Introdução

“A morte não exige dia reservado só para ela”,1 escreveu Samuel Beckett com sua amarga e intricada ironia, sugerindo tanto que a morte não precisa de hora marcada como que podemos muito bem morrer em meio a nossos trabalhos. Mas às vezes a morte espera por nós, e é possível tomar consciência dessa espera. Nesse momento, o teor do tempo se altera, como a luz do dia se altera, pois o presente é ensombrecido por outras estações da vida: o passado revivido ou fugidio, o futuro imensurável, o tempo inimaginável mais além do tempo. Com esses momentos em mente, podemos nos aproximar das condições que determinam a noção de tempo tardio que é o assunto deste livro.

Vale a pena nos determos sobre os sentidos sutilmente cambiantes do termo “tardio”, que vai do atraso para um compromisso aos ciclos da natureza, e destes à vida extinta. Provavelmente, na maior parte dos casos, “tardio” designa tarde demais, mais tarde que o devido, impontual. Mas “tarde da noite”, “florações tardias” e “outono tardio” são, todos eles, perfeitamente pontuais — e não precisam ser medidos contra qualquer outro relógio ou calendário. Os mortos por certo estão além do tempo, mas que espécie de anseio temporal irrealizável estamos exprimindo ao dizê-los “tardios”?* A noção de tardio não nomeia um modo unívoco de referência temporal, mas jamais se livra do encalço do tempo. É sempre um modo de recordarmos o tempo, seja este perdido, exato ou passado.

“Conversão do tempo em espaço”, escreveu Edward Said em uma de suas notas para um famoso curso que costumava oferecer em Columbia, “Últimas obras e estilo tardio”. “Transformação da sequência cronológica em paisagem, de modo que se torne possível ver, vivenciar, capturar e trabalhar o tempo... Adorno: paisagem fraturada como objetivo” (os itálicos são de Said). A nota prossegue e menciona várias passagens de Proust e três poemas de Hopkins. Todas as passagens de Proust pertencem ao final de Em busca do tempo perdido, quando o narrador está ao mesmo tempo encantado com suas novas intuições relativas à recuperação do passado e angustiado com a brevidade dos anos ou meses que provavelmente lhe restam; ele vê a pessoa como uma encruzilhada, o tempo como um corpo, “os personagens como uma duração”, conforme a nota de Said. Quanto a Hopkins, Said se detém nas paisagens crepusculares que o poeta tanto amava, no “mundo invernal” que “provê [...] com alguns suspiros, a explicação de quem somos”2 e, se não me engano, na terrível imagem do sono e da morte como nossa única rota de fuga dos precipícios e borrascas da mente:

Oh, a mente, a mente tem montanhas; encostas

Hórridas, não sondadas. Quem não pendeu de um dos

Abismos ri-se deles. Nem há quem suporte

Muito a altura de tal mundo ou o fundo. Este mundo!

Roja, verme, ao conforto que serve no vórtice:

Que morre o dia em sono e susta a morte a tudo.3

Todos esses são exemplos (para dizê-lo nos termos do programa do curso “Últimas obras e estilo tardio”) de “artistas [...] cuja obra exprime essa condição tardia nas singularidades do estilo” — e é claro que tais “singularidades” vão além da conversão do tempo em espaço. A “paisagem fraturada” de Adorno é apenas um dos modos pelos quais as obras tardias se batem contra o tempo e logram representar a morte, como diz o filósofo, “de modo refratado, como alegoria”. Esse ângulo de refração é crucial também para Said. O “estilo tardio” — o termo foi cunhado por Adorno — não é resultado direto do envelhecimento ou da morte, pois o estilo não é uma criatura mortal e as obras de arte não têm nenhuma vida orgânica a perder. Contudo, a morte iminente do artista não poderia deixar de penetrar em suas obras, e dos modos mais diversos — em particular, segundo Said, como “anacronismo e anomalia”. Said constituíra um cânone de tais artistas, incluindo os já citados, e quase todos comparecem de alguma maneira neste livro: o próprio Adorno, Thomas Mann, Richard Strauss, Jean Genet, Giuseppe Tomasi di Lampedusa, K. P. Kaváfis. Há outros mais, é claro, que aparecem em artigos que Said publicou no fim da vida: Eurípides, Britten e mesmo Mozart, pelo menos numa ópera em que um súbito tom tardio se distingue da maturidade e produz, como lemos neste livro, “uma força expressiva e irônica que vai muito além das palavras e da situação dramática”.

