Biblioteca do New College, Oxford, 2011
Laurel passou os cinquenta e sete minutos seguintes, todos eles excruciantes, a calcorrear os jardins do New College. Quando as portas finalmente se tornaram a abrir, ela, por um triz, não bateu um recorde da biblioteca, fazendo lembrar a si própria uma consumista nos saldos do Boxing Day[23] à medida que empurrava outras pessoas com a pressa de chegar ao balcão; Ben mostrou-se seguramente impressionado.
— Que fixe! — exclamou ele, metendo-se em seguida com ela: — Não a deixei cá dentro por engano, pois não?
Laurel assegurou-lhe de que não e apressou-se a folhear o primeiro diário de Katy de 1941, à procura de qualquer coisa que lhe explicasse como fora que o plano da mãe tinha saído gorado. Não havia muitas referências a Vivien nos primeiros meses do ano, para além das ocasionais indicações que Katy lhe escrevera ou recebera uma carta dela, e afirmações discretas do género «parece que está tudo na mesma com a Sr.ª Jenkins», mas depois, a 5 de Abril de 1941, as coisas começaram a animar.
O correio trouxe-me hoje notícias da minha jovem amiga Vivien. Era uma carta longa para o que é habitual nela e eu fiquei imediatamente alerta para o facto de que qualquer coisa no tom dela se alterara. A princípio, fiquei satisfeita, pois parecia que ela tinha recobrado um certo ânimo; e interroguei-me se uma nova paz não teria finalmente despontado na sua vida. Mas, infelizmente, não, pois a carta não dava notícia de um compromisso renovado para com o lar e a família; pelo contrário, ela descreveu-me com grande extensão e abundância de pormenores o trabalho voluntário a que se dedica no hospital para crianças órfãs do Dr. Tomalin, em Londres, pedindo-me encarecidamente, como sempre, aliás, que destruísse a carta depois de a ler e para me conter de fazer referências ao seu trabalho na minha resposta.
Eu irei com certeza atender o seu pedido, mas tenciono implorar-lhe uma vez mais, nos termos mais veementes de que for capaz, para pôr um fim ao seu envolvimento com aquele local, pelo menos até eu conseguir arranjar uma solução permanente para os problemas dela. Já não basta ela insistir em fazer donativos para cobrir as despesas correntes do hospital? Será possível que não se interesse por acautelar a própria saúde? Ela não me dará ouvidos, bem sei; apesar dos seus vinte anos, a Vivien continua a ser a mesma criança teimosa que conheci no barco, recusando-se a ouvir os meus conselhos quando estes não lhe agradam. Mas irei escrever-lhe, em qualquer dos casos. Jamais me perdoaria se o pior acontecesse e eu não tivesse feito tudo ao meu alcance para a orientar no rumo certo.
Laurel franziu o sobrolho. Que pior? Era óbvio que havia qualquer coisa que lhe escapava — porque diabo teria Katy Ellis, professora e amiga de criaturas traumatizadas em tantos sítios, feito tanta questão de que Vivien abandonasse o seu trabalho voluntário no hospital para órfãos do Dr. Tomalin? A menos que o próprio Dr. Tomalin representasse um perigo. Seria isso? Ou estaria o hospital eventualmente localizado numa área apetecível para os bombardeiros alemães? Laurel ponderou a questão durante alguns momentos até decidir que era impossível saber ao certo qual era o receio de Katy sem embarcar numa linha tangencial de investigação que ameaçava absorver-lhe o pouco tempo que lhe restava. A questão era intrigante, mas irrelevante, suspeitava ela, para a missão em que estava envolvida, com vista a descobrir mais acerca do plano da mãe. Prosseguiu a leitura:
O motivo da melhoria do ânimo da Vivien foi-me revelado na segunda página da carta. Parece que conheceu uma pessoa, um jovem, e embora faça um esforço enorme para o apresentar nos termos mais descomprometidos ao seu alcance — «Agora conto com a ajuda de outro voluntário no meu projecto com as crianças, um indivíduo que parece saber tanto sobre os seus limites como eu sei a respeito de como transformar luzes em fadas» —, eu conheço bem a minha jovem amiga e suspeito de que a sua despreocupação aparente é um número de circo para me entreter, destinado a esconder algo mais profundo. Exactamente o que esse algo poderá ser, não sei, apenas que nem parece dela dedicar tantas linhas a falar de um indivíduo que conhece há tão pouco tempo. Estou atenta. A minha intuição nunca me enganou e tenciono escrever-lhe de imediato a exortá-la à devida prudência.
