Tamborine Mountain, Austrália, 1929
Vivien foi castigada em primeiro lugar porque tivera a grande infelicidade de ser apanhada em flagrante em frente da loja do Sr. McVeigh, na Main Street. O pai não queria fazer aquilo, isso saltava à vista. Era um homem de bom coração a quem a Grande Guerra levara toda a dureza que algum dia pudesse ter tido e, verdade fosse dita, sempre admirara a vivacidade surpreendente da filha mais nova. Mas regras eram regras, e o Sr. McVeigh não se calava com aquela conversa de que quem dá o pão dá a educação e que só se perdiam as que caíam ao chão. E a quantidade de gente que se estava a juntar ali à volta e o diabo do calor que fazia... Ainda assim, bater num filho seu era algo que estava fora de questão, não com a sua mão e muito menos diante de rufiões como o rapaz Jones. E, assim, ele fizera a única coisa que podia: proibira-a em público de ir dar o passeio. O castigo fora escolhido à pressa e mais tarde viria a ser fonte de profundo arrependimento e de frequentes discussões, noite avançada, com a mulher, mas não havia como voltar atrás. Fora dito na presença de demasiadas pessoas. As palavras saíram-lhe da boca e, quando chegaram aos ouvidos de Vivien, esta, apesar dos seus oito anos, percebeu que não havia nada a fazer se não baixar a cabeça, cruzar os braços e mostrar a todos que não se ralava com isso, que, também, nunca quisera ir.
E foi assim que se apanhou em casa sozinha, no dia mais quente do Verão de 1929, enquanto a família partia rumo ao Piquenique Anual dos Lenhadores do Cedro, em Southport. Houvera instruções precisas da parte do pai ao pequeno-almoço, uma lista das coisas que podia fazer e outra ainda mais longa das que não podia, uma dose considerável de angústia da mãe a retorcer as mãos quando julgava que ninguém a estava a ver, uma colherada preventiva de óleo de rícino para toda a miudagem — duas para Vivien porque iria seguramente precisar de duas vezes mais — e depois, com uma agitação entusiástica de preparativos de última hora, o resto da família apertara-se dentro do Lizzie Ford e arrancara pelo caminho de cabras fora.
A ausência da família mergulhou a casa no silêncio. E na escuridão também, de certa forma. E os grãos de pó pairavam imóveis sem os corpos em redor dos quais costumavam orbitar. A mesa da cozinha, à volta da qual havia escassos minutos tinham estado a rir e a discutir, já não tinha pratos em cima, mas antes um sortido variado de frascos de compota que a mãe deixara a arrefecer e o papel de carta que o pai ali pusera para que Vivien redigisse um pedido de desculpas ao Sr. McVeigh e a Paulie Jones. Até agora escrevera: «Caro Sr. McVeigh», riscara o «caro» e pusera «A» por cima, e depois ficara sentada a olhar para a página em branco, perguntando-se quantas palavras seriam precisas para a preencher. Ansiosa por que estas aparecessem antes de o pai voltar para casa.
Quando se tornou óbvio que as palavras não se iriam escrever sozinhas, Vivien pousou a caneta de tinta permanente, esticou os braços acima da cabeça, baloiçou ligeiramente os pés descalços e varreu o aposento com o olhar: as pinturas com molduras pesadas na parede, o mobiliário de mogno escuro, o canapé de palhinha com a sua manta de croché. Aquilo era o Dentro de Casa, pensou ela com desagrado, o sítio dos adultos e dos trabalhos da escola, onde se lavavam os dentes e o corpo, do «Pouco barulho» e do «Deixem-se de correrias», de pentes e rendas e da mãe a tomar chá com a tia Ada, e das visitas do reverendo e do médico. Era mortiço e enfadonho, um local que ela fazia o possível por evitar, e no entanto — Vivien mordeu o interior da bochecha, reparando numa coisa —, hoje, o Dentro de Casa era seu e de mais ninguém, muito provavelmente pela única vez na vida.
Vivien começou por ler o diário da irmã Ivy, em seguida passou em revista os jornais especializados de Robert e examinou a colecção de estatuetas de mármore de Pippin; por fim, dirigiu a sua atenção para o guarda-roupa da mãe. Enfiou os pés dentro do forro fresco de sapatos que remontavam à época longínqua em que ela ainda não era nascida, acariciou o tecido sedoso da melhor blusa da mãe contra a pele, pôs ao pescoço fiadas e mais fiadas de contas brilhantes que retirou do guarda-jóias de nogueira pousado na cómoda duchesse. Na gaveta, revirou as moedas egípcias que o pai trouxera da guerra, a cópia cuidadosamente dobrada dos seus documentos de dispensa, um maço de cartas atado com uma fita e um papel intitulado Certificado de Casamento, com os verdadeiros nomes do pai e da mãe impressos, a mãe quando ainda era Isabel Carlyon de Oxford, Inglaterra, e não um membro da família.
