Capítulo 2

Suffolk, 2011

Chovia em Suffolk. Nas suas recordações de infância nunca chovia. O hospital ficava no outro lado da cidade e o automóvel avançou devagar pela High Street, cheia de poças de água, antes de virar para o acesso e parar ao cimo da pequena rotunda. Laurel puxou da caixa da base, abriu-a para se ver ao espelho e puxou a pele de uma das faces para cima, observando calmamente as rugas a formarem-se e depois a desaparecerem à medida que a soltava. Fez o mesmo do outro lado. As pessoas adoravam as suas rugas. Pelo menos, era o que a agente lhe dizia, os directores de casting lhe entoavam em tom sentimental, as maquilhadoras lhe sussurravam enquanto brandiam os seus pincéis e a sua juventude desconcertante. Um daqueles jornais on-line lançara um concurso havia uns meses, convidando os leitores a votar no «Rosto Preferido do País», e Laurel ficara em segundo lugar. As suas rugas, constava, transmitiam segurança às pessoas.

Uma coisa que, para os outros, era fácil de dizer. Quanto a Laurel, faziam-na sentir-se velha.

Ela era velha, pensou, fechando a tampa da caixa com força. E não no sentido da Sr.ª Robinson. Fazia agora vinte e cinco anos que participara no elenco d’A Primeira Noite, no National Theatre. Como fora que aquilo acontecera? Alguém deveria tê-la apanhado distraída e ter acelerado o malvado do relógio, só podia ser isso.

O motorista abriu a porta e acompanhou-a, abrigando-a sob um grande chapéu-de-chuva preto.

— Obrigada, Mark — agradeceu-lhe Laurel quando chegaram ao toldo. — Já tem a morada onde me deve ir buscar na sexta-feira?

Ele pousou a pequena mala de viagem e sacudiu o chapéu-de-chuva.

— A quinta do outro lado da povoação, pela estrada estreita, no caminho mesmo ao fundo. Sempre fica combinado para as duas horas?

Laurel respondeu-lhe que sim e ele assentiu com a cabeça, correndo debaixo de chuva até à porta do condutor. O automóvel arrancou e ela ficou a vê-lo partir, ansiando subitamente pelo aconchego e pela sonolência agradável de uma longa viagem para nenhum sítio em particular ao longo da auto-estrada molhada. Por ir para qualquer sítio, na verdade, que não aquele.

Laurel levou a mão à porta mas não entrou. Ao invés, puxou dos cigarros e acendeu um, dando uma passa com mais prazer do que a decência recomendava. Passara uma noite péssima. Sonhara de forma intermitente com a mãe e aquele sítio e as irmãs, quando eram pequenas, e Gerry, em rapaz. Um rapaz baixo e sério, com uma nave espacial de estanho na mão, um brinquedo feito por ele, a dizer-lhe que um dia haveria de inventar uma cápsula do tempo e usá-la para voltar atrás e pôr as coisas nos eixos. Que espécie de coisas?, perguntara-lhe ela no sonho. Ora, todas as coisas que lhes tinham corrido mal na vida, claro — ela poderia ir com ele, se quisesse.

Laurel queria.

As portas do hospital abriram-se com uma rajada de vento e duas enfermeiras saíram de rompante. Uma delas olhou para Laurel de relance e os olhares de ambas dilataram-se em sinal de reconhecimento. Laurel assentiu com a cabeça à laia de vaga saudação, deixando cair o que restava do cigarro à medida que a enfermeira se inclinava para a amiga a fim de lhe segredar qualquer coisa.

*

Rose estava sentada num banco corrido no átrio e, por uma fracção de segundos, Laurel olhou para ela como quem olha para um estranho. A irmã estava embrulhada num xaile de croché roxo que apertava à frente com um laço cor-de-rosa. Tinha cabelo rebelde, agora grisalho, preso numa trança lassa que lhe caía para um dos ombros. Laurel sentiu uma pontada de afecto quase insuportável quando reparou no atilho de plástico que segurava a trança.

— Rosie — disse ela, escondendo a emoção atrás de uma alegria forçada, forte e robusta, que lhe causou uma leve aversão a si própria. — Santo Deus, parece que foi há séculos! Temos andado desencontradas.

