por Carlos Orsi1
“Seu olhar caiu sobre o livro amarelo que Lorde Henry lhe enviara. O que seria isso, perguntou-se (...) após alguns minutos, estava absorto. Era o livro mais estranho que já havia lido. Parecia que, em vestes refinadas, e ao som delicado de flautas, os pecados do mundo desfilavam, em silêncio, diante dele. Coisas com que havia sonhado de modo vago tornavam-se reais para ele. Coisas que jamais imaginara eram-lhe reveladas.”
O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde (1854-1900)
Na última década do século XIX, o amarelo, cor dos trajes do Rei que dá título a esta coletânea, era o matiz do pecado, da podridão, da decadência, da loucura — e, ao menos no mundo de língua inglesa, da literatura de vanguarda, a ponto de a principal revista literária de Londres, nos anos 1890, chamar-se O Livro Amarelo. Não era por acaso que o pecado, a doença e a arte moderna tinham a mesma cor: importados para a Inglaterra, os livros dos autores decadentes franceses vinham encadernados em amarelo.
A chamada escola decadente francesa inspirava-se na poesia de Charles Baudelaire (1821-1867), autor que havia sido saudado por Victor Hugo como o criador de un frisson nouveau, “uma nova emoção”. O decadentismo atingiu seu ponto alto na obra de Joris-Karl Huysmans (1848-1907), principalmente em seu romance À Rebours (“Às Avessas”, mais conhecido em inglês como Against the Grains, “Contra a Natureza”, publicado em 1884). Muitos críticos acreditam que o “livro amarelo” que tanto fascinou Dorian Gray, no romance de Wilde, era exatamente esse volume de Huysmans.
O horror que a literatura “amarela” francesa causava ao establishment anglo-saxão pode ser visto nesta crítica do jornal Daily Chronicle à primeira edição de O Retrato de Dorian Gray, publicada em 1890, cinco anos antes de O Rei de Amarelo:
“Trata-se de um livro gerado pela literatura leprosa dos decadentes franceses — um livro venenoso, cuja atmosfera está carregada dos odores mefíticos da putrefação moral e espiritual.”
Afinal, o que eram e o que queriam os “mefíticos” decadentes franceses? Humilhados pela derrota da França na guerra de 1870 com a Prússia, desiludidos com o fim sangrento da Comuna de Paris de 1871, esmagados pelo peso da geração de gigantes literários que os antecedera — Balzac, Hugo, Flaubert —, os decadentistas viam-se como mentes velhas em corpos jovens, os últimos filhos de uma civilização que já fizera tudo, provara tudo e, agora, rumava para a tumba ou, já morta, decompunha-se.
Seu projeto era radicalizar o frisson nouveau de Baudelaire: descobrir, estimular e registrar emoções inéditas, capazes de sufocar o tédio de uma existência crepuscular, apelando para meios artificiais, como drogas, ou para tudo aquilo que a civilização moribunda, filha da Igreja e do Iluminismo, havia banido: o absurdo, o pecado, a misantropia, o crime, o sexo não como expressão de amor ou para gerar filhos, mas como mero gozo e perversão. Era a busca do efeito estético sem qualquer tipo de amarra moral, do prazer sem consequência, do excesso sem responsabilidade.
O livro
É nesse contexto que Robert William Chambers (1865-1933) publica, em 1895, um peculiar volume de contos, contendo dez histórias — sendo que quatro delas giram em torno de uma peça de teatro intitulada O Rei de Amarelo.
A cor das roupas rasgadas do Rei não foi escolhida por acaso: a peça, da qual temos apenas vislumbres, é a epítome, a realização final do projeto decadente. Seu autor, cujo nome jamais é revelado, foi tão bem-sucedido na criação de un frisson nouveau, tão radical, que a própria beleza do texto se converte em uma maldição para quem o lê. Um crítico francês já havia escrito que, depois de um romance como À Rebours, as únicas alternativas eram “o cano de uma arma ou o pé da cruz”, e de fato tanto Huysmans quanto Wilde acabaram fugindo de seus excessos e buscando refúgio no catolicismo. Já Chambers nos indica, por meio do destino de seus personagens, que, depois de ler O Rei de Amarelo, nem a morte nem o claustro oferecem segurança.
Curiosamente, os contos de O Rei de Amarelo não são, eles mesmos, exemplos de literatura decadente. Pelo contrário: seus protagonistas, mesmo quando são jovens artistas boêmios farreando pelas ruas de Paris da decadência e do fin de siècle, revelam uma tocante pureza de coração, coisa que seria impossível de encontrar em um anti-herói de Huysmans. Vários deles são católicos ou estão em busca da fé.