As cortinas de renda esvoaçaram e o cheiro doce e fragrante de Fora de Casa penetrou pela janela de guilhotina aberta — eucalipto, murta-limão e mangas demasiado maduras que começavam a fermentar na árvore premiada do pai. Vivien tornou a dobrar os papéis e a guardá-los dentro da gaveta e apressou-se a levantar. O céu estava limpo, azul como o oceano e esticado como a pele de um tambor. As folhas das figueiras brilhavam à luz intensa do sol, os frangipânis resplandeciam em tons de rosa e amarelo, os pássaros chamavam uns pelos outros na floresta densa atrás da casa. Ia ser um fedor, constatou Vivien com satisfação, e mais logo haveria tempestade. Vivien adorava tempestades; as nuvens carregadas e as primeiras gotas gordas, o cheiro enferrujado da terra vermelha sedenta, e a chuva fustigante contra as paredes enquanto o pai se punha a andar para trás e para a frente pela varanda com o cachimbo na boca e um brilho nos olhos, esforçando-se por conter o entusiasmo enquanto as palmeiras se lastimavam e vergavam ao vento.
Vivien voltou para trás. Já chegava de explorações; nem pensar em perder mais um segundo que fosse Dentro de Casa. Demorou-se na cozinha apenas o suficiente para embalar o almoço que a mãe lhe deixara e desencantar do armário mais meia dúzia de bolachas Anzac.[22] Um carreiro de formigas marchava em volta do lavatório e pela parede acima. Elas sabiam que vinha lá chuva. Sem se dignar sequer a olhar para o pedido de desculpas por escrever, Vivien foi a saltitar até à varanda. Nunca andava, a menos que não pudesse evitar.
Estava calor lá fora, não havia vento e o ar estava abafado. Sentiu de imediato os pés a escaldar contra as tábuas de madeira. Estava um dia perfeito para ir para o mar. Interrogou-se por onde andariam os outros agora, se já teriam chegado a Southport, se as mães, os pais e a miudagem já andariam a nadar, a rir e a preparar os almoços, ou se a família teria preferido apanhar um barco de recreio. Havia um cais novo, de acordo com Robert, que andara à escuta das conversas do pai com os seus antigos camaradas do exército, e Vivien imaginou-se a saltar de cabeça da popa, mergulhando como uma noz-macadâmia, tão depressa que ficava com a pele toda arrepiada e o nariz cheio de água fria do mar.
Podia sempre ir até à Queda-d’Água das Bruxas para dar umas braçadas, mas, num dia como aquele, a piscina de rocha não chegava aos calcanhares do oceano salgado; para além do mais, não tinha permissão para sair de casa, e uma das linguarudas da cidade haveria seguramente de dar por ela. Pior ainda, se Paulie Jones lá estivesse, a bronzear a sua enorme pança branca como uma grande baleia velha, Vivien não estava segura de se conseguir conter. Ele que se atrevesse a chamar simplório ao Pippin outra vez e logo veria como elas lhe mordiam. Vivien desafiava-o a fazer isso. Desafiava-o não uma, mas duas vezes.
Ao descerrar os punhos, o seu olhar recaiu no alpendre. O Velho Mac andava por lá a fazer uns consertos e, em geral, valia a pena visitá-lo, mas o pai proibira Vivien de o importunar com as suas perguntas. Estava a trabalhar, e o pai não estava disposto a gastar dinheiro que lhe fazia falta para ele se entreter a beber chá feito numa lata à fogueira, à conversa fiada com uma menina que tinha os seus próprios afazeres à sua espera. O Velho Mac sabia que ela estava em casa hoje, estava sempre pronto a ajudá-la, mas a menos que ela se sentisse maldisposta ou se magoasse, o alpendre estava-lhe vedado.
O que lhe deixava apenas um sítio para ir.
Vivien desceu as escadas largas de corrida, atravessou o relvado, contornou os canteiros do jardim, onde a mãe insistia teimosamente em criar rosas enquanto o pai lhe recordava afectuosamente de que não estavam em Inglaterra, e depois, fazendo três rodas exímias de seguida, encaminhou-se para o regato.
