Sumário: 4.1 Conceito – 4.2 Classificação: 4.2.1 Quanto ao conteúdo; 4.2.2 Quanto à vinculação do legislador; 4.2.3 Quanto à eficácia e aplicabilidade; 4.2.4 Quanto à finalidade; 4.2.5 Quanto à estrutura (finalidade do comando normativo) – 4.3 Exercício de fixação.
Com precisão cirúrgica, Guilherme Peña de Moraes1 conceitua norma constitucional como “significações extraídas de enunciados jurídicos, caracterizadas pela superioridade hierárquica, natureza da linguagem, conteúdo específico e caráter político, com diferentes tipologias”.
Esse conceito proporciona uma boa visão das normas constitucionais, principalmente se destacarmos as quatro características nele constantes:
I – Superioridade hierárquica – como já explanado, as normas constitucionais são o fundamento de validade – imediato ou mediato – de todas as normas no direito positivo brasileiro. Assim, como as demais normas existem e são válidas graças a sua compatibilidade com a Constituição, não há como negar a força normativa superior da norma constitucional;
II – Natureza da linguagem – indica a maior abertura (pois irradia por todos os ramos do direito) e menor densidade das normas constitucionais, sendo fundamental a operação de concretização das normas constitucionais, seja mediante atos materiais, seja por meio de elaboração de leis infraconstitucionais;
III – Conteúdo específico – isto é, o conjunto de preceitos constitucionais orientadores que só existe na Constituição. Em nenhum outro diploma se encontram positivados desta forma e reunidos os direitos e garantias fundamentais, a divisão dos poderes políticos (tanto territorial quanto funcional) e a ordem social e econômica;
IV – Caráter político – A Constituição legitima o poder transferido pela sociedade aos representantes, bem como limita o poder do Estado ante a sociedade.2
São cinco as principais classificações das normas constitucionais:
• Normas materialmente constitucionais – São as normas que versam sobre assunto constitucional, independentemente do diploma em que estão expostas. Podem estar em normas constitucionais ou normas infraconstitucionais.
Não existe um conceito seguro e taxativo do que seja matéria constitucional,3 mas podemos afirmar que, de regra, a maioria das normas constitucionais gira em torno da organização dos Poderes, organização do Estado e direitos e garantias fundamentais.
São exemplos de normas materialmente constitucionais os arts. 5.º, 6.º, 12, 18 e 25 da Constituição da República; art. 1.º do Código Civil; art. 282 do Código de Processo Penal; art. 38 do Código Penal; art. 12 da Lei 4.737/1965, dentre outros.
• Normas formalmente constitucionais – São normas elaboradas por processo mais solene, mais dificultoso que as leis ordinárias, o que lhes concede status hierárquico privilegiado, independentemente do assunto que disponham.
O famoso art. 242, §§ 1.º e 2.º, da CRFB/1988, mostra normas formalmente constitucionais, porém não materialmente.
Questão importante é que uma norma não precisa estar dentro da Constituição para ser formalmente constitucional, basta gozar do status hierárquico de norma constitucional. Nesse passo, os arts. 2.º da EC 32/2001; 2.º da EC 41/2003; 4.º e 8.º da EC 45/2004; 3.º do ADCT; e 3.º do Dec. 6.949/2009 (aprovado na forma do art. 5.º, § 3.º, da CR) são normas formalmente Constitucionais, embora não estejam inseridos na Constituição formal.
Das afirmações supra, extraímos as seguintes conclusões:
a) existe norma materialmente constitucional que não é formalmente constitucional;
b) existe norma formalmente constitucional que não é materialmente constitucional;
c) existe norma formal e materialmente constitucional fora da Constituição.
Nos Estados Unidos e na Itália, há doutrina que diferencia:
a) normas constitucionais preceptivas ou mandatórias (mandatory provisions) – por serem normas essenciais, obrigam ao cumprimento, vinculando o legislador infraconstitucional;
b) normas constitucionais diretivas ou diretórias (directory provisions), que não geram inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais, pois o legislador pode dispor de forma diferente.4
Como observa Marcelo Novelino,5 esta espécie de distinção é incompatível com os ordenamentos jurídicos regidos por Constituição rígida como no Brasil, pois os mandamentos sempre serão obrigatórios.