Esse tipo de obra tardia é muito diferente, argumentava Said, da serenidade sobrenatural que encontramos nas últimas obras de Sófocles e Shakespeare. Édipo em Colono, A tempestade e O conto de inverno são perfeitamente tardios a sua maneira — mas por terem posto fim à luta contra o tempo. “Qualquer um de nós”, escreve Said no primeiro capítulo deste livro, “pode citar casos de obras tardias que coroam uma vida de trabalho estético. Rembrandt e Matisse, Bach e Wagner. Mas o que dizer de obras tardias que não são feitas de harmonia e resolução, mas de intransigência, dificuldade e contradição em aberto?” E o que dizer de um artista como Glenn Gould, que criou sua própria versão do tardio ao se retirar do mundo dos recitais e concertos para se tornar póstumo, por assim dizer, em meio à mais intensa atividade?

Said deve muito a Adorno, como ele mesmo reconhece repetidas vezes. Era “o único seguidor fiel de Adorno”, como disse numa de suas últimas entrevistas (a mesma entrevista, concedida ao Ha’aretz Magazine, de Tel-Aviv, em que afirmou ser “o último intelectual judeu”).4 Era uma piada, mas a piada dizia respeito à possibilidade de seguir Adorno (ou à suposta fidelidade com que Said o seguia) e não à importância do exemplo. Fosse como fosse, Said diferia de seu mestre melancólico em pontos cruciais. Não julgava que sua própria versão da condição tardia fosse a única a importar e pensava que Adorno não captara a “dimensão trágica” dessa espécie de dificuldade.5 Pensava ainda que a “sociedade administrada” de Adorno, sendo sempre uma ameaça, não era uma realidade ubíqua. “O prazer e a privacidade persistem”, escreveu Said em Elaborações musicais; e, numa frase memorável a propósito de Brahms, ele evocou “a música de sua música” — a música íntima que persiste quando já apontou para tudo o que há de político e econômico em qualquer arte mundana.6

O tardio, para Said, é “uma forma de exílio”, como se lê neste livro, mas mesmo os exilados vivem em algum lugar; e o “estilo tardio está no presente — ao mesmo tempo que estranhamente apartado deste”. “Para Adorno”, comenta Said, “a noção [de tardio] tem a ver com uma sobrevivência além do aceitável e do normal. Ademais, o tardio não pode ir além de si mesmo, não pode se transcender ou elevar, mas apenas aprofundar-se.” É precisamente isso que nos mantém presos ao tempo mesmo quando parecemos estar fora dele; por isso também, além do lado trágico, o tardio tem um lado jocoso. Um exemplo: o estilo tardio de Richard Strauss que se vê e ouve em O cavaleiro da rosa e Ariadne em Naxos é por certo “perturbador”, mas o é na medida em que o presente brutal é substituído resolutamente por um outro tempo. “Esse é um mundo verdadeiramente pré-histórico em sua liberdade em relação às pressões e preocupações cotidianas, em sua ilimitada aptidão para o prazer, a diversão e o luxo — uma e outra igualmente características do estilo tardio do século xx.”

Faz parte da generosidade da imaginação crítica de Said que ele veja a “diversão” como forma de resistência. Ele só pode fazê- -lo porque a diversão, como o prazer e a privacidade, não exige a conciliação com um status quo ou com um regime dominante — e é essa versão da liberdade que une todos os exemplos de criação tardia reunidos neste livro. O tom dos casos individuais pode ser trágico, cômico, irônico, paródico e muito mais, mas todos os artistas tardios, no sentido que Said dá ao termo, são avessos à conciliação. Adorno escrevera sobre a recusa de Beethoven a “conciliar numa imagem única os elementos não conciliados”,7 e é essa nota que ouvimos repetidamente nas observações de Said sobre a música e o mundo. “O que me parece valioso em Adorno é essa noção de tensão, essa ênfase e essa dramatização no que eu chamo de inconciliabilidades.” (ESR, p. 437) Said chama de inconciliabilidades aquilo que outros chamariam de planos de ação, mas ao contrário de Adorno ele não se desespera e não aceita impasses culturais ou políticos. É bem verdade que sonhos de conciliação, na música assim como no Oriente Médio, muitas vezes sinalizam um fracasso em pensar dificuldades e diferenças. Mas isso não significa que tal tipo de pensamento seja impossível, e talvez a conciliação não seja exatamente aquilo de que precisamos. Said insistia, como bem lembrou Stathis Gourgouris num ensaio recente, que “toda crítica é postulada e praticada na suposição de que terá algum futuro”. “O estilo tardio”, Gourgouris prossegue, “é precisamente aquela forma que desafia as debilidades do presente e os paliativos do passado de modo a buscar esse futuro, de modo a postulá-lo e expô-lo, mesmo que apenas em palavras e imagens, em gestos e representações que agora nos parecem intrigantes, inoportunas ou impossíveis.”8

