18. Existe uma realidade fundamental?
No dia 17 de dezembro de 1999, uma mulher conhecida como F.B., na literatura neurocientífica, sofreu um derrame no lado direito do cérebro. Em decorrência disso, perdeu o tato do lado esquerdo do corpo, não conseguia mexer a perna e o braço esquerdos nem enxergar nada no lado esquerdo de seu campo visual. Embora a memória dela não tenha sido examinada, já se verificara que, em pacientes com lesões semelhantes, o acesso às memórias do lado esquerdo do cérebro também é obliterado, provavelmente porque esse acesso envolve a ativação de alguns circuitos neurais que são intensificados durante a percepção de uma cena.
Quando se pedia a F.B. para tocar sua mão esquerda, ela não conseguia encontrá-la; quando lhe apontavam a mão, F.B. dizia não ser dela. A mulher estava bem lúcida, saía-se bem nos exames mentais prescritos pelos médicos e não mostrava qualquer sinal de deterioração mental. Mas estava muito mal-informada em relação à sua mão esquerda, pois insistia que se tratava da mão de sua sobrinha.
O fenômeno de um paciente que deixou de reconhecer um membro foi documentado pela primeira vez em 1942. A ilusão foi chamada de “somatofrenia”. O mais impressionante na somatofrenia é que os pacientes não conseguem perceber a ilusão, mantendo sua certeza, apesar das fortes provas em contrário. Quando pressionados, em geral eles admitem que o que dizem é estranho, contudo, apresentam provas em apoio à sua história. Como pode um indivíduo inteligente, com os pés na terra, teimar numa convicção tão absurda? Diante de um membro que não consegue mexer, sentir nem lembrar, o cérebro desses pacientes tenta elaborar uma história coerente levando a uma conclusão aparentemente razoável: o membro não pertence a eles. Do ponto de vista das pessoas com cérebros normais, as conclusões do paciente são errôneas por causa da lesão nos sistemas sensoriais e nas estruturas específicas do cérebro que interpretam esses dados. Mas mesmo cérebros humanos sadios têm restrições e peculiaridades de projeto, por isso, pessoas saudáveis também sofrem restrições na forma como observam e interpretam o mundo.
Seria uma limitação acreditar que nossa imagem do mundo é definitiva. Alienígenas dotados de sentidos e cérebros que funcionassem de modo diferente dos nossos poderiam considerar nossas percepções tão ilusórias quanto as de F.B. Ou, se tivessem cérebros superiores, iriam refletir sobre nossa visão de mundo primitiva, da mesma forma que fazemos com um gafanhoto ou um morcego. No entanto, estamos tão certos quanto à validade de nossa interpretação da realidade como os somatofrênicos a respeito das deles.
A maioria das pessoas se define como o que os filósofos chamam de “realista ingênuo”. Elas acreditam que há uma realidade objetiva externa, povoada de objetos com propriedades definidas que podem ser identificadas e codificadas. Experimentos em psicologia apoiam a ideia de que as pessoas pressupõem automaticamente suas experiências subjetivas como uma fiel representação do mundo real. Todavia, bem antes do conhecimento de síndromes como a somatofrenia, bem antes de se ter acesso a tecnologias como a fMRI, que permitem a sondagem do cérebro, alguns pensadores reuniram argumentos impressionantes contra as convicções do realismo ingênuo. Em 1781, por exemplo, o filósofo alemão Immanuel Kant postulou que a realidade que vivenciamos foi elaborada e moldada pela nossa mente, uma mente limitada por convicções, sentimentos, experiências e desejos.
Um século depois de Kant, desenvolvimentos na física passaram a exigir cada vez mais que consideremos a realidade em outro nível, além daqueles vivenciados na vida cotidiana. Entidades invisíveis, como campos elétricos e magnéticos, átomos e elétrons, começaram a se infiltrar nas teorias intelectuais dos físicos. Einstein chegaria a definir a noção de campo como “talvez a mais profunda transformação por que passaram as fundações da física desde o tempo de Newton”; Feynman teria a mesma opinião a respeito do conceito do átomo. Essas entidades são modelos mentais. Os físicos os consideraram úteis para a análise de fenômenos que estudavam, ajudando-os a visualizar os eventos que observavam, e também ampliando sua capacidade de raciocinar a respeito desses eventos e de sugerir novas previsões. Mas esses elementos estavam fora de nossa experiência normal. De início, não eram observados nem nos laboratórios, por isso, não estava claro até que ponto podiam ser encarados como reais. Como escreveu Ludwig Boltzmann, o físico do século XIX tido como o pai da moderna teoria atômica, essas noções poderiam ser consideradas “apenas uma imagem mental dos fenômenos, relacionando-se com eles da mesma forma que um símbolo se relaciona com a coisa simbolizada”. Em outras palavras, átomos e campos são uma espécie de linguagem.