Geralmente, este tipo de classificação realiza análise conjunta da eficácia e aplicabilidade, porém é bom lembrar que eficácia e aplicabilidade são institutos distintos e inconfundíveis. Enquanto eficácia é a aptidão que a norma possui para produzir efeitos que lhe são próprios, a aplicabilidade é a aptidão para produzir efeitos sobre uma determinada situação; seria, didaticamente, a materialização da eficácia.
Dentro deste quadro existem três subclassificações de normas constitucionais quanto à eficácia e aplicabilidade, porém, é bom que se diga, esta diversidade se deve em razão da direção dada pelos doutrinadores, por vezes pautando-se na eficácia e, em outras, a ênfase recai sobre a aplicabilidade.
Esta subespécie, adotada pela Suprema Corte norte-americana, tem como referência a ênfase na aplicabilidade, isto é, se a norma poderá ou não ser aplicada imediatamente, e se divide em:
• Normas constitucionais autoaplicáveis (ou exequíveis por si, bastantes em si, self-executing, self-acting, self-enforcing) – São as normas que são aplicadas de imediato, independentemente da atuação do legislador ordinário, abrangendo as normas perceptivas, as quais exigem conduta positiva, e as normas proibitivas, que impõem condutas negativas.
• Normas constitucionais não autoaplicáveis (ou não exequíveis por si, não bastantes em si, dependentes, not self-executing, not self-acting e not self-enforcing) – Diferentemente das anteriores, estas normas precisam da atuação do legislador ordinário para tornarem-se aplicáveis, abarcando normas interpretativas, que indicam o sentido, alcance e conteúdo de outras normas, normas declarativas ou explicativas, que definem conceitos, e normas permissivas ou facultativas, que atribuem uma permissão, não impondo conduta comissiva ou omissiva.6
Apesar da classificação bipartida apresentada ser a usualmente conhecida, não se pode negligenciar a classificação de Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto,7 que também é bipartida, porém com foco distinto, distinguindo:
• Normas de aplicação – São as normas que estão aptas a produzir efeitos, não carecendo de atuação legislativa complementar. Estas normas são subdivididas em normas irregulamentáveis, que só permitem tratamento constitucional, e normas regulamentáveis, que, apesar de incidirem sobre fatos de imediato, permitem atuação legislativa para otimização de seu preceito.
• Normas de integração – São normas que devem ser integradas pela legislação infraconstitucional. Esta espécie também comporta subdivisão em normas restringíveis, em que o legislador ordinário poderá reduzir o âmbito de abrangência da norma, e normas complementáveis, que exigem a atuação legislativa infraconstitucional para completa produção de efeitos.
Esta subespécie analisa tanto a eficácia quanto a aplicabilidade, porém enfatiza a eficácia. Explica-se: a presente teoria parte do princípio de que toda norma constitucional possui eficácia meio na medida em que não recepciona legislação anterior contrária a ela, serve como parâmetro para controle de constitucionalidade, condiciona a atuação do administrador público, impõe ao legislador o dever de regulamentar (caso necessário) e é fonte de interpretação judicial.
Contudo, nem todas as normas possuem eficácia fim, ou seja, nem toda norma consegue produzir os efeitos para a qual foi primordialmente criada. Por isso, é necessário dividir as normas constitucionais em três:
• Normas constitucionais de eficácia plena – São normas que, a partir da entrada em vigor da Constituição, possuem aplicabilidade direta, imediata e integral. Em outros termos, estas normas são aplicadas imediatamente e não admitem que lei infraconstitucional reduza seu alcance (por isso são integrais).
É bom ressaltar que, apesar de ser integral, é possível que lei infraconstitucional regulamente as disposições constitucionais, desde que não restrinja sua amplitude. A título de exemplo, é possível normas disporem sobre meios de exercer a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III), porém não pode ceifar o cidadão deste direito. São outros exemplos de norma de eficácia plena os arts. 1.º; 2.º; 14, § 2.º; 28; 30; 51; 52; 201, §§ 5.º e 6.º; 226, § 1.º; e 230, § 2.º, dentre outros.
• Normas constitucionais de eficácia contida, redutível, prospectiva ou restringível – São normas que, desde a vigência da Constituição, têm aplicabilidade direta e imediata, mas não integral, possibilitando que lei infraconstitucional reduza o seu alcance.
