Londres, Dezembro de 1940
— Com tanta força não, sua rapariga tola. Está a magoar-me! — A velha senhora pousou a bengala com uma pancada ao lado dela. — Será preciso lembrar-lhe de que sou uma senhora e não um cavalo de trabalho a precisar de ferraduras?
Dolly sorriu com doçura e recuou ligeiramente na cama a fim de se afastar do perigo. Havia uma série de coisas no seu trabalho que não lhe agradavam particularmente, mas não teria de dar muitas voltas à cabeça para, caso lhe perguntassem, responder que a sua obrigação mais ingrata enquanto acompanhante de Lady Gwendolyn Caldicott era ser obrigada a arranjar-lhe as unhas. Esta tarefa semanal parecia trazer à superfície o pior de ambas, mas era um mal necessário e, como tal, Dolly desempenhava-a sem se queixar. (Na altura, isto é; mais tarde, na sala de estar, com Kitty e as outras, queixava-se com uma tal prodigalidade de pormenores que as amigas, perdidas de riso, lhe tinham de pedir que se calasse.)
— Pronto, já está despachada — disse ela, guardando a lima dentro do estojo e esfregando os dedos poeirentos uns nos outros. — Perfeito.
— Hum, hum. — Lady Gwendolyn endireitou o turbante com as costas da mão, deixando cair a cinza do cigarro, já no fim, que se esquecera de que segurava. Espreitou por cima do nariz e ao longo do vasto oceano purpúreo do seu corpo revestido a chiffon à medida que Dolly lhe levantava os minúsculos pés arranjados para a patroa avaliar o resultado. — Podia ter ficado melhor, mas o que é que hei-de fazer? — observou ela, acrescentando um queixume por já não ser como nos bons velhos tempos, em que tinha uma criada como devia ser para todo o serviço.
Dolly estampou um sorriso airoso na cara e foi buscar os jornais. Havia pouco mais de dois anos que deixara Coventry, e o segundo ano estava a revelar-se de longe melhor do que o primeiro. Era tão verde quando ali chegara — Jimmy ajudara-a a arranjar um pequeno quarto só para ela (numa zona da cidade melhor do que aquela em que ele morava, comentara ele com um sorriso arreganhado) e um emprego a vender vestidos, mas depois a guerra começara e ele desaparecera. «As pessoas querem notícias da linha da frente», explicara-lhe Jimmy na véspera da sua partida para França, estavam ambos sentados à beira do Serpentine, ele a lançar barcos de papel à água, ela a fumar, mal-humorada. «Alguém tem de as dar.» O mais próximo que Dolly chegara do glamour ou do entusiasmo naquele primeiro ano fora um ocasional vislumbre de uma mulher elegantemente vestida ao passar pelos armazéns John Lewis a caminho de Bond Street, e os olhos arregalados de atenção das outras hóspedes da pensão da Sr.ª White, quando se reuniam na sala de estar a seguir ao jantar e suplicavam a Dolly que lhes contasse outra vez como o pai tinha gritado com ela quando se viera embora de casa e lhe dissera que nunca mais queria que ela voltasse a pôr lá os pés. Sempre que descrevia a forma como o portão se fechara nas suas costas, a maneira como atirara o lenço por cima do ombro e se dirigira a passo resoluto à estação do comboio sem lançar um único olhar à família ou à casa, sentia-se interessante e destemida. Mais tarde, porém, sozinha na sua cama estreita no quarto esconso e escuro, a recordação não deixava de lhe provocar um leve arrepio de frio.
Tudo mudara, porém, depois de ter perdido o emprego de caixeira nos armazéns John Lewis. (Um mal-entendido ridículo, na verdade, Dolly não tinha culpa de certas pessoas não apreciarem a sinceridade, e era um facto indesmentível que as saias curtas não assentavam bem a toda a gente.) Fora o Dr. Rufus, o pai de Caitlin, que viera em seu auxílio. Ao ser informado do incidente, mencionara que um conhecido seu andava à procura de uma acompanhante para a tia.
— Uma velha senhora de calibre — avisara-a ele durante um almoço no Savoy. Uma vez por mês, quando vinha a Londres, o Dr. Rufus levava Dolly a um «sítio especial», por hábito, enquanto a esposa andava entretida nas compras com Caitlin. — Bastante excêntrica, ao que ouvi dizer, solitária. Nunca recuperou depois de a irmã ter saído de casa para se casar. Dás-te bem com os idosos?
— Sim — respondeu Dolly, concentrada no seu cocktail de champanhe. Era a primeira vez que tomava um e deixara-a um tanto ou quanto zonza, embora de uma forma inesperadamente agradável —, acho que sim. Porque não haveria de dar? — Fora quanto bastara para o Dr. Rufus ficar todo satisfeito. Escreveu-lhe uma carta de recomendação e dera uma palavrinha ao amigo; oferecera-se mesmo para a levar de automóvel à entrevista. Por vontade do sobrinho, a casa ancestral ficaria fechada até ao fim da guerra, explicara-lhe o Dr. Rufus enquanto andavam às voltas por Kensington, mas a tia opusera-se peremptoriamente. A velha criatura obstinada (o Dr. Rufus não tinha outro remédio senão admirar-lhe a coragem) recusara-se a ir com a família do sobrinho para a propriedade rural, onde estaria a salvo, fazendo finca-pé e ameaçando chamar o advogado caso não a deixassem em paz e sossego.
Desde então, ao longo dos dez meses em que trabalhara para Lady Gwendolyn, Dolly tornara a ouvir aquela história muitas vezes. A velha senhora, que mostrava um prazer especial em revisitar as desconsiderações que os demais lhe faziam, comentara com ela que o «manhoso» do sobrinho tentara obrigá-la a sair de casa — «contra a minha vontade» —, mas que ela insistira em ficar «no único sítio onde fui feliz. Foi aqui que crescemos, a Henny Penny[10] e eu. Se me quiserem tirar daqui, vão ter de me levar de caixão. E, mesmo assim, se o Peregrine se atrever a tanto, pode ter a certeza de que arranjarei maneira de o assombrar». Dolly, pela parte que lhe tocava, deliciava-se com a atitude de Lady Gwendolyn, pois fora a insistência da velha senhora em não arredar pé que lhe permitia morar na magnífica casa de Campden Grove.
E era sem dúvida magnífica. A fachada do número 7 era clássica: três pisos acima do nível do solo e outro abaixo, paredes de estuque branco com relevos pretos, resguardada do passeio por um pequeno jardim; o interior, todavia, era sublime. Paredes forradas a papel William Morris por todo o lado, mobiliário esplêndido que ostentava a pátina divina de gerações, prateleiras que rangiam sob o peso requintado de pratas, porcelanas e cristais raros. Contrastava em absoluto com a pensão da Sr.ª White em Rillington Place, onde Dolly entregava metade do seu salário semanal de caixeira a troco do privilégio de dormir num quarto que em tempos havia sido um armário que parecia cheirar sempre a carne de vaca picada em lata. A partir do momento em que transpusera a soleira de Lady Gwendolyn, Dolly percebeu que, custasse o que custasse, inclusive vender a alma ao diabo, se preciso fosse, tinha de arranjar maneira de ir morar entre aquelas paredes.
E assim fora. Lady Gwendolyn era a única desvantagem: o Dr. Rufus tivera razão quando dissera que ela era excêntrica; esquecera-se porém de mencionar que andava a marinar na vinha-d’alhos do abandono havia quase três décadas. Os resultados eram deveras alarmantes, e Dolly passara os primeiros seis meses convencida de que a patroa estava prestes a despachá-la para a B. Cannon & Co para ser transformada em cola. Agora, porém, já aprendera a conhecê-la: Lady Gwendolyn podia ser brusca às vezes, mas era só uma questão de feitio. Dolly havia também descoberto recentemente, para sua grande satisfação, que, no que se referia à acompanhante da velha senhora, a rispidez escondia um profundo afecto.