Abraçaram-se, Laurel estranhou o aroma a alfazema, familiar mas deslocado. Associava-o a férias de Verão e tardes no melhor quarto da pousada Mar Azul da avó Nicolson, não à irmã mais nova.

— Ainda bem que conseguiste vir — disse-lhe Rosie, apertando as mãos de Laurel e conduzindo-a pelo corredor fora.

— Não perdia este momento por nada desde mundo.

— Não tenho a mais pequena dúvida disso.

— Se não fosse a entrevista, teria vindo mais cedo.

— Eu sei.

— E se não fossem os ensaios, demorar-me-ia mais tempo. A rodagem do filme começa daqui a duas semanas.

— Eu sei. — Rose apertou a mão de Laurel com mais força ainda, como a servir de ênfase. — A mamã vai ficar encantada por te ter aqui, por pouco tempo que seja. Ela tem tanto orgulho em ti, Lol. Todas nós, aliás.

Os elogios vindos da família causavam-lhe incómodo e Laurel fez por ignorá-los.

— E os outros?

— Ainda não chegaram. A Iris está presa no trânsito e a Daphne chega esta tarde. Segue directamente do aeroporto para casa. Diz que telefona pelo caminho.

— E o Gerry? A que horas ficou de vir?

Era uma piada, e até Rose, a irmã Nicolson boazinha, a única que por norma não alinhava em brincadeiras, não conseguiu conter uma leve gargalhada. O irmão era capaz de elaborar calendários de distâncias cósmicas para calcular a localização de galáxias longínquas, mas bastava perguntarem-lhe a que horas pensava chegar para o deixarem desnorteado.

Contornaram a esquina e deram com uma porta que tinha uma placa a dizer Dorothy Nicolson. Rose levou a mão ao puxador, mas logo de seguida hesitou.

— Tenho de te prevenir, Lol — disse ela —, a mamã tem piorado muito desde a última vez que cá estiveste. Tem altos e baixos. Tanto é capaz de estar a mesma pessoa de sempre como, de um momento para o outro... — Os lábios de Rose tremeram enquanto apertava o seu colar comprido de contas. — Fica confusa, Lol, perturbada, às vezes, põe-se a falar no passado, coisas que eu nem sempre compreendo... As enfermeiras dizem que isso não tem importância, que é frequente isso acontecer às pessoas... quando se encontram no estado da mamã. As enfermeiras têm uns comprimidos que lhe dão nessas ocasiões; eles acalmam-na, mas deixam-na terrivelmente atordoada. Eu não esperaria muito dela, hoje.

Laurel assentiu com a cabeça. O médico dissera-lhe o mesmo quando lhe telefonara na semana anterior para saber da mãe. Ele empregara uma litania de eufemismos enfadonhos — «uma vida bem vivida, tempo de atender a derradeira convocatória, o longo sono» — num tom tão enjoativo que Laurel não se conseguira conter. «O doutor quer dizer que a minha mãe está a morrer, é isso?» Fez esta pergunta com voz altiva, pela mera satisfação de o ouvir gaguejar. A recompensa fora doce, mas de curta duração, apenas até à chegada da resposta.

Sim.

A mais insidiosa das palavras.

Rose empurrou a porta:

— Olhe quem eu aqui trago, mamã! — E Laurel reparou que estava a suster a respiração.

*

Houvera um período na infância de Laurel em que ela tivera medo. Do escuro, dos zombies, dos desconhecidos que, a acreditar na avó Nicolson, se escondiam nas esquinas à espera de agarrar as meninas e fazer-lhes coisas inenarráveis. (Que coisas? Coisas ine-na-rrá-veis. Sempre assim, a ameaça ainda mais assustadora pela ausência de pormenores, a vaga insinuação a tabaco, suor e pêlos em sítios estranhos.) Tão convincente fora a avó que Laurel compreendera que seria apenas uma questão de tempo até o destino vir ao seu encontro e cumprir a sua sentença cruel.

Por vezes, os seus maiores medos reuniam forças e acordavam-na a meio da noite, aos gritos, porque o zombie no armário escuro a estava a espreitar pelo buraco da fechadura, à espera de poder dar início aos seus actos maléficos.

«Sossega, meu anjinho», tranquilizara-a a mãe. «Foi só um pesadelo, tens de aprender a ver a diferença entre o que é real e o que é imaginário. Nem sempre é fácil... Eu levei imenso tempo até lá chegar. Demasiado, até.» E então deitara-se ao lado de Laurel e acrescentara: «Queres que te conte uma história acerca de uma menina que fugiu de casa para se juntar ao circo?»

