7. Visões do estilo tardio

i.

Todo estilo pressupõe o vínculo do artista com sua época, período histórico, sociedade e predecessores; a obra estética, a despeito de sua singularidade irredutível, sempre participa — ou, paradoxalmente, não participa — da era em que foi produzida e apresentada. Não se trata, aqui, de mera sincronia política ou sociológica, mas de uma questão, bem mais interessante, de estilo formal ou retórico. Assim, Mozart pratica em sua música um estilo mais intimamente ligado ao mundo cortesão e eclesiástico do que a música de Beethoven ou Wagner, que provêm de um ambiente secular votado ao culto romântico da criatividade individual e andam às voltas tanto com patronos caprichosos quanto com o novo caráter da profissão de compositor, que agora não é mais um criado (à maneira de Bach e Mozart), mas um gênio criativo e exigente que, por orgulho ou talvez por narcisismo, toma distância de sua época. Em termos comparativos, Mozart não exibia nenhum traço de desajuste social, ao contrário de Beethoven e Wagner, pensadores originais que desafiaram as normas artísticas e sociais de seu tempo. Ou seja, além da conexão facilmente perceptível entre, digamos, um artista realista como Balzac e seu meio social, há também uma forma de relação antitética, mais difícil de discernir e de formular quando se trata do músico que exerce uma arte nem mimética, nem teatral. As obras tardias de Beethoven transpiram um ímpeto e uma instabilidade pessoal completamente diversos do que se nota em obras anteriores, como a sinfonia Eroica e os cinco concertos para piano e orquestra, que se dirigem ao mundo com um gregarismo confiante. As obras-primas da década final de Beethoven são tardias por estarem fora de seu tempo: um passo à frente, em termos de ousadia e novidade surpreendentes, um passo atrás, por descreverem um retorno a reinos esquecidos ou abandonados pelo avanço inexorável da história.

Mesmo o modernismo literário pode ser visto como fenômeno de estilo tardio, uma vez que artistas como Joyce ou Eliot parecem inteiramente fora de seu tempo, recuando para colher inspiração no mito e nas formas antigas, como o poema épico e o ritual religioso. Aos poucos, o modernismo começa a se mostrar menos como movimento do novo e mais como movimento do velho e do moribundo, uma espécie de “Velhice travestida de Juventude”, para citar Hardy em Judas, o obscuro. Pois o Pequeno Pai do Tempo, filho do protagonista do romance, de fato poderia servir de alegoria do modernismo, com seus temores de declínio acelerado e seus gestos compensatórios de recapitulação e citação. Mas, para Hardy, o menino (ou, aliás, o tordo sombrio do poema “The darkling thrush”) está longe de ser um símbolo de redenção, como se vê, com muita clareza, na primeira aparição de o Pequeno Pai do Tempo a bordo do trem que o leva ao encontro de Judas e Sue:

Ele era a Velhice travestida de Juventude, e de modo tão tosco que o eu verdadeiro se mostrava pelas frestas. Uma vaga profunda, vinda de trevas antigas, volta e meia parecia tomar a criança ainda em seus primeiros anos; então seu rosto se voltava para algum grande Atlântico do Tempo e parecia não se importar com o que via. Quando os demais viajantes fecharam os olhos, um depois do outro — e até mesmo o gatinho se aninhou no cesto, cansado de brincar em espaço tão restrito —, a visão seguiu inalterada. O menino parecia duplamente acordado, como uma Divindade cativa e diminuta, sentado com jeito passivo, observando os companheiros de viagem como se visse o conjunto de suas vidas e não apenas suas feições presentes.1

O pequeno Judas representa menos uma senescência prematura e mais uma montagem de começos e fins, uma junção implausível de velhice e juventude, cuja natureza divina — o termo tem aqui uma ressonância sinistra — consiste na capacidade de julgar a si e aos outros. Mais tarde, quando ele pronunciar uma sentença sobre si e sobre seus irmãozinhos, o resultado será um suicídio coletivo, o que sugere, a meu ver, que uma mistura tão escandalosa de extrema juventude e idade avançada não poderia sobreviver por muito tempo.