E Katy Ellis deveria ter feito precisamente isso, pois a entrada seguinte do seu diário continha uma longa citação de uma carta que Vivien Jenkins lhe enviara, evidentemente em resposta às suas apreensões.
As saudades que eu tenho de si, minha querida Katy — já lá vai quase um ano desde o nosso último encontro; parece que foi há dez. A sua carta deixou-me desejosa de que estivéssemos as duas sentadas à sombra daquela árvore em Nordstrom, aquela à beira do lago onde costumávamos fazer piqueniques quando nos vinha visitar. Ainda se lembra da noite em que saímos à socapa da casa grande e fomos pendurar lanternas de papel nas árvores do bosque? Dissemos ao meu tio que deviam ter sido os ciganos, e ele passou o dia seguinte a calcorrear os terrenos da escola com uma caçadeira ao ombro e o pobre do cão artrítico atrás — querido e velho Dewey. Um cão de caça tão fiel.
A Katy depois repreendeu-me por andar a pregar partidas, mas, se bem me lembro, foi a própria Katy a descrever em grande pormenor à mesa do pequeno-almoço os barulhos «terríveis» que tinha ouvido durante a noite, quando o «povo cigano» devia estar a fazer a sua «descida» aos terrenos consagrados de Nordstrom. Oh, não foi fantástico, nadar à luz da Lua gorda e prateada? Eu adoro nadar — é como se nos deixássemos cair da borda do mundo, não é? Creio que nunca deixei de acreditar que poderia descobrir o buraco no leito do regato que me levará de volta a casa.
Ah, Katy — pergunto-me que idade terei de atingir para a Katy deixar de se preocupar comigo. Que fardo não deve ser. Acha que, quando eu for velha, a fazer tilintar as minhas agulhas de tricô, a baloiçar na minha cadeira, ainda vai continuar a chamar-me a atenção para manter as saias limpas e o nariz assoado? Que bem que tratou de mim ao longo dos anos, e como eu por vezes lhe dificultei a tarefa, e como sou afortunada por a ter tido a si à minha espera naquele dia terrível na estação dos caminhos-de-ferro!
É tão sensata como sempre nos seus conselhos e, por favor, minha querida, fique descansada que eu sou igualmente sensata nas minhas acções. Já não sou nenhuma criança e conheço bem as minhas responsabilidades — não está descansada, pois não? Já a imagino a ler estas linhas enquanto abana a cabeça, a pensar na pessoa imprudente que eu sou. Para apaziguar os seus receios, deixe-me assegurar-lhe de que mal tenho falado com o homem em questão (a propósito, ele chama-se Jimmy — vamos tratá-lo pelo nome, está bem? —, «o homem» tem uma conotação algo sinistra); aliás, tenho feito sempre o possível por desencorajar qualquer contacto, chegando mesmo a rasar, sempre que considero necessário, a falta de educação. Apresento desde já as minhas desculpas por isso, minha querida Katy, bem sei que não gostaria de ver a sua jovem protegida a ganhar reputação de mal-educada e eu, pela parte que me toca, detesto fazer seja o que for susceptível de trazer má reputação ao seu nome!
Laurel sorriu. Gostava de Vivien; a resposta era espirituosa sem rasar a indelicadeza para com a mãe-galinha Katy e a sua tendência cansativa para a preocupação. Até a própria Katy escrevera a seguir ao excerto: «É com grande agrado que saúdo o regresso da minha jovem amiga atrevida. Tenho sentido saudades dela nestes últimos anos.» Já o mesmo não se podia dizer quanto à descoberta do nome do jovem voluntário que colaborava com Vivien no hospital. Teria sido o mesmo Jimmy por quem a mãe estivera apaixonada? Seria o facto de ele estar trabalhar com Vivien e o Dr. Tomalin mera coincidência? Seguramente que não. Laurel sentiu um fragor premonitório à medida que uma ideia do plano dos namorados começava a ganhar forma na sua mente.
