Suffolk, 2011
Posteriormente, Laurel haveria de se admirar como fora possível ter chegado tão longe sem se lembrar de pesquisar o nome da mãe no Google. No entanto, nada do que sabia a respeito de Dorothy Nicolson a levara a suspeitar por um instante sequer de que ela pudesse ter uma existência on-line.
Não esperou por chegar a Greenacres. Sentou-se no automóvel estacionado à porta do hospital, pegou no telemóvel e digitou «Dorothy Nicolson» na janela de busca. Precipitou-se, claro, enganou-se a digitar o nome e teve de repetir a tarefa. Ganhou coragem para o que quer que fosse descobrir e tornou a carregar na tecla de busca. Obteve 127 resultados. Um site de genealogia na América, uma Thelma Dorothy Smitham à procura de amigos no Facebook, uma lista telefónica da Austrália e depois, a meio da página, uma entrada relativa a um arquivo da BBC People’s War[18], com o seguinte subtítulo: «Uma telefonista londrina recorda a Segunda Guerra Mundial.» Com um dedo trémulo, Laurel seleccionou esta opção.
A página continha as recordações dos tempos da guerra de uma senhora chamada Katherine Frances Barker, que fora telefonista no Gabinete de Guerra, em Westminster, na época dos bombardeamentos aéreos alemães. Haviam sido enviadas, indicava uma nota de abertura, por Susanna Barker em nome da mãe. Havia, no topo, uma fotografia de uma senhora idosa com aspecto enérgico e numa pose algo sedutora, instalada num sofá cor de framboesa e com apoios para a cabeça de croché. A anotação dizia:
Katherine «Kitty» Barker a descansar em casa. Quando a Segunda Guerra Mundial rebentou, Kitty mudou-se para Londres, onde trabalhou como telefonista até ao fim do conflito. Kitty gostaria de se ter alistado no WRNS[19], mas as comunicações eram consideradas um serviço essencial e ela não teve autorização para sair.
O artigo em si era bastante longo e Laurel leu-o por alto, à espera de ver o nome da mãe destacar-se do texto. Uns parágrafos mais abaixo, encontrou-o.
Eu fui criada na região centro de Inglaterra e não tinha família em Londres, mas, durante a guerra, havia serviços encarregados de encontrar alojamento para quem trabalhava para o Gabinete de Guerra. Tive sorte comparada com outras pessoas, pois fiquei hospedada em casa de uma senhora muito distinta. A casa ficava no número 7 de Campden Grove, em Kensington, e, embora se possa pensar o contrário, os meus tempos de guerra foram extremamente felizes. Havia outras três raparigas do Gabinete de Guerra a morar na mesma casa que eu e dois membros do pessoal de Lady Gwendolyn Caldicott que tinham decidido lá continuar apesar da guerra, a cozinheira e uma rapariga chamada Dorothy Smitham, que era uma espécie de acompanhante da dona da casa. Eu e a Dorothy ficámos amigas, mas perdemos o contacto quando, em 1941, eu me casei com Tom, o meu marido. Era muito fácil travar amizade nos tempos de guerra — julgo que isto não será motivo de admiração para ninguém — e com frequência me tenho perguntado o que foi feito dos meus amigos dessa época. Espero que tenham sobrevivido.
Laurel não cabia em si de tanto entusiasmo. Era extraordinário, o efeito de ver o nome da mãe, o seu nome de solteira, impresso. Sobretudo num documento como aquele, que se referia precisamente ao local e à época que despertavam a sua curiosidade.
Tornou a ler o parágrafo e o seu entusiasmo não esmoreceu. Dorothy Smitham existira de facto. Trabalhara para uma mulher que dava pelo nome Lady Gwendolyn Caldicott que morava em Campden Grove, número 7 (a mesma rua de Vivien e Henry Jenkins, reparou Laurel com um arrepio), e tivera uma amiga chamada Kitty. Laurel procurou a data de publicação da entrada: 25 de Outubro de 2008 — uma amiga que muito provavelmente ainda estaria viva e disposta a falar com a filha de Dorothy. Cada descoberta era mais uma estrela cintilante num grande céu escuro, contribuindo para formar a imagem que conduziria Laurel a casa.
