Há escolas que são gaiolas. Há escolas que são asas.
Escolas que são gaiolas existem para que
os pássaros desaprendam a arte do voo.
Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados.
Existem para dar aos pássaros coragem para voar.
Rubem Alves
Uma educação inovadora apoia-se em um conjunto de propostas com alguns grandes eixos que lhe servem de guia e de base. As tecnologias favorecem mudanças, mas os eixos são como diretrizes fundamentais para construir solidamente os alicerces dessas mudanças. As bases ou eixos principais de uma educação inovadora são:
• o conhecimento integrador e inovador;
• o desenvolvimento de autoestima/autoconhecimento;
• a formação do aluno-empreendedor;
• a construção do aluno-cidadão;
• o processo flexível e personalizado.
São pilares que, com o apoio das tecnologias, poderão tornar o processo de ensino-aprendizagem muito mais flexível, integrado, empreendedor e inovador. Vejamos como entender esses eixos fundamentais.
Sempre há o que aprender, ouvindo, vivendo e, sobretudo, trabalhando;
mas só aprende quem se dispõe a rever as suas certezas.
Darcy Ribeiro
Caminhamos para a sociedade do conhecimento e este é tão complexo, frágil, instável! Nunca tivemos tanta informação disponível e, ao mesmo tempo, nunca foi tão difícil conhecer. O que selecionar? O que vale a pena entre tantas opções? O que é importante e o que é descartável? O que é um modismo passageiro e o que nos faz avançar? O que estudamos hoje será útil amanhã? O que estou aprendendo profissionalmente poderei aplicar tal como me ensinam? Num mundo que evolui tão rapidamente, o que posso aproveitar do passado?
A educação é um processo em que reunimos o maior número de certezas para lidar com as incertezas. Tentamos falar sobre algo – o conhecimento – que compreendemos parcialmente e só podemos fazê-lo de forma precária, humilde e compartilhada. O conhecimento é nosso foco, nossa matéria-prima e, ao mesmo tempo, nosso problema. Somos especialistas na precariedade de conhecer. Somos especialistas em algo que não dominamos plenamente. Nossa matéria-prima, nossa finalidade nos escapa e, ao mesmo tempo, somos os especialistas responsáveis por fazer sua integração, sua compreensão parcial, seu desvendamento provisório, aos poucos.
A educação deve mostrar que não há conhecimento que não esteja, em algum grau, ameaçado. O conhecimento é causa de erros e ilusões. Devemos destacar, em qualquer sistema educacional, as grandes interrogações sobre nossas possibilidades de conhecer. O conhecimento permanece como uma aventura para a qual a educação deve fornecer o apoio indispensável. (Morin 2002, p. 19)
Conhecemos tudo, menos o principal: de onde viemos; o sentido profundo do que fazemos e para onde nos encaminhamos. A informação é o primeiro passo para conhecer. Conhecer é relacionar, integrar, contextualizar, incorporar o que vem de fora. Conhecer é saber, desvendar, é ir além da superfície, do previsível, da exterioridade. Conhecer é aprofundar os níveis de descoberta, é penetrar mais fundo nas coisas, na realidade, no nosso interior. Conhecer é tentar chegar ao nível da sabedoria, da integração total, da percepção da grande síntese, que se consegue ao comunicar-se com uma nova visão do mundo, das pessoas e com o mergulho profundo no nosso eu. O conhecimento se dá no processo rico de interação externo e interno.
O ser humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagônicos: sapiens e demens (sábio e louco); faber e ludens (trabalhador e lúdico); empiricus e imaginarius (empírico e imaginário), economicus e consumans (econômico e consumista); prosaicus e poeticus (prosaico e poético). (Ibid., p. 58)
O ser humano é, a um só tempo, físico, biológico, psíquico, cultural, social, histórico. Essa unidade complexa da natureza humana é totalmente desintegrada na educação por meio das disciplinas. Tornou-se impossível aprender o que significa ser humano. É preciso que cada um, onde quer que se encontre, tome conhecimento e consciência de sua identidade complexa e de sua identidade comum a todos os outros humanos.
A condição humana deveria ser o objeto essencial de todo o ensino. Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele. Todo conhecimento deve contextualizar seu objeto, para ser pertinente. “Quem somos?” é inseparável de “onde estamos?”, “de onde viemos?” e “para onde vamos?”.
Conhecer é aprender novos caminhos, para poder agir de maneira diferente no caminho de viver mais livremente. O pensar é o primeiro passo para poder mudar, agir. Podemos pensar e não agir; mas, se não pensamos diferentemente, com certeza não agiremos diferentemente. Na descoberta dos caminhos para viver, passamos por etapas de deslumbramento, de desânimo, de escuridão, de realização, de paz, de inquietação. Em cada etapa, o horizonte se modifica: ora vemos o arco-íris na nossa frente, ora montanhas intransponíveis.
Caminhar na vida nos ensina também a relativizar quase tudo: teorias, promessas, perspectivas, crenças. Vamos mudando: o que nos servia numa etapa já não nos ajuda; ideias que pareciam superadas, de repente, voltam a fazer sentido. Esta é uma das grandes lições da vida: sabemos que sabemos pouco. É mais o que nos escapa do que o que conhecemos. O tempo nos ensina a humildade. No começo, pensamos ter explicações para tudo, saber as razões dos nossos pensamentos e ações. Aos poucos, constatamos a complexidade das variáveis que se escondem atrás de cada pessoa, de cada interação, de cada decisão. Descobrimos que há um universo invisível e atuante junto com o visível, mas até onde se estende o invisível é um mistério. Quem sabe explicar o universo? Quem sabe dar conta da complexa interação de energias que circulam dentro e em torno de nós? Quem tem certeza das explicações fundamentais para a nossa vida? O essencial nos escapa. Conhecemos muito da superfície das coisas e pouco da profundidade, do que realmente fundamenta tudo.
Estamos numa etapa de ampliação do conhecimento do universo em todas as dimensões, científica, psicológica e também no que chamamos “espiritual”. A humanidade vem tentando entender e organizar o sagrado. As religiões procuram dar visibilidade a uma série de buscas pessoais e coletivas da humanidade, mas o sagrado ultrapassa essas formalizações. Há muito mais e, ao mesmo tempo, não conseguimos ainda explicitá-lo claramente.
As pessoas constroem e têm um grau de conhecimento maior ou menor. O conhecimento é propriedade intelectual que se compartilha livremente ou não. Há um compartilhamento aberto na escola, nas bibliotecas físicas, virtuais e nas páginas web. Ao mesmo tempo, há um compartilhamento que é um bem econômico, que é pago: a escola lucra com a venda de conhecimento e repassa uma parte dos ganhos para o professor, como em qualquer atividade econômica. O conhecimento, fora da escola, é compartilhado livremente nos grupos de discussão, nos blogs, nas páginas web e, simultaneamente, é comercializado como um bem. Consultores e professores alugam seu tempo, cobrando pelo seu trabalho. Capital intelectual é isto: conhecimento pessoal que se comercializa. Estamos, sim, na era do conhecimento, que se move segundo as leis do capitalismo financeiro.
Com todas essas ressalvas e dificuldades sobre a complexidade do conhecimento, dos professores espera-se que sejam especialistas nele. Só que o conhecimento se constrói no processo, não se transmite simplesmente. Como diz Paulo Freire (2003, p. 22): “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou sua construção”. E ensinar é um caminho também para aprender. “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (ibid., p. 23).
O conhecimento não se impõe, constrói-se. O grande desafio da educação é ajudar a desenvolver durante anos, no aluno, a curiosidade, a motivação, o gosto por aprender. O gosto vem do desejo de conhecer e da facilidade em fazê-lo. A facilidade depende do domínio técnico da leitura, da escrita, da capacidade de análise, comparação, síntese, organização de ideias e sua aplicação. Não há gosto sem a facilidade que vem com a prática e o domínio. Não há motivação se esse gosto não foi desenvolvido constantemente, se não foi criado num clima de estímulo, de liberdade, de orientação positiva. Numa escola autoritária, pode haver domínio técnico, mas é muito difícil despertar a curiosidade, o gosto por aprender. O conhecimento constrói-se num clima de estímulo, de colaboração, até de uma sadia competição. O professor não pode “conhecer” pelo aluno; pode informá-lo, ajudá-lo, aprender com ele, mas quem desenvolve níveis mais superficiais ou profundos de conhecimento é cada pessoa. O aluno aprende, o professor também, juntos.