Era evidente que Vivien não fazia a mais pequena ideia da relação entre aquele jovem simpático no hospital e Dorothy, a rapariga que em tempos fora sua amiga — o que não deveria ser motivo de surpresa, supunha Laurel. Kitty Barker mencionara o zelo extremo da mãe em manter o namorado longe de Campden Grove. Tal como lhe explicara a tendência que as emoções tinham para se exacerbar e os princípios morais para se esbater, durante uma guerra, criando, ocorreu a Laurel nesse momento, o ambiente perfeito para um casal de namorados desafortunados se deixar arrastar numa folie à deux[24]
As entradas do diário relativas à semana seguinte não continham qualquer referência quer a Vivien Jenkins, quer «à questão do jovem»; Katy Ellis dedicou-as, ao invés, às suas apreensões imediatas no que respeita às políticas administrativas divisionárias e às conversas na rádio sobre uma eventual invasão. A 19 de Abril, ela menciona a sua preocupação por Vivien ainda não lhe ter escrito, como ficara combinado; porém, no dia seguinte, refere um telefonema do Dr. Tomalin, informando-a de que Vivien não estava bem de saúde. Ora, mas que interessante: parecia que afinal os dois se conheciam e que não era uma objecção quanto ao carácter do médico o motivo que levara Katy a opor-se com tanta firmeza ao hospital. Quatro dias mais tarde, o seguinte:
Recebi hoje uma carta que me deixou extremamente aborrecida. É-me totalmente impossível transmitir o tom de forma resumida, nem tão-pouco saberia por onde começar ou terminar no que se refere à citação das partes que me deixam transtornada. Assim, só por esta vez, vou contrariar o desejo expresso da minha jovem (e exasperante!) amiga, e não vou deitar a carta para a lareira acesa.
Laurel nunca na vida tinha virado uma página tão depressa. Ali estava ela, escrita em fino papel branco e com uma caligrafia um tanto ou quanto atabalhoada — a carta de Vivien Jenkins para Katy Ellis, datada de 23 de Abril de 1941. Um mês antes da sua morte, reparou Laurel com amargura.
Querida Katy, estou a escrever-lhe no restaurante da estação do comboio, porque me senti dominada pelo receio de que, se não registasse tudo o quanto antes, acabaria por desaparecer e, amanhã, quando acordasse, iria descobrir que não passara de imaginação minha. Nada do que lhe comunico lhe irá agradar, mas a Katy é a única pessoa com quem posso desabafar, e eu preciso de desabafar com alguém. Perdoe-me, pois, minha querida Katy, aceite as minhas mais sinceras desculpas pela ansiedade que sei que esta confidência lhe irá causar. Só lhe peço que, se tiver de pensar mal de mim, pense com delicadeza e que se lembre de que ainda continuo a ser a sua Pequena Companheira de Bordo.
Hoje aconteceu uma coisa. Eu ia a sair do hospital do Dr. Tomalin e tinha parado no degrau da rua para ajeitar o lenço de pescoço — juro-lhe, Katy, e sabe bem que não tenho o hábito de mentir, que a minha hesitação não foi propositada; mesmo assim, quando ouvi a porta abrir-se atrás de mim, soube, sem precisar de me virar, que era o jovem (creio que já lhe falei nele por alto nas minhas cartas — o Jimmy?) que ali estava.
Katy Ellis sublinhara a frase e fizera uma anotação na margem, escrita com uma caligrafia tão miúda e regular que Laurel podia bem imaginar o esgar rígido de censura da autora: «Falou-me nele por alto! As ilusões dos apaixonados nunca deixam de me espantar!» Apaixonados. O estômago de Laurel embrulhou-se-lhe de preocupação à medida que ela tornava a concentrar a sua atenção na carta de Vivien. Ter-se-ia Vivien apaixonado por Jimmy? Fora isso que fizera o plano «inofensivo» ir por água abaixo?