Assim, apesar de poder ser aplicada imediatamente, a norma de eficácia contida admite que lei inferior à Constituição diminua sua abrangência. Como exemplo podemos citar o art. 5.º, XIII, que, apesar de garantir a liberdade de trabalho, ofício ou profissão, foi restrito pelos arts. 3.º, 8.º, § 1.º e 54, V, da Lei 8.906/1994 c/c o Provimento 109/2005 do Conselho Federal da OAB,8 que exige prova para que o bacharel em direito possa se inscrever nos quadros da OAB e possa exercer a profissão de advogado. No mesmo sentido, há uma série de restrições ao exercício da medicina estabelecidas por normas infraconstitucionais.9
Da mesma forma, o art. 5.º, XV, afirma que é plena a locomoção no território nacional, porém há leis penais e processuais penais e leis de imigração que restringem a amplitude da locomoção no Brasil.
Assim como esses exemplos, são normas de eficácia contida os arts. 5.º, VII, VIII, XII, XXIV, XXV; 15, IV e V; 37, I; 93, IX e 170, parágrafo único, dentre outros.
• Norma constitucional de eficácia limitada – São normas que, apesar de produzirem efeito meio, como visto, não produzem os efeitos previstos em seu texto com a entrada em vigor da Constituição. Possuem aplicabilidade mediata, dependendo de lei infraconstitucional para produzir os efeitos fim desejados.
Não se confunde com a norma de eficácia contida porque nesta a norma constitucional já produz efeitos imediatos, enquanto a norma limitada depende de regulamentação para possibilitar a produção de efeitos.
O princípio da participação pode servir de exemplo para melhor entendimento. Prevê o art. 37, § 3.º, que a lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta. Por óbvio, esta lei ainda não foi editada; assim, de que forma o particular poderá participar? Não havendo lei, o particular está impedido de exercer este direito.
Da mesma forma, o art. 5.º, XLI, que afirma que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. A previsão é louvável, porém qual será a punição? Qual prazo para prescrição? Haverá prescrição? Qual o procedimento? Ou seja, enquanto não houver lei, a norma constitucional não pode ser aplicada, como desejou o constituinte.
José Afonso da Silva10 ainda subdivide a norma constitucional de eficácia limitada em:
• Normas constitucionais de eficácia limitada declaratórias de princípio institutivo (organizatório ou orgânico) – São normas que esquematizam, de forma genérica, a estrutura e atribuições de órgãos, entidades ou instituições. Assim, o passo inicial é dado pela Constituição, que aguarda norma infraconstitucional para materializar os entes citados, como os arts. 18, §§ 3.º e 4.º; 37, XI; 102, § 1.º; 109, VI; 131; 146 etc.
Estas normas institutivas podem ser impositivas, quando determinam, de forma peremptória, a atuação do legislador ordinário (e.g., arts. 20, § 2.º; 32, § 4.º; 33, 88, 91, § 2.º; 134, § 1.º etc.) ou facultativas (ou permissivas), quando somente possibilita, sem obrigar, que norma infraconstitucional institua ou regule as situações nelas descritas (v.g., arts. 22, parágrafo único; 25, § 3.º; 109, § 3.º; 111, § 3.º; 128, § 5.º; 125, § 3.º; 154, I etc.).
• Normas constitucionais de eficácia limitada declaratórias de princípio programático – São normas que estipulam programas e metas a serem implementados e alcançados pelo Estado, como desenvolvimento nacional (art. 3.º, II), diminuição das desigualdades (art. 3.º, III), regime de aposentadoria especial (arts. 40, § 4.º, e 201, § 7.º), dentre outras.
A Constituição estabelece o fim, e depende do legislador infraconstitucional normatizar os meios para conquistas dos preceitos constitucionais.
As normas de eficácia programática são divididas por José Afonso da Silva11 em três categorias:
a) Normas programáticas vinculadas ao princípio da legalidade – São as que preveem a elaboração de normas futuras para implementar programas idealizados pela Constituição; v.g., arts. 7.º, XI, XX; 173, § 4.º; 216, § 3.º e 218, § 4.º.
b) Normas programáticas ligadas aos poderes públicos – Estas não requerem em seu texto a edição de normas infraconstitucionais; por isso, nem sempre precisam de lei para sua observância, mas sim de atuações do Poder Público; e.g., arts. 21, IX; 48, IV; 184; 211, § 1.º; 215, caput, dentre outros.
c) Normas programáticas endereçadas à ordem econômico-social em geral – Dispõem sobre a observância de toda ordem social e econômica, como os arts. 170, 193 e 205.