Galileu disse: “O Universo é um grande livro escrito na linguagem da matemática”, e, desde então, ele tem sido o objeto da ciência. Mas será que estamos lendo o grande livro do Universo, ou o estamos escrevendo?
Numa série de artigos que começam com “Conversation on Mathematics with a visitor from outer space”, o matemático David Ruelle sugeriu que os seres humanos lidam com a matemática (e portanto com a física) com partes do cérebro que evoluíram para outros propósitos. Nosso pensamento matemático, diz ele, é limitado por uma memória fraca, por um curto período de atenção e pela nossa peculiar insistência humana na visualização. Isso sugere que, ao menos no que diz respeito às novas teorias elaboradas pelos cientistas sobre o Universo, as peculiaridades inatas do estilo humano de teorizar devem ser acrescentadas à lista de influências que afetam nosso conceito de realidade.
Considere, por exemplo, a ideia do átomo. No mundo cotidiano, nós percebemos a matéria gasosa por meio de características como pressão, temperatura e fluxo. Os cientistas já haviam destacado relações entre essas propriedades, mas foram pioneiros como Boltzmann que compreenderam ser possível derivar conclusões a partir de um modelo em que os gases fossem constituídos de átomos. O modelo atômico explica as propriedades dos gases em termos de entidades invisíveis hipotéticas. Mais importante: a imagem atômica pode também ser usada para prever novos fenômenos. Muitos cientistas se opuseram a essas teorias, alegando que os átomos eram simples construções matemática, não “existiam na realidade”. Depois, em 1905, Einstein demonstrou que os processos atômicos e moleculares são responsáveis pelos aspectos quantitativos de um fenômeno chamado movimento browniano, que é visível no microscópio. Foi o bastante para muitos físicos passarem a ver o átomo como algo real. Mas só em 1981, pela primeira vez, os cientistas “viram diretamente” uma molécula. Mesmo então, o que fizeram na verdade foi compilar uma imagem escaneando uma agulha sobre a superfície de um material. Portanto, embora alguns afirmem que isso significa “ver” uma molécula “diretamente”, outros diriam que é apenas uma visualização artística e científica da construção matemática de Boltzmann, o “átomo”.
Esta imagem de pentaceno, uma molécula formada por cinco anéis
de carbono, foi obtida com um microscópio de força atômica.
As sutilezas a que os físicos se referem quando falam que alguma coisa existe levaram Steven Weinberg a dar um passo atrás e enunciar, no livro Dreams of a Final Theory: “O que afinal significa observar qualquer coisa?” Weinberg analisou a “descoberta” do elétron, em geral creditada ao físico britânico J.J. Thomson, num experimento realizado em 1897. O que Thomson fez na verdade foi medir a forma como os “raios”, num tubo de raios catódicos – em essência, um velho tubo de imagem de TV –, se curvam em campos elétricos e magnéticos. Ele descobriu que a curvatura era coerente com os raios formados por partículas que transportam uma proporção definida entre carga e massa. Concluiu que essas partículas realmente existem e são os constituintes de todas as formas de eletricidade, de correntes a átomos. Mas Thomson na verdade não viu nenhum elétron individual. Nem observou a curvatura dos raios catódicos; ele simplesmente mediu a posição de um ponto luminoso no tubo, seguiu-o até a fonte dos raios, e depois inferiu a curvatura e a razão entre carga e massa usando a teoria aceita para calcular como os campos aplicados poderiam ter feito os raios se curvar para chegar ao ponto luminoso. E, “estritamente falando”, segundo Weinberg, ele não fez nem isso: apenas “percebeu certas sensações táticas e visuais” que interpretou como um ponto luminoso.
