8

A LAGOA DAS SEREIAS

SE VOCÊ TIVER SORTE PODE SER QUE, às vezes, quando fechar os olhos, veja uma poça suspensa na escuridão, sem forma e de lindas águas pálidas; aí, se apertar mais os olhos, a poça começa a tomar forma e as cores ficam tão vivas que, se você apertar mais um pouco, vão pegar fogo. Mas, logo antes disso, você vê a lagoa. É o mais perto que dá para chegar dela quando se está fora da ilha, e só dura um maravilhoso segundo. Se pudessem ser dois segundos, você talvez visse a espuma das ondas e ouvisse o canto das sereias.

As crianças muitas vezes passavam longos dias de verão nessa lagoa, nadando ou boiando durante a maior parte do tempo, brincando das brincadeiras das sereias na água e assim por diante. Isso não quer dizer que as sereias fossem amigas delas; ao contrário, uma das maiores decepções de Wendy foi nunca ter ouvido sequer uma gentileza delas durante todo o tempo que passou na ilha. Quando Wendy ia devagarzinho até a beira da lagoa, às vezes via sereias aos montes, principalmente na Pedra do Abandono, onde elas adoravam tomar sol penteando os cabelos de um jeito preguiçoso que a irritava bastante. Wendy às vezes nadava pé ante pé, por assim dizer, até ficar a cerca de um metro delas, mas aí as sereias a viam e mergulhavam, jogando água nela com suas caudas, não sem querer, mas de propósito.

As sereias tratavam todos os meninos do mesmo jeito, exceto, é claro, Peter, que conversava horas com elas na Pedra do Abandono e sentava em suas caudas quando elas lhe faltavam com o respeito. Ele deu um pente das sereias para Wendy.

O momento mais impressionante para ver as sereias é na mudança da lua, quando elas emitem um som estranho e melancólico; mas a lagoa é perigosa para os mortais nessa hora e, até essa noite sobre a qual eu falarei agora, Wendy jamais havia visto o local à luz do luar. Não tanto por medo, pois é claro que Peter a teria acompanhado se ela quisesse, e mais porque ela exigia que todos estivessem na cama às sete horas. Mas Wendy muitas vezes ia à lagoa nos dias de sol após a chuva, quando um número extraordinário de sereias vinha à tona brincar com as bolhas. Elas brincam com as bolhas coloridas que surgem na água de arco-íris como se elas fossem bolas, atirando-as alegremente umas para as outras com as caudas, e tentando mantê-las debaixo do arco-íris até estourarem. Os gols ficam nas duas pontas do arco-íris, e as goleiras só podem usar as mãos. Às vezes, centenas de sereias vêm brincar na lagoa ao mesmo tempo, e é uma cena muito bonita.

Mas, no segundo em que as crianças tentavam entrar na brincadeira, tinham que jogar sozinhas, pois as sereias desapareciam. No entanto, nós temos a prova de que elas observavam escondidas os intrusos e não desprezavam as ideias deles, pois João introduziu uma nova maneira de bater na bolha, com a cabeça em vez de com a mão, e as goleiras sereias adotaram a prática. Foi a única marca que João deixou na Terra do Nunca.

Também devia ser muito bonito ver as crianças descansando numa pedra por meia hora após o almoço. Wendy insistia que fizessem isso, e o descanso tinha que ser de verdade mesmo que o almoço fosse de faz de conta. Assim, eles ficavam deitados com os corpos brilhando à luz do sol, enquanto ela ficava sentada ao lado deles com um ar importante.

Num dia como esse, os meninos estavam todos deitados na Pedra do Abandono. A pedra não era muito maior do que a enorme cama que havia na casa debaixo da terra, mas é claro que todos eles sabiam como ocupar pouco espaço. Estavam todos dormindo, ou pelo menos deitados de olhos fechados, se beliscando quando achavam que Wendy não estava prestando atenção. Ela estava muito ocupada costurando.

Image

Às vezes, centenas de sereias vêm brincar na lagoa ao mesmo tempo.

Enquanto Wendy costurava, algo mudou na lagoa. A superfície se arrepiou, o sol se escondeu e sombras se espalharam devagar pela água, esfriando-a. Wendy não conseguia mais enxergar o buraco da agulha e, quando ergueu os olhos, viu que a lagoa, que sempre havia sido um lugar tão alegre, estava com um aspecto assustador e hostil.