Há muita especulação sobre as inspirações de Chambers. É bem provável que Wilde e Baudelaire estivessem em sua mente enquanto criava O Rei de Amarelo. Diversos nomes de lugares e pessoas que aparecem nos trechos da obra teatral citados nos contos, como Hastur, Hali e Carcosa, vêm de Ambrose Bierce (1842-1914?), o jornalista e escritor americano que desapareceu da face da Terra enquanto se dirigia ao México para cobrir a revolta de Pancho Villa. Bierce também é famoso por seus contos de terror, mas Chambers parece ter extraído muito pouco dele para além de um punhado de nomes altissonantes: enquanto o horror, em Bierce, é subjetivo — afeta, principalmente, a mente do protagonista — em Chambers ele é externo, físico, quase cósmico.
Quando O Rei de Amarelo foi escrito, a ideia de que uma obra literária poderia ser escandalosa demais para circular, ou perturbadora demais para que fosse seguro lê-la, ainda tinha alguma plausibilidade. Em 1892, a escritora americana Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) teve seu conto “O papel de parede amarelo” (eis a cor da maldade, de novo) criticado por um médico que declarou a história “perigosa” e questionou se “esse tipo de literatura deveria ser permitido”, já que representava “perigo mortal” para pessoas suscetíveis a “distúrbios mentais”. É provável que Chambers tivesse conhecimento do conto e da polêmica: a crítica psiquiátrica ao trabalho de Gilman de certa forma ecoa em “O reparador de reputações”, texto que abre este volume.
Esta coletânea se divide em duas partes, com quatro contos cada, separadas por duas histórias que podem ser consideradas de transição. A primeira, composta pelos contos “O reparador de reputações”, “A máscara”, “O Pátio do Dragão” e “O Emblema Amarelo”, se passa em um mundo onde existe uma peça de teatro, O Rei de Amarelo, que provoca estranhos efeitos, físicos e psicológicos, em quem a lê. Essas histórias talvez se passem no fim do século XIX, ou em um futuro distópico imaginado pelo autor.
A segunda parte é formada pelo que alguns comentaristas chamam de “Quarteto das Ruas”: “A rua dos Quatro Ventos”, “A rua da primeira bomba”, “A rua de Nossa Senhora dos Campos” e “Rue Barrée”. São contos românticos da vida boêmia na Paris do século XIX. As histórias de transição, “A Demoiselle d’Ys” e “O paraíso do profeta”, marcam a passagem do registro fantástico, entre o delirante e o alegórico, da primeira parte para a pegada mais realista da segunda.
Algumas versões de O Rei de Amarelo, publicadas após a morte do autor, omitem a segunda parte do livro, substituindo o “Quarteto das Ruas” por contos de terror e fantasia escritos por Chambers para outras de suas coletâneas. Isso me parece um equívoco, pois há uma articulação e uma unidade temática entre as partes, como se uma fosse a versão alternativa, distorcida, da outra.
O autor
Antes de se tornar escritor, Chambers havia sido pintor e ilustrador, colaborando com importantes revistas americanas. De 1886 a 1893, estudara arte em Paris. Há algo de autobiográfico, pode-se imaginar, nas descrições da vida boêmia dos jovens artistas do Quartier Latin que compõem o pano de fundo de boa parte desta coletânea.
O Rei de Amarelo foi um sucesso no lançamento, e hoje é a única obra de Chambers ainda lembrada por leitores e crítica. Entre os estudiosos da literatura fantástica, há quem o considere o volume mais importante publicado por um autor americano entre o tempo de Edgar Allan Poe (1809-1849) e o surgimento dos primeiros modernos, como os de H. P. Lovecraft (1890-1937).
No entanto, embora O Rei tenha sido bem-recebido na estreia, não foi como autor de histórias de fantasia e terror que Chambers conquistou fama e fortuna ainda em vida: o maior sucesso veio de uma série de romances água com açúcar, obras comerciais, escritas para satisfazer o gosto de moças românticas. O crítico S. T. Joshi diz que o melhor termo de comparação, na literatura contemporânea, são os romances publicados em profusão pela editora Harlequin para o público feminino. Joshi destaca outra coletânea de contos de Chambers como digna de nota, The Mystery of Choice, de 1897, que também inclui contos fantásticos e pouco mais.
Sua obra romântica, composta de dezenas de volumes, foi um fracasso de crítica — as personagens femininas eram “o que os homens gostariam que as mulheres fossem, não mulheres de verdade”, de acordo com um comentarista — e, a despeito do sucesso de público (dois desses livros chegaram a ser best-sellers, com mais de duzentos mil exemplares vendidos), desapareceu na obscuridade. Com o dinheiro dos livros ele se instalou em uma mansão confortável em Nova York. Gostava de caçar, pescar, colecionava borboletas, arte oriental e livros raros. Morreu em 1933, já quase esquecido como autor.
Muitos críticos lamentam que Chambers tenha sido, de certa forma, um escritor superior à própria obra: um homem que, com algum esforço, poderia ter criado um legado literário muito superior ao que realmente produziu. É como se o sucesso comercial de seus romances baratos tivesse sufocado o gênio que se vislumbra em O Rei de Amarelo.