*
Vivien ia àquele regato desde que aprendera a andar, ziguezagueando por entre os eucaliptos prateados e apanhando acácias e escovas-da-garrafa, com cuidado para não pisar as formigas voadoras ou as aranhas à medida que se afastava cada vez mais das pessoas, dos edifícios, dos professores e das regras. Não havia sítio em todo o mundo de que gostasse mais; pertencia-lhe a ela e ela a ele.
Hoje, estava mais ansiosa do que nunca por chegar ao fundo. Por detrás da primeira escarpa rochosa, onde o declive do terreno se acentuava e os ninhos das formigas se erguiam, agarrou com força no embrulho do almoço e largou a correr, deliciando-se a sentir o coração a martelar contra a caixa torácica, a euforia amedrontada das pernas a dar, a dar, por baixo dela, quase a tropeçar, a escorregar às vezes, à medida que se desviava de galhos, saltava por cima de rochas, derrapava nos montes de folhas secas.
Os assobiadores-dourados chilreavam por cima da sua cabeça, os insectos zumbiam, a queda-d’água na Ravina do Homem Morto gorjeava e tagarelava. Fragmentos de luz e cor agitavam-se à sua passagem veloz, qual caleidoscópio. O matagal ressumava sempre de vida; as árvores falavam umas com as outras em línguas ressequidas e ancestrais, milhares de olhos invisíveis piscavam de galhos e troncos caídos, e Vivien sabia que, se parasse e encostasse um ouvido ao solo duro, ouviria a terra a chamar por ela, a entoar-lhe melodias de tempos remotos. Mas não parou; estava desejosa de chegar ao regato que serpenteava através da ravina.
Mais ninguém sabia, mas aquele regato era mágico. Havia uma curva em particular onde as margens se dilatavam num círculo escarpado; o leito por baixo fora formado havia milhões de anos, quando a terra se deslocara por entre suspiros e grandes lajes de rocha se tinham juntado num concerto denteado, de modo que o que era raso em volta da margem se aprofundava e escurecia repentinamente no centro. E fora aí que Vivien fizera a sua descoberta.
Andava entretida à pesca com os frascos de vidro que surripiara da cozinha à mãe e que agora tinha escondidos dentro do tronco apodrecido por detrás dos fetos. Vivien guardava todos os seus tesouros dentro daquele tronco. Havia sempre alguma coisa à espera de ser encontrada nas águas do regato: enguias e girinos, baldes velhos e ferrugentos dos tempos da caça ao ouro. Numa ocasião, chegou mesmo a descobrir uma dentadura falsa.
No dia em que encontrara as luzes, Vivien tinha estado estendida de barriga para baixo na rocha, um braço todo enfiado dentro de água, a tentar apanhar o maior girino que alguma vez vira. Tentara apanhá-lo e falhara, tentara apanhá-lo e falhara, até que enfiara o braço ainda mais fundo até ficar com a cara quase a rasar a água. E foi então que reparara nelas, várias, todas cor de laranja e brilhantes, a cintilar mesmo no fundo do lago. A princípio, julgara que era o sol e semicerrara os olhos em direcção aos retalhos de céu distante para se certificar. Mas não era. O céu reflectia-se de facto na água, mas aquilo era outra coisa. Aquelas luzes eram profundas, por debaixo do musgo e dos juncos escorregadios que cobriam o leito do regato. Eram outra coisa. Eram outro lugar.
Vivien pensara muito naquelas luzes. Não era muito dada a leituras — isso era mais coisa de Robert e da mãe —, mas tinha jeito para fazer perguntas. Sondara o Velho Mac e depois o pai e, por fim, cruzara-se com Jackie Preto, o batedor amigo do pai, que sabia mais do que ninguém acerca do matagal. Ele interrompera o que estava a fazer e assentara uma mão ao fundo das costas, arqueando o seu físico enxuto.
— Tu viste umas luzinhas no fundo do lago, foi isso?
Vivien assentiu com a cabeça e ele olhou fixamente para ela, sem pestanejar. Por fim, um sorriso aflorou-lhe aos lábios.
— Alguma vez tocaste no fundo daquele lago?
— Não. — Ela enxotou uma mosca do nariz. — É muito fundo.
— Eu cá também não. — Ele coçou-se por baixo da aba do seu grande chapéu e preparou-se para recomeçar a escavar. Antes de cravar a pá no solo, virou a cabeça. — E como é que podes estar tão certa de que tem fundo, se nunca verificaste por ti própria?
