O seu olhar acabou por se cruzar com o meu. Foi em Nice, no princípio do Boulevard Gambetta. Ele estava sobre uma espécie de pódio diante de um estendal de casacos e sobretudos de cabedal, e eu tinha avançado para a primeira fila dos basbaques que o ouviam apregoar a sua mercadoria.

Ao ver-me, perdeu a sua lábia de vendedor ambulante. Falava de um modo mais seco, como se quisesse distanciar-se do seu auditório e dar-me a entender que a profissão que ali exercia, ao ar livre, estava abaixo da sua condição.

Em sete anos, não tinha mudado muito; só a sua tez me parecia mais avermelhada. Estava a anoitecer e uma rajada de vento penetrou na Avenida Gambetta com os primeiros pingos de chuva. A meu lado, uma mulher de cabelo loiro encaracolado experimentava um sobretudo de cabedal. Do seu pódio, ele inclinava-se para ela e observava-a com um ar encorajador:

– Fica-lhe às mil maravilhas, minha senhora.

A voz continuava a ter o seu timbre metálico, um metal que, com o tempo, se tinha enferrujado. Os mirones começaram a dispersar por causa da chuva e a mulher loira tirou o sobretudo que colocou, timidamente, na borda do estendal.

– É uma ocasião única, minha senhora… ao preço da chuva… Devia…

Mas sem lhe dar tempo de prosseguir, ela virou-se depressa e esquivou-se com os outros, como se tivesse vergonha de dar ouvidos às propostas obscenas de um viandante.

Ele desceu do pódio e encaminhou-se para mim.

– Que bela surpresa… Eu sou de olhão… Reconheci-o imediatamente…

Ele parecia incomodado, quase receoso. Eu, pelo contrário, estava calmo e descontraído.

– Tem piada encontrarmo-nos aqui, não é verdade? – disse-lhe eu.

– É verdade.

Ele sorria. Tinha recobrado a sua segurança. Uma camioneta parou junto do passeio, ao pé de nós, e saiu um homem com um blusão vermelho.

– Podes desmontar tudo isso…

Depois olhou-me de frente.

– Vamos beber um copo?

– Se quiser.

– Eu vou ao Forum beber um copo com este senhor. Vai ter comigo dentro de meia hora.

O outro começou a carregar os sobretudos e os casacos de cabedal do estendal para a camioneta, enquanto, à nossa volta, a vaga de clientes saía pelas portas do grande armazém que fica na esquina da Rua Buffa. Um toque agudo anunciava o fecho.

– Já está… Já quase não chove…

Ele trazia a tiracolo um saco de cabedal muito achatado.

Atravessámos o boulevard e seguimos pela Promenade des Anglais. O café ficava muito perto, ao lado do cinema Le Forum. Ele escolheu uma mesa por detrás da vidraça e deixou-se cair sobre o banco.

– O que há de novo? – perguntou-me. – Está na Côte d’Azur?

Quis pô-lo à vontade:

– Tem piada… Vi-o, há dias, na Promenade des Anglais…

– Devia ter-me cumprimentado.

A sua silhueta pesada, ao longo da Promenade, e esse saco de cabedal a tiracolo que certos homens usam, por volta dos cinquenta anos, com casacos muito cintados, para manterem uma silhueta juvenil…

– Eu trabalho há algum tempo na região. Tento vender stocks de roupa de cabedal…

– Como vai a coisa?

– Assim-assim. E você?

– Eu também estou a trabalhar na região – respondi-lhe. – Nada de interessante…

Lá fora, os grandes candeeiros da Promenade acendiam-se pouco a pouco. Primeiro, uma claridade cor de malva e vacilante que uma simples rajada de vento ameaçava apagar como a chama de uma vela. Mas não. Passados uns instantes, essa luz incerta tornava-se branca e forte.

– Então, estamos a trabalhar na mesma zona – disse-me ele. – Eu vivo em Antibes, mas viajo muito…

O seu saco de cabedal abria-se da mesma maneira que as pastas dos estudantes. Ele tirou lá de dentro um maço de cigarros.

– Já não vive no Val-de-Marne? – perguntei.

– Não, já não.

Houve, entre nós, um instante de embaraço.

– E você? – perguntou-me ele. – Voltou lá?

– Nunca mais.

Só de pensar em me encontrar junto do Marne causou-me calafrios. Olhei para a Promenade des Anglais, para o céu alaranjado que escurecia, e para o mar. Sim, eu estava de facto em Nice. Tinha vontade de suspirar de alívio.

– Por nada da vida gostaria de voltar a tal sítio – disse-lhe.

– Eu também não.

O empregado colocava sobre a mesa o sumo de laranja, o fine à l’eau1 e os copos. Tanto um como o outro nos agarrávamos com o olhar ao mínimo dos seus gestos, como se quiséssemos adiar o mais possível o momento de retomar a conversa. Foi ele que acabou por quebrar o silêncio.

– Gostaria de tirar a limpo consigo umas coisas…

Ele observava-me com um olhar mortiço.

– Pois é… Apesar das aparências, eu não era casado com Sylvia… A minha mãe não queria esse casamento…

Durante uma fração de segundo, a silhueta da Sr.ª Villecourt apareceu-me, sentada no pontão, junto do Marne.

– Lembra-se da minha mãe… Não era uma mulher fácil… Havia entre nós problemas de dinheiro… Ela ter-me-ia retirado a mesada se eu tivesse casado com Sylvia…

– Surpreende-me muito.