Mais do que certo, era ele; o Jimmy viera atrás de mim até à porta e trocámos algumas palavras acerca de um episódio cómico que se passou com as crianças. Ele deu-me vontade de rir — ele é mesmo engraçado, Katy —, eu gosto de pessoas engraçadas, a Katy não gosta? — o meu pai era um homem muito engraçado, não descansava enquanto não nos punha a todos a rir — e depois perguntou-me, com a maior das naturalidades, se me podia acompanhar, uma vez que íamos os dois na mesma direcção, ao que, contra tudo o que ditava a sensatez, eu lhe respondi: «Sim.»
Bom, enquanto a Katy abana a cabeça (já estou a imaginá-la sentada àquela pequena secretária de que me falou, encostada à janela — tem primaveras frescas numa jarra a um canto? Tem sim, que eu sei), deixe-me explicar por que razão aceitei. Há semanas que eu tenho andado a seguir os seus conselhos e feito tudo ao meu alcance por o ignorar, mas, um dia destes, ele ofereceu-me uma coisa — um presente para me pedir desculpa por um pequeno mal-entendido que surgiu entre nós e em cujo motivo não vale a pena estar aqui agora a entrar. O presente era uma fotografia. Escuso-me a descrevê-la aqui, mas confesso-lhe que, através daquela imagem, era como se, de algum modo, ele me tivesse perscrutado a alma e exposto o mundo que lá tenho albergado desde miúda.
Levei a fotografia comigo para casa e guardei-a como uma criança zelosa, indo buscá-la a cada oportunidade que se me apresentava, debruçando-me sobre os mais pequenos pormenores e depois tornando a fechá-la à chave no armário secreto na parede por detrás do retrato da minha avó no quarto — tal como uma criança poderia guardar um objecto precioso, pela simples razão de que, ao escondê-lo, ao guardá-lo só para ela, o seu valor fosse de alguma forma incrementado. Ele ouviu-me contar histórias às crianças do hospital, claro, e não estou a sugerir que houve algo «mágico» na escolha do presente, mas, não obstante, comoveu-me.
A palavra «mágico» aparecia sublinhada e era alvo de outra anotação pela pena de Katy Ellis:
É precisamente o que ela sugere: eu conheço a Vivien e sei que ela de facto acredita naquele mundo. Uma das coisas que o meu trabalho me tem ensinado com maior certeza é que o sistema de crenças adquirido na infância nunca é completamente esquecido; pode ficar latente durante algum tempo, mas torna a manifestar-se sempre em momentos de carência a fim de reclamar a alma a que deu forma.
Laurel recordou a sua própria infância, questionando-se se o que Katy dizia seria mesmo verdade. Acima de qualquer sistema teísta, os pais tinham-lhe incutido os valores da família; a mãe, em particular, mantivera-se fiel a eles — apercebera-se demasiado tarde, confessara-lhes com tristeza, do valor da família. E Laurel via-se forçada a reconhecer que, quezílias amistosas à parte, os Nicolson podiam contar uns com os outros em momentos de necessidade, tal como lhes haviam ensinado na infância.
Talvez tenha sido também a minha recente indisposição a deixar-me mais imprevidente do que é meu hábito — após uma semana às escuras no quarto, com aviões alemães a atroar por cima da minha cabeça, o Henry sentado à minha cabeceira todos os serões, a segurar-me na mão e ansioso por que eu recuperasse depressa, é um verdadeiro alívio ver-me fora de casa outra vez, a respirar o ar fresco da Primavera londrina. (Já agora um aparte: não lhe parece extraordinário, Katy, que, apesar de o mundo inteiro estar envolvido nesta loucura a que nós chamamos guerra, as flores, as abelhas e as estações continuem a fazer o que têm a fazer, sábias mas incansáveis, à espera de que a humanidade recupere o juízo e se recorde da beleza da vida? É estranho, mas o meu amor e a minha ânsia pelo mundo são sempre aprofundados no decorrer da minha ausência dele; é maravilhoso, não acha, que uma pessoa seja capaz de passar do desespero à alegria ávida, e que, mesmo durante estes dias tenebrosos, consigamos encontrar felicidade nas coisas mais simples?)