— Vamos então dar uma vista de olhos às manchetes? — sugeriu Dolly em tom animado, regressando ao seu poiso, aos pés da cama.
— Como queira. — Lady Gwendolyn encolheu os ombros com ar de indiferença, assentando uma mão pequena e húmida na barriga e depois a outra por cima. — A mim, tanto se me dá como se me deu.
Dolly abriu a última edição da revista semanal feminina The Lady e folheou-a até chegar às páginas da alta sociedade; clareou a voz, adoptou um tom de reverência adequado ao momento e começou a ler as notícias sobre as pessoas cujas vidas pareciam pertencer ao reino da fantasia. Era um mundo de cuja existência Dolly jamais suspeitara: claro que já vira casas senhoriais nos arredores de Coventry e, ocasionalmente, ouvira o pai falar com ares de importância acerca de um encargo especial para uma das melhores famílias, todavia, as histórias que Lady Gwendolyn lhe contava (quando estava com disposição para tal) acerca das aventuras que tivera com a irmã, Penélope — dos tempos em que frequentavam o Café Royal, de quando tinham morado juntas em Bloomsbury, posado para um escultor que estava apaixonado por ambas —, bom, excediam largamente as fantasias mais extravagantes de Dolly, e isso por si só já era dizer muito.
Enquanto Dolly lhe lia as novidades do dia a respeito da nata da sociedade, Lady Gwendolyn, ostensivamente refastelada nas suas almofadas de cetim, ouvia atentamente cada palavra com ar de pretenso desinteresse. Era sempre assim; a sua curiosidade era tanta que nunca conseguia resistir por muito tempo.
— Oh, meu Deus, parece que as coisas não estão a correr nada bem entre Lorde e Lady Horsquith.
— Divórcio, não é? — A velha senhora fungou.
— É o que se lê nas entrelinhas. Ela anda outra vez metida com o tal fulano, o pintor.
— Não é nada que me surpreenda. Não sabe o que é a discrição, aquela mulher, é completamente dominada pelas suas — Lady Gwendolyn franziu o lábio superior à medida que sentenciava o culpado — paixões doentias. (Carregando no «ai», arrastando o ditongo numa pronúncia chique e encantadora que Dolly gostava de praticar quando se achava sozinha.) — Tal e qual como a mãe, em tempos.
— Então, e quem era a mãe dela, afinal?
Lady Gwendolyn revirou os olhos para o medalhão bordeaux do tecto.
— Francamente, quase poderia jurar que o Lionel Rufus não me disse nada a respeito de você ser de compreensão lenta. Eu talvez me tivesse oposto a ter uma espertalhona em casa, mas uma imbecil é que não vou aturar com certeza. Você é imbecil, Menina Smitham?
— Espero bem que não, Lady Gwendolyn.
— Hum, hum — disse ela, num tom que sugeria que ainda era um caso a decidir. — A mãe de Lady Horsquith, Lady Prudence Dyer, era uma mulher sem rodeios e maçadora que nos costumava dar cabo do juízo com as suas manias do voto feminino. A Henny Penny fazia umas imitações engraçadíssimas da mulher... Quando estava para aí virada, ela tinha um piadão. Ora, Lady Prudence tantas fez que acabou por esgotar a paciência das pessoas e, a dada altura, já ninguém do nosso meio conseguia aturar a companhia dela por um instante que fosse. Podemos ser egoístas, mal-educadas, atrevidas ou malvadas, mas nunca maçadoras, Dorothy, nunca. Passados uns tempos, inesperadamente, ela desapareceu.
— Desapareceu?
Lady Gwendolyn fez um floreado vagaroso com o pulso, deixando cair cinza como pó mágico.
— Apanhou um barco para a Índia, a Tanzânia, a Nova Zelândia... só Deus sabe. — A boca descaiu-lhe num beiço, a fazer lembrar uma truta, e ela deu a impressão de se pôr a mastigar qualquer coisa: um resto de almoço que desencantou entre os dentes, ou um naco suculento de informações secretas, era difícil precisar. Até que, finalmente, com um sorriso matreiro, acrescentou: — Ora bem, isto é, houve um passarinho que me contou que ela se foi esconder com um nativo qualquer num sítio medonho chamado Zanzibar.
— Não me diga!
— Ai digo, digo. — Lady Gwendolyn puxou uma fumaça tão enfática do cigarro que os seus olhos se assemelharam a duas ranhuras onde introduzir moedas. Para uma mulher que não se atrevia a pôr o pé fora da sua alcova desde que a irmã saíra de casa, ia para trinta anos, estava de facto muitíssimo bem informada. Havia muito pouca gente na The Lady que ela não conhecesse, e era dotada de um talento particular para convencer os outros a vergar-se aos seus desejos. Se até Caitlin Rufus se casara com quem se casara por decreto de Lady Gwendolyn: um indivíduo já avançado nos anos, mas formidavelmente rico. Caitlin, por seu turno, tornara-se uma enfadonha de primeira água, passando horas a lastimar-se do aborrecimento que era casar-se («Oh, tu nem fazes ideia, Dolly») e comprar uma casa precisamente quando os melhores papéis de parede estavam a ser retirados das lojas. Dolly vira O Marido uma ou duas vezes e rapidamente chegara à conclusão de que deveria haver uma maneira mais fácil de ter coisas bonitas do que casando com um homem cuja ideia de um serão bem passado era jogar whist e dar uns apalpões à criada escondido atrás dos cortinados da sala de jantar.
Lady Gwendolyn agitou a mão com impaciência para que Dolly retomasse a leitura, e esta obedeceu prontamente.
— Oh, olhe, aqui está uma notícia animadora. Lorde Dumphee ficou noivo da Honorável Eva Hastings.
— Não há nada de animador num noivado.
— Claro que não, Lady Gwendolyn. — Era sempre um assunto em relação ao qual era necessário proceder com mil cuidados.
— Está muito bem para uma rapariga apagada atrelar a roda dela à carroça de um homem, mas considere-se desde já avisada, Dorothy... Os homens gostam de passar um bom bocado e não há nenhum que não queira caçar o prémio mais apetecível, mas e depois? Depois acabam-se os jogos e a diversão. Os jogos dele, a diversão dela. — Torceu o pulso. — Vá lá, leia o resto. O que é que diz a notícia?
— Neste sábado à noite vai haver uma festa para celebrar o noivado.
Esta notícia despertou um resmoneio levemente interessado.
— Em Dumphee House? Um sítio magnífico. Eu e a Henny Penny estivemos lá uma vez num baile. Já para o final, as pessoas descalçaram-se e foram a dançar para dentro da fonte... A festa vai ser em Dumphee House, não vai?
— Não. — Dolly noticia. — Dá ideia que não. Aqui diz que vão dar uma festa exclusivamente por convite no 400 Club.
Enquanto Lady Gwendolyn se lançava numa tirada violenta contra o baixo nível daqueles estabelecimentos — «Clubes nocturnos!» —, Dolly deixou o pensamento vaguear. Só estivera no 400 numa ocasião, com Kitty e uns soldados amigos dela. Situado nas profundezas das caves adjacentes ao edifício que outrora albergara o Alhambra Theatre, em Leicester Square, onde reinavam a penumbra, a intimidade e o mais escuro dos vermelhos até aonde a vista alcançava: a seda nas paredes, as banquetas de peluche, cada uma com a sua vela trémula, os cortinados de veludo que se derramavam como vinho para ir ao encontro das alcatifas escarlates.