*
Susanna Barker convidou Laurel para tomar chá nessa tarde. Encontrá-la revelara-se tão simples que Laurel, que não era pessoa para acreditar em facilidades, sentira um ímpeto de desconfiança congénita. Bastara-lhe inserir os nomes de Katherine Barker e Susanna Barker na lista telefónica on-line Numberway e, em seguida, começar a marcar cada um dos números que se lhe apresentavam. Acertou ao terceiro.
— A minha mãe joga golfe às quintas-feiras e vai conversar com os alunos da escola primária às sextas — explicou-lhe a Susanna. — Mas hoje estará livre às quatro. Dá-lhe jeito passar por cá a esta hora? — Laurel aproveitara a deixa com agrado e estava agora a seguir as indicações cuidadosas de Susanna, por uma rua estreita às curvas através de campos verdejantes nos arredores de Cambridge.
Uma mulher anafada e jovial de cabelo acobreado e frisado, como se tivesse apanhado chuva, esperava por ela junto ao portão. Usava um alegre casaco de malha amarelo-vivo sobre um vestido castanho e segurava um chapéu-de-chuva com ambas as mãos numa atitude de cortesia ansiosa. Às vezes, pensou a actriz que Laurel tinha dentro de si («ouvidos, olhos e coração, tudo de uma vez»), um gesto era quanto bastava para se ficar a saber tudo o que havia a saber sobre uma dada pessoa. A mulher do chapéu-de-chuva era nervosa, fidedigna e agradecida.
— Ora viva! — gorjeou ela quando Laurel atravessou a rua para ir ao seu encontro. O seu sorriso deixou à mostra uma porção magnífica de dentadura brilhante. — Eu sou a Susanna Barker e tenho imenso prazer em conhecê-la.
— Laurel. Laurel Nicolson.
— Mas claro! Eu sei quem é! Entre, entre, faça favor. Está um tempo horrível, não está? A minha mãe diz que a culpa é minha porque matei uma aranha em casa. Que tola fui, já tinha idade para ter juízo. Mas traz sempre chuva, não é?
*
Kitty Barker era esperta como uma raposa e tinha uma língua afiada como a espada de um pirata.
— A filha da Dorothy Smitham — comentou ela, dando uma pancada com o punho miúdo no tampo da mesa. — Mas que surpresa maravilhosa! — Quando Laurel tentou apresentar-se e explicar como encontrara o nome de Kitty na Internet, a mão franzina acenou num gesto de impaciência e a respectiva dona vociferou: — Sim, sim, a minha filha já me contou... você disse-lhe pelo telefone.
Laurel, que em mais de uma ocasião fora ela própria acusada de ser brusca, decidiu considerar revigorante a eficiência da senhora.
Presumivelmente, aos noventa e dois anos, uma pessoa já não media as palavras nem perdia tempo. Sorriu e disse-lhe:
— Sr.ª Barker, a minha mãe nunca me falou muito da guerra quando eu era pequena... imagino que quisesse pôr tudo isso para trás das costas... mas agora ela está doente e é muito importante para mim saber o mais possível acerca do passado dela. Julguei que talvez me pudesse falar um pouco a respeito de Londres durante a guerra, em particular sobre a vida da minha mãe nessa época.
Kitty Barker não se fez de rogada. Isto é, lançou-se com entusiasmo para satisfazer a primeira parte do pedido de Laurel, entregando-se a uma prelecção sobre os bombardeamentos aéreos enquanto a filha ia buscar chá e scones.
Laurel prestou-lhe atenção durante algum tempo, todavia, a concentração começou a falhar-lhe quando se tornou óbvio que Dorothy Smitham não passaria de uma actriz secundária na história. Examinou as recordações dos tempos de guerra na parede da sala de estar, cartazes que incitavam as pessoas a não fazer gastos supérfluos quando iam às compras, optando antes por adquirir hortaliças e vegetais.
Kitty continuava entretida a descrever as diversas formas de como uma pessoa se podia magoar acidentalmente durante o blackout e, quando Laurel viu o relógio passar da meia hora, desviou a sua atenção para Susanna Barker, que fitava a mãe totalmente absorta nas suas palavras enquanto mastigava em simultâneo. A filha de Kitty já deveria ter ouvido aquelas histórias vezes sem conta, calculava Laurel, e, subitamente, compreendeu perfeitamente a dinâmica — o nervosismo de Susanna, o seu desejo de agradar, a reverência com que se referia à mãe. Kitty era o oposto da mãe; criara a partir dos anos de guerra uma mitologia à qual a própria filha jamais seria capaz de escapar.
