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Começou denunciando a opressão dos ricos contra os pobres através do uso de uma língua incompreensível como o latim nos tribunais: “Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que se está dizendo e são enganados. Se quiserem dizer quatro palavras, têm que ter um advogado”. Mas esse era só um exemplo de uma exploração geral, da qual a Igreja era cúmplice e participante: “E me parece que na nossa lei o papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam os pobres. Se têm dois campos arrendados, esses são da Igreja, de tal bispo ou de tal cardeal”. É bom lembrar que Menocchio possuía dois campos arrendados, cujo proprietário ignoramos; quanto ao seu latim, aparentemente se restringia ao
Credo
e ao
Pater noster
, que aprendera ajudando na missa, e que Ziannuto, seu filho, fora atrás de um advogado logo que o Santo Ofício o colocara na prisão. Porém, essas coincidências, ou possíveis coincidências, não nos devem levar a pistas falsas: o discurso de Menocchio, embora partisse do seu caso pessoal, acabava por abarcar um âmbito muito mais vasto. A exigência de uma Igreja que abandonasse seus privilégios, que se fizesse pobre com os pobres, ligava-se à formulação, na esteira dos Evangelhos, de um conceito diferente de religião, livre de exigências dogmáticas, resumível a um núcleo de preceitos práticos: “Gostaria que se acreditasse na majestade de Deus, que fôssemos homens de bem e que se fizesse como Jesus Cristo recomendou, respondendo àqueles judeus que lhe perguntaram que lei se deveria seguir. Ele respondeu: ‘Amar a Deus e ao próximo’.” Uma tal religião simplificada não admitia, para Menocchio, limitações confessionais. Contudo, a apaixonada exaltação da equivalência de todas as fés, com base na iluminação concedida, em igual medida, a todos os homens — “A majestade de Deus distribuiu o Espírito Santo para todos: cristãos, heréticos, turcos, judeus, tem a mesma consideração por todos, e de algum modo todos se salvarão” —, acabou numa explosão violenta contra os juízes e sua soberba doutrinal: “E vocês, padres e frades, querem saber mais do que Deus; são
como o demônio, querem passar por deuses na terra, saber tanto quanto Deus da mesma maneira que o demônio. Quem pensa que sabe muito é quem nada sabe”. E, abandonando toda reserva, toda prudência, Menocchio declarou recusar todos os sacramentos, inclusive o batismo, por serem invenções dos homens, “mercadorias”, instrumentos de exploração e opressão por parte do clero: “Acho que a lei e os mandamentos da Igreja são só mercadorias e que se deve viver acima disso”. Sobre o batismo comentou: “Acho que, quando nascemos, já estamos batizados, porque Deus, que abençoa todas as coisas, já nos batizou. O batismo é uma invenção dos padres, que começam a nos comer a alma antes do nascimento e vão continuar comendo-a até depois da morte”. Sobre a crisma: “Acho que é uma mercadoria, invenção dos homens; todos os homens têm o Espírito Santo e buscam saber tudo e não sabem nada”. Sobre o casamento: “Não foi feito por Deus, mas sim pelos homens; antes, homens e mulheres faziam troca de promessas e isso era suficiente; depois apareceram essas invenções dos homens”. Sobre a ordenação: “Acho que o Espírito Santo está em todo mundo, [...] e acho que qualquer um que tenha estudado pode ser sacerdote, sem ter que ser sagrado, porque tudo isso é mercadoria”. Sobre a extrema-unção: “Acho que não é nada, não vale nada, porque se unge o corpo, mas o espírito não pode ser ungido”. Geralmente se referia à confissão dizendo: “Ir se confessar com padres ou frades é a mesma coisa que falar com uma árvore”. Quando o inquisidor lhe repetiu essas palavras, explicou, com uma pontinha de autossuficiência: “Se esta árvore conhecesse a penitência, daria no mesmo; alguns homens procuram os padres porque não sabem que penitências devem ser feitas para seus pecados, esperando que os padres as ensinem, mas, se eles soubessem, não teriam necessidade de procurá-los”. Estes últimos deveriam se confessar “à majestade de Deus em seus corações e pedir-lhe perdão pelos seus pecados”.