De todo modo, mais ou menos ao mesmo tempo, o físico alemão Walter Kaufmann realizou um experimento muito semelhante (porém mais preciso). Ele adotou uma abordagem diferente daquilo que considerava real. Kaufmann acreditava que a física deveria se ocupar mais estritamente do que é observado, por isso não relatou que havia descoberto um novo tipo de partícula – o elétron. Preferiu dizer apenas que, não importa do que fossem feitos os raios catódicos, eles apresentavam certa razão entre massa e carga elétrica. Enquanto isso, Thomson partia para a realização de novos experimentos, descobrindo que seu modelo do elétron se aplicava em outras áreas, como a radioatividade, e também quando os metais eram aquecidos. Portanto, Thomson é considerado o único “descobridor” do elétron.
No século seguinte aos experimentos de Thomson e Boltzmann, a física mudou muito. Hoje os físicos pouco hesitam em considerar reais os objetos que não conseguem observar – ou até objetos que acreditamos que não podem ser observados. Vamos considerar o quark, um tipo de partícula elementar que supomos estar dentro do próton, do nêutron e de muitas outras partículas. No início dos anos 1960, de forma independente, Murray Gell-Mann e George Zweig criaram esse conceito. A teoria era atraente, levando a novas previsões que foram confirmadas e fornecendo evidências convincentes do modelo do quark. Mas quando os experimentalistas colidiram partículas que deveriam se esvaziar e isolar quarks individuais, nenhum quark foi encontrado. Enfim, os físicos perceberam por que nós não os vemos: a atração entre os quarks aumenta com a distância, como se eles estivessem ligados por uma mola.
Se a imagem do quark lembra o modelo do párton, de Feynman, que descrevi no Capítulo 16, é porque estes últimos são na verdade as mesmas partículas que os quarks de Gell-Mann e Zweig. Mas Feynman usou seu modelo matemático para explicar os dados a partir de uma só classe de experimentos, e, para esse propósito menos ambicioso, ele não precisou pressupor que os pártons apresentavam todas as propriedades específicas (e, em um caso, peculiares) que Gell-Mann e Zweig postularam para os quarks. Na ocasião, muitos físicos sentiram-se inseguros para considerar reais os quarks e pártons. Ao usar um nome diferente para as partículas do seu modelo, Feynman evitou endossar as especificidades estabelecidas pelos outros dois. Afinal, como especulou Feynman, os modelos de pártons e quarks – depois de provarem sua utilidade não apenas como “guias psicológicos”, mas também produzindo “outras expectativas válidas” – “se tornaram reais” para os físicos, embora eles nunca tenham observado nenhuma dessas partículas – e a maioria acha que jamais irá observar.
Einstein enfatizou a importância da observação ao escrever: “O pensamento puramente lógico não pode nos proporcionar qualquer conhecimento do mundo empírico; todo conhecimento da realidade começa e termina na experiência.” Hoje, no entanto, a matemática e as observações estão mais do que nunca intimamente ligadas. Na física moderna, a observação não pode ser desvinculada do sistema sensorial e do sistema de raciocínio humanos.
Desde que não entrem em conflito, diferentes teorias – cada uma delas válida, no sentido de que suas previsões são confirmadas pela observação – podem nos apresentar diferentes imagens da realidade, todas elas legítimas. Como exemplo de realidades diferentes, porém não conflitantes, em O grande projeto, Stephen Hawking e eu escrevemos sobre o ponto de vista de um peixe-dourado num aquário de vidro curvo. Um objeto em movimento livre fora do aquário, que um observador acredita percorrer uma linha reta – como exige a lei de Newton –, seria visto pelo peixe-dourado percorrendo uma trajetória curva. Dessa forma, um peixe-dourado cientista poderia formular leis considerando que o movimento dos objetos fora do aquário seria diferente do estabelecido pelas leis de Newton. Apesar disso, as leis do peixe-dourado possibilitariam que ele previsse corretamente o movimento de objetos do lado de fora, por isso, essas leis representariam uma imagem válida da realidade. Agora suponha que um peixe-dourado excepcionalmente brilhante propusesse outra teoria: que as leis de Newton se aplicassem além dos limites de seu Universo aquático, mas que a luz desse outro mundo se curvasse ao passar pela água, fazendo com que os caminhos dos objetos externos só parecessem curvos. Essa teoria iria apresentar aos cientistas peixes-dourados uma concepção completamente diferente do que acontece. Os que estão fora do aquário podem argumentar que a segunda teoria é a que realmente descreve a “realidade”; porém, como ambas fornecem a seus formuladores as mesmas previsões exatas, as duas teriam de ser consideradas imagens igualmente válidas.