– Pois bem, por isso…

Parecia-me um sonho. Porque é que Sylvia nunca me disse a verdade? Eu lembrava-me de que ela usava uma aliança.

– Ela queria fazer crer que éramos casados… Para ela, era uma questão de amor-próprio… E eu, eu comportei-me como um cobarde… Devia ter-me casado com ela…

Devia render-me à evidência: este homem não se parecia com o de há sete anos. Ele já não manifestava aquela confiança em si mesmo e aquela grosseria que me levavam a odiá-lo. Pelo contrário, agora ele estava impregnado de uma doçura resignada. Até as suas mãos tinham mudado. Já não usava pulseira.

– Se eu tivesse casado com ela, tudo teria sido bem diferente…

– Acha?

Decididamente, ele falava de uma outra pessoa que nada tinha a ver com Sylvia, e as coisas, com o correr dos anos, tinham para ele um sentido que não tinham para mim.

– Ela não me perdoou essa cobardia… Ela gostava de mim… Eu era o único homem que ela amava…

O seu sorriso triste era tão surpreendente como o saco que trazia a tiracolo. Não, não se tratava do mesmo homem das margens do Marne. Talvez ele tivesse esquecido fragmentos inteiros do passado ou tivesse acabado por se persuadir de que certos acontecimentos, de consequências tão graves para todos nós, nunca tinham ocorrido. Eu tinha uma vontade irresistível de o abanar.

– E o projeto de restaurante e de piscina numa pequena ilha, para os lados de Chennevières?

Eu tinha levantado a voz e aproximado o meu rosto do dele. Mas em vez de ficar embaraçado com a minha pergunta, ele conservava o seu sorriso triste.

– Não estou a ver o que quer dizer… Como sabe, eu ocupava-me sobretudo dos cavalos de minha mãe… Ela tinha dois cavalos de corrida que competiam em Vincennes…

Ele parecia de tão boa-fé que não ousei contradizê-lo.

– Viu, há pouco, o tipo que carregava os meus sobretudos de cabedal para a camioneta? Pois bem, ele aposta nas corridas… A meu ver, só pode haver um mal-entendido entre os homens e os cavalos…

Estava a troçar de mim? Não. Ele nunca tinha tido o menor sentido de humor. E a luz do néon acentuava a expressão enfadada e grave do seu rosto.

– Entre os cavalos e os homens, a coisa só raramente funciona… Por mais que lhe diga que faz mal em apostar nas corridas, ele continua mas nunca ganha… E você? Continua a ser fotógrafo?

Ele tinha pronunciado as últimas palavras com o timbre metálico que, há sete anos, era o seu.

– Na altura, não entendi lá muito bem o seu projeto de álbum fotográfico…

– Eu pretendia fazer fotografias sobre as praias fluviais dos arredores de Paris – disse-lhe eu.

– Praias fluviais? E foi por isso que se instalou em La Varenne?

– É verdade.

– No entanto, não se trata realmente de uma praia fluvial.

– Acha? Há apesar de tudo o Beach…

– É. Suponho que não teve tempo de tirar as suas fotografias, não é verdade?

– Se, se… se quiser, posso mostrar-lhe algumas…

A nossa conversa tornava-se inútil. Era estranho exprimir-se assim, por meias-palavras, ou por subentendidos.

– Em todo o caso, posso dizer que aprendi coisas bem edificantes… E isso serviu-me de lição…

A minha observação deixou-o petrificado. E, além disso, eu fizera-a num tom agressivo. Insisti:

– Suponho que também você guarda uma má recordação de tudo isso?

Mas arrependi-me imediatamente da minha provocação. Ela deslizara sobre ele, e ele envolvia-me com o seu sorriso triste.

– Já não tenho qualquer recordação – disse-me ele.

Olhou para o relógio de pulso.

– Daqui a pouco vêm à minha procura… É pena… Gostaria de ficar mais tempo consigo… Mas espero que voltemos a ver-nos…

– Quer realmente voltar a encontrar-se comigo?

Eu sentia um certo mal-estar. Ter-me-ia sentido menos desamparado em presença do mesmo homem de há sete anos atrás.

– Sim. Gostaria de voltar a vê-lo de tempos a tempos para falarmos de Sylvia.

– Acha que vale realmente a pena?

Como podia eu falar-lhe de Sylvia? Era de perguntar se, passados sete anos, ele não estava a confundi-la com outra. Ele lembrava-se de que eu tinha sido fotógrafo mas, nos velhos que perderam a memória, subsistem ainda alguns fragmentos do passado: um lanche de aniversário da sua infância, a letra de uma canção de embalar que lhes cantavam…

– Já não quer falar mais de Sylvia? Meta bem isso na cabeça…

Ele batia com o punho na mesa e eu esperava as ameaças e as chantagens de outrora, diluídas pelo tempo, evidentemente, como as declarações daqueles criminosos de guerra caquéticos que são levados, quarenta anos depois das suas perversidades, a tribunal.

– Convença-se de que nada teria acontecido se eu tivesse casado com ela… Nada… Ela gostava de mim… A única coisa que ela queria era que também eu lhe desse uma prova de amor… E eu fui incapaz de lha dar…

Ao observá-lo, ali, na minha frente, ao ouvir aquelas palavras de um pecador arrependido, perguntei-me se eu não era injusto para com ele. Ele divagava mas tinha melhorado com o tempo. Nunca, nessa altura, ele podia ter tido este tipo de raciocínio.