Talvez todos os filhos ficassem cativos, pelo menos em parte, do passado dos pais. Afinal de contas, o que poderia a pobre Susanna esperar alcançar algum dia que se comparasse com os relatos de heroísmo e sacrifício da mãe? Pela primeira vez, Laurel sentiu uma certa dose de gratidão para com os pais, por os terem poupado, a ela e aos irmãos, a tão pesado fardo. (Pelo contrário, era a ausência de história por parte da mãe que mantinha Laurel aprisionada. A ironia era inescapável.)
Foi então que se deu um acontecimento feliz: quando Laurel já começava a perder a esperança de descobrir qualquer coisa importante, Kitty interrompeu o seu relato a meio para repreender Susanna por ter demorado muito tempo a servir o chá. Laurel aproveitou a oportunidade, tornando a desviar a conversa para Dorothy Smitham.
— Mas que história tão interessante, Sr.ª Barker — disse ela, recorrendo ao seu tom mais senhoril e teatral. — Fascinante... Exemplos de coragem extraordinária por todo o lado. Mas, então, e a minha mãe? Não se importa de me falar um bocadinho a respeito dela?
A interrupção era obviamente inabitual e um silêncio atónito tomou conta da sala. Kitty inclinou a cabeça como se tentasse adivinhar uma explicação para tamanho atrevimento, enquanto Susanna fazia o possível por evitar o olhar de Laurel enquanto servia o chá com mãos trémulas.
Laurel recusou deixar-se intimidar. A criança que havia no seu íntimo estava satisfeita por ter posto fim ao monólogo de Kitty. Simpatizara com Susanna, mas a mãe desta era uma autoritária de primeira apanha; Laurel aprendera a impor-se a gente da laia dela. Continuou alegremente:
— A minha mãe contribuiu para o esforço de guerra no nosso país?
— A Dolly fez a sua parte — admitiu Kitty, contrafeita. — Lá em casa, havia uma escala de serviço, e cada uma, por turnos, ia sentar-se no telhado com um balde de areia e uma bomba de estribo.
— Então, e que tal era a vida social dela?
— Ela fazia por gozar a vida, como, aliás, todas nós. Estávamos em guerra. Tínhamos de aproveitar todas as oportunidades que nos surgiam para nos divertirmos.
Susanna ofereceu-lhe a travessa do leite e do açúcar, mas Laurel dispensou-a.
— Imagino que duas raparigas novas e bonitas como vocês duas tenham tido muitos namorados.
— Mas com certeza.
— Sabe se por acaso havia alguém especial na vida da minha mãe?
— Havia um rapaz, sim — confirmou-lhe Kitty, tomando um gole de chá preto. — Mas agora, por muitas voltas que dê à cabeça, não consigo lembrar-me do nome dele.
Todavia, Laurel teve uma ideia; ocorreu-lhe de forma repentina. Na quinta-feira anterior, durante a festa de anos, a enfermeira contara-lhe que a mãe insistia em perguntar por uma pessoa, admirada que não a tivesse vindo visitar. Na altura, Laurel julgara que se tratava de um mal-entendido, que a mãe estivesse a perguntar por Gerry; agora, porém, que observara até que ponto os pensamentos da mãe andavam à deriva entre o presente e o passado, Laurel compreendia que se enganara.
— Jimmy! — declarou ela. — O nome dele era Jimmy, não era?
— Sim! — exclamou Kitty. — Era isso mesmo. Agora me lembro, eu costumava arreliá-la dizendo-lhe que namorava com o Jimmy Stewart. Não que eu tenha chegado a conhecê-lo, saliente-se; limitava-me a imaginar qual seria o aspecto dele a partir do que ela me contava.
— Nunca chegou a conhecê-lo? — Era estranho. A mãe e Kitty tinham sido amigas, moravam na mesma casa, eram jovens: conhecerem os namorados uma da outra deveria ser obrigatório, não seria assim?
— Nunca o vi uma vez sequer. Ela era muito esquisita no que se referia ao namorado. Ele estava na RAF e andava demasiado ocupado para fazer visitas. — Kitty franziu os lábios numa expressão de astúcia. — Ou, pelo menos, era o que ela nos dizia.
— O que ela dizia, como?