Havia música e risos e empregados por todo o lado, e casais a menear-se sonhadoramente na pequena pista de dança escura. E quando um soldado já bem enfrascado de uísque e um inchaço algo desconfortável nas calças se chegara a ela e, com voz pastosa e arrastada, lhe sussurrara todas as coisas que gostaria de lhe fazer quando a apanhasse sozinha, Dolly espreitara-lhe por cima do ombro e vira uma série de criaturas jovens e animadas — mais bem vestidas, mais bonitas, simplesmente mais, do que os restantes frequentadores do clube — a esgueirarem-se por detrás de um cordão vermelho e a serem recebidas por um indivíduo baixo com um bigode preto e comprido. («O Luigi Rossi!», dissera-lhe Kitty com um aceno de cabeça autorizado quando estavam de volta a Campden Grove, a saborear um último gim com limão debaixo da mesa da cozinha. «Não sabias? Quem dirige o negócio é ele.»)
— Já estou farta de novidades — resmungou Lady Gwendolyn, apagando a beata do cigarro na embalagem aberta de unguento de milho na mesa-de-cabeceira. — Estou cansada e não me sinto bem. Preciso de uma das minhas guloseimas. Ah, mas não sei se me aguentarei por muito mais tempo. A noite passada mal preguei olho, por causa barulheira, aquela barulheira terrível.
— Pobre Lady Gwendolyn! — lastimou-a Dolly, pondo a The Lady de lado e indo buscar o saco das guloseimas da grande dama. — Bem podemos agradecer ao maldito do senhor Hitler por isso, os seus bombardeiros são mesmo...
— Não me refiro aos bombardeiros, sua rapariga tola. Estou a falar delas. As outras, com as suas... — estremeceu num gesto teatral e o timbre da sua voz baixou: — ... gargalhadas infernais.
— Ah! — exclamou Dolly. — Elas.
— Um bando de raparigas pavorosas — declarou Lady Gwendolyn, que ainda estava para conhecer alguma delas. — Escriturárias, ainda para mais, que dactilografam para os ministérios... Não admira que sejam rápidas. O que teria passado pela cabeça do Gabinete de Guerra? Eu reconheço, claro, que em algum sítio elas tenham de ficar, mas tinha de ser aqui? Na minha linda casa? O Peregrine está possesso... As cartas que eu tenho recebido! A ideia de ter semelhantes criaturas a viver no meio das relíquias de família é-lhe simplesmente insuportável. — O desagrado do sobrinho ameaçou roubar-lhe um sorriso; todavia, a profunda amargura que ia no íntimo de Lady Gwendolyn não tardou a abafá-lo. Estendeu uma mão para agarrar no pulso de Dolly. — Elas não andam a trazer homens para minha casa, pois não, Dorothy?
— Ah, não, Lady Gwendolyn. Elas sabem o que a senhora pensa a respeito disso.
— Porque eu não admito tal coisa. Não admito que haja fornicação debaixo do meu tecto.
Dolly acenou solenemente com a cabeça. Esta, sabia ela, era A Questão Fulcral inerente à severidade da patroa. O Dr. Rufus explicara-lhe tudo a respeito da irmã de Lady Gwendolyn, Penélope. Haviam sido inseparáveis quando eram pequenas, disse-lhe ele, tão parecidas em modos e aparência que, apesar dos dezoito meses de diferença, passavam facilmente por gémeas. Iam a bailes, faziam fins-de-semana em mansões no campo, sempre as duas juntas; contudo, Penélope cometera um crime que a irmã nunca haveria de lhe perdoar. «Apaixonou-se e casou-se», dissera-lhe o Dr. Rufus, puxando uma fumaça do charuto com a satisfação de um contador de histórias ao atingir o ponto culminante da narrativa. «E, por conseguinte, partiu o coração da irmã.»
— Pronto, pronto — disse Dolly, agora em tom apaziguador. — As coisas não irão chegar a esse ponto, Lady Gwendolyn. Quando menos der por isso, já a guerra terá acabado e elas terão voltado para de onde quer que tenham vindo. — Dolly não fazia a mínima ideia se isto era verdade ou não (pela parte que lhe tocava, esperava que não fosse: o casarão era muito sossegado à noite, e Kitty e as colegas sempre a entretinham), mas era a única coisa a dizer, sobretudo estando a velha senhora tão transtornada. Pobrezinha, devia ser terrível perder a sua alma gémea. Dolly não conseguia imaginar a vida sem a dela.
Lady Gwendolyn recostou-se na almofada. A sua diatribe contra os clubes nocturnos e respectivos males, a sua imaginação fértil no que tocava ao comportamento babilónico dentro de sua casa, as recordações da irmã e a ameaça de fornicação sob o seu tecto... tudo isto tivera o seu preço. Estava exausta e esgotada, tão amarfanhada como o balão de barragem que aterrara em Notting Hill num daqueles dias.
— Aqui tem, Lady Gwendolyn — disse-lhe Dolly. — Olhe só para este delicioso caramelo de manteiga que eu encontrei. Vai saboreá-lo e depois vamos deixá-la descansar, está bem?
— Bom, então, está bem — resmungou a velha senhora. — Mas só uma hora, Dorothy, não mais do que isso. Não me deixe dormir depois das três... Não quero perder o nosso jogo de cartas.
— Nem pensar em tal coisa! — disse Dorothy, enfiando o caramelo entre os lábios franzidos da patroa.
Com a velha senhora entretida a chupar desalmadamente, Dorothy foi até à janela e correu os cortinados à prova de luz. No momento em que desapertava os laços que seguravam os cortinados, a sua atenção recaiu na casa em frente e o que viu causou-lhe um sobressalto.
Vivien estava lá outra vez. Sentada à secretária, por detrás da janela protegida com fita adesiva, imóvel como uma estátua à excepção dos dedos de uma mão, que torciam a ponta do colar de pérolas comprido. Dolly acenou-lhe energicamente, desejosa de que a amiga a visse e lhe acenasse por sua vez, mas ela não viu, estava absorta nos seus pensamentos.
— Dorothy?
Dolly pestanejou. Vivien (que se escrevia como Vivien Leigh, a sortuda) era muito provavelmente a mulher mais bonita que algum dia vira. Tinha um rosto em forma de coração, cabelo castanho-escuro que brilhava enrolado num coque vitoriano, e uns lábios carnudos pintados de vermelho-escarlate. Os seus olhos eram bem espaçados e emoldurados por umas sobrancelhas dramaticamente arqueadas, tal e qual como as de Rita Hayworth ou Gene Tierney, mas a sua beleza ia muito para além destes pormenores. Não eram as saias e as blusas elegantes que ela usava, era a maneira como as usava, com desenvoltura e descontracção; eram os colares de pérolas que usava airosamente em volta do pescoço, o Bentley castanho que costumava conduzir até o entregar, qual par de botas sobresselentes, ao Serviço de Ambulâncias. Era a história trágica que pouco a pouco Dolly fora conhecendo: órfã em criança, criada por um tio, casada com um escritor rico e bem-parecido chamado Henry Jenkins, que tinha um cargo importante no Ministério da Informação.
— Dorothy? Chegue aqui para me ajeitar os lençóis e dar-me a minha máscara de dormir.