Maria Helena Diniz classifica as normas constitucionais em relação à sua intangibilidade e à produção de efeitos concretos.12
De acordo com este raciocínio, a norma constitucional se divide em:
• Normas constitucionais de eficácia absoluta (ou supereficazes) – São as normas intocáveis, intangíveis, que não podem ser abolidas do ordenamento. Por óbvio, está se tratando das cláusulas pétreas (art. 60, § 4.º): a) forma federativa de Estado, arts. 1.º, 18, 34, VII, c, e 46, § 1.º; b) o voto direto, secreto, universal e periódico, art. 14; c) separação dos Poderes, art. 2.º; d) direitos e garantias fundamentais, arts. 5.º ao 17.
• Normas constitucionais de eficácia plena – São as que produzem efeitos imediatos, v.g., arts. 1.º, parágrafo único; 14, § 2.º; 17, § 4.º; 21; 69 etc.
• Normas constitucionais de eficácia relativa restringível – Possuem aplicabilidade imediata, porém podem ter eficácia reduzida pelo legislador ordinário, v.g., arts. 5.º, XIV, XVI; 139; 170, parágrafo único etc.
• Normas constitucionais de eficácia relativa complementável (ou dependentes de complementação legislativa) – São as que precisam de norma para implementação do direito previsto no texto constitucional, e.g., 37, VII; 102, § 1.º etc.
Segundo esta teoria, existem normas que já extinguiram a produção de seus efeitos. Estas normas são comumente vistas no ADCT (arts. 2.º, 3.º, 14, 20) e em Emendas Constitucionais, v.g., art. 4.º da EC 45/2004.
Existe a acertada ideia14 de que não basta uma análise abstrata quanto à eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais, se há milhões de pessoas pleiteando ao Judiciário a materialização de direitos. Por isso, para completar a análise, as normas constitucionais devem ser estudadas sob o aspecto de seu desenvolvimento e efetivação.
Nesse sentido, as normas que “pretendam conferir direitos subjetivos, exteriorizados em prestações materiais, são revestidos de eficácia positiva, na medida em que permitem que seus beneficiários ou destinatários exijam as prestações que constituem o objeto do direito subjetivo perante o Poder Judiciário, de maneira a assegurar o mínimo existencial”.15
O exemplo mais usual é o fornecimento de remédios e o tratamento de saúde determinado pelo Poder Judiciário, mesmo sem norma regulamentando o art. 196.16
Já as normas programáticas, que, como visto, estipulam os fins a serem alcançados pelo Estado e sociedade sem estabelecer os meios para conquistá-los, são revestidas de eficácia negativa, pois proíbem a implementação de políticas que ofendam seus preceitos e impossibilitam a revogação de normas infraconstitucionais que disponham sobre as metas constantes na norma programática.
Luís Roberto Barroso17 propõe uma nova classificação de normas constitucionais, alegando que: “É precisamente com o desiderato de demarcar adequadamente a consistência da situação jurídica dos indivíduos ante os preceitos constitucionais que se esboçam as ideias a seguir apresentadas, configurando uma nova classificação, necessariamente experimental”.
A presente classificação busca resgatar a essência dos dispositivos constitucionais, que têm por objeto organizar o exercício do poder político, definir os direitos fundamentais dos indivíduos e estabelecer os fins a serem alcançados pelo Estado.18
Nesse sentido, as normas constitucionais podem ser classificadas como:
• Normas constitucionais de organização – São normas que têm por objeto organizar o poder político.
Estas normas de organização, por sua vez, se subdividem em normas constitucionais de estrutura, que buscam instituir e organizar entidades ou órgãos públicos, v.g., arts. 28, 45 e 46 da CR; normas constitucionais de competência, que, como o próprio nome faz crer, visa à distribuição de atribuições entre os órgãos públicos, v.g., arts. 48, 49, 51 e 52 da CR; e normas constitucionais técnicas, as quais estipulam como se produz e aplicam as demais normas, e.g., art. 60 da CR.
• Normas constitucionais definidoras de direito – Estas normas buscam fixar os direitos fundamentais do ser humano, seja na relação do Estado com o indivíduo (vertical), seja na relação entre os particulares (horizontal), v.g., arts. 5.º, 6.º, 7.º, 12 e 14 da CR.