Há indícios de ideias sobre o estilo tardio, bem como há uma citação do ensaio de Adorno sobre Beethoven (1938), em Elaborações musicais, as Conferências Wellek pronunciadas em Irvine em 1989 e publicadas em 1990, e Said parece ter começado a trabalhar nas conferências para Columbia pouco depois disso. Quando leu suas três Conferências Northcliffe em Londres, em 1993, algumas ideias e exemplos centrais já estavam bem desenvolvidos, e essas conferências formam agora a base dos capítulos 1, 2 e 5 deste livro. Naquele ínterim, duas coisas haviam acontecido. A mãe de Said morrera antes da publicação de Elaborações musicais. No livro, ele conta que os dois “tinham compartilhado muitas experiências musicais” e acrescenta: “Sinto mais pesar do que consigo exprimir por ela não ter vivido para ler e comentar este livro, sejam quais forem os defeitos dele” (ME, p. xi). Para quem quer que conheça a família, essas palavras são especialmente tocantes, pois a sra. Said era uma mulher muito articulada e de mente muito viva. Lembro que, sempre que vinha passar algum tempo em Nova York — vivemos no mesmo prédio por muito tempo —, mãe e filho, ambos madrugadores, sempre pareciam ter tido várias conversas animadas antes que os demais acordassem. E então, em setembro de 1991, ao fazer exames de rotina, Said descobriu que tinha leucemia. Esses dois acontecimentos, como ele mesmo disse várias vezes, levaram-no a escrever Fora do lugar, o livro de memórias que ele iniciou em 1994 e publicou em 1999. “Acho que nunca tive medo consciente de morrer”, escreveu ele, “mas tomei consciência da falta de tempo.” (ESR, p. 419)

Tinha muito a fazer: lecionar, viajar, dar conferências, trabalhar em suas memórias e escrever os ensaios mais tarde recolhidos em Reflexões do exílio (edição original 1998), The end of the peace process (2000), Power, politics, and culture (2001), Paralelos e paradoxos (edição original 2002), Humanismo e crítica democrática (edição original 2004) e From Oslo to Iraq and the road map (2004). Também parecia estar o tempo todo ao telefone, e eu às vezes o imaginava como uma versão do escritor que protagoniza um conto de Henry James, “A vida privada”, um sujeito que passa tanto tempo em sociedade que não poderia ter tempo para produzir os livros que sabidamente está produzindo. Assim, a postergação do livro projetado sobre o estilo tardio, sobre o qual Said falava com frequência, não precisa de fato de uma explicação.

E, contudo, não acredito que ele quisesse terminar este livro. Ou melhor, queria terminá-lo, mas estava à espera de um tempo que talvez jamais viria. Haveria um tempo certo para escrever este livro sobre o que está fora de seu tempo, mas esse tempo certo era sempre um “agora ainda não”. Concluir o trabalho seria próximo demais de escrever o fim de uma vida, de concluir o longo capítulo sobre a formação do eu que se iniciara com Beginnings ou, antes mesmo, com o livro sobre Conrad — e o decisivo a respeito dos inícios é que, ao contrário das origens, podem ser escolhidos. Volto em pensamentos ao modo como Said evoca a obra tardia de Strauss como algo de “elaboração radical, bela”, como uma música “cujos prazeres e descobertas dependem de um gesto de entrega” (ME, p. 105). Essas palavras foram escritas antes do diagnóstico de 1991, mas de todo modo o interesse de Said pelo estilo tardio ou por qualquer outra coisa nunca foi meramente autobiográfico. A ideia da própria morte aprofundou seu apego à questão do estilo tardio, mas não foi ela que o instigou. Creio, porém, que essa ideia se tornou parte da longa e incompleta vida do livro projetado. Uma coisa é escrever sobre entrega, outra é realizá-la. Investigações sobre a formação do eu podem prosseguir até o final; a aniquilação do eu é coisa bem diversa, e o estilo tardio tem a ver com isso.