Mas há uma forma de senescência e sobrevivência concomitantes, e é sobretudo disso que venho tratando. Entre outras figuras, escritores como Lampedusa, o aristocrata siciliano, autor de um único romance retrospectivo que não interessou a nenhum editor, ou Konstantinos Kaváfis, o poeta grego de Alexandria que igualmente não publicou nada em vida, fazem pensar na estética rarefeita, quase preciosista, mas formidavelmente difícil, de espíritos que se recusam a toda vinculação com seu tempo, enquanto tecem uma obra de arte de considerável força. Em filosofia, Nietzsche é o grande protótipo de uma posição análoga, “extemporânea”. Termos como “tardio” ou “fora do tempo” parecem bem apropriados a tais figuras.

Num texto introdutório que escreveu para o livro de Rachel Bespaloff sobre a Ilíada, Hermann Broch discute o que ele chama “estilo de velhice” nos seguintes termos:

[Esse estilo] nem sempre é fruto dos anos; é um dom entre os outros dons do artista, que amadurece com o tempo, muitas vezes florescendo antes da estação, à sombra da morte, ou desenvolvendo-se por si só, muito antes que a velhice e a idade se aproximem: um novo nível de expressão, à maneira do velho Tiziano, descobrindo a luz penetrante que funde a carne e a alma humanas numa nova unidade; ou à maneira de Rembrandt e Goya, ambos no ápice da idade viril, descobrindo a superfície metafísica, subjacente ao que há de visível nos homens e nas coisas e contudo passível de ser pintada; ou à maneira da Arte da fuga que Bach ditou na velhice, sem pensar em nenhum instrumento específico, pois o que tinha de expressar estava aquém ou além da superfície audível da música.2

ii.

Eurípides é uma estranha combinação de estilo tardio — ou mesmo decadente — e conteúdo primitivista. Seus valores são mais fugidios que os do granítico Ésquilo, menos nitidamente antitéticos que os de Sófocles. Nietzsche caracterizou Eurípides como o autor que lançou mão do mito de Dioniso e Apolo — o fundamento da forma trágica — e o resgatou pela última vez dos “olhos severos e racionais de um dogmatismo ortodoxo” para convertê-lo em tragédia. “O que pretendias tu, sacrílego Eurípides, quando tentaste obrigar o moribundo a prestar-te mais uma vez serviço? Ele morreu sob tuas mãos brutais: e agora precisas de um mito arremedado, mascarado, que só saiba engalanar-se com o velho fausto.” Em Eurípides, a tragédia antiga sobrevive apenas como “um monumento a seu penoso e violento passamento”.3

Mas, de um modo peculiar, as derradeiras tragédias de Eurípides — As bacantes e Ifigênia em Áulis — são obras de retorno consciente a um ponto de partida mal e mal recordado, a indícios incipientes mas já profundamente perturbadores daquilo que Yeats chamou “o mistério incontrolável no solo bestial”.4 As bacantes tratam do advento de Dioniso, outsider asiático no monte Olimpo, deus de sexualidade incerta e sempre ameaçadora que será a desgraça de Penteu, o jovem e cético rei de Tebas que sucede a Cadmo e se recusa a reconhecer a divindade de Dioniso. O clímax, narrado numa fala extraordinária do Segundo Mensageiro, se dá quando Agave, mãe de Penteu, convertida ao culto dionisíaco, mata e despedaça o próprio filho durante um transe extático. Convicta de que acaba de esquartejar um leão, ela então entra no palco à frente de um cortejo de bacantes, trazendo a cabeça do próprio filho entre as mãos como se fosse um troféu. O palácio de Penteu arde em chamas, e toda Tebas se transforma. Dioniso triunfa, mas a um custo difícil de conceber.