E fora então que Vivien compreendera: o seu regato tinha um buraco que chegava ao outro lado do mundo. Era a única explicação possível. Ouvira o pai falar em abrir um buraco até à China, e agora ela encontrara-o. Um túnel secreto, uma maneira de chegar ao núcleo da Terra — o sítio de onde toda a magia, a vida e o tempo haviam brotado — e, mais além ainda, até às estrelas, que brilhavam no céu distante. A questão que se colocava era: que fim iria ela dar a isso?
Explorá-lo, aí estava.
Vivien deteve-se na grande laje de rocha plana que fazia de ponte entre o matagal e o regato. Hoje a água estava tranquila, densa e turva nos baixios em volta das margens. Uma película de lodo trazida pela correnteza depositara-se à superfície como uma pele gordurosa. O sol incidia-lhe a pique e o terreno estava abrasador. Os galhos dos eucaliptos altaneiros rangiam sob o calor.
Vivien encafuou o almoço por baixo dos fetos densos que se abobadavam sobre a rocha; qualquer coisa na vegetação rasteira fresca esgueirou-se sem se deixar ver.
A princípio, sentiu a água fria em volta dos tornozelos despidos. Foi vadeando os baixios, os pés a agarrar as rochas escorregadias, de súbito, aguçadas nalguns sítios. O plano dela era começar por apanhar as luzes de relance, certificar-se de que ainda estavam onde deviam estar, e depois nadar o mais fundo possível para as ver melhor. Andava havia semanas a praticar suster a respiração e trouxera uma das molas de madeira da roupa da mãe para o nariz, porque Robert era da opinião que, se ela conseguisse impedir que o ar lhe escapasse pelas narinas, aguentaria mais tempo sem respirar.
Quando chegou à crista onde o leito de rocha se despenhava, Vivien perscrutou a água escura. Foram precisos alguns segundos, umas quantas espreitadelas e muita inclinação, mas depois... ali estavam elas!
Arreganhou os dentes num sorriso e, por um triz, não perdeu o pé. Por cima da crista, um casal de martins-pescadores riu-se à socapa.
Vivien apressou-se a regressar à margem do lago, escorregando ocasionalmente de tanta precipitação. Correu pela rocha plana, os pés molhados a chapinhar, e vasculhou o embrulho à procura da mola da roupa.
Foi enquanto se decidia pela melhor maneira de a prender que reparou numa coisa preta que trazia agarrada ao pé. Uma sanguessuga, uma criatura gorda e monstruosa. Vivien debruçou-se, segurou-a entre polegar e o indicador e puxou com quanta força tinha. A malvada escorregadia recusava-se a arredar dali.
Vivien sentou-se e fez nova tentativa, no entanto, por mais que espremesse e puxasse, a sanguessuga nem se mexia. O corpo escorregava-lhe entre os dedos, molhado e viscoso. Encheu-se de coragem, fechou os olhos com força e deu-lhe uma última puxadela.
Vivien praguejou com todas as palavras tabu («Merda! Raios partam! Maricas! Paneleiro!») que fora recolhendo ao longo de oito anos passados à escuta das conversas no alpendre do pai. A sanguessuga soltara-se, mas um rio de sangue corria agora em seu lugar.
Sentia-se tonta e foi um alívio já estar sentada. Era capaz de ver o Velho Mac a cortar a cabeça às galinhas sem problemas; levara a ponta do dedo do irmão Pippin todo o caminho até ao consultório do Dr. Farrell, na ocasião em que o machado lhe escapara da mão e lha decepara; tirava as vísceras aos peixes mais depressa e melhor do que Robert quando acampavam à beira do rio Nerang. Diante do seu próprio sangue, porém, ficava sem reacção.
Voltou a coxear para a margem e enfiou o pé dentro de água, abanando-o de um lado para o outro. De cada vez que o tirava cá para fora, o sangue ainda corria. Não havia outro remédio se não esperar.
Sentou-se na laje de rocha e desembrulhou o almoço. Uma fatia de alcatra do assado do jantar da véspera, a gordura fria a brilhar à superfície; batata-doce e inhame, que comeu à mão; uma fatia de pão e pudim de manteiga com a compota fresca da mãe barrada por cima; três bolachas Anzac e uma laranja sanguínea, recém-apanhada da árvore.
Um bando de corvos materializou-se nas sombras enquanto ela comia, cravando nela os seus olhares impávidos e frios. Quando acabou, Vivien atirou os restos para o matagal e uma profusão de asas pesadas abateu-se sobre eles. Sacudiu as migalhas do vestido e bocejou.