Em circunstâncias normais, Dorothy teria sentido uma certa inveja de ter uma mulher com estas características a morar tão perto de si, mas com Vivien era diferente. Toda a vida, Dolly desejara ter uma amiga como ela. Alguém que realmente a compreendesse (não como a enfadonha e velha da Caitlin ou a tola e frívola da Kitty), alguém com quem pudesse andar de braço dado por Bond Street, elegante e animada, enquanto as pessoas se viravam para olhar para ambas, a tecer comentários nas suas costas a respeito das duas belezas morenas de pernas compridas, do seu charme desenvolto. E agora, finalmente, encontrara Vivien. Desde a primeira vez em que tinham passado uma pela outra no Grove, em que os seus olhares se haviam cruzado e elas tinham trocado um sorriso — um sorriso reservado, entendido, cúmplice —, tornara-se óbvio para ambas que eram almas gémeas e estavam destinadas a ser grandes amigas.
— Dorothy!
Dolly desviou a atenção da janela com um sobressalto. Lady Gwendolyn arranjara uma terrível confusão de chiffon purpúreo e almofadas de penas de ganso, e estava agora de sobrolho franzido, as faces ruborizadas, no meio daquele alvoroço.
— Não consigo encontrar a minha máscara de dormir.
— Pronto, não se aflija — disse-lhe Dolly, deitando uma última olhadela a Vivien antes de correr os cortinados à prova de luz. — Vamos ver se as duas a conseguimos encontrar.
Após uma curta busca bem-sucedida, a máscara apareceu, espalmada e quente por baixo da coxa esquerda e substancial de Lady Gwendolyn. Dolly retirou-lhe o turbante escarlate e colocou-o no busto de mármore em cima da cómoda, enfiando em seguida a máscara de cetim pela cabeça da patroa.
— Cuidado! — Lady Gwendolyn. — Se ma pões em cima do nariz dessa maneira, não consigo respirar.
— Oh, mil perdões — disse Dolly. — Não é essa a nossa intenção, pois não?
— Hum, hum. — A velha senhora reclinou a cabeça nas almofadas, descaindo-a para trás a tal ponto que a sua cara parecia flutuar acima do resto do corpo, uma ilha rodeada de um mar de pregas de carne. — Setenta e cinco anos, todos eles longos, e o que tenho eu para mostrar? Abandonada pelos meus entes queridos, a minha companheira mais chegada é uma rapariga a quem tenho de pagar pela maçada de tratar de mim.
— Então, então — apaziguou-a Dolly, como se falasse com uma criança birrenta —, o que vem a ser isso de maçada? Não diga isso nem a brincar, Lady Gwendolyn. A senhora sabe bem que eu trataria de si mesmo de graça.
— Claro, claro — resmungou a patroa. — Bom, já chega desta conversa.
Dolly aconchegou Lady Gwendolyn entre os cobertores. A velha senhora ajeitou o queixo ao debrum de cetim e disse-lhe:
— Sabe o que é que eu devia fazer?
— O quê, Lady Gwendolyn?
— Devia deixar-lhe tudo o que tenho em herança. Era da maneira que o intriguista do meu sobrinho levava uma bela lição. Sai bem ao pai dele, este rapaz... não descansa enquanto não roubar tudo o que eu tenho de mais querido. Estou quase decidida a mandar chamar o meu advogado e oficializar a questão.
Na verdade, pouco ou nada havia a dizer perante semelhantes comentários; era naturalmente emocionante saber que Lady Gwendolyn a tinha em tão elevada estima, mas mostrar satisfação teria sido extremamente grosseiro da sua parte. Impante de orgulho, Dolly deu meia-volta e atarefou-se a ajeitar o turbante da velha senhora.
*
O Dr. Rufus foi a primeira pessoa a chamar a atenção de Dolly para o plano que Lady Gwendolyn tinha em mente. Num dos almoços de ambos, umas semanas antes, e depois de uma longa e esclarecedora conversa sobre a vida social de Dolly («Então, e no que respeita a namorados, Dolly? Uma rapariga como tu deve seguramente ter dúzias de jovens atrás de si, não é verdade? Segue o meu conselho: escolhe um indivíduo mais velho, com uma boa profissão... alguém em condições de te dar tudo o que tu mereces»), ele perguntara-lhe como lhe corria a vida em Campden Grove. Quando ela lhe respondera que achava que corria bem, o Dr. Rufus rodopiara o copo de uísque fazendo tilintar os cubos de gelo e deitara-lhe uma piscadela de olho.
— Melhor do que bem, ao que ouço dizer. Ainda na semana passada recebi uma carta do velho Peregrine Wolsey. Contou-me que a tia gostava tanto da «minha menina», e estou a citá-lo — o Dr. Rufus pareceu perder-se num devaneio momentâneo, até que se recordou de onde estava e prosseguiu: —, que andava apoquentado por causa da herança. Confessou-me que estava aborrecidíssimo comigo por te ter enfiado em casa da tia. — Com isto, soltou uma gargalhada, mas Dolly limitou-se a esboçar um sorriso tímido. Durante o resto do dia, e da semana seguinte, as palavras do Dr. Rufus não lhe saíram do pensamento.
O cerne da questão era que o que Dolly dissera ao Dr. Rufus correspondia à verdade. Após um início vacilante, Lady Gwendolyn, cujo desprezo pelos demais seres humanos tinha reputada fama (fama essa que a própria fazia questão de propagar), desenvolvera uma predilecção pela sua jovem acompanhante. O que em si era óptimo. Pena era que Dolly tivesse sido obrigada a pagar um preço tão alto pelo afecto da velha senhora.
O telefonema chegou em Novembro; a cozinheira atendera e chamara Dolly, dizendo que era para ela. A recordação era agora penosa, mas Dolly ficara tão entusiasmada por alguém querer falar com ela ao telefone numa casa tão distinta que correra escada abaixo, agarrara no auscultador e assumira a sua voz mais importante:
— Está lá? Daqui fala Dorothy Smitham.
Fora então que ouvira a voz da Sr.ª Potter, a amiga e vizinha do lado da mãe, em Coventry, a comunicar-lhe aos gritos sobre a família:
— Morreram todos, não ficou nem um. Uma bomba incendiária... não tiveram tempo de fugir para o Andy.
Naquele momento, abrira-se um precipício no íntimo de Dolly: tinha a sensação de que o seu estômago se abatera e que, em seu lugar, havia agora uma grande esfera turbilhonante de choque, perda e medo. Deixara cair o telefone e ali ficara no enorme vestíbulo do número 7 de Campden Grove, sentindo-se infinitesimamente pequena, sozinha e ao sabor dos caprichos do próximo vento que se lembrasse de soprar. Todas as facetas de Dolly, as recordações que guardava dos diversos momentos da sua vida, desmoronaram-se como um castelo de cartas, aterrando de forma desordenada, as imagens no verso já sumidas. A ajudante cozinheira chegou naquele momento e deu-lhe os bons-dias, e a única vontade de Dolly foi desatar a gritar-lhe que era tudo menos bom dia, que tudo mudara, seria possível que a estúpida da rapariga não visse isso? Mas não fez nada disso. Ao invés, sorriu-lhe e disse-lhe: «Bom dia», e obrigara-se a voltar para o primeiro andar, onde Lady Gwendolyn tocava energicamente a sua campainha de prata e tacteava à sua volta à procura dos óculos que, por descuido, perdera.