Somente o sacramento do altar escapava às críticas de Menocchio — mas era reinterpretado de maneira heterodoxa. As frases referidas pelos testemunhos soavam, na verdade, como blasfêmias ou negações depreciativas. Quando procurou o vigário de Polcenigo, num dia de distribuição de hóstias,
Menocchio exclamou: “Pela Virgem Maria, são muito grandes essas bestas!”. Numa outra vez, discutindo com o padre Andrea Bionima, disse: “Não vejo ali nada mais que um pedaço de massa. Como é que pode ser Deus? E o que é esse tal Deus a não ser terra, água e ar?”. Mas ao vigário-geral explicou: “Eu disse que aquela hóstia é um pedaço de massa, mas que o Espírito Santo vem do céu e está nela. Eu realmente acredito nisso”. O vigário perguntou incrédulo: “O que você acha que seja o Espírito Santo?”. Menocchio respondeu: “Acho que é Deus”. Mas sabia quantas eram as pessoas da Trindade? “Sim, senhor: Pai, Filho e Espírito Santo.” “Em qual dessas três pessoas você acha que a hóstia se converte?” “Acho que no Espírito Santo.” Semelhante ignorância parecia inacreditável para o vigário: “Quando o pároco fez os sermões sobre o santíssimo sacramento, quem ele disse que estava naquela hóstia?”. Porém, não se tratava de ignorância: “Disse que era o corpo de Cristo, embora eu achasse que era o Espírito Santo, e isso porque acho que o Espírito Santo é maior que Cristo, que era homem, enquanto o Espírito Santo veio pelas mãos de Deus...”. “Disse [...] embora eu achasse”: apenas lhe era apresentada a ocasião, Menocchio confirmava quase com insolência a própria independência de julgamento, o direito de ter uma posição autônoma. E acrescentou para o inquisidor: “O bom do sacramento é quando alguém se confessa e vai comungar; então está com o Espírito Santo, e o Espírito Santo está alegre [...]; quanto ao sacramento da eucaristia, é uma coisa feita para controlar os homens, inventada pelos homens graças ao Espírito Santo; a celebração da missa é uma criação do Espírito Santo, assim como adorar a hóstia para que os homens não sejam como animais”. A missa e o sacramento do altar eram, portanto, justificados de um ponto de vista quase político, como meio de civilidade — todavia, numa frase que lembrava involuntariamente, com signo invertido, o que tinha dito ao vigário de Polcenigo (“hóstias [...] bestas”).
Mas qual era o fundamento dessa crítica radical aos sacramentos? Com certeza não as Escrituras, que estas Menocchio submetia a um exame sem preconceitos, reduzindo-as a “quatro palavras” que constituíam sua essência: “Acho que a Sagrada Escritura tenha sido dada por Deus, mas, em seguida,
foi adaptada pelos homens. Bastariam só quatro palavras para a Sagrada Escritura, mas é como os livros de batalha, que vão crescendo”. Para Menocchio, os Evangelhos, com suas discordâncias, estavam também distantes da simplicidade e brevidade da palavra de Deus: “A respeito das coisas dos Evangelhos, acho que parte delas é verdadeira e, noutra parte, os evangelistas puseram coisas da cabeça deles, como se pode ver nas passagens onde um conta de um modo e outro de outro”. Assim podemos entender por que Menocchio dissera aos seus conterrâneos (e confirmara durante o processo) “que a Sagrada Escritura fora inventada para enganar os homens”. Então temos: negação da doutrina, negação dos livros sagrados, insistência exclusiva no aspecto prático da religião: “Ele [Menocchio] me disse também só acreditar nas boas obras” — declarara Francesco Fasseta. Numa outra vez, sempre se dirigindo ao mesmo Francesco, dissera: “Eu só quero fazer obras boas”. Nesse sentido, a santidade parecia a ele um modelo de vida, de comportamento prático, nada mais: “Eu acho que os santos foram homens de bem, fizeram boas obras e por isso o Senhor Deus os fez santos e eles oram por nós”. Não é preciso venerar suas relíquias ou imagens: “Quanto às relíquias dos santos, são como qualquer braço, cabeça, mão ou perna, acho que são iguais aos nossos braços, cabeças, pernas e não devem ser adoradas ou reverenciadas [...]. Não se devem adorar as imagens, e sim Deus, só Deus, que fez o céu e a terra; vocês não veem”, exclamou Menocchio para os juízes, “que Abraão jogou todos os ídolos e imagens no chão, e adorou só a Deus?”. Cristo também teria dado aos homens, através da sua paixão, um modelo de comportamento: “Ele ajudou [...] a nós, cristãos, sendo um espelho para nós, e assim como ele foi paciente e sofreu por nos amar, que nós morramos e soframos por amor a ele. Não devemos nos maravilhar porque morremos, já que Deus quis que seu filho morresse”. Porém, Cristo era só um homem, e todos os homens são filhos de Deus, “da mesma natureza daquele que foi crucificado”. Em consequência, Menocchio se recusava a acreditar que Cristo tivesse morrido para redimir a humanidade: “Se alguém tem pecados, é preciso que faça penitência”.