— Bom, o meu Tom estava na RAF e nem por isso deixava de arranjar tempo para me vir visitar, se é que me faço entender. — Arreganhou maldosamente os dentes, e Laurel sorriu para lhe mostrar que sim, que se fazia entender na perfeição.
— A senhora acha que a minha mãe lhe poderia ter mentido? — insistiu ela.
— Mentir propriamente, não diria, mas que romanceava a verdade. Com a Dolly, nunca se podia saber ao certo. Tinha o que se pode chamar uma imaginação fértil.
Laurel sabia bem ao que ela se referia. Em todo o caso, causava-lhe estranheza que a mãe tivesse feito segredo do homem por quem estava apaixonada às amigas. As pessoas enamoradas, em geral, gostavam de proclamar a sua paixão aos quatro ventos, e a mãe nunca fora pessoa para esconder as emoções.
A menos que por algum motivo Jimmy se tivesse visto obrigado a manter a sua identidade em segredo. O país estava em guerra; talvez, na realidade, ele fosse espião. Isso explicaria seguramente o sigilo de Dolly, a impossibilidade de se casar com o homem que amava, o motivo da sua própria fuga. Inserir Henry e Vivien Jenkins na história já seria ligeiramente mais problemático, a menos que Henry tivesse ficado a saber da existência Jimmy e isso constituísse uma ameaça para a segurança nacional.
— A Dolly nunca levou o Jimmy lá a casa porque a velha dona da casa não autorizava visitas masculinas — afirmou Kitty, espetando sem querer uma agulha no balão da teoria rebuscada de Laurel. — A velha Lady Gwendolyn tivera em tempos uma irmã... Eram como unha e carne, as duas, quando eram novas; moraram juntas em Campden Grove e não havia sítio a que uma fosse que não levasse a outra atrás. Tudo isto se desfez quando a mais nova se apaixonou e se casou. Foi viver para longe com o marido e a irmã nunca lhe perdoou. Trancou-se no quarto, e lá passou décadas, recusando-se a receber quem quer que fosse. Tinha ódio às pessoas, a verdade era essa, embora isso não se aplicasse obviamente à sua mãe. Eram muito chegadas as duas, lá isso eram; a Dolly era leal à velhota e cumpria à risca essa regra. Já quanto às outras, não tinha quaisquer escrúpulos em infringi-las, saliente-se... Não havia ninguém melhor do que ela para arranjar meias de nylon e batons no mercado negro... mas cumpria essa regra como se fosse uma questão de vida ou de morte.
Alguma coisa na forma como Kitty elaborou este último comentário deixou Laurel pensativa.
— Sabe, olhando em retrospectiva, acho que isso foi o princípio. — Kitty franziu a testa do esforço de espreitar para o fundo do túnel das velhas recordações.
— O princípio do quê? — indagou Laurel, com um pressentimento a formigar-lhe nas pontas dos dedos.
— A sua mãe mudou. A Dolly era uma rapariga tão bem-disposta quando nós chegámos a Campden Grove, mas depois começou a ficar muito picuinhas em fazer todas as vontades à velha senhora.
— Bom, Lady Gwendolyn era a patroa dela. Não me admira que...
— Não era apenas isso. Ela começou a andar sempre de roda da velhota, como se fosse um membro da família. E também começou a ter um comportamento mais afectado, a tratar-nos como se já não nos considerasse à altura dela... E até arranjou novos amigos.
— A Vivien! — exclamou Laurel de repente. — Está a referir-se à Vivien Jenkins.
— Estou a ver que a sua mãe lhe falou dela — observou Kitty com um trejeito cáustico dos lábios. — Esqueceu-se completamente de nós, com certeza, mas não da Vivien Jenkins. Não que isso me surpreenda, naturalmente, não que isso me surpreenda... Era casada com um escritor, a tal Vivien, morava na casa em frente à nossa. De uma arrogância indescritível... Bonita, sem dúvida, isso ninguém negava, mas fria. Não se rebaixava ao ponto de parar para nos cumprimentar na rua. Uma péssima influência para a Dolly... Ela estava convencida de que a Vivien era o máximo.
— Elas davam-se muito?
Kitty pegou num scone e deitou-lhe uma colherada de geleia reluzente em cima.