Há conhecimento de curto e de longo prazo. O de curto prazo pode ser avaliado imediatamente pelos instrumentos convencionais; o de longo prazo, só olhando as atitudes, os valores e o comportamento de cada um. Uns aprendem a melhorar com o passar dos anos; outros parece que vão esquecendo o que aprenderam. Uns vivenciam o que aprendem, e a experiência os leva a novos degraus de conhecimento; outros só aprendem intelectualmente e, com o tempo, esquecem ou até regridem.
Os que somos mais adultos aprendemos prioritariamente com livros e textos escritos. Também aprendemos com filmes, histórias contadas ou lidas. Com a multimídia, as redes de comunicação e a comunicação em tempo real, desenha-se uma situação muito mais variada para crianças e jovens. Apesar de os textos continuarem sendo essenciais, estamos em dúvida de como integrá-los numa criança que gosta de aprender em rede, que gosta mais da troca de mensagens on-line do que do silêncio da leitura; que tem à disposição milhares de vídeos, blogs, filmes, histórias, com simples toques no mouse.
Quanto mais informação, mais difícil é conhecer. A facilidade cria a acomodação, a confusão, a dificuldade de escolher, a permanência das convicções. Há um certo relativismo diante de tantos posicionamentos diferentes e das contínuas atualizações sobre qualquer assunto.
O conhecimento precisa também de reflexão, de capacidade de concentração, o que é difícil diante de tantos estímulos sensoriais. Com a maior oferta de informação, mais fácil é a confusão, a contradição, a cópia, a multiplicação do já conhecido. Hoje há certa preguiça intelectual, maior facilidade de copiar e colar, de repetir o previsível.
O depoimento do professor Cláudio de Moura e Castro sobre seu professor inesquecível confirma a necessidade de focar mais, de aprofundar mais o conhecimento:
Logo que cheguei à faculdade para fazer o doutorado, o professor Nicolas Georgescu-Roegen me viu na biblioteca com um monte de livros. Ele passou por mim, olhou os livros um por um e disse (fala caprichando no sotaque): ‘Mr. Castro, o senhor lê demais e entende de menos. O senhor precisa ler menos e entender mais’. E essa foi uma das grandes lições: foco, concentração, entender profundamente algumas poucas idéias e não fingir que entende um número colossal delas. E, para mim, fruto do ensino brasileiro, que é o ensino de fingir que entende tudo, esta foi a grande lição: aprender pouco, mas bem.[14]
Não basta dar aula expositiva para conhecer. O conhecimento se dá cada vez mais pela relação prática e teoria, pesquisa e análise, pelo equilíbrio entre o individual e o grupal. O conhecimento acontece quando faz sentido, quando é experimentado, quando pode ser aplicado de alguma forma ou em algum momento. O conhecimento, numa sociedade conectada e multimídia, edifica-se melhor no equilíbrio entre atividades individuais e grupais, com muita interação e práticas significativas, refletidas e aplicadas. O conhecimento constrói-se de constantes desafios, de atividades significativas, que excitem a curiosidade, a imaginação e a criatividade.
A docência é um campo no qual, ao menos teoricamente, temos avançado bastante. Aos poucos, vamos deslocando o foco para o aprender e para o aluno. Temos hoje bastantes projetos e experiências sobre aprendizagem inovadora, ativa e participativa. Com as tecnologias, podemos flexibilizar o currículo e multiplicar os espaços, os tempos de aprendizagem e as formas de fazê-lo.
Os principais obstáculos para a aprendizagem inovadora são: o currículo engessado, conteudista; a formação deficiente de professores e alunos; a cultura da aula tradicional, que leva os professores a privilegiarem o ensino, a informação e o monopólio da fala. Também são obstáculos: o excessivo número de alunos, de turmas e de matérias que muitos professores assumem e a obsessão pela preparação para o vestibular das melhores universidades, o que concentra a atenção no conteúdo provável desse exame e não na formação integral do adolescente.
O conhecimento acontece mais facilmente quando se combinam dois processos complementares: o divergente (não estruturado) e o convergente (organizado).[15]
O conhecimento não estruturado explora todas as possibilidades, as tensões, a pesquisa, a busca do novo. Acontece num ambiente de não julgamento imediato, no qual se deixa fluir, observar, interagir. Os fatores principais do conhecimento divergente são:
• flexibilidade: relacionar ideias de categorias diferentes;
• fluência: desenvolver ideias em quantidade;
• originalidade: pensar ideias diferentes.
O conhecimento organizado acontece numa segunda etapa. Depois da explosão criativa, em que há ideias em quantidade e algumas delas contraditórias, é necessário sistematizá-las, organizá-las, dar-lhes uma estrutura, mas escolher as principais. No conhecimento convergente, há uma combinação:
• de previsibilidade e de imprevisibilidade;
• de segurança (programa) e incerteza (risco, novas buscas);
• de criatividade e organização;
• do individual e do social.
O conhecimento acontece na alternância equilibrada entre o pensamento divergente e o convergente. Entre buscar, pesquisar sem medos e críticas, e, depois, organizar, estruturar, julgar, escolher, filtrar. Na interação entre o divergente e o convergente, encontraremos os melhores caminhos para a aprendizagem.
O pensamento divergente é baseado na tensão, na busca, na incerteza, na oposição. No pensamento divergente, há luta de opostos, ruptura, choque, dialética, contradição.
No pensamento convergente, procuramos a integração, a estruturação, a organização, o balanceamento, o equilíbrio, a superação do passado, aproveitando os pontos positivos.
Do ponto de vista metodológico, o professor precisa aprender a equilibrar processos de organização e de “provocação” na sala de aula. Uma das dimensões fundamentais do educar é ajudar a encontrar uma lógica dentro do caos de informações que temos, organizar numa síntese coerente (mesmo que momentânea) das informações dentro de uma área de conhecimento. Compreender é organizar, sistematizar, comparar, avaliar, contextualizar. Uma segunda dimensão pedagógica procura questionar essa compreensão, criar uma tensão para superá-la, modificá-la, avançar para novas sínteses, novos momentos e novas formas de compreensão. Para isso, o professor precisa questionar, tensionar, provocar o nível de compreensão existente.
Predomina a organização no planejamento didático quando o professor trabalha com esquemas, aulas expositivas, apostilas, avaliação tradicional. O professor que dá tudo mastigado para o aluno, por um lado, facilita a compreensão; mas, por outro, transfere para o aluno, como um pacote pronto, o nível de conhecimento de mundo que ele, professor, tem.
Predomina a “desorganização” no planejamento didático quando o professor trabalha com pesquisa, experiências, projetos, com novos olhares de terceiros: artistas, escritores.
Em qualquer área de conhecimento, podemos transitar entre a organização da aprendizagem e a busca de novos desafios, sínteses. Há atividades que facilitam a organização e outras, a superação. Um relato de experiências diferentes das do grupo ou uma entrevista polêmica podem desencadear novas questões, expectativas, desejos. Mas também há relatos de experiências ou entrevistas que servem para confirmar nossas ideias, nossas sínteses, para reforçar o que já conhecemos. Por exemplo, na utilização do vídeo, CD ou DVD na escola, vejo dois momentos ou focos que podem se alternar e combinar equilibradamente:
• Quando o vídeo provoca, sacode, causa inquietação e serve como abertura para um tema, é como um estímulo em nossa inércia. Age como tensionador, na busca de novos posicionamentos, olhares, sentimentos, ideias e valores. O contato de professores e alunos com bons filmes, poesias, contos, romances, histórias e pinturas alimenta o questionamento de pontos de vista formados, abre novas perspectivas de interpretar, olhar, perceber, sentir e avaliar com mais profundidade.