A maior parte dessas afirmações foi feita por Menocchio
durante um único e longuíssimo interrogatório. “Falaria tanto que surpreenderia” — tinha prometido aos conterrâneos, e com certeza o inquisidor, o vigário-geral, o magistrado de Portogruaro devem ter ficado atônitos diante de um moleiro que, com tanta segurança e agressividade, expunha suas próprias ideias. Sobre a originalidade dessas ideias Menocchio estava absolutamente convencido: “Nunca discuti com alguém que fosse herético”, replicou a uma pergunta precisa dos juízes, “mas tenho cabeça sutil, quis procurar as coisas maiores que não conhecia. O que eu disse não creio que seja a verdade, mas quero ser obediente à Santa Igreja. Tive opiniões enganosas, mas o Espírito Santo me iluminou e peço a misericórdia do magno Deus, do Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo, e que ele me faça morrer se não estou dizendo a verdade”. Enfim decidira seguir o caminho que o filho aconselhara, mas antes quisera, como já vinha se prometendo havia tanto tempo, “falar muito contra os superiores por suas más obras”. É claro que sabia o risco que corria. Antes de ser reconduzido ao cárcere, implorou a piedade dos inquisidores: “Senhores, eu vos peço em nome da paixão do Senhor Jesus Cristo que resolvam sobre o meu caso e, se mereço a morte, que me seja dada, mas, se mereço misericórdia, que me concedam, porque quero viver como bom cristão”. No entanto, o processo estava longe de ter terminado. Alguns dias depois (1
o
de maio), os interrogatórios foram retomados: o interventor precisara se afastar de Portogruaro, mas os juízes estavam impacientes para ouvir Menocchio novamente. “Na sessão anterior”, falou o inquisidor, “lhe dissemos que seu espírito aparecia no processo cheio de certos humores e de má doutrina, mas o Santo Tribunal deseja que o senhor termine de revelar seu pensamento.” Menocchio respondeu: “Meu espírito era elevado e desejava que existisse um mundo novo e um novo modo de viver, pois a Igreja não vai bem e não deveria ter tanta pompa”.
7
Sobre o que significava o aceno ao “mundo novo”, ao novo “modo de viver”, falaremos mais adiante. Antes de mais nada, é preciso tentar entender de que modo este moleiro do Friuli
pôde exprimir ideias desse tipo.
O Friuli da segunda metade do século
XVI
era uma sociedade com características profundamente arcaicas. As grandes famílias da nobreza feudal ainda preponderavam na região. Instituições como a chamada servidão de
mesnada
tinham sido conservadas até o século anterior, por muito mais tempo, portanto, que nas regiões vizinhas. O antigo Parlamento medieval mantivera as próprias funções legislativas, mesmo estando o poder efetivo nas mãos dos lugares-tenentes venezianos já há algum tempo. Na verdade, a dominação de Veneza, iniciada em 1420, tinha deixado, na medida do possível, as coisas como eram antes. A única preocupação dos venezianos havia sido criar um equilíbrio de forças tal que neutralizasse as tendências subversivas de parte da nobreza feudal friulana.