Não era porque a noite havia chegado, ela sabia, mas algo tão escuro quanto a noite havia chegado. Não, era pior ainda. Não havia chegado, mas mandara aquele arrepio do mar para avisar que estava chegando. O que era?

Wendy se lembrou de repente de todas as histórias que já ouvira sobre a Pedra do Abandono, que tinha esse nome porque alguns capitães perversos abandonavam marinheiros ali para que se afogassem. Eles se afogavam quando a maré subia, pois quando isso acontece a pedra fica submersa.

É claro que Wendy deveria ter acordado imediatamente as crianças; não apenas por causa do desconhecido que estava se aproximando deles, mas porque não seria bom para elas dormir naquela pedra, que agora estava fria. Mas Wendy era uma mãe jovem, e ela não sabia disso; achava que você tem que seguir a regra de dormir meia hora depois do almoço. Por isso, embora estivesse com medo e louca para ouvir vozes de meninos, recusou-se a acordá-los. Mesmo quando ouviu o ruído distante de remos na água e ficou com o coração na boca, não os acordou. Ficou ali, tomando conta deles e permitindo que descansassem. Ela não foi corajosa?

Mas, para a sorte dos meninos, um deles podia sentir cheiro de perigo até quando estava dormindo. Peter deu um pulo, despertando num segundo como um cachorro e, com um grito de aviso, acordou todos os outros.

Ele ficou imóvel, com a mão em concha na orelha.

– Piratas! – gritou Peter.

Os outros se aproximaram. Havia um estranho sorriso no rosto dele, e Wendy estremeceu quando o viu. Quando aquele sorriso surgia no rosto de Peter, ninguém ousava falar com ele; eles apenas se preparavam para obedecer. A ordem foi curta e incisiva.

– Mergulhem!

Viu-se um lampejo de pernas e instantaneamente a lagoa pareceu deserta. A Pedra do Abandono estava sozinha naquelas águas ameaçadoras, como se ela própria houvesse sido abandonada.

O barco se aproximou. Era o bote dos piratas com três pessoas dentro: Barrica, Cavalheiro Starkey e uma prisioneira, ninguém menos do que a Princesa Tigrinha. Suas mãos e tornozelos estavam amarrados, e ela sabia qual seria seu destino. Ela seria largada na pedra para morrer ali, um fim que, para uma pessoa de sua tribo, era mais terrível que a morte pelo fogo e pela tortura, pois não estava escrito no livro sagrado dos Piccaninnies que nenhum dos caminhos que leva ao Eterno Campo de Caça passa pela água? Mas o rosto de Tigrinha estava impassível; ela era uma filha de chefe, e tinha de morrer como uma filha de chefe. Simples assim.

Os piratas a haviam flagrado entrando no navio com uma faca na boca. Ninguém ficava de guarda ali, pois Gancho se vangloriava do fato de que apenas o som do seu nome protegia o navio por um raio de mais de um quilômetro. Agora, o destino de Princesa Tigrinha também ia fazer com que os inimigos dos piratas pensassem duas vezes. Ela seria mais uma vítima do Capitão Gancho.

Na penumbra que trouxeram consigo, os dois piratas só viram a pedra quando bateram nela.

– Cuidado, sua besta! – gritou uma voz com sotaque irlandês que pertencia a Barrica. – Já chegamos à pedra. Bom, agora é alçar a pele-vermelha lá para cima e largar a danada para ela se afogar.

Em poucos segundos de brutalidade, a linda menina estava sobre a pedra; ela era orgulhosa demais para resistir quando sabia que seria em vão.

Bem perto da pedra, mas fora do campo de visão dos piratas, havia duas cabeças que saíam de dentro d’água de tempos em tempos – a de Peter e a de Wendy. Wendy estava chorando, pois essa era a primeira tragédia que via. Peter já vira muitas tragédias, mas havia esquecido todas. Ele sentia menos pena de Tigrinha do que Wendy; mas ficou furioso ao ver que eram dois contra uma, e pretendia salvá-la. Um jeito fácil teria sido esperar que os piratas fossem embora, mas Peter nunca escolhia o jeito fácil.

Não havia quase nada que Peter não sabia fazer, e ele imitou a voz do Capitão Gancho:

– Ei, seus panacas! – gritou ele.

Foi uma imitação maravilhosa.

– O capitão! – disseram os piratas se entreolhando, surpresos.

– Ele deve estar nadando na nossa direção – disse Cavalheiro Starkey, depois de terem procurado por Gancho em vão.