— Dos pormenores, eu não estou a par — respondeu-lhe ela em tom sarcástico, espalhando o doce vermelho no scone. — Nunca fui convidada a juntar-me a elas, e, nessa altura, já a Dolly deixara de me confiar os seus segredos. Creio que foi por isso que só soube que alguma coisa se passava quando já era demasiado tarde.
— Demasiado tarde para o quê? O que é que se passou?
Kitty deixou cair um bocado de natas em cima do scone e mirou Laurel por cima dele.
— Passou-se alguma coisa entre as duas, a sua mãe e a Vivien, uma coisa grave. No início de 1941; eu lembro-me porque tinha conhecido o Tom há pouco tempo... Foi provavelmente por isso que não lhe dei tanta atenção como teria dado noutras circunstâncias. Depois disso, a Dolly começou a andar com uma má disposição terrível, sempre a responder torto, recusava-se a sair connosco, evitava o Jimmy. Nem parecia a mesma pessoa... Até deixou de ir à cantina.
— À cantina do Serviço Voluntário Feminino?
Kitty assentiu com a cabeça, já a postos para dar uma leve dentada no scone.
— Ela adorava lá trabalhar, estava constantemente a esquivar-se à patroa, a esgueirar-se de casa para ir fazer um turno... Mas, de um momento para o outro, deixou de lá ir. Disse que não voltaria a pôr lá os pés nem por todo o chá da China.
— Então, e porquê?
— Isso ela não nos dizia, mas eu sabia que tinha que ver com a outra, a que morava em frente. Sabe, eu vi-as juntas no dia em que se zangaram; vinha de regresso do emprego, um pouco mais cedo do que o habitual devido a uma bomba que caíra, mas que não rebentara, perto do meu gabinete, e vi a sua mãe a sair de casa dos Jenkins. Bom! A cara dela. — Kitty abanava a cabeça. — Esqueça as bombas... Quem olhasse para a Dolly julgaria que quem estava prestes a explodir era ela!
Laurel bebeu um gole de chá. Só estava a ver um cenário que levasse uma mulher a zangar-se com a melhor amiga e com o namorado em simultâneo. Teriam Jimmy e Vivien um caso ilícito? Fora esse o motivo por que a mãe rompera o noivado e fugira de Londres para começar uma nova vida? Isso explicaria certamente a fúria de Henry Jenkins... mas não contra Dolly, claro; como também não explicava os recentes remorsos da mãe em relação ao passado. Não havia nada de que se arrepender em levantar-se depois de uma queda e começar uma nova vida; era, aliás, uma prova de coragem.
— O que é que acha que se passou? — sondou ela com delicadeza, pousando a chávena.
Kitty ergueu os ombros ossudos, mas o gesto tinha qualquer coisa de dissimulado.
— A Dolly nunca lhe contou nada a respeito desse assunto, pois não? — Subjacente à expressão de surpresa dela, pressentia-se uma nítida satisfação. Soltou um suspiro teatral. — Bom, suponho que ela sempre foi pessoa de ter segredos. Algumas mães e filhas não são tão chegadas como outras, pois não?
Susanna exibiu um sorriso radiante; a mãe deu uma dentada no scone.
Laurel tinha o forte pressentimento de que Kitty lhe estava a esconder alguma coisa. Sendo uma de quatro irmãs, porém, sabia o que fazer para lha arrancar. Não havia muitas confidências que a indiferença não fosse capaz de extrair.
— Já lhe tomei muito do seu tempo, Sr.ª Barker — declarou ela, dobrando o guardanapo e endireitando a colher de chá. — Obrigada por aceder a falar comigo. Foi extremamente prestável da sua parte. Caso se lembre de alguma coisa susceptível de explicar o que se passou entre a minha mãe e a Vivien, informa-me, não informa? — Laurel levantou-se e afastou a cadeira. Encaminhou-se para a porta.
— Sabe — disse Kitty, indo atrás dela —, há de facto uma coisa, agora me lembro.
Embora a custo, Laurel lá conseguiu conter um sorriso.
— Ai sim?! — exclamou ela. — E então, do que se trata?
Kitty apertou os lábios como se estivesse prestes a falar contra a sua vontade e não soubesse ao certo porque se via em tal situação. Vociferou a Susanna que fosse encher o bule e, depois de a filha voltar costas, tornou a conduzir Laurel para a mesa.