• Quando o vídeo serve para confirmar uma teoria, uma síntese, um olhar específico com o qual já estamos trabalhando, é ele que ilustra, amplia, exemplifica.
O vídeo e outras tecnologias tanto podem ser utilizados para organizar como para desorganizar o conhecimento. Depende de como e quando os utilizamos.
Há professores que privilegiam a desorganização, o questionamento, a superação de modelos e não chegam a sínteses, nem que sejam parciais, provisórias. Vivem no incessante fervilhar de provocações, questionamentos, novos olhares. Nem o sistematizador nem o questionador podem prevalecer no conjunto. É importante equilibrar organização e inovação; sistematização e superação. Educar é um processo dialético, quando bem realizado, mas que, em muitas situações concretas, vê-se diluído pelo peso da organização, da massificação, da burocratização, da “rotinização”, que freiam o impulso questionador, superador, inovador.
A dialética entre tensão e organização se aplica também à aprendizagem organizacional. As instituições avançam entre a inquietação e a estruturação. Quando prevalecem a busca, a pesquisa, a procura por novas saídas, as instituições avançam, são criativas. Ao mesmo tempo, precisam equilibrar-se, organizar-se, estruturar-se. Quando prevalece a rotina, a burocracia, só acontece a repetição, a previsibilidade e as instituições ficam no mesmo lugar. Na tensão, encontram novas soluções. Do equilíbrio entre tensão e organização, acontece a aprendizagem institucional. Hoje estamos num processo de questionar mais, de pesquisar mais, de desestruturar mais, para encontrar um outro patamar de organização e de equilibração.
A educação sempre privilegiou o conhecimento racional, baseado na organização de ideias, no conteúdo programático, na compreensão objetiva da realidade. A educação inovadora precisa integrar melhor o conhecimento sensorial, o emocional, o intelectual e o ético.
Os caminhos para o conhecimento pelo sensorial se cruzam com os da intuição. O caminho intuitivo é o da descoberta, das conexões inesperadas, das junções, das superposições, da navegação não linear, da capacidade de maravilhar-se, do aprofundamento do conhecimento psíquico, de formas de comunicação menos conscientes.
A intuição é o resultado de uma síntese de todos os processos, mesmo os racionais, que consegue ultrapassar os limites do previsível, do já aceito de antemão, e captar novas dimensões, muitas vezes, só percebidas parcialmente, que podem reorientar a nossa vida, começar um novo caminho de pesquisa teórica ou de mudanças imprevistas. A intuição é fundamental para o conhecimento integrado, o conhecimento por conexões rápidas, por processos de generalização baseados em poucas situações prévias.
A intuição não é cega nem irracional. Consegue-se com a abertura do nosso ser, da nossa mente para perceber, sentir, ver de uma forma mais aberta, mais livre, menos preconceituosa. A intuição é um processo de conhecimento que, assim como o racional, aperfeiçoa-se com a prática, com o apoio às condições positivas de abertura, prestando atenção a todos os sentidos exteriores e interiores do indivíduo.
A intuição não se opõe à razão, mas também não segue exatamente os mesmos caminhos. Está ligada à capacidade de relacionar mais livremente os dados, de associar temas de forma inesperada, de aprender pela descoberta. Para avançar no conhecimento racional, precisamos concentrar-nos no tema que estamos estudando. Para o desenvolvimento do conhecimento intuitivo, é importante relaxar internamente, dialogar consigo mesmo, entrar em ambientes tranquilos. O relaxamento é uma das condições do conhecimento em profundidade. Relaxar não é só uma atitude física corporal, mas uma atitude permanente e profunda de encarar a vida com tranquilidade, com paz. O relaxamento facilita a aprendizagem, desenvolve a intuição, a capacidade de relacionar, de ter novos insights.
O educador revela, na hora que entra em contato com o aluno, mesmo que não fale, pela postura, pelo olhar, pela inflexão de voz, em que estágio de desenvolvimento e aprendizagem se encontra. Revelamos o que aprendemos realmente. Temos um currículo oficial, no qual colocamos nossos cursos, tudo que fizemos. Isso é uma parte da nossa história, que revelamos quando buscamos um emprego. Mas há um outro currículo, que se chama de aprendizagem de vida, que mostra, quando falamos, pela forma como nos expressamos, pelas ideias que comunicamos, o que realmente aprendemos. Às vezes, duas pessoas que fizeram os mesmos cursos, depois de alguns anos, já adultas, chegam a resultados completamente diferentes. Há pessoas que vão aprendendo sempre mais, ao passo que outras parece que desaprendem, que se complicam, se fecham, se tornam mais agressivas ou depressivas.
A sociedade conectada está ampliando a aprendizagem em grupo; a aprendizagem entre pares, as “tribos” virtuais. Cada um aprende com grupos que reconhece como significativos e importantes. Aprendemos pela interação com colegas presenciais e virtuais. As redes de comunicação em tempo real – msn, chats, blogs, celular – expressam a riqueza de situações comunicacionais, de interação no cotidiano e na escola.
A aprendizagem pela interação grupal é mais significativa se combinada com a pessoal, com tempos individuais de reflexão, de síntese, de aprofundamento e de consolidação do que é percebido, sentido e compreendido. Com todo esse fervilhar de redes, é difícil encontrar o equilíbrio entre o individual e o grupal.
Aprendemos mais combinando de forma equilibrada a interação e a interiorização. As pessoas estão tão solicitadas pela ação externa que se esquecem de si mesmas, estão todo o tempo navegando, viajando, todo o tempo falando com as pessoas, indo de um lugar para outro, estão sempre ocupadas. Então, aprendemos hoje muito pela interação, mas esquecemos que o conhecimento só se faz forte, só se consolida, quando o reorganizamos de nossa própria perspectiva, de nosso universo, de nosso repertório, de nosso contexto e, para isso, precisamos ter o nosso tempo, o nosso dia, ter também a capacidade de olhar para nós mesmos, de encontrar tempo para meditar no sentido mais amplo, não somente religioso, e isso muitos adultos e também crianças não têm. Esse, para mim, é um dos grandes problemas. Temos muita informação e pouco conhecimento. As pessoas procuram informações, navegam nos sites, blogs, portais. O conhecimento não se dá pela quantidade de acesso, mas pelo olhar integrador, pela forma de rever com profundidade as mesmas coisas. Para conhecer o mundo, não é preciso viajar muito. Basta enxergá-lo de onde estamos, com um olhar um pouco mais abrangente. Não é só “correr mundo”; isso é bom, mas conhecimento também se dá pela interiorização e pela observação integradora.
Caminhemos na direção da complexificação sensorial, ampliando as nossas formas de ver-ouvir, desde o ver-ouvir mais externo até o mais interno, do ver descritivo até o ver metafórico (substituindo imagens por outras semelhantes). De um ver mais figurativo, realista, imediatista, para um ver mais complexo, mais polissêmico, isto é, com mais significados, mais inesgotável – quanto mais vemos, mais significados descobrimos. Um ver-ouvir menos preconceituoso ou consumista; mais atento, mais aberto, polivalente e profundo. Não permaneçamos na superfície externa, espacial, do ver (só para situarmo-nos). Apreendamos também dimensões menos externas do ver-ouvir: o ver-ouvir interior, menos representacional e mais metafórico. Ver-ouvir os nossos modelos mentais lineares, estereotipados, que generalizam com facilidade, sem dados suficientes, que se apoiam em preconceitos. Ver-ouvir-compreender para poder mudar.
O educador, além de conhecer a área específica da qual é especialista, procura ajudar o aluno a compreendê-la e a situar esse pedaço, essa área, no processo e no contexto maiores, que são os do compreender o todo. Além de conhecer, ele precisa aprender a ensinar, isto é, a organizar ações que facilitem a aprendizagem do aluno, a ampliação do conhecimento deste, tanto na área específica como no todo.