O pé deixara finalmente de sangrar. Vivien queria explorar o buraco no fundo do lago, mas, subitamente, ficara cansada; muito cansada, como a menina das histórias que a mãe de quando em vez lhes lia, a ela e aos irmãos, com uma voz longínqua que a cada palavra se afastava mais e mais deles. Causava uma sensação de estranheza a Vivien, aquela voz da mãe; era elegante e, embora Vivien a admirasse por isso, também tinha ciúmes daquela parte da mãe que lhes era desconhecida.
Vivien tornou a bocejar, um bocejo tão grande que lhe fez arder os olhos.
E se se deitasse no chão, só por um bocadinho?
Rastejou até à beira da rocha e escondeu-se entre os fetos, tão fundo que, quando se virou de costas e se ajeitou ligeiramente para a esquerda, o último retalho de céu desapareceu. Sentia as folhas frescas e macias por baixo dela, ouvia os grilos a estridular na vegetação rasteira e, algures, uma rã ofegava pela tarde fora.
O dia estava quente e Vivien era pequena e, por conseguinte, não seria de estranhar que tivesse adormecido. Sonhou com as luzes do lago e o tempo que demoraria a chegar à China a nado, e um cais muito comprido de tábuas quentes de madeira, os irmãos a mergulhar da extremidade oposta. Sonhou com a tempestade que lá vinha e o pai na varanda, a pele inglesa da mãe, cheia de sardas ao fim de um dia passado à beira-mar, e a mesa do jantar nessa noite, com toda a família reunida à sua volta.
O sol ardente descreveu um arco sobre a superfície da Terra, a luz percorreu e perscrutou o matagal, a humidade retesou mais ainda a pele do tambor, e umas gotículas de suor apareceram na raiz do cabelo da menina. Os insectos zuniam e zoavam, a criança adormecida mexeu-se quando um feto lhe fez cócegas na face e então...
— Vivien!
... ouviu subitamente chamar pelo seu nome, a escorregar pela encosta, cortando caminho através da vegetação rasteira para chegar até ela.
Acordou sobressaltada.
— Viv-i-en?!
Era a tia Ada, a irmã mais velha do pai.
Vivien endireitou-se, afastando madeixas de cabelo da testa molhada com as costas da mão. As abelhas do matagal zumbiam ali perto. Ela bocejou.
— Minha menina, se estás aí... por amor de Deus, aparece!
Em geral, Vivien era tudo menos obediente, todavia, a voz habitualmente imperturbável da tia deixava transparecer uma aflição tal que a curiosidade levou a melhor sobre ela e rebolou de debaixo dos fetos, levando as coisas do almoço consigo. O dia toldara-se: as nuvens escondiam o céu azul e a ravina estava agora envolta em sombras.
Com uma olhadela melancólica por cima do ombro ao regato e a promessa de voltar o mais depressa possível, Vivien partiu rumo a casa.
*
A tia Ada estava sentada nas escadas das traseiras, a cabeça entre as mãos, quando Vivien irrompeu do matagal. Algum sexto sentido a deveria ter avisado de que tinha companhia, porque lançou uma olhadela de viés, pestanejando a Vivien com a mesma expressão perplexa que poderia ter afivelado se deparasse com um espírito do matagal no relvado diante dela.
— Anda cá, rapariga — disse a tia por fim, fazendo-lhe sinal com uma mão enquanto se levantava a custo.
Vivien acercou-se dela lentamente. Tinha uma estranha sensação de queda a pique no estômago para a qual não tinha nome, mas que um dia mais tarde viria a reconhecer como sendo pavor. As faces da tia Ada estavam ruborizadas, e notava-se-lhe um certo descontrolo; parecia estar prestes a pôr-se aos gritos ou a puxar as orelhas a Vivien, mas não fez nada disso, desatando, ao invés, num pranto de lágrimas ardentes e a dizer:
— Pelo amor de Deus, vai para dentro de casa e limpa essa porcaria da cara. O que haveria a tua pobre mãe de pensar?
*
Vivien estava outra vez Dentro de Casa. Desde o sucedido que passava muito tempo Dentro de Casa. A primeira semana negra, quando as caixas de madeira, ou as urnas, como lhes chamava a tia Ada, foram trazidas para a sala de estar; as longas noites durante as quais as paredes do quarto dela desapareciam na escuridão; os dias enfadonhos e sufocantes em que os adultos sussurravam e davam estalidos com a língua, admirados com a rapidez de tudo aquilo, e transpiravam em roupas já molhadas da chuva que se precipitava do lado de fora das janelas fumegantes.