– Eu creio que se engana – disse-lhe eu. – Mas isso não tem qualquer importância. Em todo o caso, a intenção é boa.

– Não me engano absolutamente nada.

E ele batia novamente com o punho na mesa com um ar de bêbedo. Receei que recuperasse a sua brutalidade e o seu mau génio. Felizmente, naquele instante, o homem da camioneta entrou no café e pôs-lhe uma mão no ombro. Ele virou-se e olhou-o fixamente, como se o não reconhecesse.

– Já vou… Dentro de momentos estou ao teu dispor…

Levantámo-nos e acompanhei-os até à camioneta que estava estacionada em frente do cinema Le Forum. Ele correu a porta, mostrando uma fila de sobretudos de cabedal, pendurados em cabides.

– Escolha um…

Eu fiquei imóvel. Então, ele examinou os sobretudos de cabedal um a um. Retirava os cabides e voltava a pô-los um de cada vez.

– Este deve ser a sua medida…

Passou-me o sobretudo de cabedal, ainda com o cabide.

– Não preciso de sobretudo – disse-lhe.

– Se… se… Faça-me a vontade…

O outro esperava, sentado no guarda-lamas da camioneta.

– Experimente-o.

Peguei no sobretudo e vesti-o na sua frente. Observava-me com o olhar penetrante de um alfaiate, durante uma prova.

– Não o incomoda nos ombros?

– Não, mas digo-lhe que não preciso do sobretudo.

– Fique com ele, faça-me a vontade. Faço questão.

Ele próprio o abotoava. Eu estava muito hirto, qual manequim de madeira.

– Fica-lhe muito bem… E a vantagem, para mim, é que tenho muitos números grandes…

Eu consentia para me ver livre dele o mais rápido possível. Não queria discutir. Queria era vê-lo partir.

– Se houver algum problema, venha trocá-lo por outro… Estarei na minha banca, no Boulevard Gambetta, amanhã à tarde… E, em todo o caso, dou-lhe a minha direção…

Remexeu no bolso interior do seu casaco e deu-me um cartão de visita.

– Tome… a minha direção e o meu número de telefone em Antibes… Fico à sua espera…

Abriu a porta da frente, subiu e sentou-se no banco. O outro instalou-se ao volante. Ele baixou o vidro e inclinou-se para fora.

– Sei que não simpatiza comigo – disse-me ele – mas estou disposto a retratar-me… Eu mudei… Compreendi quais eram os meus erros… Sobretudo em relação a Sylvia… Só a mim ela amou verdadeiramente… Voltaremos a falar os dois de Sylvia, está bem?…

Ele media-me dos pés à cabeça.

– O sobretudo fica-lhe às mil maravilhas…

Fechou o vidro sem me largar com os olhos. Mas bruscamente, no momento em que a camioneta arrancava, o seu rosto ficou com uma expressão de espanto: não consegui evitar fazer-lhe – gesto incompreensível por parte de um homem reservado como eu – um manguito.

Algumas pessoas entravam no Forum para a sessão das nove da noite. Também eu senti a tentação de me ir sentar na velha sala de cinema de veludo vermelho. Mas eu queria desfazer-me daquele sobretudo de cabedal que me apertava nos ombros e me impedia de respirar. Com a pressa, arranquei um botão. Dobrei o sobretudo, coloquei-o num banco da Promenade e afastei-me com a sensação de deixar para trás de mim algo de comprometedor.

Seria a fachada deteriorada do cinema Le Forum? Ou o reaparecimento de Villecourt? Mas pensei nas confidências que a mãe dele me fizera a respeito do assassinato misterioso do comediante Aimos numa barricada do bairro da Gare du Nord, durante a libertação de Paris. Aimos sabia muita coisa, tinha ouvido muitas conversas, tinha convivido com muita gente duvidosa nas hospedarias de Chennevières, Champigny e La Varenne. E o nome de toda essa gente, que a Sr.ª Villecourt me indicara, evocavam-me as águas lodosas do Marne.

Consultei o seu cartão de visita:

Frédéric Villecourt, comissionista.

Noutro tempo, os caracteres do seu nome teriam sido pretos e gravados. Hoje, porém, eram cor de laranja, como os de um simples prospeto, e o termo bem modesto de «comissionista», se nos lembrássemos do Frédéric Villecourt das margens do Marne, indicava que, muitas vezes, bastam alguns anos para se conseguir o que se pretende. Ele próprio escrevera a tinta azul a sua direção: Avenida Bosquet, n.º 5, Antibes. Telefone: 50.22.83.

Eu caminhava ao longo da Avenida Victor-Hugo, porque decidira voltar para casa a pé. Não, nunca deveria ter entabulado conversa com ele.

Da primeira vez, quando o vi passar na Promenade des Anglais com o seu passo pesado, com esse ridículo saquinho de cabedal a tiracolo, não senti nenhuma vontade de lhe falar. Nesse domingo, estava um lindo sol de outono e eu estava sentado na esplanada do Queeni. E, na Promenade, ele parou e acendeu um cigarro. Depois permaneceu ainda uns instantes imóvel, por detrás da chusma de automóveis. Ia atravessar com o semáforo vermelho e ficar no passeio, precisamente à minha frente. E, nesse momento, podia ver-me. Ou então, não se mexeria, a noite cairia e a sua silhueta, qual sombra chinesa, recortar-se-ia para sempre sobre o mar, diante de mim.