Adiante, seja lá por que motivo for, ele pediu-me para me acompanhar e eu disse-lhe que sim e, assim, lá fomos, e eu permiti-me a rir. Ri-me porque ele me contou histórias engraçadas e o ambiente entre nós era tão leve e descontraído. Apercebi-me de há quanto tempo não desfrutava dos prazeres mais simples: companhia e conversa numa tarde soalheira. Sinto-me impaciente por estes prazeres, Katy, já não sou nenhuma criança — sou uma mulher e quero coisas, coisas que não poderei ter; mas é humano, não é, ansiar por aquilo que nos está vedado?
Que coisas? O que era que estava vedado a Vivien? Laurel teve a sensação, e já não era a primeira vez, de que lhe escapava uma parte importante do puzzle. Folheou as entradas do diário respeitantes à quinzena seguinte até que Katy tornou a fazer referência a Vivien, na esperança de que tudo se esclarecesse.
Ela continua a vê-lo — no hospital, o que por si só já é grave, mas também noutros locais, quando é suposto estar a trabalhar na cantina do Serviço Voluntário Feminino ou a fazer compras para a casa. Diz-me que não é caso para me preocupar, que «ele é um amigo e nada mais». Apresenta como prova uma referência à noiva do jovem: «Ele está noivo de uma rapariga, Katy, estão os dois muito apaixonados e fazem tenções de ir morar para o campo quando a guerra terminar; vão arranjar uma casa grande e enchê-la de filhos; por isso, como vê, não corro o risco de faltar aos votos matrimoniais, como parece ser seu receio.»
Laurel sentiu uma vertigem ao reconhecer a descrição. Era a Dorothy que Vivien se referia — a mãe. A intersecção entre passado e presente, entre história aprendida e experiência vivida, assoberbou-a momentaneamente. Tirou os óculos e esfregou a testa, concentrando-se uns instantes na muralha de pedra do lado de fora da janela.
Posto o que deixou Katy prosseguir:
Ela sabe perfeitamente que não se trata de receio; a rapariga está a deturpar propositadamente as minhas apreensões. Eu também sou tudo menos inocente; sei que o noivado deste jovem não constitui um obstáculo ao coração humano. Desconheço quais sejam os sentimentos dele, mas, quanto aos da Vivien, não tenho a mínima dúvida.
Mais preocupações exageradas da parte de Katy. No entanto, Laurel continuava alheia aos seus motivos: Vivien dava a entender que os receios de Katy eram resultado das suas opiniões rígidas acerca do que constituía um comportamento conjugal decoroso. Faria Vivien da infidelidade um hábito? Não havia muito em que se basear, mas Laurel quase conseguia ler nas cogitações mais românticas e floreadas de Vivien sobre a vida um espírito de amor livre... quase.
Foi então que Laurel se deparou com uma entrada, dois dias mais tarde, que a levou a interrogar-se se a intuição de Katy sempre lhe dissera que Jimmy representava uma ameaça para Vivien.
Terríveis notícias de guerra — Westminster Hall foi atingido ontem à noite, assim como a Abadia e o Parlamento; chegaram a pensar que o Big Ben tinha sido arrasado! Ao invés de pegar no jornal ou ouvir a telefonia, esta noite decidi-me a fazer uma limpeza ao armário da sala de estar a fim de arranjar espaço para os meus novos apontamentos educativos. Confesso que tenho uma certa tendência para a acumulação — um traço de que seguramente não me orgulho; preferia que a minha casa fosse tão eficiente como é o meu cérebro — e fui lá desencantar uma colecção deveras surpreendente de ninharias. Entre elas, uma carta que recebi há três anos do tio da Vivien. Para além da descrição da «agradável obediência» da sobrinha (o meu aborrecimento ao ler esta expressão esta noite foi tão grande como foi na altura — o pouco que ele conhecia da verdadeira Vivien!), juntara uma fotografia dela, que ainda estava enfiada dentro da carta. Tinha dezassete anos quando fora tirada e era uma autêntica beleza — ao receber a carta, recordo-me de ter pensado que ela parecia uma personagem de um conto de fadas, o Capuchinho Vermelho, talvez; uns olhos grandes e lábios em botão de rosa, e a mesma expressão inocente e directa da infância. Recordo-me de ter desejado também que não houvesse nenhum Lobo Mau à sua espera na floresta.