Em Ifigênia, Eurípides situa a peça logo antes da guerra de Troia, quando os exércitos gregos, comandados pelos filhos de Atreu, os irmãos Agamêmnon e Menelau — o primeiro, marido de Clitemnestra e pai de Ifigênia, Electra e Orestes, o segundo, marido de Helena —, estão a ponto de embarcar para a Ásia, mas são detidos por uma calmaria sem fim no porto de Áulis. Calcas, o profeta, informou a Agamêmnon que suas forças só poderão zarpar se a filha for sacrificada à deusa de Áulis. Obcecado pela campanha militar, Agamêmnon atrai a mulher e os filhos de Micenas a Áulis, supostamente para que a jovem Ifigênia se case com Aquiles. Clitemnestra descobre que a filha será morta e, como era de se esperar, resiste aos planos de Agamêmnon; ao expor esse drama entre mãe, filha e pai, Eurípides planta à vista de todos as sementes do ressentimento e da vingança que, mais tarde, levarão Clitemnestra não apenas ao adultério, mas também ao assassinato de Agamêmnon — isto é, aos episódios trágicos que formam a matéria da Oréstia, de Ésquilo. Ifigênia em Áulis termina com o autossacrifício voluntário, quase devoto, da moça às ambições paternas. Ela diz ao coro, enquanto se separa da mãe chorosa:

Formai em frente ao templo e ao altar as danças
em honra de Ártemis, da sacrossanta Ártemis,
a fim de que meu sangue corra e de que eu,
sendo sacrificada — meu destino é este —,
atenda à determinação dos vaticínios.
Ah! Venerável, mais que venerável mãe!
Aqui desejo oferecer-te minhas lágrimas,
pois não permite o ritual que eu as derrame
perto do altar!
5

Apesar do entrecho terrível e aterrorizante, essas peças tornam visível o coração, para usar a expressão de Marianne MacDonald em seu livro sobre as versões cinematográficas de Eurípides. É bem verdade que os contornos do mito primevo são tão discerníveis aqui como em Sófocles ou Ésquilo, mas Eurípides, mais que os dois predecessores, é um psicólogo das situações, um revelador de ardis e manipulações, um etnógrafo da vitimização e do autoengano. É por isso que, ao fim de As bacantes ou Ifigênia em Áulis, não temos a mesma sensação de fechamento e conciliação de tragédias anteriores. Talvez em parte por sua condição tardia, Eurípides usa suas peças para repetir, reinterpretar, resgatar, revisar um material já conhecido; mas o teor mais característico da tragédia de Eurípides é seu caráter de jogo, se por jogo entendermos o prolongamento do esforço, os gestos supérfluos e quase puramente formais de que se vale para amplificar, estender, embelezar e ilustrar a ação trágica. Sentimos em Eurípides tanto uma psicologia vital moderna como um deleite quase abstrato em configurações de personagens, situações e tropos.

Nada disso torna sua obra menos premente e perturbadora, pelo contrário. Quando, depois de ter devastado Tebas e a linhagem de Cadmo, Dioniso se revela, suas palavras adquirem uma força medonha, como se ele estivesse perfeitamente disposto a continuar brincando, assediando e destruindo os mortais que o desdenharam (sem contudo lhe causar dano grave). Eurípides é tanto o poeta desse sadismo quanto o melodista da vitimização de Ifigênia e advogado da moça contra a malícia assassina e a insistência machista de Agamêmnon. Quando disse que ele resgatara os mitos antigos apenas para destruí-los, Nietzsche não se referia apenas à ousadia com que Eurípides humanizara o que era distante e não humano, mas também à atribuição de uma lógica humana — uma certa estrutura vital — aos deuses e heróis, que de outro modo teriam permanecido fora do tempo e de todo lugar.

A teatralidade e a música são os elementos da tragédia de Eurípides que mais atraem os diretores contemporâneos. A versão de Andrzej Wajda para a Antígona de Sófocles (1989) foi concebida como comentário político da transformação da Polônia com o Solidariedade. Eurípides é refratário a tais paralelismos, por veementes que sejam; suas últimas obras expõem a paixão e a astúcia como variações musicais uma da outra. Para sua ousadíssima versão de Os átridas, a diretora francesa Ariane Mnouchkine usou Ifigênia como prólogo a Oréstia de Ésquilo. O Théâtre du Soleil, instalado numa espécie de barracão comprido e estreito nos arredores de Paris, foi convertido numa arena retangular e forçado a fazer as vezes de uma Bayreuth em que o ritual, a música e uma atuação estilizada, estranhamente arrebatadora, se combinavam para representar a queda da casa de Atreu, condenada pela genealogia e pelo temperamento a cometer atos terríveis.

