Capítulo 3

Londres, Maio de 1941

Dorothy Smitham desceu as escadas a correr, dando as boas-noites à Sr.ª White enquanto enfiava as mangas do casaco. A senhoria pestanejou através dos óculos de lentes grossas à sua passagem, ansiosa por continuar o seu interminável tratado acerca das esquisitices da vizinha, mas Dolly não se deteve. Abrandou apenas quanto bastasse para se ver ao espelho do hall e beliscar cada face para lhe avivar a cor. Dando-se por satisfeita com o que via, abriu a porta e saiu de rompante para o blackout. Estava cheia de pressa, não tinha tempo para problemas com o guarda; Jimmy já deveria estar no restaurante e não queria deixá-lo à espera. Tinham muito que conversar: o que deviam levar, o que fariam quando lá chegassem, quando deviam finalmente partir...

Dolly sorriu ansiosamente, enfiando a mão no bolso fundo do casaco e revirando a estatueta entre os dedos. Reparara nela na vitrina da casa de penhores uns dias antes; era uma ninharia, bem sabia, mas fizera-a lembrar-se dele, e agora, mais do que nunca, à medida que Londres se desmoronava ao seu redor, era importante dar a entender às pessoas o quanto significavam umas para as outras. Dolly estava desejosa de lha dar; já estava a imaginar a cara de Jimmy quando a visse, pegando nela com um grande sorriso e dizendo-lhe, como sempre dizia, o quanto a amava. O pequeno Senhor Punch[2] de madeira poderia não valer grande coisa, mas era perfeito; Jimmy sempre adorara a beira-mar. Ambos adoravam.

— Desculpe?

Era uma voz feminina e era inesperada.

— Sim? — respondeu-lhe Dolly, a sua própria voz tomada de surpresa. A mulher deveria ter dado por ela quando a luz jorrara momentaneamente através da porta aberta.

— Será que me pode ajudar, por favor? Ando à procura do número 24.

Apesar do blackout e da impossibilidade de ser vista, por uma questão de hábito, Dolly apontou para a porta atrás de si.

— Está com sorte — disse ela. — É mesmo aqui. Lamento, de momento não há quartos livres, mas em breve haverá. — O seu próprio quarto, na verdade (se é que se lhe podia chamar quarto). Meteu um cigarro na boca e acendeu um fósforo.

— Dolly?

Ao ouvir isto, Dolly semicerrou os olhos na escuridão. A dona da voz avançava rapidamente na direcção dela; sentiu movimentos agitados e, em seguida, a mulher, agora próxima, disse:

— É você, graças a Deus! Sou eu, Dolly. É a...

— Vivien? — Subitamente, reconheceu a voz; conhecia-a tão bem e, não obstante, tinha qualquer coisa de diferente.

— Receei não vir a tempo de a encontrar, de ter chegado demasiado tarde.

— Demasiado tarde para o quê? — Dolly hesitou; não tinham marcado nenhum encontro para aquela noite. — Que se passa?

— Nada... — Vivien desatou então a rir e o som, metálico e enervante, fez estremecer a coluna de Dolly. — Isto é, tudo.

— Está bêbeda, por acaso? — Dolly nunca vira Vivien comportar-se assim; aonde não ia o verniz da elegância, o autodomínio perfeito.

Vivien não lhe respondeu, não propriamente. O gato da vizinha saltou de um muro ali perto, aterrando pesadamente na coelheira da Sr.ª White. Vivien sobressaltou-se e em seguida sussurrou:

— Precisamos de falar... rápido.

Dolly tentou ganhar tempo dando uma longa passa no cigarro. Noutras circunstâncias, teria adorado sentar-se a seu lado em amena conversa, mas não agora, não esta noite. Estava impaciente por se ir embora dali.

— Não posso — disse-lhe. — Ia mesmo a...

— Dolly, por favor.

Dolly enfiou a mão no bolso e revirou o pequeno presente de madeira. Jimmy já deveria estar no restaurante; estaria a perguntar-se por onde andaria ela, lançando uma olhadela à porta de cada vez que esta se abria, na expectativa de a ver. Detestava deixá-lo à espera, sobretudo agora. Mas ali estava Vivien, que lhe aparecia à porta de casa, tão séria, tão enervada, a espreitar-lhe por cima do ombro, a suplicar-lhe e a insistir que tinha muita urgência em falar com ela... Dolly soltou um suspiro de cedência relutante. Não podia deixar Vivien assim sem mais nem menos, ainda para mais tão transtornada.