A princípio, Dolly não contou a ninguém o que acontecera à família, nem sequer a Jimmy, que soubera obviamente da notícia e estava desejoso por a consolar. Quando ela lhe disse que estava bem, que estavam em guerra e que toda a gente acabaria, de uma maneira ou de outra, por sofrer as suas perdas, ele julgou que ela estava a ser corajosa, mas não era este o motivo do silêncio de Dolly. Os seus sentimentos eram tão complicados, as recordações da sua saída intempestiva de casa tão à flor da pele, que lhe parecia melhor não começar a falar com receio do que pudesse dizer ou de como se pudesse sentir. Nunca mais vira os pais desde que viera para Londres: o pai proibira-a de entrar em contacto com a família a menos que fosse para começar a «comportar-se como devia ser», mas a mãe escrevia-lhe cartas em segredo, de forma regular se não mesmo calorosa, tendo recentemente sugerido uma ida a Londres a fim de ver com os seus próprios olhos «a casa chique e a grande senhora acerca de quem tanto me tens escrito». Agora, porém, era tarde de mais. A mãe nunca haveria de conhecer Lady Gwendolyn, nem de pôr os pés dentro do número 7 de Campden Grove, e muito menos apreciar a vida bem-sucedida que Dolly conseguira criar.
E quanto ao pobre Cuthbert... Dolly mal se atrevia a pensar nele. Também se lembrava da última carta do irmão, palavra a palavra: a forma como ele descrevera em grande pormenor o abrigo Anderson que andavam a construir no jardim das traseiras, as fotografias de caças Spitfires e Hurricanes que coleccionava para decorar o interior, o que tencionava fazer aos pilotos alemães que capturasse. Andava tão orgulhoso e iludido, tão entusiasmado com o papel que lhe cabia desempenhar na guerra, tão gordo e desajeitado, um bebé tão bem-disposto, e agora morrera. E a tristeza que Dolly sentia, a solidão que a afligia agora por se saber órfã, era tão imensa que não via alternativa se não dedicar-se ao trabalho em casa de Lady Gwendolyn e dar o assunto por encerrado.
Até que um dia a velha senhora se entregou a reminiscências acerca da linda voz que tinha quando era nova, e Dolly lembrara-se da mãe, e da caixa azul que tinha escondida na garagem, cheia de sonhos e recordações que agora estavam reduzidas a escombros, e desfez-se em lágrimas, precisamente ali, aos pés da cama da velha senhora, de lima das unhas em punho.
— O que é que se passa? — perguntara-lhe Lady Gwendolyn, a sua boca miúda aberta para revelar um choque equivalente ao que poderia ter sentido se Dolly se tivesse despido e começado a dançar pelo quarto.
Apanhada num raro momento desprevenido, Dolly contara tudo a Lady Gwendolyn. A mãe, o pai e Cuthbert, como eles eram, o género de coisas que diziam, as ocasiões em que lhe tinham feito perder as estribeiras, as tentativas da mãe para lhe escovar o cabelo e a resistência de Dolly, as temporadas à beira-mar, o críquete e o burro. Por fim, Dolly falara-lhe da maneira intempestiva como saíra de casa, mal se virando para trás quando a mãe a chamara — logo Janice Smitham, que preferia passar fome a elevar a voz ao alcance dos ouvidos dos vizinhos — e correra a buscar o livro que comprara para Dolly como presente de despedida.
— Hum, hum — dissera Lady Gwendolyn quando Dolly dera o seu relato por concluído. — Dói, claro que dói, mas a menina não é a primeira pessoa a perder a família.
— Eu sei. — Dolly respirou fundo. O quarto parecia ecoar o som das suas palavras de havia momentos, e perguntou-se se estaria prestes a ser despedida. Lady Gwendolyn não gostava de explosões temperamentais (a menos que partissem dela própria).
— Quando me levaram a Henny Penny, eu julguei que ia morrer.
Dolly assentiu com a cabeça, ainda à espera de que o machado caísse.
— Mas a menina ainda é jovem; há-de conseguir recuperar. Basta olhar para aquela que mora aí em frente.
Era verdade, a vida de Vivien acabara por se transformar num mar de rosas, mas havia algumas diferenças notórias entre ambas.
— Ela tinha um tio rico que a acolheu — disse Dolly em voz sumida. — Herdou uma grande fortuna, casou-se com um escritor famoso. E eu sou... — Mordeu o lábio inferior, fazendo o possível por não começar a chorar outra vez. — Sou...
— Bom, a menina também não está completamente sozinha, pois não, sua rapariga tola?
Lady Gwendolyn estendeu o saco das guloseimas e, pela primeira vez, ofereceu uma a Dolly. Esta demorou uns instantes a compreender o que a velha senhora lhe estava a sugerir, mas quando isso finalmente aconteceu, Dolly enfiou uma mão tímida no saco e retirou um rebuçado vermelho e verde. Ficou com ele na mão, escondido entre os dedos, sentindo-o derreter contra a palma quente. Dolly respondeu-lhe em tom solene:
— Tenho-a a si.
Lady Gwendolyn fungou e desviou o olhar.
— Temo-nos uma à outra, creio eu — concluiu ela, com uma voz aflautada por uma emoção imprevista.
*
Dolly chegou ao seu quarto e juntou a mais recente edição da The Lady à pilha das outras. Mais tarde, vê-la-ia com mais atenção e recortaria as melhores fotografias para as colar dentro do seu Livro de Ideias, agora, porém, tinha coisas mais importantes com que se ocupar.
Pôs-se de gatas e espreitou para debaixo da cama, à procura da banana que lá guardava desde terça-feira, quando o Sr. Hopton, o merceeiro, a «encontrara» para ela escondida debaixo do balcão. A trautear uma melodia baixinho, esgueirou-se sorrateiramente do quarto e foi pelo corredor fora. Na realidade, não havia qualquer razão para aquela atitude furtiva — Kitty e as colegas estavam ocupadas a martelar nas máquinas de escrever no Gabinete de Guerra, a cozinheira encontrava-se na fila do talho armada com uma mão-cheia de senhas de racionamento e o seu péssimo feitio, e Lady Gwendolyn ressonava tranquilamente na sua cama —, mas tinha muito mais piada esgueirar-se do que andar. Sobretudo quando dispunha de uma gloriosa hora inteira de liberdade à sua frente.
Correu escada acima, pegou na pequena chave que fizera e entrou no quarto de vestir de Lady Gwendolyn. Não o armário acanhado onde todas as manhãs Dolly escolhia um macacão fluido para a grande senhora usar; não, esse não. O quarto de vestir era um aposento onde era guardada uma quantidade infindável de vestidos, e sapatos, e casacos, e chapéus, do género que Dolly raras vezes vira fora das páginas das revistas da alta sociedade. Sedas e peles estavam penduradas lado a lado em enormes roupeiros abertos, e pares de pequenos sapatos de cetim, feitos por medida, eram exibidos airosamente nas robustas prateleiras. As caixas de chapéus circulares, ostentando orgulhosamente o nome dos chapeleiros de Mayfair — Schiaparelli, Coco Chanel, Rose Valois —, erguiam-se em direcção ao tecto em colunas tão altas que a patroa tinha mandado instalar um elegante escadote branco para permitir chegar-lhes.
Na sacada da janela, com os seus ricos cortinados de veludo que roçavam a alcatifa (agora sempre corridos por causa dos aviões alemães), em cima de uma mesa de pernas cabriole, viam-se um espelho oval, um conjunto de escovas de prata de lei, bem como uma série de fotografias em molduras requintadas. Todas elas ostentavam duas jovens, Penélope and Gwendolyn Caldicott, e eram na sua maioria retratos oficiais com o nome do estúdio em cursivo no canto inferior, embora nalgumas tivessem sido apanhadas desprevenidas, numa ou noutra festa da alta sociedade. Havia uma fotografia em particular que nunca deixava de atrair a atenção de Dolly. As duas irmãs Caldicott já eram mais velhas — trinta e cinco anos, pelo menos — e tinham sido fotografadas por Cecil Beaton numa grande escada em caracol. Lady Gwendolyn posava com uma mão descaída na anca, de olhar fixo na máquina, enquanto a irmã observava algo (ou alguém) fora do alcance da objectiva. A fotografia fora tirada na festa em que Penélope se apaixonara, a noite em que o mundo da irmã havia desmoronado.