Vivien fizera um ninho contra a parede, encafuara-se entre o aparador e as costas da poltrona do pai, e nunca mais de lá saíra. Palavras e frases zumbiam como mosquitos no ar abafado por cima da sua cabeça — «O Lizzie Ford... direito à beira do precipício... carbonizado... praticamente irreconhecível» — mas Vivien tapou os ouvidos e, ao invés, pensou no túnel no lago e na grande sala dos motores ao centro, a partir de onde o mundo girava.
Durante cinco dias, recusara-se a sair dali, e os adultos tinham-lhe feito a vontade, levando-lhe pratos de comida e abanando a cabeça com terna compaixão até que, por fim, sem qualquer sinal ou aviso prévio, a linha invisível da indulgência foi rebobinada e ela se viu uma vez mais arrastada para o mundo.
Por essa altura, a estação húmida já ia bem avançada, mas houvera um dia em que o sol brilhara e Vivien sentira o seu velho eu a dar ténues sinais de vida, a insinuar-se entre o clarão do pátio das traseiras e a encontrar o Velho Mac no alpendre. Falara muito pouco, assentando-lhe uma manápula nodosa no ombro e apertando-lho com força, e em seguida entregara-lhe um martelo para ela o ajudar a consertar a vedação. À medida que o dia se aproximava do fim, Vivien pensara em fazer uma visita ao regato, mas não fizera, e depois a chuva voltou e a tia Ada chegou trazendo umas caixas atrás, e a casa foi toda desmantelada. Os sapatos preferidos da irmã, os de cetim, que tinham passado toda a semana no tapete, no mesmo sítio onde ela os descalçara depois de a mãe lhe dizer que eram bons de mais para o piquenique, foram enfiados numa caixa juntamente com os lenços de assoar do pai e o seu velho cinto. Quando Vivien deu por ela, havia uma tabuleta a dizer «Vende-se» no relvado da frente e ela estava a dormir num chão que lhe era estranho enquanto os primos a miravam com curiosidade das suas camas.
*
A casa da tia Ada era diferente da de Vivien. A tinta das paredes não estava a lascar, não havia formigas a deambular pelos assentos dos bancos, nem se viam cascatas de flores a transbordar dos vasos no jardim. Era uma casa onde não se admitiam derramamentos de espécie alguma. Um sítio para tudo e tudo no seu devido sítio, gostava a tia Ada de dizer, com uma voz esganiçada que fazia lembrar a corda de um violino demasiado apertada.
Enquanto a chuva continuava a cair lá fora, Vivien ganhara o hábito de se estender por debaixo do sofá da sala boa, encostada à tábua em volta. Havia uma banda descaída de forro de juta, invisível da porta, e encafuar-se atrás dela era equivalente a ficar também ela invisível. Era reconfortante, aquela base de sofá rasgada, recordava-lhe a sua própria casa, a família, a feliz desordem esfarrapada em que viviam. Deixava-a mais do que nunca à beira das lágrimas. Na maior parte das vezes, porém, Vivien concentrava-se apenas em respirar, a inspirar a porção mais pequena de ar que conseguia, expirando-a quase sem mexer o peito. Era capaz de passar horas — dias inteiros — assim, a água da chuva a rumorejar pela caleira lá fora, de olhos fechados e com a caixa torácica imóvel; por vezes, quase se convencia a si própria de que fora capaz de parar o tempo.
A maior virtude da sala, porém, era a sua designação como área terminantemente proibida. A regra fora apresentada a Vivien na sua primeira noite na casa — a sala boa estava destinada a ser usada apenas para receber as visitas, apenas pela própria tia e, mesmo assim, só quando o estatuto dos convidados assim o exigia —, e Vivien assentira solenemente com a cabeça, sempre que era encorajada a isso, para mostrar que sim, que compreendia. E compreendera, de facto, na perfeição. Ninguém se servia da sala, o que significava que, uma vez a limpeza de pó diária feita, podia confiar que estaria sozinha entre as suas paredes.
E assim fora, até hoje.
O reverendo Fawley achava-se havia quinze minutos sentado na poltrona junto à janela enquanto a tia Ada se atarefava de volta do chá e do bolo. Vivien estava escondida debaixo do sofá, mais concretamente, imobilizada debaixo da depressão formada pelo traseiro da tia.
— Não preciso de lhe lembrar o que Deus Nosso Senhor teria aconselhado, Sr.ª Frost — declarou o reverendo no tom enjoativo que em geral reservava para o menino Jesus. — «Não vos esqueçais de acolher os forasteiros, pois ao fazê-lo, é bem possível que estejais a acolher anjos sem o saberdes.»
— Se a rapariga é um anjo, então eu sou a rainha de Inglaterra.