Disse a si própria que Jimmy haveria de compreender, que, ainda que de uma forma estranha, também aprenderia a gostar de Vivien. E foi então que tomou a decisão que viria a ser fatídica para todos eles.

— Venha — disse ela, apagando o cigarro e agarrando delicadamente em Vivien pelo braço fino. — Vamos lá para dentro.

*

Ocorreu a Dolly, enquanto entravam em casa e subiam a escada, que Vivien poderia ter vindo para lhe pedir desculpa. Era a única explicação que conseguia encontrar para a sua agitação, a perda da sua habitual compostura; Vivien, com a sua riqueza e a sua classe, não era o género de mulher para pedir grandes desculpas. A ideia deixou Dolly nervosa. Era desnecessário; no que lhe tocava a ela, o episódio já pertencia ao passado. Preferia arrumar o assunto de vez.

Chegaram ao fundo do corredor e Dolly destrancou a porta do seu quarto. A lâmpada despida emitiu uma luz mortiça quando ela ligou o interruptor, e a cama estreita, a pequena cómoda e o lavatório rachado com a torneira a pingar surgiram diante de ambas. Dolly teve um instante de constrangimento quando, de repente, viu o seu quarto através do olhar de Vivien. Como lhe deveria parecer modesto em comparação com os aposentos a que ela estava habituada, aquela casa magnífica em Campden Grove, com os seus candelabros de lâmpadas tubulares e mantas de pele de zebra.

Despiu o velho casaco e virou-se para o pendurar no cabide atrás da porta.

— Peço desculpa pelo calor que faz aqui dentro — disse ela, esforçando-se por soar alegre. — Não tem janelas, infelizmente... Facilita o blackout, mas já não é muito cómodo em termos de ventilação. — Estava a brincar, na esperança de desanuviar o ambiente, a ver se levantava o seu próprio ânimo, mas foi em vão. Só conseguia pensar em Vivien atrás dela, à procura de um sítio onde se sentar... Oh, meu Deus. — E também não há nenhuma cadeira, lamento. — Havia semanas que Dolly andava a pensar comprar uma, mas, com os tempos difíceis como estavam, e ela e Jimmy decididos a poupar cada cêntimo, acabara por decidir arranjar-se com o que tinha.

Deu meia-volta e bastou-lhe ver a cara de Vivien para se esquecer da falta de mobiliário.

— Meu Deus! — exclamou ela, os olhos a arregalarem-se ao reparar no rosto magoado da amiga. — O que foi que lhe aconteceu?

— Nada. — Vivien, que andava agora a passarinhar pelo quarto, acenou num gesto de impaciência. — Um acidente quando vinha a caminho daqui. Fui contra um candeeiro da rua. Uma tolice minha, com a mania das pressas, como sempre. — Era verdade, Vivien andava sempre numa correria. Era uma mania que ela tinha, uma mania que Dolly sempre apreciara; achava graça uma mulher tão requintada e bem vestida andar sempre a correr de um lado para o outro como se fosse uma miúda. Naquela noite, porém, tudo parecia diferente. As roupas de Vivien não condiziam, tinha uma malha nas meias, o cabelo estava num desalinho...

— Pronto — disse Dolly, conduzindo a amiga para a cama, satisfeita por a ter feito cuidadosamente nessa manhã. — Sente-se.

A sirene dos raides aéreos começou a tocar e Dolly praguejou baixinho. Era só o que lhes faltava. O abrigo da zona era um autêntico pesadelo: todos amontoados como sardinha em lata, a roupa de cama húmida, o cheiro pútrido, a histeria da Sr.ª White; e agora, com Vivien naquele estado...

— Ignore-a — disse-lhe Vivien, como se lesse os pensamentos de Dolly. A sua voz assumira subitamente o tom de dona da casa, habituada a dar ordens. — Fique aqui. Isto é mais importante.

Mais importante do que chegar ao abrigo? Dolly sentiu o coração alvoroçar-se-lhe.

— É por causa do dinheiro? — indagou ela em voz baixa. — Quer que lho devolva?

— Não, não, esqueça o dinheiro.

O toque oscilante da sirene era ensurdecedor e despertou em Dolly uma ansiedade que teimava em não acalmar. Não sabia ao certo porquê, mas sabia que estava com medo. Não queria estar ali, nem sequer com Vivien. A sua vontade era correr pelas ruas às escuras até ao restaurante onde sabia que Jimmy estaria à sua espera.

— Eu e o Jimmy... — começou ela, mas Vivien cortou-lhe a palavra.

— Sim — disse ela, a expressão a iluminar-se como se se tivesse acabado de lembrar de qualquer coisa. — Sim, o Jimmy.