– Estamos colocando a pele-vermelha na pedra! – gritou Barrica.

– Soltem a pele-vermelha! – foi a espantosa resposta.

– Soltar?

– Isso, cortem a corda e deixem a moça ir embora!

– Mas, capitão…

– Agora. Ouviram bem? – exclamou Peter. – Ou eu enfio o gancho em vocês!

– Que esquisito – disse Barrica, atônito.

– Melhor fazer o que o capitão mandou – disse Cavalheiro Starkey, nervoso.

– Tudo bem – disse Barrica.

Ele cortou a corda que prendia Princesa Tigrinha. No mesmo segundo, ela deslizou como uma enguia, passando por entre as pernas de Cavalheiro Starkey e mergulhando na água.

É claro que Wendy ficou radiante com a esperteza de Peter; mas ela sabia que ele ia ficar radiante também, e que era muito provável que fosse cocoricar e, assim, se trair. Por isso, ela imediatamente levantou a mão para tapar a boca dele. Mas ficou com a mão no ar, imóvel, pois a voz de Gancho ressoou pela lagoa, dizendo:

– Ó de bordo!

Dessa vez, não tinha sido Peter quem falara. Ele estava prestes a cocoricar mesmo, mas fez um bico e soltou um assobio de surpresa.

– Ó de bordo! – alguém gritou de novo.

Agora Wendy entendeu. O verdadeiro Gancho também estava na água.

Ele estava nadando para o bote e, como seus homens usaram um lampião para guiá-lo, logo chegou lá. À luz da lanterna, Wendy viu o gancho dele agarrando a lateral do bote e sua perversa cara morena quando ele saiu pingando da água. Tremendo, ela quis nadar para longe, mas Peter se recusou a sair dali. Ele estava formigando de animação e inflado de vaidade.

– Eu não sou o máximo? Ah, eu sou o máximo! – sussurrou para ela.

E, embora Wendy concordasse, ela ficou feliz que ninguém mais pudesse ouvi-lo, pelo bem da reputação dele.

Peter fez um gesto, indicando que queria escutar a conversa.

Os dois piratas estavam muito curiosos para saber o que trouxera o capitão até ali, mas ele se sentou com a cabeça apoiada no gancho, numa postura de profunda melancolia.

– Capitão, está tudo bem? – perguntaram eles timidamente.

Mas Gancho respondeu emitindo um gemido oco.

– Ele soltou um suspiro – disse Barrica.

– Mais um – disse Cavalheiro Starkey.

– E mais um terceiro – disse Barrica.

– O que foi, capitão?

Finalmente, Gancho respondeu com grande agitação:

– Acabou tudo! Aqueles meninos encontraram uma mãe!

Embora estivesse com medo, Wendy quase arrebentou de orgulho.

– Nossa, que horror! – exclamou Cavalheiro Starkey.

– O que é uma mãe? – perguntou o ignorante Barrica.

Wendy ficou tão chocada que exclamou:

– Ele não sabe!

Depois disso, ela passou a achar que, se pudesse ter um pirata de estimação, teria escolhido Barrica.

Peter puxou Wendy para debaixo d’água, pois Gancho dera um pulo, dizendo:

– O que foi isso?

– Não ouvi nada – disse Cavalheiro Starkey.

Ele iluminou as águas com o lampião e, enquanto os piratas procuravam, viram uma coisa estranha. Era o ninho sobre o qual eu já falei, flutuando na lagoa com a fêmea de Pássaro do Nunca em cima.

– Está vendo? – disse o Capitão Gancho, respondendo à pergunta de Barrica. – Isso é uma mãe. Que lição. O ninho deve ter caído na água, mas uma mãe abandonaria seus ovos? Não.

A voz dele falhou, como se por um momento o capitão houvesse se lembrado dos dias inocentes quando… mas ele fez um gesto com o gancho, como se quisesse espantar aquela fraqueza.

Barrica, muito impressionado, observou o pássaro quando o ninho passou boiando, mas Cavalheiro Starkey, que era mais desconfiado, disse:

– Se ela é uma mãe, talvez esteja aqui para ajudar Peter.

Gancho estremeceu.

– Sim – disse ele. – Esse é o medo que me persegue.

Ele foi arrancado de seu desânimo pela voz animada de Barrica.

– Capitão! A gente não pode sequestrar a mãe desses meninos e transformar ela na nossa mãe?