Custava a acreditar que a mulher cuja presença imponente todas as noites vencia o pânico nocturno era a mesma criatura pálida imobilizada debaixo do lençol do hospital. Laurel julgara estar preparada. Já houvera amigos seus que tinham morrido, sabia como era a morte quando chegava, recebera um prémio BAFTA[1] pela sua representação de uma mulher com um cancro em fase terminal. Mas agora era diferente. Era a mãe. Só lhe apetecia dar meia-volta e fugir dali.

Mas não fugiu. Rose, que estava de pé junto à estante, assentiu-lhe com a cabeça à laia de encorajamento, e Laurel assumiu o papel da filha atenciosa de visita à mãe. Precipitou-se para ela e pegou-lhe na mão frágil.

— Ora viva — disse ela. — Ora viva, minha querida.

Dorothy pestanejou e tornou a fechar os olhos. O ritmo suave da sua respiração não se alterou quando Laurel lhe deu um beijo ao de leve em cada face, sentindo-lhe a pele fina como papel.

— Trouxe-lhe um presente. Não consegui resistir e esperar por amanhã. — Pousou as suas coisas, retirando o pequeno embrulho da carteira. Fazendo uma breve pausa como ditava a etiqueta, começou a desembrulhar o presente. — Uma escova de cabelo — declarou ela, revirando o objecto prateado entre os dedos. — Tem umas cerdas muito macias... de javali, creio eu; fui desencantá-la num antiquário de Knightsbridge. Mandei gravar o seu nome, está a ver, aqui... as suas iniciais. Posso escovar-lhe o cabelo?

Não estava à espera de resposta, não propriamente, e também não a obteve. Laurel fez deslizar delicadamente a escova pelos finos cabelos brancos que formavam uma coroa em volta do rosto da mãe, um cabelo que outrora fora castanho-escuro e farto e que agora estava a esfumar-se em nada.

— Pronto — disse ela, pousando a escova na estante, fazendo a luz incidir no dê floreado. — Pronto, já está.

Rose deveria ter ficado satisfeita, porque lhe entregou o álbum que tirara da estante e anunciou que ia até ao fundo do corredor a fim de preparar o chá de ambas.

Havia papéis nas famílias; aquele era o de Rose, este era o seu. Laurel instalou-se numa cadeira com aspecto terapêutico à cabeceira da mãe e, com todo o cuidado, abriu o livro antigo. A primeira fotografia era a preto e branco, agora amarelecida e com uma colónia de manchas castanhas a propagar-se insidiosamente pela superfície. Por baixo da descoloração, uma mulher jovem com um lenço a prender-lhe o cabelo fora apanhada para todo o sempre num momento de perturbação. Desviando o olhar do que quer que estava a fazer, erguia uma mão com se enxotasse o fotógrafo. Sorria ligeiramente, o incómodo misturado com o divertimento, a boca aberta no momento de articular uma ou outra palavra esquecida. Uma piada, a Laurel sempre lhe aprouvera pensar, um aparte espirituoso para a pessoa atrás da objectiva. Provavelmente um dos muitos hóspedes que a avó tivera no passado; um caixeiro viajante solitário, algum burocrata discreto com sapatos de verniz, à espera que a guerra acabasse numa ocupação resguardada. Atrás dela, no horizonte, vislumbrava-se o mar calmo, isto para quem soubesse que lá estava.

Laurel segurou o álbum diante do corpo imóvel da mãe e começou:

— Aqui está a mamã, na pousada da avó Nicolson. Foi em 1944, quase no fim da guerra. O filho da Sr.ª Nicolson ainda não regressou a casa, mas virá. Dentro de menos de um mês, ela irá mandá-la à cidade com as senhas de racionamento e, quando voltar com as compras da mercearia, a mamã irá encontrar um soldado sentado à mesa da cozinha, um homem a quem nunca foi apresentada, mas que irá reconhecer na fotografia emoldurada por cima da lareira. É agora mais velho do que na fotografia e tem um ar mais triste, mas veste-se da mesma maneira, com a farda de caqui do exército, e ele sorri-lhe, e a mamã sabe, num abrir e fechar de olhos, que é o homem por quem tem estado à espera.