Ele prosseguiu o seu caminho em direção ao casino Ruhl e ao Jardim Alberto I, com o saco de cabedal a tiracolo. À minha volta, homens e mulheres, rígidos como múmias, tomavam chá, silenciosos, de olhar fixo na Promenade des Anglais. Talvez também eles espiassem, por entre essa multidão em procissão, silhuetas do seu passado.

Volto sempre para casa atravessando o que foi a sala de jantar do antigo Hotel Majestic, precisamente na esquina do Boulevard de Cimiez. Agora, já não passa de um hall, que serve de sala de reuniões ou exposições. Ao fundo, na semipenumbra, um grupo coral cantava canções em inglês. Junto da escadaria, havia um cartaz com esta inscrição: «Today: The Holy Nest.» As suas vozes agudas ainda me chegavam ao segundo andar, quando fechei a porta do meu quarto. Deviam ser canções de Natal. Aliás, o Natal estava próximo. Estava frio neste quarto mobilado, um antigo quarto de hotel com casa de banho, de que ainda subsistia o número, numa placa de cobre, dentro do armário: 252.

Liguei o pequeno radiador elétrico mas o calor que deitava era tão pouco que acabei por desligá-lo. Estendi-me na cama, sem tirar os sapatos.

Há, no edifício Majestic, apartamentos de três ou quatro divisões, as antigas suites do hotel, ou quartos simples que se ligaram entre si no decurso de obras de reparação. Eu prefiro viver numa só divisão. É menos triste. Tem-se ainda a ilusão de viver no hotel. A cama continua a ser a do quarto 252. Também a mesa de cabeceira. E pergunto-me se a secretária de madeira escura, pretensamente Luís XVI, pertenceria ao mobiliário do Majestic. A alcatifa, essa, não existia no quarto 252: uma alcatifa cinzento-beje, gasta em alguns sítios. A banheira e o lavatório também mudaram.

Eu não tinha vontade de jantar. Apaguei a luz. Fechei os olhos e deixei-me embalar pelas vozes longínquas do grupo coral inglês. Ainda estava estendido na cama, no escuro, quando o telefone tocou.

– Alô… É Villecourt…

A sua voz era muito baixa, quase um cochicho.

– Incomodo-o? Descobri o seu número na lista telefónica…

Fiquei em silêncio. Ele voltou a perguntar-me:

– Incomodo-o?…

– De modo nenhum.

– Gostaria simplesmente que as coisas ficassem claras entre nós. Quando nos despedimos, tive a impressão de que você me odiava…

– Não o odeio…

– No entanto, o gesto que me fez…

– Foi uma brincadeira.

– Uma brincadeira? Você tem um sentido de humor realmente singular.

– É assim – disse-lhe eu. – Têm de me aceitar como sou.

– Achei esse gesto de tal modo agressivo… Tem algo a censurar-me?…

– Não.

– Nunca lhe perguntei nada… Foi você, Henri, que me procurou. Você estava à espera diante da banca, no Boulevard Gambetta.

– Não me chamo Henri…

– Desculpe… Estava a confundir com outro… Esse tipo moreno que estava sempre a dar palpites sobre as corridas… Não sei que piada é que Sylvia lhe encontrava…

– Não tenho vontade de falar de Sylvia consigo.

Era realmente penoso prosseguir aquela conversa telefónica no escuro. Do hall, as vozes do grupo coral inglês continuavam a chegar-me e acalmavam-me; nessa noite, não estava completamente só.

– Porque é que não quer falar de Sylvia comigo?

– Porque não estamos a falar da mesma pessoa.

Desliguei. Passados breves instantes, o telefone voltou a tocar.

– Foi uma falta de delicadeza ter desligado… Mas não vou largá-lo…

Ele pretendia pôr um pouco de ironia na sua voz.

– Estou fatigado – disse-lhe.

– Também eu. Mas não é razão para não voltarmos a falar. Doravante, só nós dois sabemos certas coisas…

– Pensava que você tinha esquecido tudo…

Fez-se silêncio.

– Realmente não… Isso incomoda-o, não é verdade?

– Não.

– Convença-se de que era eu quem melhor conhecia Sylvia… Era eu quem ela mais amava… Como está a ver, não me furto às minhas responsabilidades.

Desliguei. Passaram alguns minutos e o telefone voltou a tocar.

– Havia entre mim e Sylvia uma ligação muito forte… Tudo o mais não tinha qualquer importância para ela…

Ele falava como se tivesse achado natural que eu tivesse desligado pela segunda vez.

– Gostava de falar de tudo isso consigo, quer queira quer não… Telefonar-lhe-ei até que aceite…

– E eu corto o telefone.

– Nesse caso, esperá-lo-ei diante da sua casa. Não poderá livrar-se de mim lá muito facilmente… Em suma, foi você que veio procurar-me…

Desliguei mais uma vez. Novamente, a campainha do telefone.

– Eu não esqueci certas coisas… Ainda lhe posso causar muitas chatices… Quero ter consigo uma conversa séria sobre Sylvia…

– Você esquece que também eu lhe posso causar muitas chatices – respondi-lhe.

Desta vez, depois de ter desligado, marquei o meu próprio número de telefone e meti o auscultador debaixo da almofada para não ouvir o ruído do telefone.