Pobre Lady Gwendolyn; mal sabia ela que a sua vida estava destinada a mudar naquela noite. E, ainda para mais, estava tão bonita; custava muito a acreditar que a velha senhora que dormia no primeiro andar algum dia fora jovem ou atraente. (Dolly, à semelhança de todos os jovens, talvez, não imaginava por um instante sequer que o mesmo destino lhe estava reservado.) Era um exemplo claro, pensou ela com tristeza, de até que ponto a perda e a traição podiam afectar uma pessoa, envenenando-a não só por dentro como também por fora. O vestido de noite de cetim que Lady Gwendolyn usava na fotografia era escuro e luminoso, cortado em viés, de modo a aderir delicadamente às suas curvas. Dolly vasculhara os roupeiros de alto a baixo até dar com ele, dobrado por cima de um cabide juntamente com uma série de outros vestidos — imagine-se o prazer dela ao descobrir que era vermelho-escuro, indubitavelmente a mais significativa de todas as cores.
Fora o primeiro dos vestidos de Lady Gwendolyn que experimentara, mas seguramente não o último. Não, antes da chegada de Kitty e das colegas, quando tinha as noites em Campden Grove por sua conta para fazer o que muito bem lhe apetecesse, Dolly costumava passar muito tempo ali em cima, com uma cadeira entalada contra o puxador da porta enquanto se punha em roupa interior e se entretinha a provar os vestidos. Por vezes, também se sentava à mesa, espalhando nuvens de pó-de-arroz sobre o decote à mostra, vasculhando as gavetas cheias de alfinetes de peito de diamantes e penteando o cabelo com a escova de cerdas de javali — o quanto ela não daria para ter uma escova assim, com o seu nome gravado ao longo do cabo...
Hoje, porém, não tinha tempo para tudo isso. Dolly sentou-se de pernas cruzadas no canapé de veludo por baixo do candelabro e começou a descascar a sua banana. Fechou os olhos ao dar a primeira dentada, soltando um suspiro de profunda satisfação — era verdade, os frutos proibidos (ou pelo menos severamente racionados) eram de facto os mais apetecidos. Comeu a banana até ao fim, saboreando cada dentada, e depois estendeu a casca delicadamente a seu lado. Agradavelmente saciada, Dolly sacudiu as mãos e lançou-se ao trabalho. Fizera uma promessa a Vivien e tencionava cumpri-la.
Ajoelhada diante dos cabides com vestidos ondulantes, puxou a caixa de chapéus do sítio onde estava escondida. Já começara a tarefa na véspera, trocando o cloche enfeitado por outro e servindo-se da caixa para guardar uma pequena pilha de roupa que entretanto juntara. Era o género de coisa que Dolly imaginava que poderia ter feito pela própria mãe, caso as coisas tivessem corrido de outra maneira. O Serviço Voluntário Feminino (SVF), a cujas fileiras recentemente aderira, andava a recolher artigos usados a fim de serem remendados, moldados e servirem para o que fosse preciso, e Dolly estava ansiosa por fazer a sua parte. Aliás, queria deixá-las encantadas com a sua contribuição e, aproveitando a deixa, ajudar Vivien, que organizava a recolha.
Na última reunião, houvera discussões acesas acerca de tudo quanto fazia falta, agora que os ataques aéreos se tinham intensificado — ligaduras, brinquedos para as crianças sem tecto, pijamas para os soldados internados nos hospitais —, e Dolly disponibilizara um monte de roupa usada para ser cortada e transformada consoante as necessidades. Na verdade, enquanto as velhas senhoras se entretinham com discussões sobre qual delas era a melhor modista e que padrão deviam usar para as bonecas de trapos, Dolly e Vivien (por vezes tinham a impressão de ser os únicos membros do SVF com menos de cem anos!) haviam trocado um olhar conspiratório e, discretamente, deitado mãos à obra, murmurando uma à outra sempre que precisavam de mais linha ou de outro material qualquer, e fazendo o possível por ignorar a gritaria exaltada ao seu redor.
Fora uma experiência deveras agradável, passarem assim o tempo juntas; fora, aliás, um dos principais motivos por que Dolly aderira ao SVF (isto e a esperança de diminuir as probabilidades de a Labour Exchange[11] a convocar para qualquer tarefa horrenda como, por exemplo, o fabrico de munições). Com o recente apego de Lady Gwendolyn — recusava-se a dispensar Dolly mais do que um domingo por mês — e o horário preenchido de Vivien como esposa e voluntária exemplar, era virtualmente impossível encontrarem-se de outra maneira.
Dolly despachava-se o mais depressa que podia e estava a inspeccionar uma blusa bastante insípida, a tentar decidir se a assinatura Dior na costura a tornava digna de indulto para não reencarnar sob a forma ligaduras, quando um estrondo no rés-do-chão a sobressaltou. A porta da rua bateu, prontamente seguida da cozinheira a chamar aos gritos pela rapariga que vinha da parte da tarde para ajudar nas limpezas. Dolly deitou uma olhadela ao relógio de parede. Eram quase três horas e, por conseguinte, horas de acordar o urso adormecido. Fechou a caixa de chapéus e escondeu-a longe da vista alheia, ajeitou a saia e preparou-se para mais uma tarde a jogar Old Maid[12].
*
— Outra carta do Jimmy — anunciou Kitty, acenando-a a Dolly quando entrou na sala de estar nessa noite. Estava sentada de pernas cruzadas no canapé, enquanto Betty e Susan, a seu lado, folheavam uma edição antiga da Vogue. Tinham afastado o piano de cauda do caminho havia meses, para grande consternação da cozinheira, e a quarta rapariga, Louisa, vestida apenas com a roupa interior, entretinha-se a executar uma série de posturas calisténicas deveras rebuscadas em cima do tapete bessarábio.
Dolly acendeu um cigarro e sentou-se com as pernas dobradas na velha cadeira reclinável de couro. As outras deixavam sempre a cadeira reclinável para Dolly. Embora nunca nenhuma delas fizesse referência explícita a isso, o seu cargo como acompanhante de Lady Gwendolyn conferia-lhe um certo estatuto no seio da pequena família. Alheias ao facto de que Dolly tinha vindo morar para o número 7 de Campden Grove apenas um ou dois meses antes delas, as raparigas viravam-se constantemente para ela, fazendo-lhe toda a sorte de perguntas a respeito do funcionamento da casa e se tinham permissão para a explorar. A princípio, Dolly achara piada a isto, agora, porém, não percebia o motivo; parecia-lhe uma forma de actuação perfeitamente natural por parte das raparigas.
De cigarro na boca, rasgou o envelope. A carta era breve, escrita, conforme dizia, enquanto Jimmy viajava de pé como uma sardinha enlatada num comboio apinhado de soldados, e ela foi percorrendo os gatafunhos a fim de seleccionar as partes mais importantes; Jimmy estivera a tirar fotografias aos estragos causados pela guerra algures no Norte, estava de regresso a Londres por alguns dias e ansioso por vê-la; estaria livre no sábado à noite? Dolly ficou capaz de desatar ao guinchos.
— Pareces o gato que foi às filhós — comentou Kitty. — Anda lá, conta-nos o que é que ele te diz.
Dolly não se dignou a olhar para ela. A carta estava longe de ser suculenta, mas não vinha mal nenhum ao mundo se deixasse as outras pensar o contrário, sobretudo Kitty, que não se cansava de as entreter com pormenores escabrosos acerca da sua última conquista.