— Eu já lhe falei do mau humor da Dolly — começou ela. — Péssimo, na verdade. Um autêntico horror. E assim se manteve durante o resto da nossa estada em Campden Grove. Então, uma noite, umas semanas depois do meu casamento, o meu marido tinha regressado ao serviço, e eu combinei ir dançar com umas colegas do emprego. Estive quase para não convidar a Dolly... ela andava tão desmancha-prazeres ultimamente... mas acabei por convidar e, para grande surpresa minha, ela aceitou vir connosco.
»Chegou ao clube vestida a rigor e a rir-se como se tivesse andado a atacar o uísque. Trazia uma amiga com ela, uma rapariga com quem tinha sido criada em Coventry, uma Caitlin não-sei-das-quantas, toda nariz empinado a princípio, mas depois acabou por se descontrair... com a Doll de volta dela, não teve outro remédio. Era uma daquelas pessoas... cheias de vida... que uma pessoa ficava bem-disposta só de a ver bem-disposta a ela.
Laurel esboçou um leve sorriso, reconhecendo a mãe nesta descrição.
— E se ela estava bem-disposta naquela noite, deixe-me que lhe diga. Tinha um olhar eufórico, sempre a rir e a dançar e a dizer coisas estranhíssimas. Quando eram horas de nos irmos embora, agarrou-me por um braço e confessou-me que tinha um plano.
— Um plano? — Laurel sentiu cada cabelo da nuca eriçar-se-lhe.
— Contou-me que a Vivien Jenkins lhe tinha pregado uma partida terrível, mas que tinha um plano que iria pôr as coisas outra vez nos eixos. Ela e o Jimmy iriam viver felizes para sempre; cada um iria ter o que merecia.
Era tal qual como a mãe contara a Laurel no hospital. Mas as coisas não lhe tinham corrido como previa e ela não se casara com Jimmy. Em lugar disso, Henry Jenkins zangara-se. Laurel sentia o coração apertado, mas fez o possível por se mostrar impassível.
— E ela explicou-lhe que plano era esse?
— Não e, para ser franca, na altura eu não lhe dei grande importância. A guerra teve o condão de modificar as pessoas; estavam constantemente a dizer e a fazer coisas que, noutras circunstâncias, jamais diriam ou fariam. Nunca sabíamos o que o dia seguinte nos traria, se iríamos sequer acordar para o ver... Este tipo de incerteza leva muita gente a perder os escrúpulos. E a sua mãe sempre teve uma propensão para o dramatismo. Eu imaginei que aquela conversa dela de se vingar não passasse disso mesmo... de conversa. Só mais tarde me perguntei se ela não estaria a falar mais a sério do que eu julgava.
Laurel avançava paulatinamente.
— Mais tarde?
— Ela levou sumiço por completo. Aquela noite no clube nocturno foi a última vez que a vi. Nunca mais tive notícias dela, nem uma palavra sequer, e ela não respondeu a nenhuma das minhas cartas. Pensei que tivesse sido atingida nalgum bombardeamento, até que, logo a seguir ao fim da guerra, recebi a visita de uma mulher já de uma certa idade. Muito reservada que ela era... Queria saber coisas a respeito da Dolly, se ela tinha «cometido algum acto reprovável» no passado.
Laurel teve uma súbita visão da penumbra fresca do quarto de hóspedes da avó Nicolson.
— Uma mulher alta com um rosto atraente e uma expressão que parecia que tinha andado a chupar limões?
Kitty arqueou uma única sobrancelha.
— É sua amiga?
— Minha avó. Paterna.
— Ah — Kitty arreganhou um grande sorriso —, a sogra! Ela não mencionou isso, só disse que era patroa da sua mãe e que queria tirar umas referências acerca dela. Então, os seus pais sempre se casaram... Ele devia estar apaixonadíssimo por ela.
— Porquê? O que foi que contou à minha avó?
Kitty pestanejou, toda ela inocência.
— Eu estava magoada. Tinha ficado preocupada com ela quando não recebi notícias, e depois fiquei a saber que ela tinha dado o salto sem uma palavra sequer. — Acenou vagamente com a mão. — É possível que tenha romanceado ligeiramente, dado mais namorados à Dolly do que ela de facto teve, uma queda para o álcool... nada por aí além.
Mas suficiente para explicar o azedume da avó Nicolson: os namorados já era mau que chegasse, mas uma queda para o álcool? Era quase um sacrilégio.