Levantei-me e, sem acender a luz, fui para a janela. Em baixo, o Boulevard de Cimiez estava deserto. De tempos a tempos, um automóvel passava e, sempre que isso acontecia, eu perguntava-me se iria parar. Um bater de porta. Ele sairia e levantaria a cabeça em direção à fachada do Majestic para ver em que andar ainda havia luz. Ele entraria na cabina telefónica, no começo da curva do boulevard. Deveria deixar o auscultador desligado ou responder-lhe? O melhor seria aguardar o toque e pôr o auscultador ao ouvido, sem dizer nada. Ele repetiria: «Alô… Está a ouvir-me?… Alô, está a ouvir-me?… Estou muito perto da sua casa… Responda-me… Responda-me…» A essa voz, cada vez mais inquieta e mais plangente, eu responderia apenas com o silêncio. Sim, gostaria de lhe transmitir a sensação de vazio que eu próprio sinto.

O grupo coral calou-se há muito, e eu continuo postado diante da janela. Espero que a silhueta se recorte, lá em baixo, na iluminação branca do boulevard, tal como se recortava, no outro domingo, na Promenade des Anglais.

Ao fim da manhã, desci à garagem. Pode-se lá chegar a partir do rés do chão do prédio por uma escada de cimento. Basta seguir um corredor, ao fundo do hall, abrir uma porta, e acender a luz da escada.

É um local muito amplo, na parte de baixo do Majestic, que já devia servir, no tempo do hotel, de recolha para os automóveis.

Ninguém. Os três empregados tinham saído para almoçar. A bem dizer, tinham cada vez menos trabalho. Alguém apitava do lado da estação de serviço. Um Mercedes aguardava e o condutor pediu-me para atestar o depósito. Deu-me uma boa gorjeta.

Depois dirigi-me para o meu gabinete, no interior da garagem. Uma divisão com o chão de mosaico, paredes verde-pálido e envidraçada. Tinham deixado um envelope em meu nome sobre a mesa de madeira branca. Abri-o e li:

«Fique tranquilo. Nunca mais voltará a ouvir falar de mim. Nem de Sylvia.

Villecourt.»

Por descargo de consciência, tirei do bolso o seu cartão de visita e marquei o número de telefone da sua casa de Antibes: ninguém respondeu. Pus ordem no meu gabinete, onde velhos dossiês e faturas estavam empilhados desde há meses. Guardei-os no armário metálico. Dentro em breve, já nada disso restaria: o administrador do prédio, que me tinha arranjado este lugar de direção nesta garagem, tinha-me avisado de que a iam transformar num simples parque de estacionamento.

Olhei pela vidraça: a uma certa distância, estava um automóvel americano, de capot aberto, com o pneu de uma das rodas de trás completamente em baixo. Quando os outros voltassem, tinha de lhes perguntar se se tinham esquecido dele. Mas voltariam? Também eles tinham sido avisados do encerramento próximo da garagem, e tinham sem dúvida encontrado algures outro emprego. Eu fui o único que não tomou precauções.

*

Mais tarde, depois do almoço, marquei novamente o número de Villecourt, em Antibes. Não houve resposta. Dos três empregados, só um tinha voltado e acabava a reparação do automóvel americano. Disse-lhe que me ausentava durante uma ou duas horas e pedi-lhe que tomasse conta da estação de serviço.

Havia sol e um tapete de folhas mortas no passeio da Avenida Dubouchage. Enquanto caminhava, pensava no meu futuro. Dar-me-iam uma indemnização pelo encerramento da garagem, com o que subsistiria algum tempo. Conservaria o meu quarto no Majestic, cujo aluguer era irrisório. Talvez conseguisse que Boistel, o gerente, não me obrigasse a pagar mais o aluguer como sinal de agradecimento pelos meus serviços. Sim; ficaria na Côte d’Azur para sempre. Para quê mudar de horizontes? Poderia mesmo retomar a minha antiga profissão de fotógrafo e aguardar, na Promenade des Anglais, com uma polaroide, a passagem dos turistas. O que pensara ao dar uma vista de olhos pelo cartão de visita de Villecourt, também se me aplicava. Muitas vezes bastam alguns anos para se conseguir o que se pretende.

Sem me dar conta, tinha chegado ao Jardim da Alsácia-Lorena. Virei à esquerda, para o Boulevard Gambetta, e senti um ligeiro aperto no coração perguntando-me se encontraria Villecourt detrás da sua banca. Desta vez, observá-lo-ia de longe para que ele não pudesse notar a minha presença e ir-me-ia imediatamente embora. Seria um alívio contemplar aquele vendedor ambulante, que já não era o antigo vendedor ambulante, e que nunca tinha estado ligado à minha vida. Nunca. Um vendedor ambulante inofensivo como os que há nos passeios de Nice por altura das festas de Natal. E nada mais.

Vi uma silhueta que se agitava por detrás da banca. No momento de atravessar a Rua Buffa, apercebi-me de que não era Villecourt mas um loiro enorme com cara de cavalo e casaco de cabedal. Como da primeira vez, dirigi-me para a primeira fila. Não utilizava o pódio nem o microfone, e debitava a sua arenga com uma voz muito forte, enumerando as mercadorias que tinha na frente: miopótamo, pele de carneiro tratada, coelho, doninhas, botins todos em couro, simples ou forrados… A banca estava muito mais abastecida do que na véspera e o loiro atraía mais gente do que Villecourt. Muito pouco cabedal. Peles em abundância. Talvez não achassem Villecourt digno de vender peles.

