa instruir o leitor sobre os fundamentos do Programa da Descrição Densa de Clifford Geertz. Também serão discutidas nesse capítulo algumas das críticas endereçadas ao programa, e as possibilidades de observação proporcionadas pelo uso da referida metodologia, ainda pouco explorada no campo da Educação no Brasil.
O Capítulo 4, já em consonância com as propostas da descrição densa, visa apresentar os personagens que compuseram o cenário mais abrangente da descrição propriamente dita. O Capítulo 5, por sua vez, consiste em apresentar uma descrição densa da disciplina Anatomia Geral e Humana, ministrada aos alunos de segundo ano de um curso de licenciatura em Ciências Biológicas, enquanto resultado e também produto da pesquisa supramencionada.
As imagens foram extraídas de publicações anatômicas dos séculos XV a XVIII, digitalizadas e disponibilizadas em Historical Anatomies on the Web, site da National Library of Medicine,7 que promove a divulgação de publicações raras de interesse para as ciências médicas e morfológicas. O acesso é público e gratuito.
Por fim, o trabalho de pesquisa aqui apresentado na forma de livro não tem a pretensão de esgotar todos os debates acerca do ensino da Anatomia e suas contingências, mas, antes, pretende, como diria Geertz, ampliar a compreensão, por parte do leitor, de um determinado espaço-tempo da formação de licenciandos em Ciências Biológicas, criando, assim, novos espaços de diálogo e novos prismas de reflexão teórica e prática.