– Que plano magnífico! – exclamou Gancho, e imediatamente todo o plano se formou no enorme cérebro dele. – Nós vamos pegar as crianças e carregá-las até o navio. Os meninos vão andar na prancha e Wendy vai ser a nossa mãe.

Wendy não se conteve.

– Nunca! – exclamou ela, afundando de novo.

– O que foi isso?

Mas os piratas não viram nada e acharam que devia ter sido uma folha balançada pelo vento.

– Concordam comigo, capangas? – perguntou Gancho.

– Aperte aqui, capitão – disseram os dois.

– Apertem o gancho. Jurem.

Todos juraram que levariam o plano a cabo. A essa altura eles já haviam chegado na pedra e, de repente, Gancho se lembrou de Princesa Tigrinha.

– Onde está a pele-vermelha? – perguntou ele num tom ríspido.

O capitão gostava de brincar de vez em quando, e os piratas acharam que essa era uma dessas vezes.

– Ficou tudo certo, capitão – respondeu Barrica com complacência. – A gente soltou a índia.

– Soltaram?! – exclamou Gancho.

– F-foi o senhor mesmo que mandou – gaguejou o imediato.

– O senhor gritou da água que era para soltar a moça – disse Cavalheiro Starkey.

– Pelas chamas do inferno! – trovejou Gancho. – Que patifaria é essa?

O rosto do capitão ficou enegrecido de ódio, mas ele viu que seus homens acreditavam no que estavam dizendo e tomou um susto.

– Rapazes – disse ele, tremendo um pouco. – Eu não dei essa ordem.

– É mais do que esquisito – disse Barrica.

Os três se remexeram, preocupados. Gancho ergueu a voz, mas ela estava trêmula.

– Ó espírito que assombra esta lagoa escura esta noite! – exclamou ele. – Estás me ouvindo?

É claro que Peter devia ter ficado de boca fechada, mas é claro que não ficou. Sem hesitar, ele respondeu com a voz de Gancho:

– Com mil raios e trovões! Estou ouvindo!

Nesse momento supremo, Gancho não empalideceu nem na pontinha da orelha, mas Barrica e Cavalheiro Starkey se agarraram, apavorados.

– Quem és tu, estranho? Fala! – perguntou Gancho.

– Sou James Gancho – respondeu a voz –, capitão do navio Caveira e Ossos.41

– Não é! Não é! – gritou Gancho com a voz rouca.

– Pelas chamas do inferno! – retrucou a voz. – Diga isso de novo e eu jogo uma âncora em você!

Gancho tentou usar um tom mais simpático.

– Se você for mesmo o Gancho – disse ele, quase humilde –, me diga, quem sou eu?

– Um bacalhau – respondeu a voz. – Um mísero bacalhau.

– Um bacalhau! – respondeu Gancho, horrorizado.

E foi aí, apenas aí, que seu espírito orgulhoso murchou. Ele viu seus homens se afastarem.

– A gente passou esse tempo todo tendo um bacalhau de capitão? – murmuraram eles. – Que vergonha!

Eram os seus próprios capangas que o estavam atacando, mas Gancho se tornara uma figura trágica, e mal lhes deu atenção. Diante de uma prova tão apavorante, não era da confiança deles que ele precisava, era da sua própria. Ele sentiu seu ego lhe escapando.

– Não vá me desertar agora, seu canalha – sussurrou Gancho roucamente para ele.

Como acontece com os melhores piratas, havia um toque feminino em sua natureza perversa, e ele, às vezes, tinha intuições. Num estalo, resolveu brincar de adivinhas.

– Gancho! – disse ele. – Você tem alguma outra voz?

Peter era incapaz de resistir a uma brincadeira e, com grande imprudência, respondeu com sua própria voz:

– Tenho!

– E outro nome?

– Tenho!

– Você é vegetal? – perguntou Gancho.

– Não.

– Mineral?

– Não.

– Animal?

– Sim.

– Homem?

– Não! – gritou Peter com desprezo.

– Menino?

– Sim.

– Um menino normal?

– Não!

– Um menino maravilhoso?

Para horror de Wendy, a resposta que ecoou pela lagoa dessa vez foi:

– Sim!

– Você está na Inglaterra?

– Não.

– Está aqui?

– Estou.

Gancho não entendeu nada.

– Façam vocês algumas perguntas – disse ele para os outros, enxugando a testa molhada de suor.

Barrica refletiu.