Dolly abanou a cabeça, perplexa. O que tinha o Jimmy? O que Vivien dizia não fazia sentido. Talvez o melhor fosse levá-la com ela; poderiam chegar lá num instante enquanto as pessoas ainda estavam a correr para os abrigos. Iriam ter imediatamente com Jimmy; ele saberia o que fazer.

— O Jimmy — repetiu Vivien em voz alta. — Dolly, ele foi-se embora...

A sirene interrompeu-a naquele preciso momento e a palavra «embora» ecoou pelo quarto. Dolly aguardou que Vivien acrescentasse mais alguma coisa mas, entretanto, ouviram bater freneticamente à porta.

— Doll... estás aí? — Era Judith, uma das hóspedes, ofegante por ter vindo a correr do piso superior. — Nós vamos para o Andy.[3]

Dolly não lhe respondeu e nem ela nem Vivien fizeram menção de se ir embora. Esperou até ouvir os passos afastarem-se pelo corredor e, em seguida, apressou-se a sentar junto da outra mulher.

— Você deve estar a fazer confusão — disse precipitadamente. — Eu ainda ontem o vi e vou estar outra vez com ele esta noite. Nós vamos juntos, ele não teria ido sem mim... — Havia muito mais que poderia ter dito, mas coibiu-se de o fazer. Vivien estava a olhar para ela e qualquer coisa na sua expressão permitiu que uma réstia de dúvida penetrasse através das fendas da confiança de Dolly. Vasculhou a carteira e tirou outro cigarro, os dedos a tremer ao acendê-lo.

Vivien retomou a conversa, e, enquanto o primeiro bombardeiro da noite ribombava acima das suas cabeças, Dolly começou a perguntar-se se havia alguma hipótese, ainda que remota, de a sua interlocutora ter razão. Parecia-lhe impensável, mas a urgência na sua voz, o seu estranho comportamento e as coisas que dizia agora... Dolly começou a sentir tonturas; estava calor ali dentro, não conseguia acalmar a respiração.

Fumava com avidez, à medida que os fragmentos do relato de Vivien se misturavam com os seus pensamentos em catadupa. Uma bomba caiu algures ali perto, ocasionando uma enorme explosão, e um intenso ruído sibilante inundou o quarto, provocando dores nos ouvidos a Dolly e eriçando-lhe os cabelos da nuca. Tempos houvera em que ela gostara de estar na rua durante os bombardeamento aéreos: achava-os emocionantes, nada assustadores. Mas já não era a rapariga desmiolada de outrora, e aqueles tempos despreocupados pareciam pertencer a um passado distante. Olhou de relance para a porta, desejosa de que Vivien se calasse. Iriam para o abrigo ou ter com Jimmy; não podiam era continuar ali sentadas, à espera. Só lhe apetecia fugir, esconder-se; tinha vontade de desaparecer.

Enquanto o pânico de Dolly crescia, o de Vivien parecia retroceder. Falava agora com toda a calma, frases longas a que ela se esforçava por prestar atenção, acerca de uma carta e de uma fotografia, acerca de homens malvados, homens perigosos que se tinham lançado em perseguição de Jimmy. O plano correra pessimamente mal, disse-lhe Vivien, ele fora humilhado; Jimmy não conseguira chegar ao restaurante; ela esperara por ele e ele não viera; fora então que soubera que ele se tinha ido embora de vez.

E, subitamente, as peças díspares juntaram-se por entre a confusão e Dolly compreendeu.

— A culpa é minha — confessou ela, a sua voz pouco mais do que um sussurro. — Mas eu... não sei como... a fotografia... nós combinámos que não havia necessidade, agora já não. — Vivien sabia ao que ela se referia; fora por sua causa que tinham descartado os seus planos. Dolly estendeu a mão para o braço da amiga: — Nada disto era suposto acontecer, e agora o Jimmy...

Vivien assentia insistentemente com a cabeça, o seu rosto mostrava compaixão.

— Ouça o que lhe digo — insistiu ela. — É muito importante que me ouça. Eles sabem onde você mora e, não tarda, virão atrás de si.

Dolly nem queria acreditar; estava assustada. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto.

— A culpa é minha — ouviu-se dizer uma vez mais. — A culpa é toda minha.

— Dolly, por favor. — Um nova revoada de bombardeiros chegou e Vivien teve de gritar para se conseguir fazer ouvir enquanto segurava as mãos de Dolly entre as suas. — A culpa é tanto sua como minha. Seja como for, nada disso agora importa. Não tarda, eles estarão aí. O mais provável é que já venham a caminho. É por isso que aqui estou.