Laurel virou a página, alisando com o polegar o canto de plástico da folha protectora amarelecida. Com o tempo, ficara estaladiça.

— A mamã casou-se com um vestido feito por si, a partir de dois cortinados de renda do quarto de hóspedes do primeiro andar que convenceu a avó Nicolson a sacrificar. E muito bem, minha mãezinha querida... imagino que não tenha sido tarefa fácil. Todas nós sabemos o apego que a avó tinha a cortinas, tapetes e afins. Tinha havido uma tempestade na noite da véspera, e a mamã estava com receio de que lhe chovesse no vestido de casamento. Mas não choveu. O sol apareceu e as nuvens foram levadas pelo vento e as pessoas comentaram que era um bom presságio. Mesmo assim, a mamã decidiu jogar pelo seguro; este aqui é o Sr. Hatch, o limpa-chaminés, de pé, ao fundo das escadas da igreja, para dar sorte. Ele não se fez nada rogado... com o dinheiro que o papá lhe ofereceu, comprou uns sapatos para o filho mais velho.

Laurel nunca podia ter a certeza, nos tempos mais recentes, de que a mãe a estivesse a ouvir, embora a enfermeira mais carinhosa dissesse que não havia motivo para pensar o contrário. E havia momentos, à medida que percorria o álbum de fotografias, em que Laurel se permitia a liberdade da invenção: nada demasiado drástico, contudo, quando a sua imaginação se desviava da acção principal para a periferia, ela deixava-a ir. Iris não concordava, dizia que a história da mãe era importante para ela e que Laurel não tinha o direito de a ornamentar; o médico, porém, ao ser informado da transgressão, reagira com um mero encolher de ombros, dizendo que o mais importante era que falassem com ela, e não tanto a veracidade do que lhe diziam. Virara-se para Laurel e, com uma piscadela de olho, dissera-lhe:

— Se há alguém de quem não se espera que se restrinja à verdade é a senhora, Menina Nicolson.

Apesar de ele ter ficado do seu lado, Laurel não apreciara o conluio subentendido. Ponderara lembrar-lhe a diferença entre actuar no palco e mentir na vida, dizendo ao médico impertinente, com o seu cabelo demasiado preto e os seus dentes demasiado brancos, que, em ambos os casos, a verdade tinha importância, mas concluíra que seria pura perda de tempo argumentar com um indivíduo que trazia uma caneta em forma de taco de golfe, como estava na moda, dentro do bolso da camisa.

Passou à página seguinte e descobriu, como sempre acontecia, a série de fotografias dela própria em criança. Fez uma breve narração dos seus primeiros anos de vida — Laurel em bebé a dormir num berço com fadas e estrelas pintadas no tecto; a pestanejar com ar arisco no colo da mãe; um pouco mais crescida e rechonchuda, a cambalear nos bancos de areia à beira-mar — até chegar ao momento em que a récita acabou para dar lugar às recordações. Virou a página, desencadeando o barulho e o riso das irmãs. Seria coincidência que as suas recordações estivessem tão fortemente associadas à sua chegada, àquelas irmãs cujas idades se sucediam em degrau; a cabriolar na relva alta, a acenar da casa da árvore; enfileiradas diante da quinta Greenacres — a sua casa —, de cabelo escovado e preso com ganchos, de roupas remendadas e sapatos engraxados, prontas para um passeio entretanto esquecido?

Laurel deixara de ter pesadelos depois de as irmãs nascerem. Ou melhor, passara a ter outros. Já não recebia a visita de zombies, de monstros ou desconhecidos que durante o dia moravam no armário; ao invés, começara a sonhar que vinha lá um maremoto, ou que o mundo ia acabar, ou que iria haver outra guerra, e que ela, sozinha, teria de proteger as irmãs mais novas. Era uma das coisas que melhor se lembrava de ouvir à mãe quando era pequena: «Toma conta das tuas irmãs. Tu és a mais velha, não as deixes ir.» Na altura, não ocorrera a Laurel que a mãe poderia estar a falar por experiência própria; que, implícita à sua advertência, poderia estar a mágoa que carregava havia décadas por um irmão mais novo, morto durante um bombardeamento na Segunda Guerra Mundial. As crianças eram capazes de ser egocêntricas a esse ponto, sobretudo as crianças felizes. E as crianças Nicolson eram mais felizes do que a maioria.