Laurel sentiu um impulso repentino de se ir embora daquele chalé atravancado de tralha, de ficar a sós com os seus pensamentos. Agradeceu a Kitty Barker e começou a reunir as suas coisas.
— Dê lembranças minhas à sua mãe, está bem? — pediu-lhe Kitty enquanto a acompanhava à porta.
Laurel garantiu-lhe que assim faria e vestiu o casaco.
— Eu nunca me cheguei a despedir dela como devia ser. Pensei muito nela, ao longo destes anos todos, sobretudo quando soube que ela tinha sobrevivido à guerra. Mas a verdade é que não havia grande coisa que eu pudesse fazer... A Dolly era muito determinada, uma daquelas raparigas que conseguiam sempre o que queriam. Se ela queria desaparecer, não haveria ninguém capaz de a impedir ou de descobrir o paradeiro dela.
Excepto Henry Jenkins, pensou Laurel à medida que a porta de Kitty Barker se fechava nas suas costas. Ele conseguira descobri-la e Dorothy assegurara-se de que qualquer que fosse o motivo que Jenkins tivesse para andar no encalço dela morrera com ele naquele dia em Greenacres.
*
Laurel sentou-se no Mini verde estacionado diante do chalé de Kitty Barker, com o motor ligado. O ventilador estava no máximo e ela incentivou o radiador para que se despachasse a aquecer o automóvel. Já passava das cinco da tarde e a escuridão começava a pairar lá fora. Os pináculos da Universidade de Cambridge resplandeciam contra o céu penumbroso, mas Laurel não reparou neles. Estava demasiado ocupada a imaginar a mãe, a jovem da fotografia que encontrara, num clube nocturno, a agarrar Kitty Barker pelos pulsos e a dizer-lhe em voz eufórica que tinha um plano, que ia voltar a pôr tudo nos eixos.
— O que foi, Dorothy? — murmurou Laurel para consigo, já a estender uma mão para pegar no maço de cigarros. — Que diabo foi que tu fizeste?
O telemóvel tocou enquanto ela ainda andava a vasculhar dentro da carteira, a esperança de que fosse Gerry a cristalizar-se num instante, a responder finalmente aos seus telefonemas.
— Laurel? É a Rose. O Phil tem uma reunião dos Toastmasters[20] esta noite, e eu lembrei-me de que talvez quisesses companhia. Eu podia levar o jantar, talvez um DVD?
Laurel, desalentada, hesitou enquanto tentava inventar uma desculpa. Sentia-se culpada por mentir, especialmente a Rose, mas ainda não estava preparada para partilhar aquela sua investigação com ninguém, ou, pelo menos, com as irmãs; assistir a uma comédia romântica à conversa com a irmã enquanto sentia os pensamentos num turbilhão, empenhados em deslindar o passado da mãe, teria sido um autêntico suplício. Uma pena — havia uma parte dela que não se faria rogada em entregar aquela confusão tremenda a outra pessoa e dizer-lhe: «Vê lá se consegues dar algum sentido a isto»; mas o fardo era dela e, embora fizesse tenções de, mais tarde, contar às irmãs, recusava-se a fazê-lo (aliás, não podia fazê-lo) antes de saber, de facto, o que havia a contar.
Despenteou o cabelo, ainda a dar voltas à cabeça para arranjar um pretexto para se esquivar ao jantar (Santo Deus, que fome tinha, agora que dava por isso!), e, entretanto, reparou nas torres altivas da universidade, majestosas na escuridão distante.
— Lol? Estás aí?
— Sim. Sim, estou.
— A ligação não está lá muito boa. Eu estava a perguntar-te se queres que te faça o jantar?
— Não — apressou-se Laurel a responder, vislumbrando subitamente os contornos vagos de uma ideia bastante razoável. — Obrigada, Rosie, mas não. Não te importas que eu te ligue amanhã?
— Está tudo bem contigo? Onde é que estás?
A ligação começava a ficar com interferências e Laurel viu-se obrigada a gritar.
— Está tudo bem. É só que... — Rasgou um grande sorriso ao ver o seu plano ganhar nitidez e clareza. — Esta noite não vou estar em casa, vou chegar tarde...
— Oh!
— Lamento, Rose. Lembrei-me agora de que preciso de ir falar com uma pessoa.