— É pessoal — disse ela por fim, acrescentando um sorriso enigmático por via das dúvidas.
— Desmancha-prazeres! — Kitty fez beicinho. — A querer um piloto da RAF[13] todo bonito só para ela! Mas afinal, quando é que te vais encontrar com ele?
— Sim — intrometeu-se Louisa, as mãos assentes nas ancas enquanto se debruçava pela cintura. — Trá-lo cá a casa uma noite para que nós possamos ver com os nossos próprios olhos se é o rapaz indicado para a nossa Doll.
Dolly encarou o peito arfante de Louisa à medida que esta fazia oscilar as ancas de um lado para o outro. Não sabia precisar como fora que elas tinham ficado com a impressão de que Jimmy pertencia à RAF; uma suposição feita havia muitos meses e que, na altura, lhe parecera cativante.
— Lamento, meninas — teimou ela, dobrando a carta em dois. — Neste momento, ele anda muito ocupado... missões de voo secretas, assuntos de guerra, na verdade, não estou autorizada a entrar em pormenores... e, mesmo que estivesse, vocês conhecem as regras.
— Ah, vá lá — insistiu Kitty. — A velha megera nunca há-de descobrir. Ela não vem cá abaixo desde que as carruagens puxadas a cavalos deixaram de estar na moda, e não se dá o caso de alguma de nós se lembrar de lhe ir contar.
— Ela sabe mais do que vocês julgam — afirmou Dolly. — E, para além do mais, confia em mim. Sou a pessoa mais chegada que ela tem. Se suspeitasse sequer de que eu andava a sair com um homem, despedia-me logo.
— Achas que seria capaz de chegar a esse ponto? — indagou Kitty. — Tu podias vir trabalhar connosco. Um sorriso teu e o meu supervisor contratava-te num abrir e fechar de olhos. É um bocado a puxar para o devasso, mas bastante divertido uma vez que aprendemos a lidar com ele.
— Ah, sem dúvida! — exclamaram Betty e Susan, que tinham um jeito especial para falar em uníssono. Levantaram o olhar da revista. — Anda, vem trabalhar connosco.
— E perder a minha oportunidade semanal de arranjar pés? Dificilmente.
Kitty riu-se.
— Tu és maluca, Dolly. Maluca ou corajosa, das duas uma.
Dolly encolheu os ombros; não se iria pôr certamente a discutir os seus motivos para ficar naquela casa com uma metediça da laia de Kitty.
Ao invés, pegou no seu livro. Estava em cima da mesinha de apoio, onde o deixara na noite da véspera. O livro era novo, o primeiro que possuía (salvo o exemplar que nunca chegara a ler de Mrs. Beeton’s Book of Household Management[14] que a mãe tão esperançosamente lhe enfiara nas mãos). Fora propositadamente a Charing Cross Road num dos seus domingos de folga e comprara-o numa das livrarias da zona.
— A Musa Relutante. — Kitty inclinou-se para a frente a fim de ler o título. — Não tinhas lido já esse?
— Duas vezes, na verdade.
— É bom?
— Sim, bastante.
Kitty franziu o narizinho airoso.
— Eu cá não sou dada a grandes leituras.
— Não?! — Dolly também não era, em geral não, mas era escusado Kitty ficar a saber disso.
— Henry Jenkins? Esse nome não me é estranho... Ah, bom, não é o fulano que mora em frente?
Dolly acenou de forma vaga com o cigarro.
— Creio que ele mora aqui por estes lados, sim. — Claro, fora precisamente por causa dele que Dolly escolhera aquele livro. Desde que ouvira Lady Gwendolyn comentar por alto que Henry Jenkins era bem conhecido nos círculos literários por incluir demasiados factos na sua ficção («Um indivíduo cujo nome eu me abstenho de mencionar ficou furioso ao ver a sua roupa suja lavada em público. Ameaçou levar o caso a tribunal, mas morreu antes de ter tempo para isso. Sorte do Jenkins...»), Dolly ficara roída de curiosidade. Após uma conversa dissimulada com o empregado da livraria, chegara à conclusão de que A Musa Relutante era uma história de amor acerca de um autor bem-parecido e da esposa muito mais nova, e não hesitara em desfazer-se das suas preciosas poupanças a troco dele. Depois disso, Dolly passara uma semana deliciosa, os olhos cravados na janela do casal Jenkins, descobrindo toda a sorte de pormenores que jamais se teria atrevido a perguntar descaradamente a Vivien.
— Um fulano tremendamente bonito — observou Louisa, que agora se achava de bruços no tapete, com as costas arqueadas, qual cobra-capelo e de olhar fixo em Dolly. — É casado com aquela mulher de cabelo escuro, aquela que a andar parece que tem uma vassoura enfiada pelo...
— Oh! — gritaram Betty e Susan, arregalando os olhos. — Essa!
— Uma rapariga cheia de sorte — comentou Kitty. — Eu seria capaz de matar para ter um marido como ele. Já viram a maneira como ele olha para ela? Como se ela fosse uma perfeição rematada e ele mal acreditasse na sorte que teve.
— Eu cá não me importava nada se ele olhasse para mim — salientou Louisa. — Onde é que vocês acham que uma rapariga encontra um homem assim?
Dolly sabia a resposta (como Vivien conhecera Henry), estava mesmo ali no livro, à mão de semear, mas coibiu-se de a dar. Vivien era sua amiga. Falar dela naqueles termos, saber que as outras também tinham reparado nela, andado a especular, a interrogar-se e a tirar as suas próprias conclusões, deixava Dolly com as orelhas a arder de indignação. Era como se algo que lhe pertencesse, algo precioso e íntimo por que ela nutria um profundo afecto, estivesse a ser vasculhado como... como uma caixa de chapéus cheia de roupa em segunda mão.
— Ouvi dizer que ela não anda muito bem de saúde — comentou Louisa. — É por isso que ele nunca lhe tira a vista de cima.
Kitty escarneceu da ideia.
— A mim, ela parece-me tudo menos doente. Muito pelo contrário. Uma tarde destas, quando vinha do trabalho, vi-a a apresentar-se na cantina do Serviço Voluntário Feminino, em Church Street. — Baixou a voz e as outras raparigas chegaram-se mais a ela para ouvir melhor. — Constou-me que é por ela ter tendência a distrair-se com outros interesses.
— Ooh! — arrulharam Betty e Susan em coro. — Um amante!
— Não me digam que ainda não se deram conta das atenções que ela tem com o marido? — prosseguiu Kitty, perante a atenção extasiada das outras. — Vem sempre recebê-lo à porta quando ele chega a casa, toda vestida a preceito e com um copo de uísque na mão para lhe oferecer. Por favor! Isso não é amor, é consciência pesada. Atentem bem no que vos digo... Aquela mulher tem qualquer coisa a esconder, e eu acho que todas nós sabemos bem do que se trata.
Dolly já não aguentava ouvir mais; na verdade, estava inteiramente de acordo com Lady Gwendolyn: quanto mais depressa as raparigas abandonassem o número 7 de Campden Grove, melhor. Eram, de facto, uma pandilha muito pouco sofisticada.
— Já viram as horas? — disse ela, fechando o livro com um gesto brusco. — Vou mas é tomar o meu banho.
*
Dolly esperou até que o nível da água atingisse os dez centímetros e fechou a torneira com o pé. Enfiou o dedo grande no bico da torneira para que esta não pingasse. Sabia que deveria chamar alguém para a consertar, mas onde, nos tempos que corriam? Os canalizadores andavam todos demasiado ocupados a apagar incêndios e a fechar condutas de água danificadas durante os bombardeamentos para se preocuparem com uma simples torneira a pingar e, além disso, esta parecia acabar sempre por parar por si. Recostou o pescoço na borda fresca da banheira e ajeitou-se para evitar que os rolos e os ganchos lhe magoassem a cabeça. Pusera um lenço para que o vapor não lhe deixasse o cabelo escorrido — uma doce ilusão, claro; Dolly não se lembrava da última vez em que tomara um banho fumegante.