A pedagogia da incerteza é feita com um mínimo de certezas. Quando damos tudo pronto, como algo certo, contribuímos para falsear a relação dos alunos com o conhecimento. Quando escrevemos tudo com clareza e objetividade, mascaramos o processo, que é penoso, ambíguo e incerto. Por isso, na pedagogia, não podemos facilitar só o que é certo, mas criar situações de desafio, de validação de várias opções. Quando focamos mais a certeza do que a incerteza, não preparamos os alunos para a vida. Uma parte do que falamos e trabalhamos na relação pedagógica está consolidada. Sobre certos temas, possuímos, dentro de determinados contextos, um sólido conhecimento. Mas não podemos nos esquecer do contexto maior em que esses temas se situam, e o contexto ou cenário maiores não são exatos nem previsíveis. Precisamos trabalhar, na pedagogia, entre a certeza e a incerteza, entre a organização e a desorganização, focando uma ou outra, mas não permanecendo unicamente na lógica da certeza nem no caos e na desordem.
Se forçamos a incerteza e construímos o conhecimento em processo, não podemos manter o ensino focado em conhecimentos prontos, estáveis, acabados. Não podemos exigir provas de resposta certa, na maior parte das situações de avaliação, principalmente na área de humanas.
A transmissão de informação é a tarefa mais fácil e em que as tecnologias podem ajudar o professor a facilitar o seu trabalho. Um simples CD-ROM contém toda a Enciclopédia Britânica, que também pode ser acessada pela internet. O aluno nem precisa ir à escola para buscar as informações. Mas, para interpretá-las, relacioná-las, hierarquizá-las, contextualizá-las, só as tecnologias não serão suficientes. O professor ajudará a questionar, a procurar novos ângulos, a relativizar dados, a tirar conclusões.
As tecnologias também podem ajudar a desenvolver habilidades espaçotemporais, sinestésicas, criadoras. Mas o professor é fundamental para adequar cada habilidade a um determinado momento histórico e a cada situação de aprendizagem.
Elas são pontes que abrem a sala de aula para o mundo, que representam e medeiam o nosso conhecimento do mundo. São diferentes formas de representação da realidade, mais abstratas ou concretas, mais estáticas ou dinâmicas, mais lineares ou paralelas, mas todas elas, combinadas, integradas, possibilitam uma melhor apreensão da realidade e o desenvolvimento de todas as potencialidades do educando, dos diferentes tipos de inteligência, habilidades e atitudes.
Permitem, ademais, expor várias formas de captar e mostrar o mesmo objeto, representando-o de ângulos e meios diferentes: por movimentos, cenários, sons, integrando o racional e o afetivo, o dedutivo e o indutivo, o espaço e o tempo, o concreto e o abstrato.
As tecnologias podem, ainda, nos ajudar nessa construção, facilitando a pesquisa, a interação e, principalmente, a personalização do processo. Pela pesquisa, aceleramos o acesso ao que de melhor acontece perto e longe de nós. Pela interação, aprendemos com a experiência dos outros. Com a personalização, adaptamos o processo de aprendizagem ao ritmo possível de cada pessoa, às condições reais de cada uma, às motivações concretas.
Além disso, as tecnologias são cada vez mais multimídia, multissensoriais. As gerações atuais precisam, mais do que antes, do toque, da muleta audiovisual, do andaime sensorial. É um ponto de partida, uma condição de identificação, de sintonização para evoluir, aprofundar. O problema é que muitos, durante a vida toda, não ultrapassam a necessidade do apoio sensorial e permanecem nas dimensões mais aparentes da informação e do conhecimento. Permanecem na periferia das possibilidades do conhecimento. Permanecem num conhecimento “amarrado”, que não voa, porque sempre precisa dos andaimes das sensações, das imagens, da mediação sensorial. Este é um dos problemas do homem atual: cada vez se depende mais das mediações sensoriais. Sem elas, não se consegue voar; com elas, agita-se muito, mas pode-se não evoluir tanto quanto as aparências prometem.[16]
Por que se diz que a escola está atrasada? Por várias razões. Ela está atrasada em relação aos avanços da ciência, pois ensina o que já está aceito, cristalizado. Está atrasada na adoção de tecnologias, porque estas são vistas com desconfiança e também são muito caras, principalmente nos primeiros tempos. Há, ainda, medo de que venham a ocupar o lugar do professor. Uns as adotam de forma acrítica, pensando que vão resolver mil problemas. Servem mais como marketing do que como meio de avançar no ensino-aprendizagem. A maioria vai adiando o máximo que pode o domínio das tecnologias ou costuma utilizá-las de forma superficial. A escola se insere, também, numa perspectiva de futuro, mas tem dificuldades em enfrentá-lo, porque é difícil prever as mudanças que os alunos terão de enfrentar em todas as dimensões da vida nos próximos anos.
Temos dado muita ênfase à mudança de currículos, a conteúdos programáticos e pouca a essa dimensão mais integrada de conhecimento. Ajudar a conhecer e a comunicar-se implica ampliar o nosso conhecimento do conteúdo e nossas formas de interagir com ele.
Predomina ainda a ênfase no conteúdo racional passado pelo professor. Aprenderemos mais integrando os conteúdos e as habilidades; a lógica e o afeto; o sensorial, o emocional e o racional; o passado e o presente. E, também, dando um peso significativo à comunicação: como dizer o que entendemos, como comunicar aos outros a nossa percepção e visão do mundo.
É importante compatibilizar os objetivos sociais, grupais e os pessoais. Há momentos em que enfatizamos mais os individuais (quando pedimos sugestões aos alunos ou que relacionem uma determinada atividade com sua vida). Em outros momentos, predominam os objetivos grupais. Em outros, os sociais: o que a sociedade e as instituições esperam do grupo numa situação (por exemplo, o que a sociedade e a escola esperam de um aluno que passa nove anos no ensino fundamental). A integração do pessoal, grupal e institucional se torna importante para o avanço da educação em todos os níveis.
O que falo como professor é compreendido por cada aluno dentro do seu sistema de referências, do seu mundo. O aluno compreende uma parte do que falo e de forma diferente do que pretendo comunicar. Cada aluno procura encaixar essa fala dentro do seu universo mental e produz uma comunicação de volta, que expressa uma parte dessa compreensão.
Os processos de conhecimento dependem profundamente do social, do ambiente cultural onde vivemos, dos grupos com os quais nos relacionamos. A cultura em que mergulhamos interfere em algumas dimensões da nossa percepção. O desafio de educar é o de ir construindo pontes entre universos de significação diferentes, entre formas de compreensão contraditórias e de comunicação divergentes. Há uma distância abismal entre a criança, o pré-adolescente, o adolescente, o jovem e o adulto na forma de pensar, nos interesses, na organização do conhecimento, na utilização da linguagem, nos valores. Existem distâncias além da idade. O que é distante hoje não é a distância geográfica, mas a intelectual, emocional, ideológica (o que não se identifica com o indivíduo) e a linguística (o que não se entende ou que é difícil expressar).
As escolas se preocupam principalmente com o conhecimento intelectual e hoje constatamos que tão importante como as ideias é o equilíbrio emocional, o desenvolvimento de atitudes positivas diante de si mesmo e dos outros, o aprender a colaborar, a viver em sociedade, em grupo, a gostar de si e dos demais.
“Os alunos só terão sucesso na escola, no trabalho e na vida social se tiverem autoconfiança e autoestima. A escola de hoje não trabalha isso”, afirma Wong, ao sugerir que as instituições de ensino criem cursos de psicologia comportamental em que os alunos possam aprender mais sobre si mesmos. Segundo esse autor, a autoconfiança só se adquire pelo autoconhecimento.[17]
A educação, como as outras instituições, tem se baseado na desconfiança, no medo de sermos enganados pelos alunos, na cultura da defesa, da coerção externa. O desenvolvimento da autoestima é um grande tema transversal. É um eixo fundamental da proposta pedagógica de qualquer curso. Esse é um campo muito pouco explorado, apesar de todos concordarmos que é importante. Aprendemos mais e melhor, se o fazemos num clima de confiança, de incentivo, de apoio, de autoconhecimento; se estabelecemos relações cordiais e de acolhimento com os alunos; se nos mostramos pessoas abertas, afetivas, carinhosas, tolerantes e flexíveis, dentro de padrões e limites conhecidos. “Se as pessoas são aceitas e consideradas, tendem a desenvolver uma atitude de mais consideração em relação a si mesmas” (Rogers 1992, p. 39).