O facto de a carta e a fotografia me terem vindo parar à mão logo hoje deu-me que pensar. Não me enganei da última vez que tive um dos meus «pressentimentos». Não agi na altura, para meu eterno remorso, mas desta feita não irei ficar de braços cruzados e deixar que a minha amiga cometa outro erro com consequências nefastas. Uma vez que não lhe posso expressar as minhas apreensões por escrito, como gostaria, vou dar uma saltada a Londres e ver com os meus próprios olhos.
Uma saltada que evidentemente deu — e sem demora —, pois a entrada seguinte foi escrita quatro dias mais tarde:
Estive em Londres e as coisas correram pior do que eu receava. É óbvio para mim que a minha querida Vivien está apaixonada pelo tal jovem, o Jimmy. Ela não me confessou, claro, é demasiado circunspecta para isso, mas eu conheço-a desde miúda e, por conseguinte, eu vi isso perfeitamente em cada expressão animada que ela fazia, ouvia isso em cada frase que ficava por dizer. Pior ainda, parece que abandonou a prudência de uma vez por todas; tem estado com frequência em casa do jovem, onde ele mora com o pai doente. Ela insiste em que «é tudo inocente», ao que eu lhe respondi que isso era coisa que não existia e que, fosse ela instada a justificar aquelas visitas, tais distinções não abonariam nada a seu favor. Garantiu-me que não «abdicava dele» — criança teimosa —, ao que eu reuni toda a firmeza que possuo e lhe lembrei: «Minha querida, a menina é casada.» Recordei-lhe ainda a promessa que fizera ao marido na igreja de Nordstrom, de que haveria de o amar, honrar e lhe obedecer até que a morte os separasse, etc., etc. Ah, mas não me hei-de esquecer com facilidade do olhar com que ela me presenteou nesse momento — a desilusão nos olhos dela quando me disse que eu não compreendia.
Compreendo muito bem o que é amar o fruto proibido, e fiz-lhe saber isso mesmo, mas ela é jovem, e os jovens têm tendência a presumir que são os proprietários exclusivos dos sentimentos profundos. Lamento dizer que nos despedimos de más relações — eu fiz uma derradeira tentativa para a convencer a deixar de trabalhar no hospital; recusou-se. Lembrei-lhe de que tinha de pensar na saúde; ela não fez caso das minhas apreensões. Desiludir uma alma como a dela — aquele rosto que se nos revela como se tivesse saído do pincel de um pintor exímio — é sentir-me tão culpada como se tivesse expurgado do mundo tudo o que é bom. Apesar de tudo, não vou desistir — ainda não joguei a minha última cartada. Arrisco-me à indignação eterna da Vivien, mas, à medida que o comboio se afastava de Londres, decidi que vou escrever a este Jimmy Metcalfe e explicar-lhe até que ponto a está a prejudicar. Talvez ele, ao contrário da Vivien, passe a usar da devida prudência.
O Sol começava a descer no horizonte e a sala de leitura estava a ficar cada vez mais fria e escura; Laurel tinha a vista turva do esforço de ler a caligrafia regular mas miúda de Katy Ellis durante as últimas duas horas, sem descanso. Recostou-se na cadeira e fechou os olhos, a voz de Katy a revolutear-lhe no espírito. Teria ela chegado a escrever a carta a Jimmy?, questionava-se Laurel. Fora isso que comprometera o plano da mãe? Teria, o que quer que Katy tivesse alegado na carta — algo que ela obviamente considerava ser capaz de o convencer a abdicar da amizade de Vivien, uma vez que esta se recusava a isso — sido suficiente para motivar a ruptura entre a mãe e Jimmy? Num livro, pensou Laurel, seria exactamente assim que as coisas se passariam. Havia uma certa justiça narrativa de a separação entre um casal de jovens namorados ter como causa precisamente o plano que tinham tentado passar à prática com o fito de comprar uma vida de felicidade em comum. Era isso que ia no pensamento da mãe naquele dia no hospital, quando dissera a Laurel que se deveria casar por amor, que não deveria ficar à espera, que não havia nada mais importante do que isso? Teria Dorothy esperado de mais e desejado de mais, e, entretanto, viera outra mulher e ficara-lhe com o namorado?