Influências
O Rei de Amarelo deixou marcas nas gerações de escritores de terror e de ficção científica que surgiram após sua publicação. Hoje em dia, a obra de Chambers é mais comumente citada em relação à Mitologia de Cthulhu, o conjunto de deuses “antigos” e lendas “ancestrais” forjado por H. P. Lovecraft e compartilhado por seus amigos nos anos 20 e 30, e que ainda hoje é utilizado por diversos autores.
A influência de Chambers sobre a Mitologia de Cthulhu, no entanto, costuma ser gravemente superestimada: a correspondência de Lovecraft indica que ele só teve contato com O Rei de Amarelo em 1927, quando seu estilo e seus temas já estavam bem definidos. Mesmo o Necronomicon, livro fictício que leva seus leitores à loucura, tinha sido criado por Lovecraft antes de ele conhecer O Rei de Amarelo, obra fictícia de efeito semelhante.
A incorporação de Chambers à Mitologia de Cthulhu tem duas causas: a primeira, o fato de Lovecraft citar vários nomes pinçados do livro de Chambers em um — mas apenas um — de seus contos, “Um sussurro nas trevas”, de 1930; e a segunda é August Derleth (1909-1971). Após a morte de Lovecraft, Derleth tomou para si a tarefa de sistematizar a mitologia artificial deixada pelo amigo, convertendo as menções vagas e lendas fragmentárias em uma “teologia alienígena” consistente.
A sabedoria e a qualidade da iniciativa de Derleth são discutíveis, mas com isso, nomes tirados da obra de Chambers, como Hastur, o lago de Hali, Carcosa e o próprio Rei de Amarelo, acabaram atraídos para a órbita do mito coletivo lovecraftiano. O conto em que Derleth apresenta sua visão organizada e enciclopédica do Mito de Cthulhu chama-se, exatamente, “O retorno de Hastur”, publicado pela primeira vez em 1939.
O impulso sistematizador de Derleth contagiou outros autores, e logo surgiram tentativas de organizar a “mitologia amarela”, ou “Mitologia de Carcosa”, em linhas semelhantes às da Mitologia de Cthulhu. O esforço mais conhecido foi o dos autores do role-playing game “The Call of Cthulhu”, principalmente a partir do cenário seminal “Tell Me, Have You Seen the Yellow Sign?”, publicado em 1989.
Chambers, no entanto, deixou ainda menos pistas sobre o mito subjacente à sua obra que Lovecraft. Talvez Carcosa seja uma cidade em outro planeta, em outra dimensão ou, mesmo, uma estação espacial — algo sugerido pela afirmação de que suas torres aparecem “atrás” da Lua. Talvez Hastur seja uma pessoa, ou uma cidade; Hali, um profeta, o nome de um lago, ou um profeta que deu nome a um lago. Foram feitas algumas tentativas de escrever a peça O Rei de Amarelo na íntegra, embora nenhum texto real jamais possa cumprir a promessa de horror e loucura evocada por Chambers.
Em 1975, o “Culto do Emblema Amarelo”, uma sociedade secreta que serve a Hastur, “que reside em um local misterioso chamado Hali, que já foi um lago mas agora é um deserto”, perto de “uma cidade chamada Carcosa”, foi introduzido como uma das sociedades secretas que lutam pela dominação mundial no romance “cult”, satírico, paranoico e pós-moderno “Illuminatus! Trilogy”, de Robert Anton Wilson e Robert Shea.
Em tempos mais recentes, Hastur foi citado como um anjo caído e Duque do Inferno no livro Belas maldições, de Terry Pratchett e Neil Gaiman. Gaiman também já mencionou Carcosa em alguns de seus trabalhos solo, como o conto “Um estudo em esmeralda”, que mistura Sherlock Holmes ao Mito de Cthulhu. No romance A maldição do cigano, de Stephen King, há um bar chamado Hastur, que é destruído em um incêndio, e em seu lugar é construída uma loja de produtos alternativos chamada O Rei de Amarelo. E no recente sucesso da tevê, a série True Detective, um certo “Rei Amarelo” é figura-chave.
Fora do contexto da Mitologia de Cthulhu e das especulações em torno do que seria uma “mitologia amarela” plenamente desenvolvida, nomes como Hastur e Carcosa também foram usados pela escritora Marion Zimmer Bradley (1930-1999) em sua série de ficção científica Darkover. E Raymond Chandler (1888-1956), um dos grandes mestres do romance policial, escreveu um conto intitulado “O rei de amarelo”, sobre o assassinato de um astro decadente do jazz, vítima que lembra os protagonistas depravados de Huysmans.
Nota
1 Carlos Orsi é jornalista e escritor, publicado no Brasil, em Portugal, nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Argentina. Seu conto “The Machine in Yellow”, sobre uma montagem da peça O Rei de Amarelo durante a ditadura brasileira de 1964-1985, foi publicado na antologia americana Rehearsals for Oblivion, em 2006. É autor do romance Guerra justa e do livro de contos Campo total.