— Sim, pois bem — o tinido piedoso de uma colher de chá contra a porcelana —, a criança sofreu uma grande perda.
— Mais açúcar, senhor reverendo?
— Não... Obrigado, Sr.ª Frost.
A base do sofá abateu mais ainda com o suspiro da tia.
— Todos nós sofremos uma grande perda, senhor reverendo. De cada vez que penso no meu querido irmão e na morte que teve... uma queda de uma altura daquelas, todos eles, o Lizzie Ford a despenhar-se pelo precipício... O Harvey Watkins, que foi quem os encontrou, disse que estava de tal maneira carbonizado que ele nem sabia para o que é que estava a olhar. Foi uma tragédia...
— Uma tragédia terrível.
— Em todo o caso — os sapatos da tia Ada deslocaram-se no tapete e Vivien viu o dedo do pé de um deles a coçar o joanete preso dentro do outro —, eu não a posso ter aqui. Já tenho seis filhos e agora a minha mãe também vem morar cá para casa. Eu bem sei como ela tem andado desde que o médico lhe amputou a perna. Eu sou uma boa cristã, senhor reverendo, todos os domingos vou à missa, contribuo com a minha parte para o bazar e a angariação de fundos da Páscoa, mas isto não aguento.
— Compreendo.
— O senhor bem sabe que a rapariga não é fácil.
Houve uma pausa na conversa durante a qual se bebeu chá e se considerou a natureza particular da falta de facilidade de Vivien.
— Se tivesse sido um dos outros — a tia Ada pousou a chávena no pires —, até o simplório do pobre Pippin... mas isto não aguento. Perdoe-me, senhor reverendo, eu sei que é pecado dizer isto, mas não consigo olhar para a rapariga sem a culpar pelo que aconteceu. Ela deveria ter ido com eles. Se não se tivesse metido em sarilhos e ficado de castigo... Eles saíram do piquenique mais cedo, sabe, porque o meu irmão não gostava de a deixar tanto tempo sozinha... Ele sempre foi bom de mais... — Dito isto, irrompeu num grande pranto angustiado e Vivien pensou que feios os adultos eram às vezes, que fracos. Tão habituados a levar a sua avante que não percebiam nada de coragem.
— Pronto, pronto, Sr.ª Frost. Pronto, pronto.
Os soluços eram abundantes e laboriosos, como os de Pippin quando queria chamar a atenção da mãe. A cadeira do reverendo rangeu e, em seguida, os seus pés aproximaram-se. Entregou qualquer coisa à tia Ada, deveria ter sido, porque ela disse: «Obrigada» por entre as lágrimas, e, em seguida, deu uma assoadela ranhosa ao nariz.
— Não, fique com ele — disse o reverendo, regressando à cadeira. Sentou-se com um suspiro profundo. — Embora uma pessoa não possa deixar de se preocupar com o que será da criança.
A tia Ada emitiu umas leves fungadelas em sinal de que se recompunha e depois aventurou-se:
— Eu lembrei-me talvez da igreja da escola no caminho para Toowoomba?
O reverendo cruzou os tornozelos.
— Estou convencida de que as freiras tratam bem as alunas — prosseguiu a tia Ada. — Firmes mas justas, e um pouco de disciplina não lhe faria mal nenhum... O David e a Isabel sempre foram demasiado brandos.
— A Isabel — disse o reverendo subitamente, inclinando-se para a frente. — Então e a família da Isabel? Não há ninguém que pudéssemos contactar?
— Receio bem que ela nunca se tenha alongado muito sobre eles... Mas agora que fala nisso, ela tinha um irmão, creio eu.
— Um irmão?
— Professor numa escola, em Inglaterra. Próximo de Oxford, estou em crer.
— Bom, nesse caso.
— Nesse caso?
— Sugiro que comecemos por aí.
— O senhor está a querer dizer... que entremos em contacto com ele? — A voz da tia Ada pareceu mais aliviada.
— Tentar não custa nada, Sr.ª Frost.
— Enviamos-lhe uma carta?
— Eu próprio me encarregarei de o fazer.
— Oh, senhor reverendo...
— Para ver se convenço o indivíduo por meio da compaixão cristã.
— A fazer o que é correcto.
— A cumprir o seu dever para com a família.
— O seu dever para com a família. — A voz da tia Ada deixava transparecer uma ligeireza renovada. — E que espécie de homem não faria isso? Eu própria ficaria com ela, claro, se não fosse a minha mãe, os meus seis filhos e a falta de espaço. — Levantou-se e a base do sofá suspirou de alívio. — Posso servir-lhe outra fatia de bolo, senhor reverendo?