O centro da concepção de Mnouchkine era o coro, dezoito ou vinte dançarinos em trajes idênticos para homens e mulheres — túnicas, joelheiras e uma maquiagem fantástica em preto, vermelho e branco. O cenário sugeria um Oriente Médio antropológico, quase folclórico; o coro dançava em fileiras que pareciam ter se desgarrado da ordem circular de um dabke, muito embora os dançarinos de Mnouchkine fossem bem mais atléticos e impetuosos que os de dabke. Seus atores e atrizes eram liristas em êxtase, mas mesmo sua composição tremenda de gesto e linguagem ficava à sombra da extraordinária Catherine Schaub, que liderava o coro. Felina, sorrateira, sorridente e furtiva, ela convocava, afligia e desafiava o coro e os atores com recitações demoníacas, ganidos e gritos de angústia. Era a única do coro a falar. E, no fim, mesmo Ifigênia sacrificada e sua mãe medonha dançavam ao ritmo insistente de um conjunto de percussão (gongos, tambores, pratos, triângulos, xilofones) pontuado, cá e lá, por uma trompa e, no último momento, por cães que ladravam.

Em contraste com a Ifigênia de Mnouchkine, concebida como um balé intercalado de intervenções estróficas, Ingmar Bergman converteu As bacantes numa ópera para o Teatro Real de Ópera de Estocolmo. A música era assinada por Daniel Börtz, um compositor serialista de renome na Suécia. Dioniso era interpretado por uma mulher, cuja beleza e força atlética sublinhavam o aspecto polimorfo e dinâmico do deus. À maneira de Mnouchkine, Bergman se engajou a fundo na produção: cada uma das bacantes do coro, por exemplo, recebeu um nome, uma biografia e um caráter singular, que levavam o coro do anonimato coletivo ao perfil personalizado. O conjunto lírico se rompia apenas uma vez, quando Peter Stormare, como Segundo Mensageiro, narrava o esquartejamento de Penteu em versos recitados, e não cantados. Mais do que ritualizar, a versão de Bergman familiarizava a obra- -prima de Eurípides e exacerbava o horror da destruição e do pesar, sugerindo que cada um dos personagens no palco passara sozinho pela experiência dionisíaca. Como em seus filmes, o impessoal e o heroico se transfiguravam em sentido descendente, isto é, em vidas corriqueiras e acontecimentos cotidianos.

Essas duas novas versões de Eurípides não o aproximavam do espectador, por mais que fossem encenadas em línguas demóticas modernas (francês e sueco). Nos dois casos, sentia-se que o diretor tivera a intenção de criar um efeito de estranhamento, como se nos advertisse a não chegar perto demais ou não nos identificar prontamente com personagens em que é patente a devastação pelas forças e índoles mais obscuras. Com isso, ganhava ainda mais realce o que já parecia estranho e fora do lugar no ano de 410 a. C., quando as duas peças foram encenadas pela primeira vez. Eurípides dramatizou a interseção de mito e realidade, cada qual retrucando e desafiando o outro. O resultado é uma artificialidade extraordinária, um espetáculo que se expõe como tal, oferecendo-se de modo inconfundível à contemplação, à audição atônita e inquieta.

iii.

O poeta grego-alexandrino Konstantinos Kaváfis morreu em 1933. Queria que 154 de seus poemas fossem preservados, todos muito curtos pelos padrões da poesia do século xx e cada qual uma tentativa de esclarecer e dramatizar, no estilo dos monólogos dramáticos de Browning, um momento ou episódio do passado — pessoal ou helênico. Uma de suas fontes mais frequentes é Plutarco, mas Kaváfis também recorre a Shakespeare e sente fascínio por Juliano Apóstata. A cidade de Alexandria assombra sua poesia do começo ao fim. Uma de suas primeiras obras é “A cidade”, um diálogo entre dois amigos, o primeiro dos quais (talvez um antigo governador) lamenta seu destino de prisioneiro na cidade portuária sem nome, mas claramente egípcia:

Até quando vai minha alma ficar nesta inação?

Onde quer que eu olhe, para onde quer que eu volte a vista,

a negra ruína de minha vida é o que se avista,

eu que anos a fio cuidei de a estragar e dissipar.