— Mas eu...

— Você tem de sair de Londres e tem de ser já, e não deve voltar. Eles não vão desistir de andar à sua procura, nunca...

Uma detonação lá fora e o edifício estremeceu e inclinou-se; as bombas estavam a cair mais perto e, apesar de o quarto não ter janelas, um sinistro clarão de luz apareceu vindo de algures, inundando tudo ao seu redor, muito mais luminoso do que a única lâmpada mortiça.

— Tem alguma pessoa de família que a possa receber? — insistiu Vivien.

Dolly abanou a cabeça, à medida que uma imagem da família lhe perpassava pela mente; a mãe e o pai, o pobre irmão mais novo, a vida que tinham levado anteriormente. Uma bomba passou a sibilar e os canhões ripostaram a partir do solo.

— Amigos? — gritou-lhe Vivien por entre a explosão.

Dolly tornou a sacudir a cabeça. Não tinha ninguém, ninguém com quem pudesse contar, ninguém à excepção de Vivien e Jimmy.

— Nenhum sítio para onde possa ir? — Outra bomba, um cocktail Molotov, pelo estrondo que fez, o impacto tão forte que Dolly teve de ler os lábios de Vivien quando esta lhe suplicou: — Pense, Dolly, faça um esforço.

Fechou os olhos. Cheirava-lhe a fumo; alguma bomba incendiária explodira ali próximo; os voluntários da ARP[4] deveriam estar agora de volta dela, com as suas bombas de estribo. Dolly ouviu alguém a gritar, mas fechou os olhos com mais força ainda e fez um esforço por se concentrar. Os seus pensamentos eram fragmentários como escombros, a sua mente, um escuro nevoeiro; não via nada. O chão estremeceu debaixo dos seus pés, o ar demasiado denso para ser respirável.

— Dolly?

Vieram mais aviões, caças agora, não apenas bombardeiros, e Dolly imaginou-se no telhado de Campden Grove, a vê-los a esquivar-se e a lançar-se em voo picado, as luzes verdes dos projectores que varriam o céu no seu encalço, os incêndios ao longe. Outrora, tudo aquilo lhe parecera deveras emocionante.

Recordava-se da noite em que se encontrara com Jimmy no 400 Club, de dançar e de se rir com ele; de terem regressado a casa sob um bombardeamento, os dois juntos. Teria dado tudo agora para voltar a esses tempos, deitados lado a lado, a sussurrar no escuro enquanto as bombas caíam, a fazer planos para o futuro, a quinta, os filhos que queriam ter, a beira-mar. A beira-mar...

— Eu candidatei-me a um emprego — disse ela subitamente, levantando a cabeça. — Há umas semanas. Quem o descobriu foi o Jimmy. — A carta da Sr.ª Nicolson da pousada Mar Azul jazia em cima da mesa-de-cabeceira e Dolly apressou-se a pegar nela, entregando-a a Vivien com mãos trémulas.

— Sim — Vivien lançou uma vista de olhos à carta —, é perfeito. É para lá que deve ir.

— Mas eu não quero ir sozinha. Nós...

— Dolly...

— Nós tínhamos combinado ir os dois. Não era suposto ser assim. Ele disse que esperava por mim. — Dolly estava agora a chorar. Vivien chegou-se a ela, mas as duas deslocaram-se ao mesmo tempo e o contacto foi inesperadamente abrupto.

Vivien não pediu desculpa; a sua expressão era séria. Também estava amedrontada, Dolly percebia que sim, mas punha os seus receios de lado, tal como faria uma irmã mais velha, adoptando o tom de voz carinhoso e severo que Dolly mais precisava de ouvir naquele momento.

— Dorothy Smitham — declarou ela —, você tem de sair de Londres e, quanto antes, melhor.

— Não me sinto com coragem para isso.

— Eu sei que tem. Você é uma sobrevivente.

— Mas o Jimmy... — Outra bomba despenhou-se com um sibilo e rebentou. Um grito aterrorizado escapou da boca de Dolly antes que ela se pudesse conter.

— Já chega. — Vivien segurou o rosto de Dolly firmemente entre as mãos em concha e, desta feita, não lhe doeu nada. O seu olhar transbordava bondade. — Você ama o Jimmy, bem sei; e ele também a ama a si... meu Deus, eu sei que sim. Mas tem de me dar ouvidos.

Havia qualquer coisa extremamente calma no olhar de Vivien, e Dolly conseguiu abstrair-se do barulho de um avião em voo picado, da resposta das baterias antiaéreas, dos pensamentos aterradores de prédios e pessoas a serem desfeitos em escombros.