No princípio do século
XVI
, os conflitos no interior da nobreza tinham se agravado. Foram criados dois partidos: os
Zamberlani
, favoráveis a Veneza, reunidos em torno do poderoso Antonio Savorgnan (que morreria como traidor no Império), e os
Strumieri
, hostis a Veneza, liderados pela família dos Torreggiani. Devido a essa disputa política entre facções nobres, teve início um violentíssimo conflito de classes. Era 1508, o nobre Francesco di Strassoldo, num discurso no Parlamento, advertia que em várias localidades do Friuli os camponeses faziam reuniões secretas, algumas agrupando até 2 mil pessoas, nas quais, entre outras coisas, se diziam “algumas nefandas e diabólicas palavras de ordem, como cortar em pedacinhos padres, homens de bem, castelãos e cidadãos, ameaçando fazer uma véspera siciliana,
*
e muitas outras palavras sujíssimas”. Mas não eram só palavras. Na quinta-feira gorda de 1511, pouco depois da crise que sucedeu à derrota de Veneza em Agnadello e coincidentemente com a difusão da peste, os camponeses fiéis a Savorgnan se insurgiram, primeiro em Udine e a seguir em outras localidades, massacrando nobres dos dois partidos e incendiando castelos. À imediata recomposição da solidariedade de classe entre os nobres seguiu-se uma repressão feroz da revolta. Porém, se a violência dos camponeses, por um lado, amedrontara a oligarquia veneziana, por outro, tinha acenado com a possibilidade de uma
política audaciosa para conter a nobreza friulana. Nos decênios seguintes à efêmera revolta de 1511, acentuou-se a tendência veneziana de apoiar os camponeses do Friuli (e da Terra-Firme em geral) contra a nobreza local. Dentro desse sistema de contrapesos, tomou corpo uma instituição excepcional nos próprios domínios venezianos: a
Contadinanza
. Esse órgão tinha funções não só fiscais, como também militares: através das “listas de fogos”,
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recolhia uma série de impostos e, através das
cernide
, organizava milícias camponesas. Esse último item, em especial, era um verdadeiro desacato para a nobreza friulana, se consideramos que os estatutos da
Patria
, impregnados de espírito feudal (entre outras coisas ameaçavam com penalidades os camponeses que ousassem destruir o nobre exercício da caça, armando laços para as lebres ou caçando perdizes à noite), continham uma cláusula intitulada
De prohibitione armorum rusticis
. Mas as autoridades venezianas, embora mantido o caráter
sui generis
da
Contadinanza
, estavam decididas a transformá-la em representante autorizada dos interesses da população rural. Portanto, caía também, formalmente, a ficção jurídica que assegurava ser o Parlamento o órgão representativo de toda a população.
A lista das providências tomadas por Veneza a favor dos camponeses friulanos é longa. Já em 1533, em resposta à petição apresentada pelos “decanos” de Udine e de outras localidades do Friuli e da Carnia, que se lamentavam por “estar realmente oprimidos por diversos tipos de pagamento que deviam fazer aos nobres citadinos, a outros além desses e a tantas outras pessoas leigas, desde que as colheitas subiram de preço, o que vem acontecendo há alguns anos”, foi concedida a possibilidade de pagar as taxas de arrendamento (exceto os enfiteuses
***
) em dinheiro em vez de espécie, com base em preços unitários, estabelecidos definitivamente — o que, numa situação de aumentos constantes de preços, beneficiava evidentemente os camponeses. Em 1551, “por causa dos pedidos da
Contadinanza
da
Patria
”, todas as taxas de arrendamento fixadas a partir de 1520 foram reduzidas em 7%, através de um decreto que foi discutido e ampliado oito anos depois. Em 1574, mais uma vez as autoridades venezianas procuraram impor um limite à usura no campo, determinando que “dos camponeses daquela
Patria
não podem ser retirados para penhora tipo algum de animal, grande ou pequeno, apto para o trabalho com a terra, nem tipo algum de instrumento rural por insistência de credores, salvo os próprios patrões”. Além disso, “para aliviar a condição dos pobres camponeses, dos quais safras são arrancadas pela avidez dos credores que lhes fornecem várias mercadorias a crédito, antes mesmo que as colheitas tenham sido ceifadas e quando os preços atingem o valor mais baixo no ano”, decretava-se que os credores poderiam exigir a sua parte somente depois de 15 de agosto.