• Normas constitucionais programáticas – Normas que objetivam traçar os fins públicos a serem alcançados pelo Estado, sem especificar os meios para alcançar os objetivos. Ex.: arts. 3.º, 193, 215, 217 e 226 da CR.
É cediço que norma programática é uma subespécie das normas de eficácia limitada, e nada há de estranho nesse fato, eis que esta classificação (quanto à finalidade), “em verdade, não se trata de criação de novas categorias, mas da ordenação das já existentes na teoria das normas jurídicas”.19
As normas constitucionais podem ser compreendidas como gênero, de onde se extraem duas espécies: regras e princípios.
As regras são unifuncionais, isto é, são utilizadas para aplicar leis, extraídas de enunciado normativo de reduzido grau de abstração e generalidade, prescrevendo condutas intersubjetivas, descrevendo situação de fato.20
Os princípios são multifuncionais, ou seja, servem para produzir, interpretar e aplicar leis, extraídas de enunciados jurídicos de alto grau de abstração e generalidade, prescrevendo um valor fundamental, e não situação de fato.
Ao mesmo tempo em que os princípios possuem natureza normogenética, por serem fundamentos das regras, constituindo a ratio das regras jurídicas,21 são considerados mandatos de otimização, pois otimizam a aplicação das leis, determinando que sejam realizadas na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.22
Enquanto as regras são aplicadas imediatamente, em mero processo de subsunção, o alto grau de abstração dos princípios exige ação integradora do órgão que irá aplicá-lo.
O conflito entre regras é analisado sob o enfoque da validade das normas jurídicas e resolvido pelos famosos critérios hierárquico, cronológico e especialidade, e o conflito entre princípios é estudado sob o prisma da importância (valor ou peso), resolvido pelo critério da ponderação (harmonização).
As diferenças entre regras e princípios podem ser esquematizadas da seguinte forma:
Espécie |
Regras |
Princípios |
Conteúdo |
Contêm descrição de situação de fato |
Descrevem valores fundamentais à ordem jurídica |
Função |
Unifuncionais (aplicação) |
Multifuncionais (produção, interpretação e aplicação) |
Fonte de direito |
Não são fontes de direito |
São fontes de direito |
Determinada pelo enunciado |
Indeterminada |
|
Validade |
Decorrem de outras regras |
Decorrem de seu próprio conteúdo |
Conflito |
Critérios cronológico, hierárquico e especialidade |
Ponderação ou harmonização |
Aplicação |
Comportam subsunção |
Não comportam subsunção |
Em razão da citada abrangência dos princípios constitucionais, estes podem ser divididos em três espécies.23
São normas constitucionais estruturantes do Estado brasileiro, constituindo seus atributos basilares.
a) Princípio democrático – Está ligado à ideia de soberania popular, em que o poder político pertence ao povo, que o exerce por meio de representantes ou diretamente.
b) Princípio republicano – Diz respeito à forma de governo escolhida pelo Estado brasileiro, caracterizado pela temporariedade do mandato, eletividade e responsabilidade do chefe de estado e governo.
c) Princípio federativo – Refere-se à forma de Estado adotada pelo Brasil, caracterizada por uma ordem soberana e diversas ordens políticas autônomas.
Quatro princípios constitucionais limitam o poder do Estado e são aplicados aos diversos ramos do direito:
a) Princípio da legalidade – Está ligado à ideia de que as pessoas, órgãos ou autoridades devem se submeter aos preceitos legais. Existem dois tipos de legalidade:
A legalidade genérica (art. 5.º, II), na qual a pessoa pode fazer tudo o que a lei não proíbe, como constituir amizade, matar insetos, desfazer namoros etc.; e a legalidade administrativa (art. 37, caput), que é exatamente o inverso, ou seja, o administrador só pode atuar se houver previsão legal, seja em atos administrativos vinculados ou discricionários, na medida em que a competência (sujeito) para a prática do ato sempre estará em lei.