Temos baseado a educação mais no controle do que no afeto, mais no autoritarismo do que na colaboração.
Talvez o significado mais marcante de nosso trabalho e de maior alcance futuro seja simplesmente nosso modo de ser e agir como equipe. Criar um ambiente onde o poder é compartilhado, onde os indivíduos são fortalecidos, onde os grupos são vistos como dignos de confiança e competentes para enfrentar os problemas – tudo isso é inaudito na vida comum. Nossas escolas, nosso governo, nossos negócios estão permeados da visão de que nem o indivíduo nem o grupo são dignos de confiança. Deve existir poder sobre eles, poder para controlar. O sistema hierárquico é inerente a toda a nossa cultura. (Ibid., pp. 65-66)
A afetividade é um componente básico do conhecimento e está intimamente ligada ao sensorial e ao intuitivo. Ela se manifesta no acolhimento, na empatia, na inclinação, no desejo, no gosto, na paixão, na ternura, na compreensão para consigo mesmo, para com os outros e para com o objeto do conhecimento. A afetividade dinamiza as interações, as trocas, a busca, os resultados. Facilita a comunicação, toca os participantes, promove a união. O clima afetivo prende totalmente, envolve plenamente, multiplica as potencialidades. O homem contemporâneo, pela relação tão forte com os meios de comunicação e pela solidão da cidade grande, é muito sensível às formas de comunicação que enfatizam os apelos emocionais e afetivos mais do que os racionais.
O homem da racionalidade é também o da afetividade, do mito e do delírio (demens). O homem do trabalho é também o do jogo (ludens). O empírico é também o imaginário (imaginarius); o da economia é também o do consumismo (consumans); o prosaico é também da poesia, do fervor, da participação, do amor, do êxtase. O amor é poesia. Um amor nascente inunda o mundo de poesia, um amor duradouro irriga de poesia a vida cotidiana, o fim de um amor devolve-nos à prosa. (Morin 2002, p. 58)
No ser humano, o desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mágico ou poético.
A educação precisa incorporar mais as dinâmicas participativas, como as de autoconhecimento (assuntos próximos à vida dos alunos), as de cooperação (trabalhos de criação grupal) e as de comunicação (teatro ou produção de vídeo).
Na educação, podemos ajudar a desenvolver o potencial de cada aluno dentro de suas possibilidades e limitações. Para isso, precisamos praticar a pedagogia da compreensão contra a pedagogia da intolerância, da rigidez, do pensamento único, da desvalorização dos menos inteligentes, dos fracos, problemáticos ou “perdedores”. Praticar a pedagogia da inclusão.
A inclusão não se faz somente com os que ficam fora da escola. Dentro da escola, muitos alunos são excluídos pelos professores e colegas. São excluídos quando nunca falamos deles, quando não os valorizamos, quando os ignoramos continuamente. São excluídos quando supervalorizamos alguns, colocando-os como exemplos, em detrimento de outros. São excluídos quando exigimos de alunos com dificuldades de aceitação e de relacionamento resultados imediatos, metas difíceis para eles no campo emocional.
Há uma série de obstáculos no caminho: a formação intelectual valoriza mais o conteúdo oral e textual, separando razão e emoção. O professor não costuma ter uma formação emocional, afetiva. Por isso, tende a enxergar mais os erros que os acertos. A falta de valorização profissional também interfere na autoestima. Se os professores não desenvolvem sua própria autoestima, se não se dão valor, se não se sentem bem como pessoas e profissionais, não poderão educar num contexto afetivo. Ninguém dá o que não tem. Por isso, é importante organizar atividades com gestores e professores de sensibilização e técnicas de autoconhecimento e autoestima, oferecer aulas de psicologia para autoconhecimento com especialistas em orientação psicológica. Ações para que alunos e professores desenvolvam sua autoconfiança, sua autoestima, tenham respeito por si mesmos e acreditem em si, percebam, sintam e aceitem seu valor pessoal e o dos outros. Assim, será mais fácil aprender e comunicar-se com os demais. Sem essa base de autoestima, alunos e professores não estarão inteiros, plenos para interagir e se digladiarão como opostos, quando deveriam se ver como parceiros.
Para que os alunos tenham certeza do que comunicamos, é extremamente importante que haja sintonia entre a comunicação verbal, falada, e a não verbal, gestual, que passa pela inflexão sonora, pelo olhar, pelos gestos corporais de aproximação ou afastamento. As pessoas que tiveram uma educação emocional mais rígida, menos afetiva, costumam ter dificuldades também em expressar suas reais intenções, em comunicar-se com clareza. Costumam expressar-se de forma ambígua, utilizam recursos retóricos como a ironia, o duplo sentido, o que deixa confusos os ouvintes, que não conseguem decifrar o alcance total das intenções do comunicador.
O professor que gerencia bem suas emoções confere a palavras e gestos clareza, convergência, reforço, geralmente de forma tranquila, sem agredir o outro. O aluno capta claramente a mensagem. Poderá concordar ou não com ela, mas encontra pistas seguras de interpretação e formas de aceitação mais fáceis. O professor equilibrado e aberto encanta. Antes de prestar atenção ao significado das palavras, prestamos atenção aos sinais profundos que nos envia, de que é uma pessoa de bem com a vida, confiante, aberto, positivo, flexível, que se coloca na nossa posição também, que tem capacidade de entender-nos e de discordar, sem aumentar desnecessariamente as barreiras.
Participamos de inúmeras formas de comunicação em grupos e organizações, mais ou menos significativas. Em cada uma das organizações, por exemplo, as ligadas ao trabalho, à educação, ao entretenimento, desempenhamos papéis mais “profissionais” – em que mostramos competência, conhecimento em áreas específicas – e outros mais pessoais. Um médico, mesmo que esteja conversando num bar de um clube de tênis, continuará a ser visto pelos outros como um profissional da saúde e pesarão mais as suas opiniões sobre uma determinada doença do que as de um colega engenheiro sentado ao seu lado. Essa competência maior ou menor e a forma como a exercemos – com mais ou menos simpatia – facilitam ou dificultam a nossa comunicação no campo organizacional. Podemos ser vistos como pessoas competentes, mas de difícil convivência, ou muito simpáticas, mas pouco inteligentes.
Nos vários ambientes que frequentamos, comunicamo-nos como pessoas realizadas ou insatisfeitas, abertas ou fechadas, confiantes ou desconfiadas, competentes ou incompetentes, egoístas ou generosas, éticas ou aéticas. Além disso, expressamo-nos como homens ou mulheres, jovens ou adultos, ricos ou pobres. Todas essas variáveis interferem nos vários níveis de comunicação pessoal, grupal e organizacional e expressam o nível de aprendizagem que atingimos como pessoas.
A educação é fundamentalmente um processo de comunicação e de informação, de troca de informações e de troca entre pessoas. Educar é colaborar para que professores e alunos – nas escolas e organizações – transformem suas vidas em processos permanentes de aprendizagem. É ajudar os alunos na construção da sua identidade, do seu caminho pessoal e profissional, do seu projeto de vida, no desenvolvimento de habilidades de compreensão, emoção e comunicação que lhes permitam encontrar seus espaços pessoais, sociais e profissionais e tornar-se cidadãos realizados e produtivos.
Educar também é ajudar a desenvolver todas as formas de comunicação, todas as linguagens: aprender a dizer-nos, a expressar-nos claramente e a captar a comunicação do outro e a interagir com ele. É aprender a comunicar-nos verdadeiramente: a ir tornando-nos mais transparentes, expressando-nos com todo o corpo, com a mente, com todas as linguagens, verbais e não verbais, com todas as tecnologias disponíveis.
As tecnologias facilitam a interação, a troca, a colaboração, mas não resolvem os problemas de fundo: as dificuldades de entender-nos, de aceitar os outros como são, de compreender o mundo interior próprio e o dos outros. Dizia Arnold Toynbee que tecnologicamente somos como deuses, mas, do ponto de vista humano, somos apenas primatas. Nunca tivemos tanta informação disponível, tantas tecnologias, mas nunca tivemos também tanta dificuldade de comunicação.