Tenho argumentado que o Universo atual é resultado das leis da física, que a humanidade surgiu aleatoriamente, guiada por nada mais que a evolução e a seleção natural, e que nossos pensamentos e sentimentos são fenômenos originados no cérebro físico. Em vista do que a ciência conhece, hoje é difícil acreditar que um Deus criou o Universo alguns milhares de anos atrás, pôs algumas criaturas nele e agora anda por aí evitando (ou causando) guerras, curando (ou afligindo) os doentes, ajudando esportistas universitários a marcar pontos (ou fazendo com que a defesa os bloqueie). Mas a ciência nos ensinou que pode haver outras realidades; e que, se erguermos a tampa da vida cotidiana, as ações da natureza são muito diferentes das que percebemos com nossos sentidos. Haverá lugar também para outra realidade oculta, uma realidade que inclui Deus?
Mesmo aqueles que entendem a teoria quântica vivem seu cotidiano usando o modelo de realidade descrito matematicamente por Newton como hipótese de trabalho. Não se ganha nada caracterizando as propriedades de bolas de bilhar a partir da mecânica quântica, ou se recusando a beber vinho pela incerteza a respeito do momentum das moléculas que o compõem. Acreditar também pode ser uma hipótese de trabalho. Uma vez perguntei a uma amiga, cuja racionalidade eu respeitava, por que ela acreditava em Deus e numa alma imortal, quando não havia provas nem de um nem de outra. Eu esperava que ela discordasse da falta de provas, mas não fez isso. “As nossas convicções precisam ser coerentes?” – perguntou. “Não se pode gostar de um filme mesmo quando não sabemos definir seus méritos? O filme não pode ser verdadeiro embora não represente uma obra-prima cinematográfica? Por que está errado acreditar num poder superior sem termos provas?” Depois ela falou sobre um livro em alemão, uma coleção de anotações e cartas escritas por pessoas prestes a ser executadas por terem ajudado judeus a sobreviver durante a Segunda Guerra Mundial. Todos os relatos eram escritos por pessoas que tinham muita fé ou por crianças. Havia uma só exceção, ela disse – um homem sem religião, de dezenove anos, que se envolvera com o movimento de resistência em busca de aventura. Suas cartas eram diferentes de todas as outras, ela explicou. Ele era o único que tinha medo da morte.
Se você puser um sapo dentro de uma caixa e entregar a um cientista, ele pode dizer muitas coisas fascinantes sobre a criatura. Luigi Galvani, físico italiano de Bolonha, aplicou uma centelha à perna de um sapo, em 1771, e observou que os músculos se contraíam. O estabelecimento de uma relação entre a eletricidade e o funcionamento do corpo abriu um novo mundo. Seria justo dizer que, sem essa simples observação de Galvani, não existiria todo o campo da neurociência.
Se você pegar outra caixa e colocar um cérebro humano dentro, mais uma vez os cientistas vão descobrir coisas fascinantes, porém, alguns mistérios essenciais não poderão ser explicados – por exemplo, como as imagens são visualizadas no córtex, como uma célula cerebral armazena memória, ou como chegamos a nos identificar com um indivíduo. Portanto, da perspectiva científica, o cérebro é uma “caixa-preta”, um sistema cujo funcionamento interno é refratário a explicações. Quando você põe alguma coisa numa caixa-preta, os cientistas só conseguem estudar o que entra e o que sai. O que acontece dentro da caixa pode ser apenas um tema para a especulação.