É bom frisar que a legalidade penal (art. 5.º, XXXIX) e a legalidade tributária (art. 150, I), embora recebam o nome de “legalidade”, são, na verdade, princípio da reserva legal (estrita legalidade), posto que não têm o fim de submeter pessoas às suas normas, e sim visam a exigir lei para determinadas disposições materiais (normas penais incriminadoras e normas que versem sobre instituição ou majoração de imposto).
b) Princípio da igualdade – Na realidade, a Constituição da redemocratização “espalhou” a igualdade por seu texto. Além da igualdade formal (arts. 3.º, III; 5.º, caput, e I; 7.º, XXX a XXXII; 14, caput; 196, caput; 225, caput; 226, § 5.º; 227, § 7.º dentre outros), que prevê a igualdade a todos, independentemente das condições físicas, financeiras, sociais e regionais, existe a igualdade material (substancial), criada por Aristóteles em 325 a.C.,24 que consiste em conceder tratamento diferenciado a pessoas que se encontram em situações diferentes. Esse tratamento distinto pode acontecer por previsão constitucional ou legal, expressa, e.g., nos arts. 37, VIII; 40, § 1.º, III, a e b, § 4.º; 43, caput; 143, § 2.º, ou em razão da existência de um pressuposto lógico-racional que justifique a desigualdade, como algumas prioridades concedidas a deficientes físicos.
c) Princípio do devido processo legal (due process of law) – Este princípio também é analisado sob dois prismas: o devido processo legal formal ou processual (procedural due process) busca assegurar a regularidade do procedimento, e deste derivam a demanda, contraditório, ampla defesa e igualdade entre as partes; e o devido processo legal material ou substancial (substantive due process), que tem por função assegurar o exame de atos legislativos, administrativos e judiciais, tendo como corolário o princípio da proporcionalidade, representada pelo tripé necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.25
d) Princípio do acesso ao Poder Judiciário (inafastabilidade do controle judicial ou ubiquidade da Justiça) – Este princípio, da mesma forma que os anteriores, se subdivide em:
d.1) Princípio do acesso à justiça formal (art. 5.º, XXXV), que estabelece que nenhuma lesão pode ser subtraída da apreciação do Poder Judiciário. É bom notar que este princípio resguarda a prestação judicial, e não a tutela jurisdicional, pois, como observa Humberto Theodoro Júnior, “todo litigante que ingressa em juízo, observando os pressupostos processuais e as condições da ação, tem direito à prestação jurisdicional (sentença de mérito ou prática de certo ato executivo); mas nem todo litigante faz jus à tutela jurisdicional”.26
São exceções a este princípio os arts. 52, I, II, parágrafo único (em que o Legislativo julgará determinadas autoridades pela prática de crime de responsabilidade), e 142, § 2.º (que impede habeas corpus contra as punições disciplinares militares).
Posição dominante sustenta que o art. 217, § 1.º (em que ações referentes às competições e disciplinas desportivas devem ser propostas na justiça desportiva) também seria exceção à regra do acesso ao Judiciário.27 Entretanto, não concordamos com tal posicionamento, na medida em que o § 2.º do mesmo art. 217 concede o prazo de 60 (sessenta) dias para a justiça desportiva proferir a decisão final. Por óbvio, escoado esse prazo, com ou sem decisão final, a ação poderá ser proposta no Judiciário.28 Sendo assim, o art. 217, § 1.º, não impede ações no Judiciário, somente representa uma postergação de aplicação do princípio em tela e um pressuposto especial da ação.
A justiça arbitral não é exceção a esta regra porque decorre da vontade das partes, que optaram em dirimir eventual litígio pela via arbitral, isto é, esta via é legitimada pela vontade das partes.29
Da mesma forma, não é exceção ao citado princípio o art. 7.º, § 1.º, da Lei 11.417/2006, que afirma que ação de reclamação contra omissão ou ato da administração pública que descumprir súmula vinculante só é possível depois de esgotar a via administrativa. Isso porque é possível a impetração de outras ações judiciais.
d.2) Princípio do acesso à justiça material – Não é possível resguardar o acesso ao Poder Judiciário se a Constituição não prever meios para este acesso. Desta forma, este princípio busca materializar o acesso à justiça, prevendo meios e condições para que o cidadão possa, efetivamente, buscar a prestação jurisdicional.
A título de exemplo, verifica-se que as pessoas que não possuem condições de pagar advogado podem valer-se da Defensoria Pública (arts. 5.º, LXXIV, e 134). Com a justiça itinerante (arts. 115, § 1.º, e 125, § 7.º), o Poder Judiciário vai até o cidadão. Os Juizados Especiais estão espalhados por diversos locais do Brasil para garantir que demandas de pequeno valor possam ser propostas sem necessidade de recolher custas e, por vezes, sem advogado.30
Diferentemente dos princípios gerais, estes informam um ramo específico do direito positivo.