*
Verificou-se que existia de facto um irmão, que foi de facto induzido pelo reverendo a tomar a atitude correcta e, assim, a vida de Vivien sofreu nova mudança. No fim, tudo acabou por acontecer com uma rapidez notável. A tia Ada conhecia uma mulher que conhecia um indivíduo, cuja irmã ia atravessar o oceano até um sítio chamado Londres, para falar com um homem a respeito de um cargo de preceptora. Tomaram-se decisões e acertaram-se pormenores na correnteza de conversas entre adultos que parecia flutuar constantemente acima da cabeça de Vivien.
Arranjou-se um par de sapatos praticamente novo, o cabelo dela foi obrigado a conformar-se a duas tranças, o resto enfiado num vestido engomado com uma fita em volta da cintura. O tio conduziu-os pela montanha abaixo até à estação dos caminhos-de-ferro para apanharem o comboio com destino a Brisbane. A chuva continuava a cair, acompanhada de calor, ainda por cima, e Vivien entreteve-se a fazer desenhos com o dedo na janela.
A praça em frente do Railway Hotel estava cheia quando chegaram, mas deram com a Menina Katy Ellis precisamente onde combinara encontrar-se com eles, junto ao relógio da bilheteira.
Vivien nunca imaginara por um instante sequer que existissem tantas pessoas no mundo. Havia-as por todo o lado, todas diferentes umas das outras, atarefadas a correr de um lado para o outro como formigas-touro na confusão húmida onde havia pouco estivera um tronco podre. Chapéus-de-chuva pretos e grandes recipientes de madeira e cavalos com olhos castanhos profundos e narinas dilatas.
A senhora clareou a voz e Vivien apercebeu-se de que tinha falado com ela. Vasculhou a memória a tentar lembrar-se do que lhe fora dito. Cavalos e chapéus-de-chuva, formigas-touro molhadas, gente a correr de um lado para o outro... o nome dela. A senhora perguntara-lhe se se chamava Vivien.
Assentiu com a cabeça.
— Tu vê lá se tens modos — repreendeu-a a tia Ada, endireitando a gola de Vivien. — É o que os teus pais haveriam de querer. Sempre que te fizerem uma pergunta, respondes: «Sim, senhora.»
— A menos que não concordes, caso em que «não, senhora» serve perfeitamente. — A mulher rasgou um grande sorriso indicando que estava a brincar. Vivien olhou alternadamente para o par de rostos esperançosos que a fitavam do alto. As sobrancelhas da tia Ada juntaram-se enquanto ela aguardava.
— Sim, senhora — disse Vivien.
— E estás bem esta manhã?
A obediência nunca lhe surgira com naturalidade; noutros tempos, Vivien ter-lhe-ia respondido o que muito bem lhe apetecesse e gritado que não estava nada bem, que não queria ir com ela, que não era justo e que não a podiam obrigar a... Mas agora não. Já percebera que era muito mais fácil limitar-se a dizer o que as pessoas desejavam ouvir. E, fosse como fosse, que diferença fazia isso? As palavras eram coisas desajeitadas; não lhe ocorria nenhuma capaz de descrever o buraco negro sem fundo que se rasgara dentro dela, a dor que lhe consumia as entranhas de cada vez que julgava ouvir os passos do pai a aproximar-se pelo corredor, sentia o cheiro da água-de-colónia da mãe ou, pior ainda, via qualquer coisa que simplesmente não podia deixar de partilhar com Pippin...
— Sim, senhora — disse ela à mulher alegre de cabelo ruivo e uma saia comprida e elegante.
A tia Ada entregou a um carregador a mala de Vivien, acariciou a cabeça da sobrinha e recomendou-lhe que se portasse bem. A Menina Katy Ellis verificou cuidadosamente os bilhetes e interrogou-se se o vestido que guardara na mala para a sua entrevista em Londres seria tão apropriado quanto julgava. E, à medida que o comboio assobiava a sua despedida iminente, uma menina de tranças esmeradas e uns sapatos emprestados subiu as escadas de metal. O fumo inundou o cais, as pessoas acenaram e gritaram, um cão vadio apareceu a correr e a ladrar por entre a multidão. Ninguém reparou na menina quando ela transpôs a soleira umbrosa; nem sequer a tia Ada, que, segundo algumas opiniões, poderia estar a despachar a sobrinha órfã rumo a um futuro incerto. E assim, quando a essência da luz e vida que fora Vivien Longmeyer se contraiu por motivos de salvaguarda e desapareceu dentro dela, o mundo continuou a girar e ninguém deu por nada.