Mas ainda há um terceiro tipo de caixa, com a qual Leonard tem lutado. Nela você põe a realidade. Quando se pede a um cientista para dizer o que há na caixa, ele enfrenta enormes problemas. Por exemplo, Leonard se debate com minha interpretação da maneira estranha como os átomos, os constituintes básicos do mundo físico, estão numa região de sombra entre o real e o irreal. Eu confio no fato de que cada partícula no Universo tem sua fonte no “nada”. Naturalmente é muito difícil relacionar nada com alguma coisa, o visível com o invisível. Na verdade, nossas idas e vindas têm sido uma contenda a respeito desse único problema. Leonard conclui o ensaio anterior situando a ciência e a espiritualidade em compartimentos separados, cada qual vendo o Universo de sua própria perspectiva. Não acho isso muito satisfatório, não quando vemos cristãos racionais aceitando a evolução em lugar do Gênesis, por exemplo. É preciso observar a imagem toda, subjetiva e objetiva. Só então podemos deixar de defender visões de mundo deficientes, sejam elas científicas ou espirituais. Pontos de vista não fazem sentido se não explicarem a realidade dentro da caixa.
Mesmo entre os físicos de mente mais aberta, o mistério da realidade beira o insolúvel. É triste e comovente ler sobre a aflição dos pioneiros da física quântica quando perceberam que tinham deixado o mundo físico em frangalhos – um mundo antes tão confiável, tranquilizador e disponível aos cinco sentidos. Quando apresentou sua famosa equação explicando o comportamento ondulatório das partículas, Schrödinger disse que preferia não ter feito a descoberta, pelos sofrimentos e conflitos dela decorrentes. Einstein recusava-se a aceitar a estranheza de um mundo regido pela mecânica quântica. Para ele, o desmantelamento da certeza era enervante demais. Mas não há dúvida de que a teoria quântica está correta, até onde vão os cálculos.
Leonard representa uma geração de físicos que já fez as pazes com a realidade quântica, mas acredito que tenha pagado um preço alto por isso. Na minha visão, ele se esquivou dos fatos mais inquietantes, embora a ciência supostamente seja regida por fatos. O primeiro deles é que toda experiência ocorre na consciência. Isso é mais que um processo cerebral. O segundo fato é que, se houver uma realidade exterior à consciência, nós nunca saberemos o que ela é. Leonard reconhece que nada pode ser conhecido fora do cérebro, mas, ao mesmo tempo, acha que de alguma forma a ciência está no caminho certo de todas as respostas que teremos um dia. Talvez o mais destacado físico a tentar explicar essa discrepância, sir Roger Penrose, ainda continue perplexo, pois declarou:
Não acredito que já tenhamos encontrado o verdadeiro “caminho para a realidade”, apesar dos extraordinários progressos realizados nos últimos dois milênios e meio, em especial nos últimos séculos. Sem dúvida serão necessários novos insights fundamentais.
No meu lado do debate, esses insights vêm existindo há muito tempo. A realidade é consciência pura. Nada existe fora dela. Seus efeitos abrangem tudo. Não pode haver outra resposta. Para chegar a ela, contudo, a ciência precisa deixar de lado a ilusão de que existe um mundo físico “lá fora” ao qual se apegar. Leonard agarra-se a isso com todas as forças, mesmo quando cita provas em contrário.
Isso me lembra os pescadores que se arriscam nos mares gelados no inverno do Alasca para pegar caranguejos. O trabalho é considerado o mais perigoso do mundo. Os pequenos barcos de pesca se embrenham pelo gelo, é difícil ficar em pé no convés, mais difícil ainda realizar o perigoso trabalho de recolher as pesadas armadilhas cheias de caranguejos, ao sabor de ondas enormes.
Posso imaginar Leonard como o capitão, gritando para o imediato medir a próxima onda prestes a se chocar com o casco. O imediato leva um instrumento ao olho e verifica que se trata de uma onda de dez metros. “A que velocidade ela vem em nossa direção?”, brada o capitão, preocupado com a possibilidade de o barco virar. O imediato pega outro instrumento, faz uma leitura e descobre que a onda está se aproximando a quarenta nós. Mas, quando está prestes a gritar a resposta, a onda arrebenta sobre o barco, e tudo que a tripulação pode fazer é se agarrar à amurada ou ao mastro para salvar a própria vida.
Se você substituir uma onda de luz ou um fluxo de elétrons pelas ondas do mar, a situação é bem semelhante à que Einstein e seus colegas enfrentaram. Assim como o imediato, eles podiam medir massa, carga e spin, imobilizando a realidade física no meio do processo e descrevendo o que era possível. Enquanto isso, as ondas continuavam a bater no casco: a realidade está em movimento perpétuo, não espera por ninguém.