Quero dizer que o próprio Said não desenvolveu um estilo tardio? Ele certamente era afeito à política e à moralidade que associava à ideia de tardio, era devoto da verdade que reside no irreconciliado e, nesse sentido, sua própria obra se reúne aos ensaios, poemas, romances, filmes e óperas sobre os quais escreve. Mas o tardio — assim como o maduro — não é tudo, e Said encontrava a mesma visão política, a mesma moralidade, as mesmas paixões em outros lugares e pessoas — por exemplo, em suas próprias visões políticas e morais de anos antes. O tardio “elucida e dramatiza” (ME, p. 21) e torna difícil seguirmos adiante com nossas próprias ilusões. E podemos chegar a tanto sem termos antes que pensar na morte — e para Said é justamente essa a tarefa do intelectual. Dessa perspectiva, o Glenn Gould que tentava questionar e refazer as relações entre a música e o mundo socializado da vida musical é para Said o modelo rematado do intelectual. Tenho a impressão de que, a despeito do profundo interesse pelo tardio e da consciência do tempo exíguo que lhe restava, Said não se deixava atrair pela ideia de um eu tardio em vias de dissolução. Não o notamos em suas últimas obras como uma “subjetividade lamentativa”, expressão que usou neste livro para designar a imagem adorniana de Beethoven. Said queria continuar às voltas com a formação do eu, e se quisermos dividir sua vida em período inicial, intermediário e tardio, o fato é que ele ainda estava no meio do caminho quando morreu, aos 67 anos, em dezembro de 2003, doze anos depois do primeiro diagnóstico de leucemia. Um pouco cedo demais — imagino que ele diria — para se considerar tardio.

O livro sobre o estilo tardio permaneceu inacabado, mas os materiais relativos a ele eram muito ricos. Podemos apenas lamentar pelo que poderia ter sido e fazer o esforço de imaginar o que Said teria escrito se tivesse escrito mais, mas não há razão para sermos ingratos com o que temos. Nas páginas que seguem, reuni conjuntos diversos de materiais, porém, por mais que tenha cortado e montado, não senti necessidade de introduzir resumos ou interligar passagens. Todas as palavras deste livro foram escritas por Said. Conforme mencionei acima, as Conferências Northcliffe formam a base dos capítulos 1, 2 e 5, acompanhadas de uma exposição panorâmica publicada na London Review of Books. Este último artigo continha algumas ideias sobre Kaváfis, mas deixava de lado o filme de Visconti, O leopardo, bem como boa parte do material sobre Adorno. Essas partes foram devolvidas a seus lugares de origem. No primeiro capítulo, usei ainda a introdução a uma palestra que Said deu em 2000 a um grupo de médicos (inclusive o seu próprio) em Nova York. Os capítulos 3, 4 e 6, sobre Mozart, Genet e Gould, respectivamente, foram escritos como ensaios soltos. O capítulo 7 é uma montagem de quatro elementos distintos: algumas observações tiradas de uma resenha do livro de Maynard Solomon sobre Beethoven; um ensaio sobre montagens de Eurípides; o material sobre Kaváfis do artigo para a London Review; e um ensaio sobre Morte em Veneza de Britten.

Esta sequência nos leva de volta a Adorno e à ideia do caráter catastrófico da obra de arte, e esse me pareceu o lugar certo para parar. Mas parar não é o mesmo que pôr fim, como devemos recordar aqui, não apenas porque Said não concluiu este livro, mas também porque, para ele, o estilo tinha a ver com o que o estilo não sabe dizer. “Sempre me interessei pelo que fica de fora”, disse ele numa entrevista. “Tenho interesse pela tensão entre o que se representa e o que não se representa, entre o articulado e o silenciado.” (ESR, p. 424) Nessa visão, o próprio silêncio é um dos aspectos do estilo, distinguindo-se de “não dizer nada”, como Said escreveu numa nota inédita. “Somos um povo de mensagens e sinais”, diz ele sobre os palestinos, “de alusões e expressões indiretas.”9 Aquilo que, em música, ele chamava de “reticência”, de “silêncio alusivo” (ME, p. 16), nos propicia os prazeres mais profundos, bem como um aceno de esperança em meio à desesperança política ou de outra ordem qualquer, um aceno àquele “precário reino do exílio” em que “pela primeira vez compreendemos a dificuldade do que não se deixa compreender e nos aventuramos a tentar assim mesmo”.10

Michael Wood
Princeton, Nova Jersey, abril de 2005

* Em inglês, late designa, além dos significados listados neste parágrafo, também a pessoa “falecida” ou “recém-falecida”. (N. T.)