– Não consigo pensar em nada para perguntar – lamentou ele.

– Vocês não vão conseguir adivinhar! – gabou-se Peter. – Querem desistir?

É claro que, graças a sua arrogância, ele estava levando a brincadeira longe demais, e os bandidos viram que aquela era sua chance.

– Desistimos! – responderam eles ansiosamente.

– Muito bem! – exclamou Peter. – Eu sou o Peter Pan!

Peter Pan!

Num segundo, Gancho voltou ao normal, e Barrica e Cavalheiro Starkey voltaram a ser seus capangas.

– Agora a gente pega essa peste! – gritou Gancho. – Para a água, Barrica! Cavalheiro Starkey, fique no bote! Eu o quero vivo ou morto!

Ele mergulhou enquanto falava e, ao mesmo tempo, a voz alegre de Peter disse:

– Prontos, meninos?

– Sim, capitão! – responderam os meninos de diversos pontos da lagoa.

– Então vamos cair de pau nos piratas!

A briga foi curta e feia. O primeiro a derramar sangue foi João, que corajosamente subiu no bote e atacou Cavalheiro Starkey. Após uma luta feroz, o cutelo foi arrancado da mão do pirata, que escapuliu e mergulhou na água. João pulou atrás dele. O bote foi sendo arrastado para longe.

Aqui e ali uma cabeça emergia, e via-se um lampejo de aço seguido por um gemido ou um grito de alegria. Na confusão, alguns atacaram seus próprios aliados. O saca-rolhas de Barrica atingiu Firula na quarta costela, mas o pirata logo foi ferido por Caracol. Num ponto mais distante da pedra, Cavalheiro Starkey estava dando uma tremenda prensa em Magrelo e nos Gêmeos.

E, enquanto tudo isso acontecia, onde estava Peter? Estava procurando uma presa maior.

Os outros meninos eram todos muito valentes, e nós não podemos culpá-los por fugir da briga com o capitão dos piratas. Com a garra de ferro, ele fez com que se formasse um círculo de água parada ao seu redor, de onde os meninos fugiam como peixes apavorados.

Mas um deles não temia Gancho. Um deles estava preparado para entrar naquele círculo.

Estranhamente, não foi na água que eles se encontraram. Gancho subiu na pedra para dar uma respirada e, ao mesmo tempo, Peter escalou o outro lado. A pedra estava escorregadia como uma bola, e eles tinham que subir nela engatinhando. Nenhum dos dois sabia que o outro estava logo ali. Ao tatearem, procurando um lugar para se agarrar, encontraram o braço um do outro. Surpresos, ergueram as cabeças; seus rostos estavam quase encostando. Foi assim que eles ficaram frente a frente.

Alguns dos maiores heróis da História já confessaram que, logo antes de entrar numa briga, sentiram medo. Se isso houvesse acontecido com Peter naquele momento, eu admitiria. Afinal, aquele era o único homem que botava medo no Long John Silver. Mas Peter não sentiu medo, só sentiu uma coisa: júbilo. E rangeu seus lindos dentinhos com alegria. Rápido como um raio, ele arrancou uma faca do cinto de Gancho e estava prestes a enfiá-la no pirata quando viu que estava mais para cima da pedra que seu inimigo. E isso não teria sido justo. Assim, Peter ofereceu a mão a Gancho para ajudá-lo a subir.

Foi aí que Gancho o feriu.

Peter ficou atordoado não por causa da dor, mas por causa da injustiça. Aquilo o deixou completamente indefeso. Ele só conseguiu olhar para Gancho, horrorizado. Toda criança se sente assim da primeira vez que é tratada com injustiça. Quando a criança se aproxima de você, querendo se entregar a você, a única coisa que ela pensa que merece é um tratamento justo. Depois que você for injusto com ela, ela vai voltar a amá-lo, mas nunca mais vai voltar a ser a mesma criança. Ninguém nunca se recupera da primeira injustiça; ninguém, exceto Peter. Ele sempre sofria injustiças, mas sempre as esquecia. Acho que essa era a verdadeira diferença entre ele e todos os outros.

Por isso, quando Peter sofreu essa injustiça, foi como se fosse a primeira vez. E ele apenas olhou para Gancho, sem conseguir reagir. A mão de ferro enganchou nele duas vezes.