Penrose entendeu como a realidade não é manejável ao dizer: “Alguns leitores ainda podem manter a perspectiva de que a própria estrada é uma miragem. Outros talvez tenham a impressão de que a noção de ‘realidade física’, com uma natureza verdadeiramente objetiva, independente de como optemos por vê-la, é um sonho vão.” Parece que Leonard não percebe a ambivalência dessas questões. “Cale a boca e faça os cálculos” é sempre um lugar de recuo em potencial que a ciência pura conserva. Mas a realidade não cala a boca, e a torturante verdade é que nosso conceito de senso comum sobre o mundo físico já se revelou um barco furado.
Deixe-me ajudar o leitor cético a entender por que a consciência deve ser a resposta certa para a pergunta “O que é a realidade fundamental?” O espinho que incomoda qualquer um diante dessa questão é: seja o que for a realidade fundamental, ela não pode ser criada. Se você fincar uma estaca e disser, “É isso aí. X é o aspecto mais básico da realidade”, qualquer um pode levantar a mão e falar: “Mas quem ou o que criou X?” O criador de X – seja ele Deus, a matemática, a gravidade, a curvatura do espaço-tempo ou qualquer outra especulação – sempre deve ser mais fundamental ainda.
Isso significa que a fonte da criação é incriada – um conceito que a ciência acha quase impossível admitir. Teorias sobre múltiplos Universos não nos ajudam, pois mesmo que se afirme a existência de trilhões de outros Universos, quem ou o que os criou? Um campo especula que os mundos se criaram entre si, ou que progridem e decaem num ritmo cósmico de nascimento e morte. Isso também não resolve o problema. Quem ou o que determinou o ritmo? O incriado é um pesadelo intelectual.
Embora seja normal supor que somos as pessoas mais inteligentes que já viveram, os antigos sábios da Índia sabiam o bastante para declarar que X, a realidade mais fundamental, não tem propriedades físicas. Recusavam-se inclusive a dar-lhe um nome, preferindo chamá-la de “isso” (tat, em sânscrito). Cometi um pecado filosófico ao denominá-la consciência pura, tornando X mais tangível do que na verdade é. No fundo, eu aceito a natureza inominada, informe e inconcebível do “isso”.
Aqui, ciência e espiritualidade podem se consolar num abraço. Assim como os átomos desaparecem quando você percebe que eles “não têm nenhuma propriedade física” (Heisenberg), a mente humana se desvanece quando se percebe que ela tampouco tem propriedades físicas. Os átomos surgem de um vácuo que é puro potencial; os pensamentos surgem de um vácuo que é pura consciência. No interesse da justiça, é preciso apresentar um desafio. Quando você descreve o vácuo, está simplesmente fazendo não afirmações sobre a não existência. Será que isso não é desistir?
Mas aqui somos salvos por um herói improvável, tecnicamente conhecido como qualia, palavra latina que se refere a aspectos subjetivos da percepção. O tom vermelho, a suavidade e a fragrância de uma rosa são qualia, por exemplo, assim como a salinidade do sal e a doçura do açúcar. Daniel Siegel juntou todas essas qualia no acrônimo de Sift (“peneirar”), em inglês, que representa sensação, imagem, sentimento e pensamento.e É um acrônimo inteligente, pois nós peneiramos o fluxo de dados que nos bombardeia de todos os lados, transformando-o em uma ou mais qualia. Voltando à famosa frase de Christopher Isherwood, “Eu sou uma câmera”, a razão mais básica pela qual nem você nem eu somos uma câmera – ou qualquer outra máquina – é que ela não filtra a realidade, enquanto nós temos a escolha de peneirá-la. Olhar para o Grand Canyon envolve um processo específico de filtragem. Cada um de nós vai notar várias cores em meio à luz que muda, sentir o cheiro dos pinheiros ao redor e ouvir o som do vento farfalhando no fundo do cânion, para incorporar tudo isso numa sensação de pasmo (ou de tédio, se seu trabalho for recolher o lixo deixado pelos turistas), e também nos pensamentos pessoais despertados pelo cenário.