Na realidade, todo ramo do direito é informado por princípios constitucionais. À guisa de exemplo, podemos citar alguns artigos:
a) Princípios Constitucionais de Direito Administrativo – arts. 37, caput, II, §§ 1.º, 3.º e 4.º; 173, § 1.º, III, da CR.
b) Princípios Constitucionais de Direito Tributário – arts. 145, § 1.º; 150, I ao V; 151, I, da CR.
c) Princípios Constitucionais de Direito Previdenciário – arts. 194, parágrafo único, I e II; 195, caput, da CR.
d) Princípios Constitucionais do Direito Processual – arts. 5.º, XXXVII, LIII, LV, LVI, LX; 93, IX, da CR.
e) Princípios Constitucionais do Direito Trabalhista – arts. 5.º, XXXVI; 7.º, I, VI, XIII e XIV e XXXIV, da CR.
f) Princípios Constitucionais do Direito Penal – art. 5.º, XXXIX, XL, XLV, XLVI e LVII, da CR.
g) Princípios Constitucionais do Direito Civil – arts. 1.º, III; 5.º, XXIII, XXX, XXXII; 226, caput; 227, §§ 6.º e 7.º, da CR.
h) Princípios Constitucionais do Direito Empresarial – arts. 1.º, IV; 5.º, XVII ao XX; 170, IV, da CR.
Apesar de as regras possuírem uma função extremamente importante no ordenamento jurídico, sendo essenciais para a estrutura jurídica de qualquer país, é possível que, em alguns casos, estas possam ser superadas ou derrotadas.
Antes de tudo, não se quer dizer que as regras são normas “de segunda categoria”, como os festejos aos princípios podem fazer crer. Contudo, elas devem ser cumpridas não porque estão escritas em determinado diploma, e sim porque são moralmente boas,33 asseguram segurança, paz e igualdade.34
Contudo, já analisamos que seguir regras cegamente pode ser extremamente prejudicial à sociedade. Por isso, é possível que em alguns casos excepcionais as regras possam ser superadas. Dizemos “excepcionais”, pois, como preceitua Humberto Ávila, as regras possuem eficácia de trincheira, já que somente podem ser superadas “por razões extraordinárias e mediante ônus de fundamentação maior”.35
Nesse passo, o mesmo autor elenca36 condições formais e materiais a serem observadas, essenciais para possibilitar a superação de regras:
I) Requisitos procedimentais – a superação da regra deve conter:
I. a) Justificativa condizente – deve ser demonstrado o descompasso entre a hipótese da regra e sua finalidade e, mais, provar que o afastamento da regra não gerará insegurança jurídica.
II. b) Fundamentação condizente – esta decorre da hipótese anterior. O afastamento da regra deve ser fundamentado. Expor o motivo do afastamento, possibilitando a ampla defesa e o contraditório.
III. c) comprovação condizente – o afastamento da regra deve ser provado, não sendo possível mera alegação de que esta não está adequada aos anseios normativos e sociais.
II) Requisito Material – Ávila explica que “há casos em que a decisão individualizada, ainda que incompatível com a hipótese da regra geral, não prejudica nem a promoção da finalidade subjacente à regra, nem a segurança jurídica que suporta as regras, em virtude da pouca probabilidade de reaparecimento frequente de situação similar, por dificuldade de ocorrência ou comprovação”.37
1. (Magistratura/PR – 2012) Em relação à aplicabilidade e à eficácia das normas constitucionais, assinale a alternativa INCORRETA.
A) A norma do art. 5.º, III da Constituição Federal, segundo a qual “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, é dotada de eficácia plena.
B) De acordo com o STF, o art. 192, § 3.º da Constituição Federal, revogado pela Emenda Constitucional n.º 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano e estabelecia que “a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”, veiculava norma constitucional de eficácia contida.
C) O art. 7.º, XI da Constituição Federal, que institui o direito do trabalhador à “participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei”, veicula norma de eficácia limitada.
D) O art. 5.º, XIII da Constituição Federal, que assegura a liberdade de “exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”, constitui norma de eficácia contida, passível de ser restringida pelo legislador, como no caso da restrição imposta pela exigência de aprovação do exame da OAB para o exercício da profissão de advogado.