Ele fazia descontos de vinte por cento nos casacos de miopótamo e nos fatos de pele de carneiro tratada com jaqueta. Carneiro? Havia-o de todas as cores: preto, chocolate, azul-escuro, verde-bronze, fúcsia, violeta-claro… Como bónus, para os compradores, um pacote de marrons glacés. Ele falava cada vez mais depressa e provocava-me tonturas. Acabei por me sentar na esplanada do café que ficava próximo e esperei cerca de uma hora, antes de os mirones dispersarem. O dia tinha caído há muito.

Ele estava sozinho detrás da sua banca, e eu aproximei-me dele:

– Está encerrado – disse-me ele. – Mas se quiser alguma coisa… Tenho casacos de cabedal… muito baratos… trinta por cento de desconto… ou casacões de carneiro macio… forno de tafetá, números 38 a 46… Deixo-lhos por metade do preço…

Se não lhe cortasse a palavra, nunca mais se calava. Estava embalado.

– Conhece Frédéric Villecourt? – perguntei-lhe.

– Não.

Ele começava a empilhar peles e casacos uns sobre os outros.

– Mas ontem à tarde ele estava aí, no seu lugar.

– Como sabe, somos muitos a trabalhar na Côte d’Azur para a France-Cuir…

A camioneta parou junto da banca. O mesmo condutor desceu e correu a porta.

– Boa-tarde – disse-lhe eu. – Vimo-nos ontem à tarde com um amigo meu…

Ele observava-me franzindo as sobrancelhas e parecia não se lembrar de nada.

– Você foi ter com ele ao café do Forum…

– Ah sim… Ah sim. Realmente…

– Carrega-me tudo isso depressa – disse o loiro enorme com cabeça de cavalo.

O outro pegava nos sobretudos e nos casacos de cabedal uns a seguir aos outros e enfiava-os nos cabides antes de os pendurar na camioneta.

– Não sabe onde é que ele está?

– Talvez já não trabalhe para a France-Cuir…

Ele respondera-me com uma voz seca, como se Villecourt tivesse cometido uma falta muito grave, e como se fosse realmente um privilégio trabalhar para a France-Cuir.

– Eu pensava que ele tinha um emprego fixo…

O loiro enorme com cabeça de cavalo, com as nádegas apoiadas na borda da banca, anotava qualquer coisa num bloco. As contas do dia?

Tirei do bolso o cartão de visita de Villecourt.

– Ontem à noite deve tê-lo levado a casa… à Avenida Bosquet, n.º 5, em Antibes…

O condutor continuava a arrumar os sobretudos e os casacos na camioneta e nem sequer se dignava olhar para mim.

– É um hotel – disse-me ele. – É lá que ficam os vendedores da France-Cuir… Lá avisam-nos se têm de trabalhar em Cannes ou em Nice…

Eu passei-lhe um casacão de carneiro, depois um casaco de cabedal, e a seguir botas forradas. Se o ajudasse a carregar a camioneta, talvez acedesse a dar-me algumas informações suplementares sobre Villecourt.

– Como quer que eu tenha tempo de os conhecer a todos…? Revezam-se… Dez novos por semana… Vemo-los dois ou três dias… Voltam a partir… Vêm substituí-los outros… Com France-Cuir, a coisa não para… Temos stocks em toda a região… Não apenas em Cannes e em Nice… Em Grasse… Em Draguignan…

– Sendo assim, não tenho qualquer hipótese de o apanhar em Antibes?

– Ah não… o seu quarto já deve estar ocupado por outra pessoa… Talvez pelo senhor…

Indicou-me o loiro enorme com cara de cavalo que continuava a tomar notas num bloco.

– E não há nenhum meio de saber onde é que ele está?

– Das duas, uma… Ou já não trabalha para a France-Cuir, foi posto no olho da rua porque não era um «vendedor» à altura…

Ele tinha acabado de pendurar os sobretudos e os casacos na camioneta e limpava a testa com a ponta de um lenço.

– Ou então mandaram-no para outro sítio… Mas se perguntar à direção, não lhe dirão nada… Segredo profissional… Suponho que o senhor nem sequer é da família dele.

– Não.

O seu tom tinha serenado. O loiro enorme com cara de cavalo tinha vindo juntar-se a nós.

– Já arrumaste tudo?

– Já.

– Nesse caso, vamos embora…

Subiu para a cabina da camioneta. O outro fechou a porta e verificou se estava travada. Depois subiu ele e inclinou-se para mim pela janela entreaberta.

– Às vezes a France-Cuir manda-os para o estrangeiro… Eles têm armazéns na Bélgica… Se calhar, mandaram-no para a Bélgica…

Encolheu os ombros e arrancou. Eu segui com os olhos a camioneta que desapareceu na esquina da Promenade des Anglais.

Estava agradável. Caminhei até ao Jardim da Alsácia-Lorena e sentei-me num banco, por detrás dos baloiços e do parque de areia. Gosto deste sítio, por causa dos pinheiros mansos e dos prédios que se recortam tão nitidamente no céu. Pela tarde, vinha algumas vezes sentar-me aqui com Sylvia. Encontrávamo-nos seguros no meio de todas aquelas mães que vigiam os filhos. Ninguém iria procurar-nos neste jardim. E as pessoas, à nossa volta, não nos prestavam atenção. Em suma, também nós podíamos ter filhos a deslizar pelo escorrega ou a construir castelos de areia.