Não há duas pessoas que apreciem o Grand Canyon da mesma maneira. Duas câmeras, no entanto, podem facilmente tirar duas fotos iguais. A ciência se lança sobre essa singularidade com entusiasmo, insistindo em que um experimentador deve replicar os resultados de outro, para verificação. Mas, quando alega que uma câmera registra a realidade tal como ela deve ser registrada, a ciência joga a peneira pela janela. As qualia que foram descartadas – sensações, imagens, sentimentos e pensamentos – são na verdade as únicas coisas em que podemos confiar. Se eu mandasse um pescador de caranguejos para o mar do Alasca com uma página de dados sobre as ondas que ele irá encontrar, seria tolice dizer que ele estaria preparado para as dificuldades. Aquelas ondas enormes são coisas frias, pesadas, temíveis e violentas – essa é a realidade delas, que nada mais são que qualia.
Então, a questão óbvia é: de onde vêm as qualia? Os neurocientistas afirmam que elas vêm do cérebro. Um pensador da Antiguidade, como Platão, dizia que eram parte da natureza. Ambas as respostas são suposições. Não importa o quanto se esmere na sondagem do córtex visual, um neurocientista jamais encontrará o tom vermelho de uma rosa naquela pantanosa massa cinzenta; só vai achar uma sopa eletroquímica. Não importa com que profundidade um filósofo se volte para o interior da mente, ele nunca encontrará o ponto exato onde a consciência de súbito produz um tom vermelho aveludado. A trilha termina com a admissão de que sensações, imagens, sentimentos e pensamentos constituintes da realidade são irredutíveis. É a lei das qualia.
É por isso que a conexão entre mente e cérebro – ou, para ser mais genérico, entre a mente e qualquer coisa física – é conhecida como o problema mais difícil. A consciência não vai deixar você espiar atrás da cortina. A realidade é tímida; não vai deixar você vê-la nua. Mas, e se invertermos o problema difícil? Em vez de pedir uma explicação física da realidade subjetiva, podemos reivindicar uma explicação subjetiva do mundo físico. Essa tática funciona. Se você decompuser uma célula cerebral em busca do lugar de onde vem o tom vermelho de uma rosa, a célula acaba desaparecendo em ondas de energia que irão colapsar em puro potencial. Se, ao contrário, você começar a experimentar o vermelho, ele também vai desaparecer, agora no silêncio da mente. Mas, quando isso acontecer, você não vai se sentir de mãos vazias. Ainda vai estar desperto e atento. Isso não pode desaparecer. E mais: ao ligar um interruptor mental, você pode transformar a silenciosa consciência na totalidade do mundo físico. Fazemos isso o tempo todo. Até os cientistas fazem, embora afirmem que estão sendo puramente objetivos. A consciência é a senhora de tudo que surge de si mesmo.
Leonard descarta ou ignora argumentos que poderiam ameaçar seu apego à objetividade. Eu entendo. O Yoga Vasistha, um dos principais textos dos vedantas da Índia, propõe uma ideia assustadora. Ao descrever a realidade final, Vasistha diz: “É o que não podemos imaginar, mas é de onde se origina a imaginação. É o inconcebível, mas é onde se origina todo pensamento.” Para mim, essa afirmação está bem próxima da realidade quântica em que fico pensando quando meus amigos cientistas resolvem afinal mergulhar na água – e descobrem que não apenas é seguro como também familiar.
Não há nenhum mistério aterrorizante, nada a temer. A questão é que estamos todos em contato com nossa fonte inconcebível e inimaginável. Por mais que Schrödinger e seus colegas tenham se sentido contrariados, eles superaram a dor que acompanhou a aceitação de um mundo quântico. Agora chegou o momento de integrar esse mundo na nossa vida prática do cotidiano, pois a consciência é totalmente capaz de abranger tanto os aspectos subjetivos da realidade quanto os objetivos. As duas coisas não precisam viver separadas, e na verdade não podem fazer isso. Estamos sempre peneirando, a cada segundo de nossa existência. Muitos cientistas não confiam em suas viagens interiores, mas eu não confio em ninguém que tenha uma fixação; e o materialismo é uma fixação que observo com muita tristeza. Ele tem causado inúmeras das lutas e dores que o mundo agora experimenta. Nosso desejo de posse anda de mãos dadas com nossa vontade de guerrear com os que representam uma ameaça às nossas posses, ou com aqueles cuja derrota nos levará a possuir cada vez mais. A verdadeira segurança só existe na luz da consciência que liga todos os seres humanos.
e Respectivamente, sensation, image, feeling e though. (N.T.)