— Aqui estamos nós na Páscoa. A Daphne está na cadeira de bebé, portanto deve ser por volta de 1956. Sim, é isso. Olhe... a Rose está com um braço engessado, desta vez o braço esquerdo. A Iris está a fazer-se de engraçada, de sorriso arreganhado, mas não será por muito tempo. A mamã ainda se lembra? Foi na tarde em que ela assaltou o frigorífico e devorou todas as patas de caranguejo que o papá trouxera da pescaria que fizera na véspera. — Fora a única ocasião em que Laurel o vira verdadeiramente zangado. Depois da sesta, ainda estremunhado do sol, fora até à cozinha, pronto para se deliciar com um pouco de carne de caranguejo e, quando abrira o frigorífico, não encontrara senão cascas. Parecia que ainda estava a ver Iris escondida atrás do sofá (o único sítio aonde o pai não conseguia chegar com as suas ameaças de lhe dar uma tareia; uma ameaça vã, mas nem por isso menos assustadora) a recusar-se a sair dali. A suplicar, a quem quer que estivesse disposto a ouvi-la, para ter pena dela e, por favor, pelo amor de Deus, que lhe levassem o livro da Pipi das Meias Altas sem o pai dar por nada. A recordação despertou o afecto de Laurel. Esquecera-se de até que ponto Iris era capaz de ser engraçada, quando não andava ocupada em zangar-se.

Qualquer coisa escorregou das últimas páginas do álbum e Laurel baixou-se para a apanhar do chão. Era uma fotografia que nunca antes vira, um retrato antiquado a preto e branco de duas jovens de braço dado. Riam-se para ela do interior do debrum branco, numa sala com bandeiras penduradas por cima da cabeça de ambas e o sol a entrar por uma janela que não era visível. Virou a fotografia, à procura de uma inscrição, mas não havia nada lá escrito para além da data: Maio de 1941. Que estranho. Laurel conhecia o álbum de família de trás para a frente e aquela fotografia e aquelas pessoas não pertenciam ali. A porta abriu-se para dar entrada a Rose, com duas chávenas desirmanadas a tilintar nos respectivos pires.

Laurel mostrou-lhe a fotografia.

— Já alguma vez viste isto, Rose?

A irmã pousou a chávena na mesa-de-cabeceira, semicerrou os olhos para o retrato e depois sorriu.

— Ah, sim — confirmou ela. — Apareceu há uns meses em Greenacres... Pensei que talvez fosses capaz de arranjar um lugar para ela no álbum. Bonita, não achas? Tocou-me tanto descobrir qualquer coisa nova para ela, sobretudo agora.

Laurel olhou novamente para a fotografia. As duas jovens, com o cabelo penteado com risco ao lado preso num coque vitoriano; as saias à altura do joelho; uma delas com um cigarro pendurado na mão. Era óbvio que se tratava da mãe. A maquilhagem era diferente. Ela era diferente.

— Engraçado — observou Rose —, nunca a imaginei assim.

— Assim como?

— Jovem, suponho eu. Na risota com uma amiga.

— Ai não? E porque será, pergunto-me eu? — Embora, claro, o mesmo se pudesse dizer de Laurel. Na ideia dela (na ideia de todas elas, ao que parecia), a existência da mãe começara quando esta respondera ao anúncio da avó a pedir uma criada para todo o serviço e fora trabalhar para a pensão. Sabiam o essencial do tempo anterior: que nascera e fora criada em Coventry, que fora para Londres pouco antes do início da guerra, que a família morrera nos bombardeamentos. Laurel também sabia que a morte da família afectara profundamente a mãe. Dorothy Nicolson nunca perdera uma oportunidade para recordar aos filhos que a família era tudo: fora este o mantra da sua infância. Quando Laurel estava a passar por uma fase particularmente difícil na adolescência, a mãe pegou-lhe nas mãos e dissera-lhe, com invulgar severidade: «Não sejas como eu fui, Laurel. Não esperes até que seja demasiado tarde para compreenderes o que verdadeiramente importa. A tua família é capaz de, às vezes, te fazer perder as estribeiras, mas olha que tem mais valor para ti do que algum dia poderás imaginar.»