As duas aconchegaram-se uma à outra e Dolly ouviu Vivien dizer:

— Vá para a estação dos comboios esta noite e compre um bilhete. Você deve... — Uma bomba explodiu nas proximidades com um estrondo violento e Vivien retesou-se e apressou-se a continuar: — Mete-se no comboio e só sai na última paragem. Não olhe para trás. Aceite o emprego, comece uma nova vida, seja feliz.

Ser feliz. Era precisamente disto que Dolly e Jimmy falavam. O futuro, a quinta, os filhos sorridentes e as galinhas bem-dispostas... As lágrimas deslizaram-lhe pelas faces quando Vivien lhe disse:

— Tem de ir. — Chorava agora também, porque, claro, iria ter saudades de Dolly... iriam ter saudades uma da outra. — Aproveite esta segunda oportunidade, Dolly; encare isto como uma oportunidade. Depois de tudo por quanto passou, depois de tudo o que perdeu...

E Dolly sabia que, por muito que lhe custasse aceitar, a amiga tinha razão: tinha de se ir embora. Havia qualquer coisa nela que queria gritar: «Não», enroscar-se sobre si própria e chorar por tudo quanto tinha perdido, por tudo na sua vida que não se tinha desenrolado de acordo com as suas expectativas, mas não iria fazer isso. Não podia.

Dolly era uma sobrevivente; Vivien dissera isto mesmo, e Vivien devia saber do que falava: bastava olhar para a maneira como superara as suas provações iniciais e construíra uma nova vida. E se Vivien fora capaz de fazer isso, Dolly também seria. Sofrera muito, mas ainda tinha razões por que viver; arranjaria razões por que viver. Chegara a altura de ser corajosa, de ser melhor do que algum dia fora. Dolly fizera coisas de que se envergonhava; as suas ideias grandiosas não tinham passado de sonhos tolos de rapariga, haviam-se desfeito em cinzas entre os seus dedos; mas toda a gente merecia uma segunda oportunidade, toda a gente era digna de perdão, até ela... a própria Vivien o dissera.

— Assim farei — decidiu ela, à medida que uma série de bombas rebentava com estrondo. — Assim farei.

A lâmpada tremeluziu, mas não se apagou. Baloiçou no fio, projectando sombras ao longo das paredes, e Dolly puxou a sua pequena mala de viagem de debaixo da cama. Ignorou o ruído ensurdecedor lá fora, o fumo dos incêndios na rua que se entranhava no quarto, a neblina que lhe fazia arder os olhos.

Não tinha muita coisa que levar. Nunca fora pessoa de grandes posses. A única coisa que realmente desejava daquele quarto não podia levá-la consigo. Dolly hesitou perante a ideia de deixar Vivien para trás; recordou-se da dedicatória que a outra mulher escrevera no Peter Pan — «Um verdadeiro amigo é uma luz na escuridão» — e sentiu as lágrimas virem-lhe novamente aos olhos.

Agora já mal ouvia os aviões lá fora, as bombas a despenhar-se, as baterias antiaéreas a disparar em resposta. A terra tremia a cada explosão e o estuque do tecto esboroa- va-se e caía. A corrente da porta entrechocava, mas Dolly não dava por nada. Tinha a mala feita; estava pronta para partir.

Levantou-se, o olhar fixo em Vivien, e, não obstante a sua firme decisão, vacilou:

— Então, e a Vivien? — perguntou-lhe Dolly, e, por um breve instante, ocorreu-lhe que talvez pudessem ir juntas, que talvez, afinal, Vivien pudesse ir com ela. Por estranho que pudesse ser, parecia-lhe a solução perfeita, a única coisa a fazer; cada uma representara o seu papel e nada daquilo teria acontecido se Dolly e Vivien não se tivessem conhecido.

Foi uma ideia descabida, obviamente: Vivien não precisava de uma segunda oportunidade. Tinha tudo o que poderia desejar ali. Uma linda casa, uma fortuna só sua, beleza a rodos... Como seria de esperar, Vivien devolveu-lhe a proposta de emprego da Sr.ª Nicolson e sorriu-lhe numa despedida chorosa. As duas mulheres sabiam lá no fundo que nunca mais se voltariam a ver.

— Não se preocupe comigo — disse-lhe Vivien quando um bombardeiro atroou no céu. — Eu fico bem. Vou para casa.

Dolly agarrou na carta com firmeza e, com um derradeiro e decidido assentimento de cabeça, partiu rumo à sua nova vida, sem a mais pequena ideia do que o futuro lhe reservava, mas tomada por uma súbita determinação de ir ao seu encontro.