Laurel suspeitava de que era alguma peculiaridade de Vivien Jenkins que fazia dela a pessoa menos indicada para Dorothy e Jimmy a escolherem como alvo para semelhante plano. Seria apenas porque Vivien era precisamente o tipo de mulher por quem Jimmy seria capaz de se apaixonar? Ou estaria a intuição de Laurel a dizer-lhe outra coisa? Katy Ellis — que era bem filha do ministro protestante seu pai — estava obviamente receosa da eventualidade de Vivien faltar aos votos matrimoniais, mas havia ali algo para além disso. Laurel perguntava-se se Vivien teria estado doente. Katy poderia ter uma predisposição para a ansiedade, mas a sua preocupação com a saúde de Vivien era do género reservado a uma amiga que sofra de uma doença crónica, não a uma jovem enérgica de vinte anos. A própria Vivien fizera referência às suas «ausências» do mundo exterior, quando o marido Henry se sentava à sua cabeceira e lhe acariciava a mão enquanto ela convalescia. Teria Vivien Jenkins sofrido de alguma doença que a tornava mais vulnerável ao mundo do que teria sido noutras circunstâncias? Teria tido um esgotamento de qualquer ordem, emocional ou físico, que a deixara susceptível a uma recaída?
Ou — Laurel endireitou-se repentinamente à secretária — teria talvez sofrido uma série de abortos depois do casamento com Henry? Isto explicaria seguramente o desvelo extremoso do marido; e, até certo ponto, a ânsia de Vivien por sair de casa logo que se restabelecia, de abandonar o cenário doméstico da sua infelicidade e fazer mais do que as suas forças realmente lhe permitiam. Poderia mesmo explicar a apreensão específica de Vivien trabalhar com crianças no hospital. Seria isso? Teria Katy receado que, ao rodear-se de lembranças constantes da sua própria infertilidade, a amiga estivesse a contribuir para a sua desdita? Vivien escrevera na carta que era próprio da natureza humana, e seguramente da sua, desejar precisamente aquilo que não podia ter. Laurel tinha a certeza de que estava na pista certa — até mesmo o recurso frequente a eufemismos por parte de Katy se achava em consonância com aquele assunto, naquela época.
Laurel lamentou não ter mais sítios onde pudesse procurar mais respostas. Ocorreu-lhe que a máquina do tempo de Gerry lhes viria mesmo a calhar agora. Infelizmente, tinha de se contentar com os diários de Katy. Havia mais algumas entradas que relatavam o fortalecimento da amizade entre Vivien e Jimmy, apesar das apreensões constantes de Katy, e depois, de repente, a 20 de Maio, uma entrada onde se lia que Vivien lhe escrevera a comunicar-lhe que decidira pôr um ponto final aos seus encontros com Jimmy, que chegara a altura de ele dar início a uma nova vida, e que ela lhe desejara muitas felicidades e se despedira dele.
Laurel susteve a respiração, a perguntar-se se Katy sempre teria enviado a tal carta a Jimmy e se o que quer que ela lhe tivesse escrito seria a causa daquela mudança de ideias abrupta. Contrariamente ao que seria de prever, lamentou a sorte de Vivien Jenkins; apesar de Laurel saber que a relação entre Vivien e Jimmy não se resumia a uma mera amizade, não podia deixar de sentir pena da jovem que se dera por tão feliz com tão pouco. Laurel calculava que a sua simpatia poderia advir em parte de saber o destino que estava reservado a Vivien; mas até mesmo Katy, que se mostrara tão empenhada em que a relação terminasse, agora que isso acontecera, parecia ambivalente.