Tais concessões, que pretendiam sobretudo manter sob controle as tensões latentes nos campos friulanos, criavam ao mesmo tempo uma relação de solidariedade entre os camponeses e o poder veneziano, em oposição à nobreza local. Diante da progressiva redução das taxas de arrendamento, a nobreza tentou transformar as taxas em aluguéis simples — isto é, num tipo de contrato que piorava evidentemente as condições dos camponeses. Tal tendência, generalizada durante esse período, deve ter encontrado sérios obstáculos no Friuli, em especial demográficos. Quando os braços não são suficientes, é difícil chegar a pactos agrários favoráveis aos proprietários. Ora, em um século, entre meados do século
XVI
e meados do
XVII
, ou por causa das frequentes epidemias, ou pela intensificação da imigração, principalmente em direção a Veneza, a população total do Friuli diminuiu. Os relatórios dos lugares-tenentes de Veneza do período insistem na miséria dos camponeses. “Suspendi todas as execuções de dívidas particulares até o fim da colheita”, escrevia Daniele Priuli, em 1573, afirmando que “os vestidos das mulheres, tendo ao lado seus filhos, lhes eram arrancados, bem como as fechaduras das portas, coisa ímpia e desumana”. Carlo Corner, em 1587, frisava a pobreza natural da
Patria
: “muito estéril porque em parte montanhosa, pedregosa nas planícies e exposta a frequentes inundações e danos das tempestades, que são muito comuns na região”, e concluía: “Assim sendo, se os nobres não possuem grandes riquezas, os camponeses são paupérrimos”. No final do século (1599), Stefano Viaro traçava um quadro de decadência e desolação: “Há alguns anos a assim chamada
Patria
se apresenta totalmente destruída, não se encontrando vila que
não esteja com dois terços ou mesmo três quartos de suas casas arruinadas, desabitadas; pouco menos da metade das suas terras são improdutivas, o que de fato é de se lamentar muito, já que desse modo a cada dia declinará mais, com seus habitantes tendo que partir por necessidade (como já estão fazendo), e ali ficarão apenas os súditos miseráveis”. No momento em que se diagnosticava a decadência de Veneza, a economia friulana já se encontrava em estado de avançada desagregação.
8
Mas o que um moleiro como Menocchio saberia sobre esse emaranhado de contradições políticas, sociais e econômicas? Qual a imagem que construiria para si do enorme jogo de forças que, silenciosamente, condicionava sua existência?
Uma imagem rudimentar e simplificada, porém muito clara: no mundo existem muitos graus de “dignidade”: há o papa, os cardeais, os padres, o pároco de Montereale; há o imperador, os reis, os príncipes. Contudo, ultrapassando as graduações hierárquicas, existe uma contraposição fundamental entre os “superiores” e os “homens pobres” — Menocchio é um dos pobres. Uma imagem claramente dicotômica da estrutura de classes, típica das sociedades camponesas. Em todo caso parece-nos que Menocchio, em seus discursos, dá indícios de ter uma atitude diferenciada em relação aos “superiores”. A violência do ataque contra as autoridades máximas da Igreja — “E me parece que na nossa lei o papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam os pobres...” — contrasta com a crítica muito mais amena, que vem em seguida, às autoridades políticas: “Me parece também que os senhores venezianos abrigam ladrões naquela cidade; se alguém vai comprar alguma coisa e pergunta ‘quanto custa?’, respondem ‘um ducado’, embora não valha mais do que três
marcelli
; eu gostaria que cumprissem seus deveres...”. É clara nessas palavras, antes de mais nada, a reação do camponês posto de modo brusco em contato com a desconcertante realidade urbana: de Montereale ou Aviano para uma grande cidade como Veneza o salto era enorme. Todavia permanece o fato de que, enquanto o papa, cardeais e
padres são acusados diretamente de “arruinar” os pobres, a única coisa que afirma sobre os senhores venezianos é que “abrigam ladrões naquela cidade”. Essa diversidade de tom não era devida, com certeza, à prudência, já que ao pronunciar tais palavras Menocchio tinha diante de si tanto o magistrado de Portogruaro como o inquisidor de Aquileia e seu vigário. Aos seus olhos, a encarnação da opressão estava na hierarquia eclesiástica. Por quê?