Para a Bélgica… Se calhar, mandaram-no para a Bélgica… Eu imaginava Villecourt, pela tarde, debaixo de chuva, a vender à socapa porta-chaves e velhas fotografias pornográficas no bairro da Gare du Midi, em Bruxelas. Ele não passava da sombra de si mesmo. O recado que, nessa manhã, me tinha deixado na garagem não me tinha surpreendido: «Nunca mais voltará a ouvir falar de mim.» Eu tinha esse pressentimento. O mais espantoso é que ele me tinha escrito esse recado, que constituía, pois, uma prova material de que estava vivo. Quando, ontem à tarde, estava por detrás da sua banca, levei tempo a reconhecê-lo, a persuadir-me de que era realmente ele. Eu tinha-me prantado na primeira fila dos mirones e olhava-o insistentemente como se quisesse despertar a sua atenção. E, sob esse olhar fixo, ele esforçara-se por se tornar o antigo Villecourt. Durante algumas horas, tinha continuado a representar esse papel, tinha-me telefonado, mas sem grande convicção. Agora, em Bruxelas, encaminhava-se pelo Boulevard Anspach para a Gare du Nord e apanhava um comboio ao acaso. Encontrava-se num compartimento cheio de fumo com caixeiros-viajantes que jogavam às cartas. E o comboio largava para um destino desconhecido…

Também eu tinha pensado em Bruxelas para aí me refugiar com Sylvia, mas tínhamos preferido não sair de França. Havia que escolher uma cidade importante onde passássemos despercebidos. Nice tinha mais de quinhentos mil habitantes, entre os quais podíamos desaparecer. Não era uma cidade como as outras. E depois, havia o Mediterrâneo…

Iluminou-se uma janela no terceiro andar do prédio que fica na esquina da praceta com o Boulevard Victor-Hugo, onde vivia a Sr.ª Efflatoun Bey. Será que ainda é viva? Devia tocar à sua porta ou perguntar à porteira. Contemplo a janela iluminada com uma luz amarelada. Já na altura em que chegámos a esta cidade, a Sr.ª Efflatoun Bey tinha vivido a sua vida desde há muito e eu perguntava-me se ela conservava dela vagas recordações. Era um fantasma simpático, entre os milhares de outros fantasmas que povoam Nice. Por vezes, pela tarde, vinha sentar-se num banco do Jardim da Alsácia-Lorena, ao nosso lado. Os fantasmas não morrem. Há sempre luz nas suas janelas, bem como nas de todos os prédios ocres e brancos que me rodeiam e cujas fachadas estão semiocultadas pelos pinheiros mansos da praceta. Levanto-me. Sigo pelo Boulevard Victor-Hugo e conto maquinalmente os plátanos.

A princípio, quando Sylvia aqui veio ter comigo, eu via as coisas de uma maneira diferente da que as vejo nesta noite. Nice não era esta cidade familiar por onde caminho para encontrar o hall do Majestic e o meu quarto com um radiador avariado. Felizmente, os invernos são amenos na Côte d’Azur e isso livra-me de dormir de casaco. É da primavera que eu tenho medo. Chega sempre como uma vaga de fundo, e eu pergunto-me sempre se não vou desequilibrar-me e sair borda fora.

Eu pensava que a minha vida tomaria um novo rumo e que bastaria ficar algum tempo em Nice para apagar todo o passado. Acabaríamos por já não sentir o peso que nos importunava. Nessa noite, eu caminhava com um passo muito mais rápido do que o de hoje. Na Rua Gounod, passara diante do salão de cabeleireiro. O seu néon cor-de-rosa continua a brilhar – tive de o confirmar antes de prosseguir o meu caminho.

Eu ainda não era um fantasma, como nesta noite. Dizia para comigo que íamos esquecer tudo e recomeçar tudo do zero nesta cidade desconhecida. Recomeçar do zero – era a frase que eu repetia para mim próprio enquanto caminhava pela Rua Gounod com um passo cada vez mais apressado.

«Em frente», disse-me um transeunte a quem perguntei o caminho para a estação. Em frente. Eu tinha confiança no futuro. Estas ruas eram novas para mim. Não tinha qualquer importância se eu me guiasse um pouco ao acaso.

O comboio de Sylvia só chegaria à estação de Nice às dez e meia da noite.

Ela tinha como bagagem um grande saco de cabedal vermelho-escuro e, ao pescoço, a Cruz do Sul. Eu estava intimidado por a ver avançar para mim. Tinha-a deixado uma semana antes num hotel de Annecy porque tinha querido partir sozinho para Nice e assegurar-me de que podíamos fixar-nos nesta cidade.

A Cruz do Sul brilhava sobre a camisola preta na abertura da gola do sobretudo. Cruzámos os olhares, ela sorriu e baixou a gola. Não era prudente trazer essa joia de uma maneira ostentatória. E se, no comboio, tivesse vindo sentada diante de um diamantista e tivesse despertado a sua atenção? Mas, a este pensamento despropositado, também eu acabei por sorrir. Peguei-lhe no saco de viagem.

– Não havia nenhum diamantista no teu compartimento?

Eu olhava de alto a baixo os poucos passageiros que acabavam de descer do comboio em Nice e que, no cais, caminhavam a nosso lado.