2. (Magistratura/SC – 2010) Considerando o texto da Constituição da República e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, assinale a alternativa correta:
I – Considerando a supremacia e a força normativa da Constituição, o seu preâmbulo adquire extrema relevância jurídica, criando direitos e obrigações.
II – O poder constituinte originário é inicial, autônomo, ilimitado juridicamente e soberano em suas decisões, sendo certo que poderá, inclusive, estabelecer a pena de morte. Por sua vez, o poder constituinte derivado deve obedecer às regras colocadas e impostas pelo poder constituinte originário, sendo limitado e condicionado aos parâmetros impostos a ele.
III – A desconstitucionalização é o fenômeno por meio do qual as normas da Constituição anterior, desde que compatíveis com a nova ordem constitucional, permanecem em vigor com status de lei infraconstitucional. No sistema jurídico pátrio, o fenômeno somente será percebido quando a nova Constituição expressamente o prever.
IV – As normas constitucionais de eficácia contida estão aptas a todos os seus efeitos desde a promulgação da Constituição da República, podendo a norma infraconstitucional reduzir sua abrangência. Porém, enquanto isso não ocorrer, a norma tem eficácia plena.
A) Somente as proposições I e III estão corretas.
B) Somente as proposições III e IV estão corretas.
C) Somente as proposições II, III e IV estão corretas.
D) Somente as proposições I e II e IV estão corretas.
E) Todas as proposições estão corretas.
GABARITO: As respostas destes testes encontram-se no final do livro.
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1MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. p. 71.
2Idem, p. 72.
3MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de direito constitucional cit., p. 18.
4DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 97-98.
5NOVELINO, Marcelo. Op. cit., p. 127.
6MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito constitucional cit., 2008. p. 76.
7BASTOS, Celso Ribeiro; BRITTO, Carlos Ayres. Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 48, passim.
8O RE 603.583 do STF (pendente de julgamento) está analisando a constitucionalidade da obrigatoriedade do exame da Ordem dos Advogados do Brasil.
9O STJ foi mais longe ao admitir, mesmo não havendo lei exigindo literalmente, que os conselhos regionais de medicina exijam residência médica para reconhecer especialização dos profissionais, o que é imprescindível para o exercício de algumas funções (REsp 1.038.260, rel. Min. Eliana Calmon, 10.02.2010).
10SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 122 e ss.
11Idem, p. 147 e ss.
12DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 98-103.
13BULLOS, Uadi Lammêgo. Direito constitucional ao alcance de todos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 147.
14MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito constitucional cit., 2008. p. 81.
15Idem, ibidem.
16Nesse sentido, STA 175, 211 e 278; SS 3.724, 2.944, 2.361, 3.345 e 3.355; e SL 47, todos sob relatoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, em que o Plenário do Supremo Tribunal Federal indeferiu nove recursos interpostos pelo Poder Público contra decisões judiciais que determinaram ao Sistema Único de Saúde (SUS) o fornecimento de remédios de alto custo ou tratamentos não oferecidos pelo sistema a pacientes de doenças graves que recorreram à Justiça.
17BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 89.
18Idem, p. 89-90.
19Idem, p. 89.
20MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito constitucional cit., 2008. p. 88.
21ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. p. 16.
22ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 82-87.
23Sobre o tema, cf. MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito constitucional cit., 2008. p. 91-109.
24ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nassetti. 4.ed. São Paulo: Martin Claret. p. 108-9.
25MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito constitucional cit., 2008. p. 95.
26THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela jurisdicional de urgência – medidas cautelares e antecipatórias. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2001. p. 2.
27Por todos, AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional cit., p. 177.
28TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional cit., p. 479.
29CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 87.
30No Juizado Especial Estadual Cível, por exemplo, o acesso não depende, em primeiro grau, de jurisdição, do pagamento de custas, taxas ou despesas (art. 54 da Lei 9.099/1995), e somente é necessário contratar advogado para as demandas acima de 20 salários mínimos (art. 9.º da Lei 9.099/1995).
31MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito constitucional cit., p. 96.
32LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado cit., 2011. p. 141.
33Lembre-se de que, com o neoconstitucionalismo, já estudado, o direito e a moral voltaram a se comunicar, não se falando mais em uma “teoria pura do direito” como queria Hans Kelsen.
34ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 112-114.
35Idem, p. 119.
36Idem, p. 117-118.
37Idem, p. 117.