O próprio Menocchio parece nos dar uma primeira indicação: “Tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam os pobres. Se têm dois campos arrendados, esses são da Igreja, de tal bispo ou de tal cardeal”. Como já dissemos, não sabemos se esse era o caso dele. Um censo feito em 1596 — portanto, quinze anos após essas afirmações — informa que um dos campos presumivelmente arrendado a Menocchio confinava com um terreno que um dos membros da família dos senhores do lugar, Orazio di Montereale, arrendara a um tal de Giacomo Margnano. O mesmo censo, porém, menciona vários lotes de terra pertencentes às igrejas locais ou da vizinhança arrendados: oito de Santa Maria, um de San Rocco (ambos de Montereale), um de Santa Maria de Pordenone. Montereale não era, com certeza, um caso isolado: no final do século
XVI
, era grande a extensão das propriedades eclesiásticas no Friuli e em todo o Vêneto. E onde as propriedades haviam diminuído do ponto de vista quantitativo, tinham se consolidado e reforçado em termos qualitativos. Tudo isso torna suficientemente claras as palavras de Menocchio — ainda que ele próprio não tivesse se chocado contra a renovada dureza da propriedade eclesiástica (que sempre foi explicitamente excluída nas reduções das taxas de arrendamento introduzidas pelas autoridades venezianas). Bastava abrir os olhos, olhar ao redor.
Se a difundida presença da propriedade eclesiástica em Montereale e arredores explica a aspereza das acusações de Menocchio, o mesmo não se dá com suas implicações nem com sua atribuição a um plano mais geral. Papa, cardeais e padres “arruínam os pobres”: mas em nome do quê? com que direitos? O papa é “homem como nós”, com a diferença de que tem poder (“pode fazer”) e, portanto, mais “dignidade”. Não existe diferença alguma entre clérigos e leigos: o sacramento da
ordenação é uma “mercadoria”. Assim como todos os outros sacramentos e leis da Igreja: “mercadorias”, “invenções”, e graças a elas os padres engordam. A essa construção colossal baseada na exploração dos pobres, Menocchio contrapõe uma religião bem diferente, em que todos são iguais, porque o espírito de Deus está em todos.
A consciência dos próprios direitos para Menocchio nascia de um plano especificamente religioso. Um moleiro pode pretender expor as verdades da fé ao papa, a um rei ou príncipe porque carrega dentro de si o espírito que Deus deu a todos. Pela mesma razão, pode ousar “falar muito contra os superiores, por suas más obras”. O que levava Menocchio a negar, de maneira impetuosa, em seus discursos as hierarquias existentes não era só a percepção da opressão, mas também a ideologia religiosa que afirmava a presença, em cada homem, de um “espírito”, ora chamado de “Espírito Santo”, ora de “espírito de Deus”.
9
À primeira vista parece evidente que por trás disso tudo estava o grande golpe desferido contra o princípio de autoridade, no campo não só religioso, como também no político e social, pela Reforma Protestante. Mas quais eram as relações de Menocchio com os grupos conectados com a Reforma e com suas ideias?
“Eu acredito que seja luterano quem siga ensinando o mal e coma carne às sextas e sábados” — explicou Menocchio aos juízes que o interrogavam. Mas decerto era uma definição simplificada e deformada propositadamente. Muitos anos depois, no período do segundo processo (1599), soube-se que Menocchio havia dito a um judeu convertido, de nome Simon, que, quando da sua própria morte, “os
luteranos
vão ser informados e virão buscar as cinzas”. À primeira vista parece tratar-se de um testemunho esclarecedor. Na realidade, não o é. Independentemente da dificuldade — sobre a qual falaremos mais adiante — em verificar o fundamento das expectativas de Menocchio, o termo “luterano” é colocado num contexto que confirma o uso generalizado que dele se fazia na época. Segundo
Simon, de fato, Menocchio negara qualquer valor ao Evangelho, rejeitara a divindade de Cristo e louvara um livro que talvez fosse o Alcorão. É evidente que estamos muito distantes de Lutero e suas doutrinas. Tudo isso nos induz a retornar ao ponto de partida e recomeçar, procedendo com cautela, passo a passo.