No táxi, tive um momento de apreensão. A casa mobilada que eu tinha escolhido e o aspeto do quarto poderiam não lhe agradar. Mas era preferível vivermos neste tipo de sítio a vivermos num hotel onde os empregados da receção nos teriam identificado.

O táxi seguiu o trajeto que, em sentido inverso, eu fizera: Boulevard Victor-Hugo, Jardim da Alsácia-Lorena. Foi na mesma altura do ano, em finais de novembro, e os plátanos tinham perdido as folhas, como nesta noite. Ela tirou do pescoço a Cruz do Sul e eu senti na palma da minha mão o contacto do fio e do diamante.

– Toma-o… Senão vou perdê-lo…

Meti cautelosamente a Cruz do Sul no bolso de dentro do meu casaco.

– Já viste se houvesse um diamantista no teu compartimento, à tua frente?

Ela apoiou a cabeça no meu ombro. O táxi parara na esquina da Rua Gounod para dar passagem a outros automóveis que vinham da esquerda. No princípio da rua, a fachada do salão de cabeleireiro brilhava com o seu néon cor-de-rosa.

– De qualquer maneira, se tivesse vindo sentada em frente de um diamantista, ele teria pensado que era pechisbeque…

Ela segredara-me a frase ao ouvido para que o condutor não ouvisse, e com a entoação que Villecourt qualificava de «suburbana» quando ele, Villecourt, pretendia parecer distinto, essa entoação que eu adorava, eu, porque era a da infância.

– Sim, mas imagina que ele te pedia para a examinar mais de perto… com uma lupa…

– Ter-lhe-ia dito que era uma joia de família.

O táxi parou na Rua Caffarelli, em frente da vivenda Sainte-Anne, de quartos mobilados. Ficámos ambos imóveis um instante, no passeio. Eu segurava o seu saco de viagem.

– O hotel é ao fundo do jardim – disse-lhe eu.

Receava que ela ficasse dececionada. Mas não. Deu-me o braço. Empurrei o portão que se abriu num ruído de folhagem e seguimos pela álea escura até ao edifício iluminado por uma lâmpada que ficava sobre o átrio da entrada.

Passámos diante da marquise. O lustre estava aceso no salão onde a proprietária me recebeu quando aluguei o quarto por um mês.

Sem chamar a atenção de ninguém, demos a volta ao edifício. Abri a porta das traseiras e subimos as escadas de serviço. O quarto era no primeiro andar, ao fundo de um corredor.

Ela sentou-se no velho sofá de couro. Não tinha tirado o casaco. Olhou à sua volta, como se quisesse habituar-se à decoração. As duas janelas que davam para o jardim do edifício estavam protegidas por cortinas pretas. Um papel pintado com motivos cor-de-rosa cobria as paredes, exceto a do fundo, cuja madeira clara evocava um chalé de montanha. Não havia mais móveis além do sofá de couro e da cama bastante larga com varões de cobre.

Eu estava sentado na borda da cama. Esperava que ela dissesse qualquer coisa.

– Em todo o caso, não virão procurar-nos aqui.

– Claro que não – disse-lhe eu.

Queria detalhar-lhe as vantagens do lugar para melhor me convencer a mim próprio: paguei um mês adiantado… É um quarto independente… Guardaremos sempre a chave connosco… A proprietária vive no rés do chão… Ela deixar-nos-á em paz…

Mas ela parecia não me ouvir. Observava o candeeiro que lançava sobre nós uma luz fraca, depois o soalho, e em seguida as cortinas pretas.

Com o seu casaco, ter-se-ia pensado que ia sair do quarto de um momento para o outro, e tive medo que ela me deixasse sozinho sentado na cama. Ela continuava imóvel, com as mãos apoiadas nos braços do sofá. Uma expressão de desalento, do desalento que também eu sentia, perpassou pelo seu olhar.

Foi preciso que poisasse os olhos em mim para que tudo mudasse. Talvez ela sentisse que experimentávamos as mesmas coisas nos mesmos momentos. Sorriu-me e, em voz baixa, como se receasse que alguém ouvisse atrás da porta, disse-me:

– Não devemos preocupar-nos.

A música e a voz grave de um orador, no rés do chão do edifício, cessaram. Tinham desligado a televisão ou o rádio. Estávamos os dois estendidos na cama. Eu abrira as cortinas e, pelas duas janelas, uma luz fraca atravessava a escuridão do quarto. Via o seu perfil. Ela tinha os dois braços atirados para trás, com as mãos a rodear os varões da cama, e a Cruz do Sul ao pescoço. Preferia usá-la enquanto dormia: assim, não corria o risco de lha roubarem.

– Não achas que há um cheiro estranho? – perguntou-me.

– Acho.

A primeira vez que visitara este quarto, um cheiro a mofo tinha-me invadido a garganta. Abrira as duas janelas para deixar entrar um pouco de ar fresco, mas isso não servira de nada. O cheiro impregnava as paredes, o couro do sofá e o cobertor de lã.

Aproximei-me dela e, pouco depois, o seu perfume era mais intenso do que o cheiro do quarto, um perfume pesado de que já não podia prescindir, algo de doce e de tenebroso, como os laços que nos ligavam um ao outro.


1 Bebida muito popular em França nos anos 1960, composta por uma parte de conhaque e três partes de água. (N. do E.)