A educação é um processo que facilita a comunicação em níveis cada vez mais profundos e ricos entre todos os participantes, fundamentalmente professores e alunos. Quanto mais variedade de informação-comunicação, mais fácil é dispersar-se, permanecer na superfície, nas aparências, no agito, nas interpretações da moda. A escola pode transformar-se em um espaço privilegiado de comunicação profunda, rica, aberta, inovadora, crítica; em um espaço de organizar, num clima de confiança, o caos informativo, de ideias, de avaliações que precisamos enfrentar diariamente.
Nos diversos grupos e organizações de que participamos – principalmente os familiares, os educacionais e os profissionais –, encontramos formas de gerenciamento diferentes, umas tendem mais para o autoritarismo, o controle pessoal ou burocrático, e outras, para a participação.
No gerenciamento autoritário, tudo se subordina ao controle. O controle pode ser pessoal – alguém centraliza as decisões principais – ou burocrático – a estrutura é hierárquica e só a cúpula decide, os escalões intermediários executam o que vem de cima e têm pequeno grau de autonomia. Há uma interação autoritária explícita, clara e outra implícita, camuflada. A maior parte das interações autoritárias é disfarçada. A implícita é mais difícil de perceber, porque vem camuflada com uma roupagem participativa, que convida para a colaboração, o que a assemelha, num primeiro momento, à interação real. Normalmente, ninguém quer se mostrar impositivo. Os maiores ditadores justificam sua truculência com uma linguagem triunfalista, cheia de promessas, de realizações, de paternalismo. Decidem por nós. Sabem o que é melhor para nós. E disfarçam a dominação com apelos afetivos ao patriotismo, à grandeza, à “mãe pátria”. Em outras instâncias, como a familiar e a educacional, o autoritarismo se mascara de expressões afetivas de interesse pelo filho, pelo aluno, pelo uso de diminutivos carinhosos, pela bajulação. É uma fala que simula interação, preocupação e escamoteia todos os mecanismos de controle.
Em um colégio importante de São Paulo, do que mais reclamavam os alunos não era das aulas, mas da diferença entre o discurso liberal e participativo dos diretores e professores e a prática disfarçadamente autoritária. Os alunos constatavam que o que eles falavam não tinha repercussão real. As reuniões eram mais formais do que efetivas, eram mais para apresentar decisões prévias do que para buscar soluções em conjunto. As interações autoritárias camufladas perpetuam o controle e dificultam a nossa evolução pessoal, grupal e institucional.
No gerenciamento participativo, de um lado, há organização: códigos, estruturas, esquemas, limites, normas claras e implícitas, hierarquia; de outro, essa organização é flexível, adapta-se às circunstâncias, confia nas pessoas, apoia inovações, desburocratiza os procedimentos, trabalha de forma sinérgica. O gerenciamento participativo pode acontecer em grupos menores, como o familiar, assim como em grupos maiores, como escolas e empresas, com vários níveis de interação, de comunicação aberta. Na comunicação participativa, professores e alunos estão abertos e querem trocar ideias, vivências, experiências, das quais ambos saem enriquecidos. A fala é franca, objetiva. Há graus diferentes de interação real e de comunicação, mas o importante é essa atitude de busca, de querer comunicar-se, trocar, crescer, dentro de limites negociados ou estabelecidos.
As organizações são compostas de pessoas. Quanto mais evoluem as pessoas, mais evoluem as organizações.[18] Educadores e gestores mais abertos, confiantes, bem resolvidos podem compreender melhor e implantar novas formas de relacionamento e de cooperação no processo de ensinar e aprender. Estão atentos para o novo, conseguem ouvir os outros e expressar-se de forma clara, não ficam ressentidos porque suas ideias eventualmente não foram aceitas. Cooperam em projetos decididos democraticamente, mesmo que não coincidam com todos os seus pontos de vista.
As organizações educacionais são como as pessoas. Encontramos organizações mesquinhas, fechadas, autoritárias, voltadas para o passado, que repetem rotinas, que são incapazes de evoluir. Existem outras que evoluem perifericamente, que só fazem mudanças cosméticas, de fachada, de marketing, sem mexer no essencial. Existem também organizações volúveis, que mudam de acordo com as modas do momento, com os gurus de plantão, que adotam acriticamente as novidades, as últimas tecnologias. Há, finalmente, organizações com uma visão integrada, aberta e flexível das pessoas, dos seus objetivos, do seu futuro. Organizações interessantes são as que veem, em cada problema, um desafio. Organizações problemáticas são as que enxergam mais os problemas do que as oportunidades e fazem destas novos problemas.
Todos os grupos e instituições que evoluem e crescem trazem consigo formas de integrar organização e criação, normas e liberdade, autoridade e confiança. As organizações que mais evoluem são as que reúnem pessoas abertas, que sabem gerenciar seus conflitos pessoais, que sabem se comunicar e aprender.
Pessoas maduras, abertas – mantenedores, diretores, coordenadores, professores, funcionários – são responsáveis pelas mudanças necessárias nas organizações educacionais.
O autoritarismo da maior parte das relações interpessoais, grupais e organizacionais espelha o estágio atrasado em que nos encontramos individual e coletivamente no desenvolvimento humano, no equilíbrio pessoal, no amadurecimento social. E somente podemos educar para a autonomia, para a liberdade com processos fundamentalmente participativos, interativos, libertadores, que respeitem as diferenças, que incentivem, que apoiem, orientados por pessoas e organizações que aprendem a ser mais livres e autônomas.
Há diferenças significativas nas formas de comunicarmo-nos. Algumas delas expressam claramente a mensagem e a intenção de quem está falando. Há outras que deixam o interlocutor confuso, ou porque as mensagens admitem várias interpretações, ou porque não consegue ter certeza das reais intenções de quem está falando.
É frequente haver falhas de comunicação da intenção. Professores muito controlados, “secos”, que sentem dificuldade em abraçar, em expressar emoções, têm mais dificuldades em passar aos alunos o seu afeto real e toda a sua riqueza interior.
“Mesmo as mais difíceis tensões e exigências tornam-se mais solúveis num ambiente humano de compreensão e respeito mútuos” (Rogers 2001, p. 66). Em todas as organizações, das mais enxutas, como a família urbana, até as grandes transnacionais, convivemos com pessoas e grupos que se afinam mais ou menos conosco. Se reafirmarmos continuamente a atitude de entendimento e de aproximação, facilitaremos as mudanças. As pessoas maduras criam em torno de si clima de entendimento, mesmo havendo divergências sérias. Procuram minimizar os problemas e encontrar a convergência, os pontos de aproximação. E, quando há diferenças irreconciliáveis, mantêm a discussão no nível das ideias, não no das emoções, principalmente as negativas como o ciúme, a inveja, a agressão. “Dado um clima psicológico adequado, o ser humano é digno de confiança, criativo, automotivado, poderoso e construtivo – capaz de realizar potencialidades jamais sonhadas” (ibid.).
O grande problema das organizações é educacional, não só no sentido habitual de desenvolvimento de habilidades intelectuais, mas de desenvolvimento humanizador, pessoal e interpessoal. Isso se aplica também às escolas e universidades. É importante fazer um trabalho educacional que incentive as pessoas, mexa mais nos sentimentos positivos do que nos negativos, apoie o intercâmbio, a troca, o compartilhamento de ideias e projetos. A educação positiva ajudará as pessoas a criar confiança em si, a enfrentar melhor as dificuldades, a ter uma visão positiva da vida. Com pessoas mais abertas e equilibradas, é mais fácil mudar, cooperar, desenvolver organizações mais flexíveis e inovadoras.
Esse é um campo quase inexplorado. A maior parte das iniciativas da escola e da universidade permanece na aprendizagem intelectual de conteúdos. Professores e alunos estão acostumados a seguir modelos, receitas, fórmulas, padrões.