Aquela que poderemos chamar de eclesiologia de Menocchio, reconstruível com base nas afirmações feitas por ele durante os interrogatórios de Portogruaro, tem uma fisionomia bem precisa. No complexo quadro religioso da Europa do século
XVI
ela nos remete, principalmente e em mais de um ponto, às posições dos anabatistas. A insistência na simplicidade da palavra de Deus, a negação das imagens sacras, das cerimônias e dos sacramentos, a negação da divindade de Cristo, a adesão a uma religião prática baseada nas obras, a polêmica pregando a pobreza contra as “pompas” da Igreja, a exaltação da tolerância, são todos elementos que nos conduzem ao radicalismo religioso dos anabatistas. É verdade que Menocchio não é um defensor do batismo para os adultos. Mas sabe-se que muito cedo os grupos anabatistas italianos chegaram a recusar também o batismo, bem como todos os outros sacramentos, admitindo além disso um batismo espiritual, baseado na regeneração interior do indivíduo. Menocchio, por sua conta, considerava o batismo absolutamente inútil: “Acho que, quando nascemos, já estamos batizados, porque Deus, que abençoa todas as coisas, já nos batizou...”.
O movimento anabatista, depois de ter se alastrado por grande parte da Itália setentrional e central — mas sobretudo no Vêneto —, foi desmantelado na segunda metade do século XVI pela perseguição religiosa e política, seguida da delação de um dos seus chefes. Porém, alguns grupos secretos dispersos sobreviveram clandestinos por algum tempo também no Friuli. Talvez fossem anabatistas, por exemplo, os artesãos de Porcia aprisionados pelo Santo Ofício em 1557, que se reuniam com frequência na casa de um curtidor de peles e de um tecelão de lã para ler a Escritura e falar “da renovação da vida [...], da pureza do Evangelho e da abstenção dos pecados”. Como veremos, é provável que Menocchio, cujas afirmações heterodoxas
remontavam, segundo uma testemunha, até mesmo há trinta anos, tivesse entrado justamente em contato com esse grupo.
Todavia, apesar das analogias apontadas, não parece possível definir Menocchio como um anabatista. O valor positivo que ele formulou a propósito da missa, da eucaristia e também, dentro de certos limites, da confissão, era inconcebível para um anabatista. Sobretudo um anabatista que via no papa a encarnação do Anticristo, nunca teria dito uma frase como aquela de Menocchio a respeito das indulgências: “[...] acredito que sejam boas, porque, se Deus pôs um homem em seu lugar, que é o papa, e mandou perdoar, isso é bom, porque é como se recebêssemos de Deus, já que são dadas por seu representante”. Tudo isso veio à tona durante o primeiro interrogatório, transcorrido em Portogruaro (28 de abril): a atitude de Menocchio, confiante, chegando mesmo a ser insolente às vezes, nos leva mais uma vez a abandonar a hipótese de que tais afirmações tivessem sido ditadas pela prudência ou pelo cálculo. Além disso, a heterogeneidade dos textos indicados por Menocchio como “fontes” de suas ideias religiosas é o que se pode imaginar de mais distante dos preconceitos rígidos e sectários dos anabatistas. Para estes a única fonte de verdade era a Escritura — ou até o Evangelho, como afirmou, por exemplo, o tecelão de lã que chefiava o grupo de Porcia citado acima: “[...] de maneira que não existe nada mais para acreditar além da Escritura, e em parte alguma, além do Evangelho, se encontram coisas sãs”. Para Menocchio, entretanto, a inspiração poderia vir de livros os mais variados: tanto do
Fioretto della Bibbia
como do
Decameron
. Concluindo, entre as posições de Menocchio e as dos anabatistas existiam analogias indiscutíveis, embora inseridas em contextos claramente diversos.
Mas, se o anabatismo é insuficiente para explicar o caso de Menocchio, não seria melhor nos curvarmos diante de uma definição mais genérica? Parece que Menocchio afirmava manter contatos com grupos “luteranos” (termo que designava então uma área de heterodoxia muito ampla): por que não nos contentarmos com o vago parentesco, já notado anteriormente, entre as atitudes de Menocchio e a Reforma?