Fitou o tecto com os olhos semicerrados enquanto a música de dança chegava até ela da telefonia no rés-do-chão. Era de facto uma linda casa de banho, com mosaicos pretos e brancos e torneiras e varões de metal reluzentes. O abominável sobrinho de Lady Gwendolyn, Peregrine, teria um ataque de nervos se visse as cordas estendidas com as suas calcinhas, sutiãs e meias de nylon pendurados a secar. Dolly achava a ideia deveras apelativa.
Esticou-se para ir buscar um cigarro e A Musa Relutante e segurou um em cada mão. Com as duas fora de água (não era difícil: dez centímetros não era nada por aí além), folheou o livro até encontrar a cena que procurava. Humphrey, o escritor talentoso mas infeliz, foi convidado pelo director da sua antiga escola para ir lá dar uma palestra sobre literatura aos alunos, seguida de um jantar nos aposentos privativos do director. Ele acaba de pedir licença para se levantar da mesa e de abandonar a residência e está a atravessar o jardim sombrio em direcção ao sítio onde deixou o automóvel estacionado, a reflectir sobre o rumo que a sua vida tomou, os remorsos que foi acumulando e a «cruel passagem do tempo», quando chega ao velho lago da propriedade e algo atrai a sua atenção:
Humphrey diminuiu a intensidade da luz da sua lanterna e deixou-se ficar onde estava, quieto e silencioso na sombra da casa do lago. Ali próximo, numa clareira à beira da água, viam-se candeeiros de vidro pendurados nos galhos das árvores, cujas velas tremulavam à brisa morna nocturna. Uma rapariga prestes a entrar na idade adulta achava-se entre elas, os pés descalços e com um vestido de Verão muito simples que lhe dava pelos joelhos. O cabelo escuro caía-lhe em ondas até aos ombros, e o luar derramava-se sobre o cenário, iluminando-a de perfil. Humphrey reparou que os seus lábios se moviam, como se ela estivesse a declamar um poema em voz baixa.
O rosto da rapariga era encantador, contudo, foram as suas mãos a fasciná-lo. Enquanto o resto do seu corpo se mantinha perfeitamente imóvel, os dedos movimentavam-se em frente do peito, os gestos pequenos mas graciosos de alguém que tece com fios invisíveis.
Humphrey já conhecera outras mulheres, mulheres bonitas que o adulavam e seduziam, mas aquela rapariga era diferente. Havia beleza na sua concentração, uma pureza de propósitos que lhe fazia lembrar uma criança, embora não restasse qualquer dúvida de que se tratava de uma mulher. Encontrá-la naquele ambiente natural, observar a fluidez desenvolta do seu corpo, a paixão idílica no seu rosto, encantava-o.
Humphrey refugiou-se nas sombras. A rapariga deu por ele, mas não se assustou. Sorriu como se estivesse à sua espera e apontou para as águas ondulantes do lago. «Nadar à luz da Lua tem qualquer coisa de mágico, não acha?»
O capítulo chegara ao fim e o cigarro de Dolly também, e ela pôs ambos de lado. A água começava a ficar tépida e ela queria lavar-se antes de arrefecer por completo. Ensaboou os braços perdida nos seus pensamentos, interrogando-se se Jimmy sentiria o mesmo por ela, à medida que se passava por água.
Dolly saiu da banheira e puxou uma toalha do varão. Vislumbrou-se inesperadamente ao espelho e deixou-se ficar muito quieta, a tentar imaginar o que um estranho veria quando olhasse para ela. Cabelo castanho, olhos castanhos — não demasiado juntos, graças a Deus —, um nariz miúdo ligeiramente atrevido e empertigado. Sabia que era muito bonita, sabia isso desde os onze anos, quando o carteiro se começara a comportar de uma forma estranha sempre que se cruzava com ela na rua, mas seria a sua beleza de um género diferente da de Vivien? Teria um homem como Henry Jenkins parado, enfeitiçado, para a ver sussurrar ao luar?
Porque, obviamente, Viola — a rapariga do livro — era Vivien. Similaridades biográficas à parte, havia a descrição da rapariga à beira do lago ao luar, os seus lábios carnudos, os olhos felinos, a atenção com que fitavam algo que apenas lhe era dado ver a ela. Na verdade, poderia bem ser a descrição de Vivien tal como Dolly a via da janela de Lady Gwendolyn.
Acercou-se mais do espelho. Ouvia a sua própria respiração no silêncio da casa de banho. O que sentiria Vivien, perguntou-se, ao saber que deixara um homem como Henry Jenkins, mais velho e experiente e com livre acesso aos círculos mais requintados da literatura e da alta sociedade, tão fascinado? Deveria ter-se sentido uma autêntica princesa quando ele a pedira em casamento, quando ele a arrancara à monotonia da sua existência quotidiana e a levara para Londres, para uma vida em que ela desabrochara de rapariga rebelde numa beleza enfeitada com pérolas e perfumada com Chanel N.º 5, deslumbrante de braço dado com o marido, enquanto o casal frequentava os clubes e os restaurantes mais requintados. Era essa a Vivien que Dolly conhecia; e, suspeitava, aquela com quem mais se parecia.
Truz! Truz!
— Está gente? — A voz de Kitty do outro lado da porta da casa de banho apanhou Dolly de surpresa.
— É só um instante — respondeu-lhe.
— Ah, bom, estás aí. Começava a recear que te tivesses afogado.
— Não.
— Estás muito demorada?
— Não.
— Só que são quase nove e meia, Doll, e eu tenho um encontro marcado com um aviador espectacular no Caribbean Club. Vem de propósito do aeródromo de Biggin Hill para passar cá a noite. Por acaso não te apetece vir dançar? Ele disse que ia trazer uns amigos. Um deles perguntou por ti em particular.
— Hoje não.
— Tu ouviste-me dizer aviadores, Doll? Heróis corajosos e arrojados.
— Eu já tenho um desses, não te esqueças. Para além do mais, tenho um turno na cantina do Serviço Voluntário Feminino.
— As viúvas, as virgens e as solteironas podem dispensar-te por uma noite, ou não?
Dolly não lhe respondeu e, passados uns instantes, Kitty disse-lhe:
— Bom, já que estás tão decidida... A Louisa está mortinha por ocupar o teu lugar.
Como se ela tivesse gabarito para isso, pensou Dolly.
— Divirtam-se! — gritou-lhe, esperando que os passos de Kitty se afastassem.
Quando por fim ouviu a rapariga a descer a escada, desapertou o lenço e tirou-o da cabeça. Sabia que teria de voltar a pôr os rolos mais tarde, mas não tinha importância. Começou a soltá-los, deixando-os cair no lavatório vazio. Quando terminou, penteou o cabelo com a ajuda dos dedos, ajeitando-o em ondas suaves em volta dos ombros.
Pronto, já estava. Sacudiu a cabeça de um lado para o outro; começou a sussurrar para consigo (Dolly não sabia nenhum poema de cor, mas achou que, para o efeito, a letra de «Chattanooga Choo Choo» servia perfeitamente); ergueu as mãos e começou a movimentar os dedos como se estivesse a tecer com fios invisíveis. Esboçou um leve sorriso diante da imagem que se lhe apresentava. Era tal e qual como Viola no livro.