O ensino universitário brasileiro sempre foi voltado para a formação de empregados. Nos cursos de administração de empresas, o currículo é dirigido principalmente para a formação de gerentes, e a abordagem de ensino elege a grande empresa como tema central, ignorando como regra o estudo da pequena empresa. Em todos os cursos universitários, a “cultura” do ensino pressupõe que o aluno esteja à busca de uma qualificação que lhe garanta um emprego. (Dolabela 1999)
A universidade e a empresa continuam bastante distantes, apesar de algumas iniciativas importantes, como a criação de parques tecnológicos e de empresas incubadoras. Dentro das universidades, há visões antagônicas sobre essa relação mais estreita e colaborativa.
O foco para a mudança é desenvolver alunos criativos, inovadores, corajosos. Alunos e professores que busquem soluções novas, diferentes, que arrisquem mais, que relacionem mais, que saiam do previsível, do padrão.
Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões que vão sendo tomadas.
A autonomia, como amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. É nesse sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade. (Freire 2003, p. 107)
A escola, segundo o empresário Wong, deve desenvolver os potenciais dos alunos com foco na imaginação e na criatividade. Mas ele alerta que de nada adianta ter criatividade sem espírito empreendedor: “O brasileiro tem muita iniciativa, mas falta ‘acabativa’”, brincou, ao comentar que são poucas as pessoas que conseguem realmente colocar em prática suas ideias.[19] “Precisamos ter claro que a escola não deve preparar o aluno para passar de ano, mas, sim, para ser um cidadão empreendedor. Ele deve crescer pensando em fazer algo diferente, que o entusiasme. E o papel da escola é ver até onde ele chega”, afirma. O aluno brasileiro, segundo o executivo, sai da escola à procura de um bom emprego, ao passo que o norte-americano busca um bom negócio. “É isso que precisamos mudar”, complementa.[20]
Outra crítica de Wong diz respeito ao fato de os alunos serem condicionados a tomar atitudes reativas em relação a qualquer situação: “É preciso que o estudante seja proativo e agente de mudanças e não que fique esperando que apareçam oportunidades”. De acordo com ele, essa atitude reativa se reflete no profissional que o aluno se tornará no futuro. A sociedade precisa de pessoas inovadoras, que se adaptem a novos desafios, possibilidades, trabalhos, situações. É difícil ser empreendedor numa escola convencional, focada em disciplinas e ensino de conteúdos, com professores preparados para repetir informações, fórmulas, procedimentos.
• Como ser criativo com uma formação repetidora, castradora?
• Como incentivar o empreendedorismo com uma formação conservadora, acomodada, voltada para a segurança?
• Como incentivar o empreendedorismo, se damos provas de memorização e repetição?
Precisamos trabalhar os professores, os gestores e os alunos; focar a pesquisa, o novo, encontrar ângulos, exemplos, relações, adaptações diferentes; superar a aprendizagem meramente intelectual e vivenciar mais os projetos, as experiências e a resolução de problemas; propor e implementar ações baseadas em informações. É uma nova postura proativa, que contrasta com a forma tradicional de aprender, com base em reflexões feitas por terceiros.
É preciso sensibilizar e capacitar os professores para ações inovadoras, para tomar mais a iniciativa, para explorar novas possibilidades nas suas atividades didáticas, na sua carreira, na sua vida. Sensibilizar os alunos para desenvolver novas atividades na sala de aula, no laboratório, em ambientes virtuais, mantendo vínculos diretos com a prática. Sair mais da sala de aula para inserir-se no cotidiano do bairro, no conhecimento e no contato com pessoas, prédios, grupos, instituições próximas ou que tenham a ver com a área de conhecimento escolhida. É preciso trabalhar também com os pais, para que se modifiquem e estimulem os filhos a aprender a planejar, a estabelecer metas. E, finalmente, inserir a escola, como organização que dissemina na cidade a sua visão empreendedora.
“A educação deve contribuir para o desenvolvimento total da pessoa – espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade” (Delors 2001, p. 99).
Não basta formar alunos empreendedores, se não têm uma formação social, uma preocupação com os outros e um comportamento ético. O foco da educação não pode permanecer somente no nível pessoal, individual, na preparação profissional. Por isso, é importante focar também o desenvolvimento social, o engajamento numa sociedade mais justa, o compromisso do conhecimento pessoal com os que convivem conosco, com o país, com o planeta, com o universo. A educação precisa que cada aluno se insira na comunidade, desenvolva sua capacidade de assumir responsabilidades e direitos.
A tarefa mais fundamental do professor é semear desejos, estimular projetos, consolidar com arquitetura de valores que os sustentem e, sobretudo, fazer com que os alunos saibam articular seus projetos pessoais com os da coletividade na qual se inserem, sabendo pedir junto com os outros, sendo, portanto, competentes. (Machado in Perrenoud et al. 2002, p. 154)
Para isso, o essencial na formação do educador é sua visão política do mundo, é a sua postura diante do mundo, da vida, da sociedade. Não basta só preparar professores competentes intelectualmente, é preciso que tenham uma visão transformadora do mundo.
A ética não pode ser só uma matéria teórica, deve principalmente ser uma vivência prática. A educação pode transformar-se num processo de aprendizagem de humanização, de tornar professores e alunos pessoas mais plenas, abertas, generosas, equilibradas. “Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos” (Freire 2003, p. 17).
Pela educação, podemos aprender a integrar corpo e mente, sensações, emoções, razão, intuição. Podemos sentir e pensar com todo o corpo, como um todo, não só com a cabeça. Podemos perceber, sentir, entender, compreender, agir pessoal e socialmente, como pessoas cidadãs responsáveis e autônomas. Pela educação comunicativa, vamos construindo redes complexas de interação pessoal, grupal e social. Quanto mais ricas essas redes, mais nos realizaremos como pessoas e mais úteis nos tornaremos para os grupos e organizações aos quais nos vinculamos.
É importante educar para o conhecimento integral, para integrar todas as dimensões, para ampliar a consciência pessoal, interpessoal, social e ecológica, universal, cósmica. Buscar conhecer os outros, romper barreiras, compreender as diferenças, interagir com os demais em níveis mais ricos e amplos. Educar para a responsabilidade social, para a inserção de cada aluno no seu bairro, na sua cidade, no seu país e no mundo.
O processo de educar torna-se cada vez mais abrangente, mais amplo, até a inclusão total: educar para a totalidade, para a sustentabilidade da Terra, da vida em todas as suas dimensões. Um jornalista de Israel perguntou a Paulo Freire, na sua última entrevista, em 17 de abril de 1997: “Como é que você gostaria de ser lembrado?” E Freire respondeu: “Eu gostaria de ser lembrado como alguém que amou a vida, que amou as mulheres, que amou os homens, que amou as plantas, os rios, os animais, a Terra”.[21]
Uma nova competência que precisa ser desenvolvida hoje é a de saber conviver nos espaços virtuais, saber comportar-se na comunicação on-line, nos diversos espaços digitais pelos quais nos movemos, respeitar a diversidade, comentar com equilíbrio opiniões diferentes ao divulgar informações sobre terceiros.
Há uma série de dificuldades na formação do aluno-cidadão: a mais séria é o individualismo, fortemente incentivado pela sociedade de consumo, pela mídia que enaltece valores diferentes dos da escola. A mídia, principalmente a televisão, e, mais especificamente, a publicidade, valorizam a ascensão individual, o self-made man, a competição, a aparência, o ter como mais importante que o ser, ao passo que a escola procura valorizar também o coletivo, a colaboração, a cooperação. A televisão mostra os valores despretensiosamente, enquanto nos entretém. A adesão do público é voluntária. A escola rema contra a corrente dominante e obriga o aluno a fazer escolhas mais difíceis, que exigem muito mais maturidade. O idealismo social é mais difícil de perceber do que a valorização individual.