Na realidade nem mesmo isso parece possível. Entre o
inquisidor e Menocchio, a uma certa altura, houve um diálogo significativo. O primeiro perguntou: “O que o senhor entende por justificação?”. Menocchio, sempre pronto a expor suas opiniões, desta vez não entendeu. O frade precisou explicar-lhe
quid sit iustificatio
e Menocchio negou, como já vimos, que Cristo tivesse morrido para salvar os homens, já que, “se alguém tem pecados, é preciso que faça penitência”. No que diz respeito à predestinação, fez o mesmo discurso. Menocchio ignorava o significado dessa palavra e só depois do esclarecimento do inquisidor respondeu: “Eu não acredito que Deus tenha predestinado alguém à vida eterna”. Justificação e predestinação, os dois temas sobre os quais a discussão religiosa na Itália se acirrara no período da Reforma, não queriam dizer literalmente nada para o moleiro friulano — ainda que, como veremos, ele os tenha encontrado pelo menos uma vez no decorrer de suas leituras.
Isso é mais significativo ainda se pensarmos que o interesse por esses temas, na Itália, não ficara circunscrito às classes mais altas da sociedade.
Carregador, criada e mercenário
fazem do livre-arbítrio anatomia,
fazem torta da predestinação,
escreveu, em meados do século XVI
, o poeta satírico Pietro Nelli, isto é, messer
Andrea da Bergamo. Alguns anos antes, artesãos de couro de Nápoles discutiam apaixonadamente as epístolas de são Paulo sobre a doutrina da justificação. O eco dos debates acerca da importância da fé e das obras para a salvação transparece mesmo em contextos inesperados, como nas súplicas de uma prostituta dirigidas às autoridades milanesas. Trata-se de exemplos escolhidos ao acaso, que poderiam facilmente se multiplicar. Mas eles têm um elemento em comum: dizem respeito todos, ou quase todos, à cidade. É um indício, entre muitos outros, da profunda separação que já havia muito tempo se verificara na Itália entre cidade e campo. A conquista religiosa do campo italiano, que os anabatistas teriam talvez tentado se não houvessem sido alijados, quase de imediato, pela repressão política e religiosa, foi efetuada alguns decênios depois, de forma bem diversa, pelas ordens religiosas
da Contrarreforma, os jesuítas, em primeiro lugar.
Isso não quer dizer que durante o século
XVI
o campo italiano ignorasse por inteiro formas de inquietação religiosa. Porém, por trás do tênue véu que aparentemente ecoava temas e termos das discussões contemporâneas, percebe-se a presença maciça de tradições diversas, muito mais antigas. Qual a relação entre uma cosmogonia como a de Menocchio — o queijo primordial do qual nascem vermes que são os anjos — e a Reforma? Como remeter à Reforma afirmações como as atribuídas a Menocchio por seus conterrâneos: “Tudo o que se vê é Deus e nós somos deuses”; “O céu, a terra, o mar, o ar, o abismo e o inferno, tudo é Deus”? É melhor imputá-las, por enquanto, a um substrato de crenças camponesas, velho de muitos séculos, mas nunca totalmente extinto. A Reforma, rompendo a crosta da unidade religiosa, tinha feito vir à tona, de forma indireta, tal substrato; a Contrarreforma, na tentativa de recompor a unidade, trouxera-o à luz, para expulsá-lo.
Seguindo essa hipótese, as afirmações de tom radical feitas por Menocchio não serão explicadas se remetidas ao anabatismo, ou, pior ainda, a um genérico “luteranismo”. Antes, devemos nos perguntar se elas não fazem parte de um ramo autônomo de radicalismo camponês que o tumulto da Reforma contribuíra para que emergisse, mas que era muito mais antigo do que a Reforma.
*
Vésperas sicilianas: nome da revolta começada em Palermo (e que se estenderia por boa parte da ilha) em 1282 contra o domínio dos franceses, ligados na-quele momento às pretenses teocráticas do Papado. Tornou-se assim símbolo de um movimento contra o poder estabelecido, político e eclesiástico. (N. R. T.)
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Lista de fogos: levantamento das casas (do latim
focus
, “lareira”, daí
fuoco
em italiano e
feu
em francês) possíveis de serem tributadas num certo local, urbano ou rural. (N. R. T.)
***
Enfiteuse: do grego
emphuteuein
, “plantar”, designa um tipo de contrato pelo qual o proprietário de um imóvel atribui a outrem o domínio útil sobre ele mediante o pagamento de uma pensão anual fixa, em moeda e/ou espécie. Transfere-se também ao locatário direitos de cessão e de hipoteca. (N. R. T.)