Quanto aos pormenores da vida de Dorothy antes de conhecer Stephen Nicolson, ela nunca os impusera aos filhos, e a estes nunca lhes ocorrera perguntar por eles. Não havia nada de estranho nisto, supôs Laurel com um ligeiro mal-estar. As crianças não exigem um passado aos pais e sentem uma certa dificuldade, quase constrangimento até, em acreditar nas reivindicações paternais a uma existência prévia. Agora, porém, ao contemplar aquela desconhecida dos tempos da guerra, Laurel ressentiu-se profundamente da ausência de informações.

No início da sua carreira de actriz, um realizador de renome debruçara-se sobre o guião, ajeitara os óculos de fundo de garrafa e dissera a Laurel que ela não era suficientemente bonita para representar papéis principais. O comentário atingira-a fundo e ela fartara-se de chorar, e depois passara horas a ver-se de forma acidentalmente propositada ao espelho até, tomada por uma ousadia ébria, decidir cortar curto o cabelo. Todavia, acabara por ser um momento alto na sua carreira. Era uma actriz que encarnava as personagens. O realizador deu-lhe o papel da irmã da protagonista e ela recebera as suas primeiras críticas entusiásticas. As pessoas ficavam maravilhadas com a sua capacidade para construir personagens de dentro para fora, para mergulhar e desaparecer por debaixo da pele de outra pessoa, mas não havia qualquer truque nisso; ela dava-se simplesmente ao trabalho de aprender os segredos da personagem. Laurel sabia umas quantas coisas a respeito de guardar segredos. Tal como sabia que era aí que as pessoas autênticas se encontravam, escondidas atrás das suas manchas negras.

— Já reparaste que é a fotografia em que ela aparece mais nova? — Rose empoleirou-se no braço da cadeira da irmã, o seu perfume de alfazema mais forte do que antes, e pegou na fotografia.

— Ai sim? — Laurel fez menção de ir buscar os cigarros, lembrou-se de que estava num hospital e pegou antes na chávena. — É capaz de ser. — Tanto do passado da mãe que era formado por manchas negras. Porque seria que até aí isto nunca aincomodara? Lançou uma nova olhadela à fotografia, as duas jovens pareciam estar agora a rir-se da sua ignorância. Esforçou-se por adoptar um tom descontraído. — Onde foi que disseste que a encontraste, Rosie?

— Dentro de um livro.

— Um livro?

— Uma peça de teatro, mais concretamente... Peter Pan.

— A mãe entrou na peça? — A mãe sempre tivera imenso jeito para se mascarar e brincar ao faz-de-conta, mas Laurel não se recordava de ela alguma vez ter entrado numa verdadeira peça.

— Não sei dizer ao certo. O livro foi uma prenda. Tem uma dedicatória na folha de rosto... Sabes, como ela gostava que nós fizéssemos aos presentes quando éramos miúdas?

— E o que é que dizia?

— «À Dorothy.» — Rose entrelaçou os dedos sob o esforço de se recordar. — «Um verdadeiro amigo é uma luz na escuridão. Vivien.»

Vivien. O nome teve um efeito estranho em Laurel. Sentiu a pele ficar quente e depois fria e a pulsação a latejar-lhe nas têmporas. Uma série de imagens vertiginosas irrompeu-lhe no cérebro: uma lâmina a brilhar, a expressão assustada da mãe, uma fita vermelha a soltar-se. Velhas recordações, terríveis recordações, que o nome da desconhecida tinha inesperadamente desencadeado.

— Vivien — ecoou ela, a voz mais alta do que era sua intenção. — Quem é a Vivien?

Rose ergueu o olhar, surpreendida, mas qualquer que fosse a sua resposta acabou por se perder quando Iris entrou de rompante no quarto, de multa de estacionamento em punho. As duas irmãs voltaram-se para a sua portentosa indignação e, por conseguinte, nenhuma delas deu pela inspiração súbita de Dorothy, a expressão de angústia que lhe perpassou pelo rosto ao ouvir mencionar o nome de Vivien. Quando as três irmãs Nicolson se reuniram à cabeceira da mãe, Dorothy parecia estar calmamente a dormir e as suas feições não davam qualquer indício de que ela abandonara o hospital, o seu corpo fatigado, as filhas adultas, deslizando através do tempo até uma noite escura de 1941.