No Brasil, a educação ética é fundamental, porque é um dos países mais desiguais do mundo, com um relativo bom desempenho econômico, que não é acompanhado por índices semelhantes de desenvolvimento humano. Convivem no país uma agricultura e negócios do campo avançados com a exploração, que chega até a escravidão dos trabalhadores. Apesar de o PIB por habitante do Brasil ser semelhante ao de alguns países de alto desenvolvimento humano, 20% da população mais pobre do Brasil têm acesso a apenas 2% da renda ou do consumo, já os 20% mais ricos detêm 64,4% da riqueza.[22]
A escola não pode ser muito diferente da sociedade, porque é formada por pessoas do mesmo agrupamento e também vive nela. Politicamente, precisamos fazer todo o esforço possível para que a escola seja um lugar de colaboração, de inclusão, de aumento de consciência. Mas não se pode esperar uma escola “ideal” numa sociedade desigual, complicada, contraditória. Por outro lado, é na escola que podemos experimentar situações novas de mudança, mesmo que parciais, de aprendizagens de novos modelos, novas formas de colaboração. Podemos realizar atividades inovadoras juntos, porque o resultado não se expressa necessariamente na venda de um produto, em metas puramente econômicas de conquista de mercado. A escola pode arriscar mais, permitir-se aprender com os erros e buscar o desconhecido, ao menos em parte.
A escola pode incluir a comunidade ao seu redor, criar pontes para as situações reais de aprendizagem existentes, vivenciadas na prática. Pode oferecer espaços de atualização para famílias e comunidade e, em troca, abrir-se para que os alunos façam pesquisas, tenham contato com o cotidiano. Uma escola fechada com muros altos e grades é um exemplo de insucesso pedagógico. Se está situada em uma região carente, tem de dialogar com as pessoas, os grupos, a comunidade. Se é mais rica do que o ambiente que a rodeia, deve abrir-se com mais razão ainda, oferecer seus serviços, mostrar que o bairro ganha com essa integração. A escola precisa, “além de envolver e qualificar as famílias, acionar as diferentes esferas do governo (saúde, geração de renda, esporte, saúde) e transformar toda a cidade em espaços educativos, tirando proveito dos cinemas, teatros, parques, empresas, museus.”[23]
A escola não pode apenas ensinar a aprender, preparar só para a vida profissional. A educação social é importante, para compreender as raízes da desigualdade e para encontrar meios de diminuí-la. A ética inclui a integração com todas as dimensões ecológicas, com os seres vivos, as plantas, a Terra, o universo. Temos de aprender a nos sentir parte do planeta, superando divisões territoriais, étnicas, religiosas, até que nos sintamos parte deste grande universo.
Um outro obstáculo importante é que a ética, com frequência, permanece no nível do discurso, da pregação, mas precisaria estar ancorada na prática, no exemplo. E há uma grande distância entre a ética pregada (teoria) e a cumprida (prática), tanto na escola como na sociedade. Essa distância complica muito a aprendizagem efetiva e a incorporação de valores fundamentais.
Estes quatro focos ou eixos – o conhecimento integrador, o desenvolvimento da autoestima, a formação do aluno-empreendedor e a construção do aluno-cidadão – relacionam-se com os quatro pilares da educação do relatório Delors (2001, p. 90): saber compreender, fazer, comunicar-se e ser. Aprender a compreender implica lidar com a complexidade, a ignorância, o erro, a descoberta, a infindável caminhada ao longo da vida, tornar o conhecer um objetivo de realização pessoal e social. Aprender a fazer lembra a relação necessária entre teoria e prática, entre fazer e compreender e desafia nossa organização educacional, muito mais focada na leitura do que na experiência. Aprender a comunicar-se é um dos componentes essenciais do educar: aprendemos quando nos comunicamos, quando trocamos, quando somos reconhecidos. E aprender a ser parece simples, mas é sutil e complexo, porque implica aprender a integrar valores, práticas, reflexões e atitudes de vida. São quatro pilares fundamentais para a aprendizagem individual e social e para o ensino, em qualquer área.
A ética, em todas as instituições e na escola também, ensina-se mais pelo exemplo do que pela palavra. Uma escola séria, de qualidade, transmite seus valores nas situações cotidianas. A escola especificamente pode preocupar-se com a ética como um tema fundamental, transversal a todas as áreas e disciplinas. Todos somos responsáveis por dar um enfoque ético às situações didáticas que se apresentam. A escola precisa propor atividades em que os alunos exerçam sua responsabilidade e que isso faça parte do projeto pedagógico, que não seja simplesmente colocado como ação voluntária. A ética se pratica em propostas organizadas e valorizadas institucionalmente.[24]
Um dos desafios é como transformar a informação em conhecimento e em sabedoria. Sabedoria é um conhecimento integrado com a dimensão ética. A universidade prepara para o conhecimento, mas o conhecimento pode ser usado para explorar o outro, para manter a desigualdade de um país. Então, na universidade, muitas pessoas se preparam para servir aos grupos que têm mais dinheiro, esquecendo-se da maioria. Falta-lhes a visão social. O conhecimento parcial não integra a competência intelectual, emocional e ética. Este é o desafio: como juntar tudo isso numa sociedade tão desestruturada? Como juntar o intelectual com o emocional e o ético e não ver o ético como uma espécie de carga, mas como crescimento pessoal? A pessoa que evolui percebe que se comportar honestamente não é ser otária, pelo contrário, significa gostar de si mesma. Otário é o desonesto, aquele que leva vantagem. Este está atrasando a evolução dele e de toda a sociedade. Está complicando tudo, mas infelizmente muita gente ainda não percebe isso.
Como se comunicar de uma forma coerente numa sociedade em que predominam o marketing, as meias verdades? Isso também é um desafio.
A comunicação autêntica faz avançar mais o processo de compreensão da realidade, mas, ao mesmo tempo, nossas falas ficam cada vez mais superficiais. Falamos muito, passamos o tempo todo falando, mas com frequência, não nos revelamos, falamos de tudo, menos de nós mesmos, nos escondemos atrás das palavras.
O desafio é como sermos educadores de pessoas competentes e integradas. Se somos mais integrados, mais equilibrados, nosso processo de comunicação com os alunos flui, a credibilidade aumenta. No entanto, esse é um processo em que muitas pessoas ainda não acreditam.
A aprendizagem na sociedade do conhecimento não pode permanecer confinada à sala de aula, aos modelos convencionais. Um dos eixos fundamentais é mudar a configuração da escola, do currículo e do educador. A escola, como espaço de múltiplas e ricas aprendizagens, que acontecem também na família, na cidade, nos espaços virtuais, tem de adotar processos mais flexíveis, menos prontos e impositivos, em que os professores sejam tutores, mediadores e orientadores dos alunos. O ensino deve ser focado em projetos, pesquisa, colaboração presencial-virtual, individual-grupal.
Se mantivermos engessados os modelos de educação escolar, não conseguiremos preencher as necessidades da sociedade do conhecimento, que precisa de cidadãos criativos, proativos, empreendedores e comunicativos.
Já não há lugar na educação, principalmente na área de humanas, para a busca pela resposta certa, única, correta. Temos respostas aproximadas, prováveis, adequadas ao momento. Não há sentido em testes de múltipla escolha, em avaliação de conteúdo único. A aprendizagem precisa ser ativa, focada na experiência, em projetos, em solução de problemas, em criação de situações novas. Já não há sentido em aulas só de conteúdo teórico, memorização, competição.
Professores afetivos e climas de entendimento com os alunos não se improvisam, não surgem do nada. É importante enfatizar a formação de professores nestas novas dimensões: a emocional, a empreendedora e a ética. O professor tem de passar por experiências de risco, de criatividade, de inovação. Os cursos atuais de formação não se preocupam com isso. A aprendizagem intelectual deve ser mais humilde, construída, interativa e integrada com o risco, com a visão integradora, contextualizada e afetiva. Todos os professores e alunos deveriam passar por etapas de aprendizado dessas novas situações. Os alunos necessitam, em todas as etapas da aprendizagem, de uma vinculação profunda com a realidade, principalmente com a realidade carente, pobre, diferente. O aluno aprende mais se combina estudo com projetos e com imersão em atividades sociais e culturais com grupos diferentes dos que está habituado. Todos os programas, em todos os níveis educacionais, podem incorporar tempos específicos de prestação de serviços, de colaboração com os menos favorecidos, de retribuição do que a sociedade oferece para que dediquemos tantos anos a aprender.