Alguns minutos depois, os meninos viram Gancho na água, nadando no maior desespero na direção do navio; seu rosto pestilento não mostrava nenhuma alegria agora, só a palidez do terror, pois o crocodilo estava logo atrás dele. Normalmente os meninos teriam ido nadar ao lado de Gancho, rindo dele; mas nesse momento sentiam-se inquietos, pois haviam perdido de vista tanto Peter quanto Wendy e estavam esquadrinhando a lagoa e chamando pelos dois. Encontraram o bote e foram para casa nele, gritando “Peter, Wendy” no caminho. Mas a única resposta foi a risada zombeteira das sereias.

– Eles devem estar nadando ou voando para casa – concluíram os meninos.

Eles não estavam muito ansiosos, de tanta fé que tinham em Peter. E deram uma risada típica dos meninos, pois já passara da hora de ir para a cama; e era tudo culpa da mamãe Wendy!

Quando suas vozes cessaram, um silêncio recaiu sobre a lagoa, e então ouviu-se, num fio de voz:

– Socorro! Socorro!

Duas pequenas figuras estavam batendo contra a pedra. A menina estava desmaiada, e o menino a segurava. Com suas últimas forças, Peter puxou-a para cima da pedra e se deitou ao lado dela. Ele também perdeu a consciência, mas, antes de desmaiar, viu que a água estava subindo. Ele sabia que logo se afogariam, porém não conseguiu fazer mais nada.

Quando eles estavam deitados lado a lado, uma sereia agarrou os pés de Wendy e começou a puxá-la devagar para dentro d’água. Peter, sentindo que Wendy estava escorregando para longe dele, acordou com um sobressalto, e mal teve tempo de puxá-la de volta. Mas teve que contar a verdade a ela.

– A gente está na pedra, Wendy – disse ele –, mas ela está ficando cada vez menor. Logo, logo, a água vai cobrir tudo.

Mesmo assim, Wendy não compreendeu.

– Temos que ir embora, então – disse ela, num tom quase alegre.

– Temos – respondeu Peter com a voz bem fraquinha.

– A gente vai nadar ou voar, Peter?

Ele tinha que contar.

– Você acha que consegue nadar ou voar até a ilha sem a minha ajuda, Wendy?

Ela teve que admitir que estava cansada demais.

Peter soltou um gemido.

– O que foi? – perguntou Wendy, ficando imediatamente preocupada com ele.

– Não vou poder ajudar você, Wendy. O Gancho me feriu. Eu não consigo nem voar, nem nadar.

– Quer dizer que nós dois vamos nos afogar?

– Olhe como a água está subindo.

Eles cobriram os olhos com as mãos para não ver. Pensaram que logo deixariam de existir. De repente, algo roçou contra a pele de Peter com a leveza de um beijo e continuou ali, como se perguntasse timidamente se podia ser de alguma serventia.

Image

Seu sorriso dizia: “Morrer vai ser uma grande aventura.”

Era a rabiola de uma pipa que Miguel construíra alguns dias antes. Ela havia escapado da mão dele e voado para longe.

– É a pipa do Miguel – disse Peter sem interesse.

Mas no segundo seguinte ele já tinha agarrado a rabiola e estava puxando a pipa para mais perto.

– Ela tirou o Miguel do chão! – exclamou ele. – Deve conseguir carregar você!

– Nós dois!

– A pipa não carrega duas pessoas. O Miguel e o Caracol tentaram.

– Vamos tirar na sorte, então – disse Wendy, corajosa.

– Mas você é uma dama! Nunca!

Peter já estava amarrando a rabiola em volta de Wendy. Ela se agarrou a ele; recusou-se a ir sem ele. Mas, dizendo “Tchau, Wendy”, ele a empurrou da pedra, e em poucos minutos ela já estava fora do campo de visão dele. Peter estava sozinho na lagoa.

A pedra já havia ficado muito pequena; logo, estaria submersa. Raios pálidos de luz se espalharam devagar pela água; e, após alguns minutos, ouviu-se o som que é ao mesmo tempo o som mais melodioso e mais melancólico do mundo: as sereias cantando para a lua.

Peter não era bem como os outros meninos; mas ele finalmente sentiu medo. Um calafrio lhe percorreu o corpo, como o arrepio que passa pelo mar. Mas, no mar, um arrepio se segue a outro até que haja centenas deles, enquanto Peter sentiu só um. No segundo seguinte ele estava de pé em cima da pedra, com aquele sorriso no rosto e um tambor batendo dentro do peito. Seu sorriso dizia: “Morrer vai ser uma grande aventura.”42