Eu andava preocupada com a Vivien e queria que o caso dela com o tal jovem acabasse; agora sofro sob o fardo de ver o meu desejo atendido. Recebi uma carta em que me relata tudo nos mais ínfimos pormenores, mas num tom que não é remotamente difícil de decifrar. Escreve em resignação. Limita-se a dizer-me que eu tinha razão; que a amizade chegou ao fim; e que eu não preciso de me preocupar mais, pois tudo se acabou por resolver pelo melhor. Mágoa ou fúria, eu aceitaria com naturalidade. É o tom derrotista da carta que desperta as minhas apreensões. Não posso deixar de ver nisso um mau presságio. Vou esperar pela sua próxima carta na esperança de lhe ver melhoras, e, entretanto, manter-me-ei firme na minha certeza de que o que fiz foi pelo bem dela.
Mas não haveria próxima carta. Vivien Jenkins morreu três dias depois, um acontecimento registado por Katy Ellis, com o desgosto que se poderia imaginar.
*
Meia hora mais tarde, Laurel percorria a passo ligeiro o relvado do New College em direcção à paragem do autocarro, a reflectir em tudo o que descobrira, quando o seu telemóvel começou a chamá-la do bolso. Apesar de não reconhecer o número, decidiu atender.
— Lol? — disse a voz.
— Gerry?! — Laurel teve de fazer um esforço por conseguir ouvir por entre o barulho do outro extremo da linha. — Gerry? Onde é que tu estás?
— Em Londres. Numa cabina telefónica de Fleet Street.
— E ainda há alguma cabina telefónica que funcione na cidade?
— Parece que sim. A menos que isto seja o Tardis[25], e, nesse caso, estou metido em grandes sarilhos.
— Que estás a fazer em Londres?
— Ando na peugada do Dr. Rufus.
— Hã?! — Laurel pressionou uma mão contra a outra orelha para conseguir ouvi-lo melhor. — E então? Conseguiste apanhá-lo?
— Consegui. Os diários dele, pelo menos. Quanto ao doutor, morreu de uma infecção lá para o fim da guerra.
O coração de Laurel batia acelerado; ignorou o fim prematuro do médico. Na demanda de soluções para aquele mistério, não havia tempo para grandes demonstrações de empatia.
— E então? O que foi que descobriste?
— Não sei por onde começar.
— Pelo mais importante. E, por favor, despacha-te.
— Espera aí. — Ouviu-o deixar cair outra moeda no telefone. — Ainda aí estás?
— Sim, claro.
Laurel parou debaixo da luz alaranjada de um candeeiro da rua e ouviu Gerry dizer:
— Elas nunca foram amigas, Lol. A mãe e esta Vivien Jenkins... de acordo com o Dr. Rufus, elas nunca foram amigas.
— O quê?! — Laurel julgou ter ouvido mal.
— Mal se conheciam.
— A mãe e a Vivien Jenkins? Do que é que estás para aí a falar? Eu vi o livro, a fotografia... Claro que eram amigas.
— A mãe queria que fossem amigas... pelo que eu li, era quase como se ela quisesse ser a própria Vivien Jenkins. Ficou obcecada com a ideia de que eram inseparáveis... «duas almas gémeas» foram as palavras que ele empregou, mas aquilo era tudo da cabeça dela.
— Mas... eu não...
— E depois aconteceu qualquer coisa... não percebi ao certo o quê... mas a Vivien Jenkins fez qualquer coisa que deixou claro à mãe que elas não eram de modo algum amigas chegadas.
Laurel recordou-se da discussão de que Kitty Barker lhe falara, qualquer coisa que se passara entre ambas e que pusera Dorothy de péssimo humor e instigara o seu desejo de vingança.
— O que foi, Gerry? — indagou ela. — Tu sabes o que foi que a Vivien fez? Ou tirou.
— Ela... espera um instante. Bolas, estou sem moedas. — Chegou-lhe um barulho violento de sacudidelas de bolsos, uma atrapalhação com o auscultador do telefone. — Não tarda, a ligação está a cair, Lol...
— Liga-me outra vez. Arranja mais moedas e torna a telefonar-me.
— Já é tarde, tenho de me ir embora. Mas tornamos a falar em breve. Eu vou a Greenac...
O sinal soou em tom monótono e Gerry desapareceu da linha.