O segundo amigo retruca num tom frio e peremptório que dá ideia do diapasão estreito e da imparcialidade estoica do estilo kavafiano:

Não acharás novas terras, tampouco novo mar.
A cidade há de seguir-te. As ruas por onde andares
serão as mesmas. Os mesmos os bairros, os andares
das casas onde irão encanecer os teus cabelos.
A esta cidade sempre chegarás. Os teus anelos
são vãos, de para outra encontrar um barco ou um caminho.
A vida, pois, que dissipaste aqui, neste cantinho
do mundo, no mundo inteiro é que a foste dissipar.
6

Seu interlocutor não foi apenas capturado pela cidade, mas também a ação reiterativa a que seu destino o condena.

Kaváfis considerava “A cidade”, ao lado de “A satrapia”, como marco de transição para sua poesia madura. Em “A satrapia”, o orador se dirige a um homem que cogita abandonar Alexandria para conseguir um novo posto nas províncias submetidas ao rei Artaxerxes. Em contraste com as esperanças de sucesso, ele recorda ao fugitivo de Alexandria:

Por outras tua alma anseia, por outras chora:
as louvações do povo, o elogio dos sofistas,
os difíceis, os inestimáveis Bravos,
a Ágora, o Teatro, as verdes coroas de louros.
Isso Artaxerxes não te pode dar,
isso não irás achar na satrapia,
e, sem isso, o que há de ser da tua vida?
(cp, p. 29)

Fossem quais fossem suas limitações, Alexandria — que E. M. Forster certa vez descreveu como uma cidade “fundada sobre algodão, com alguma contribuição de ovos e cebolas, mal construída, mal planejada, mal drenada”7 — guardava a promessa sem a qual Kaváfis não podia viver, por mais que ela viesse a dar em traição e decepção.

A poesia de Kaváfis se dá em cenários persistentemente urbanos que conjugam o mítico e — com seu tom de desencanto melancólico, irônico e discreto — o prosaico. Mas basta lembrar que Kaváfis viveu no Egito do final do século xix e do início do xx para nos darmos conta de como sua obra passa inteiramente ao largo do mundo árabe moderno. Alexandria é ora o cenário anônimo de episódios da vida do poeta (bares, quartos de pensão, cafés, apartamentos em que ele vai ao encontro de seus amantes), ora retratada como outrora foi, cidade helênica sob impérios sucessivos e sobrepostos: Roma, Grécia, Bizâncio pré e pós-alexandrina, Egito ptolomaico e império árabe. Em parte inventados, em parte reais, os personagens dos poemas são entrevistos em momentos efêmeros — mas às vezes cruciais — de sua vida: o poema revela e consagra o momento antes que a história se feche sobre ele e o percamos de vista para sempre. O tempo do poema, que nunca se estende além de alguns instantes, corre por fora e em paralelo ao presente real, que Kaváfis trata apenas como passagem subjetiva para o passado. Sua língua, uma forma erudita de grego de que Kaváfis foi, de caso pensado, o último representante moderno, realça a parcimônia, o teor essencial e rarefeito da poesia. Seus poemas encenam uma forma de sobrevivência mínima entre o passado e o presente, e sua estética da não produção, expressa num verso prosaico, sem rima nem metáfora, sublinha a sensação de exílio permanente que está no cerne de sua obra.

Em Kaváfis, portanto, não há futuro — ou apenas como algo que de algum modo já aconteceu. Mais vale um mundo íntimo e estreito de expectativas limitadas que os projetos grandiosos, sempre traídos ou frustrados. Um de seus poemas mais densos, “Ítaca”, parece se dirigir a um Ulisses cuja volta ao lar e a Penélope é mapeada e sabida de antemão, de modo que todo o peso da Odisseia parece recair sobre cada verso. Isso, porém, não é obstáculo aos prazeres:

Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda espécie —

Mas todos esses prazeres são nomeados já na fala do orador. O trecho conclusivo do poema redescobre uma Ítaca que não é meta ou telos do herói que torna a casa, mas incitação à viagem:

Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te porias a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Assim, Ítaca tanto se realiza como se despe de promessas, incapaz de atrair ou mesmo de frustrar o herói, agora que o curso da viagem de volta se esgotou nos poucos versos do poema. Presa a essa trajetória delimitada, Ítaca adquire novo sentido, não mais como lugar único, mas como uma classe de experiências (Ítacas) que propiciam o entendimento humano:

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.
(cp, pp. 36-7)

A forma gramatical de “e agora sabes o que” leva o poema à lucidez final, ao mesmo tempo que deixa à sombra e à parte o orador que não age — como se o gesto poético essencial de Kaváfis consistisse em conferir sentido a outrem, privando-se ao mesmo tempo de qualquer proveito: uma forma de exílio que replica seu isolamento existencial numa Alexandria não mais helênica na qual, como em seu poema mais célebre, “À espera dos bárbaros”, esperar por um desastre iminente é uma experiência subitamente dissipada pela percepção de que “não há mais bárbaros”, donde o pesar e a autorrecriminação: “Ah! eles eram uma solução”. O leitor é admitido a um espaço poético ambíguo, mas cuidadosamente demarcado, onde pode apenas entreouvir e adivinhar o que de fato está se dando.

Um dos feitos de Kaváfis consiste em dar voz a extremos de vida tardia, decadência física e exílio em formas e situações e sobretudo num estilo de invenção notável e calma lapidar. Muitas vezes, mas nem sempre, a história de Alexandria lhe fornece as situações de partida, como no grande poema “O deus abandona Antônio”, baseado num episódio de Plutarco. O poeta se dirige ao herói romano que contempla o fim de sua carreira, o fracasso de seus planos e, agora, a perda da cidade: “diz adeus à Alexandria que ora perdes”. O poeta incita Antônio a pôr de lado os consolos dos sentidos, com seus pesares baratos e ilusões fáceis, e o convoca em tom severo a contemplar Alexandria como um espetáculo vivo e disciplinado em que ele pôde tomar parte, mas que agora, como tudo o que é temporal, parece se afastar dele:

como cumpre a quem mereceu uma cidade assim,
acerca-te com firmeza da janela
e ouve com emoção, mas ouve sem
as lamentações ou as súplicas dos fracos,
num derradeiro prazer, os sons que passam,
os raros instrumentos do místico tiaso,
e diz adeus à Alexandria que ora perdes.
(cp, p. 33)

E o que torna ainda mais pungente o efeito desses versos espantosos é o silêncio estrito, quem sabe terminal, que Kaváfis impõe a Antônio para que ele possa ouvir “os raros instrumentos” que passam: a convergência do silêncio absoluto e da música sedutora se dá numa dicção prosaica, quase sem cadência.

Forster descreveu Kaváfis como um sujeito “parado numa esquina qualquer do universo”8 capta o efeito estranho, absorto de seu estilo tardio por definição, com suas declarações escrupulosas e circunscritas, que o poeta parece evocar de uma obscuridade universal. Num dos melhores poemas do fim da vida, “Míris: Alexandria, 340 d. C.”, o orador comparece ao funeral de um belo companheiro de bebida, o cristão Míris, agora submetido a uma complicada cerimônia eclesiástica; de repente, ele teme que sua paixão por Míris possa traí-lo e foge da “odiosa casa”:

À pressa fugi da odiosa casa deles,
fugi antes que roubassem, antes que modificassem,
com o seu cristianismo, a lembrança de Míris.
(cp, p. 164)

Esta é a prerrogativa do estilo tardio: dar voz ao desencanto e ao prazer, sem ter que resolver a contradição entre um e outro. O que os mantém em tensão, como forças de sentido oposto e força igual, é a subjetividade madura do poeta, despida de hybris e de pompa, que não se envergonha nem de sua falibilidade, nem da modesta desenvoltura que adquiriu por obra do tempo e do exílio.

iv.

Donald Mitchell indaga — com toda justiça, penso eu — se A morte em Veneza, de Britten, pode ser entendida como obra derradeira num sentido mais que cronológico, apresentando provas convincentes de que Britten não pensava na ópera como sua palavra final e portanto sumária sobre o gênero. Mas Mitchell admite que, por força de seu tema, a ópera é uma obra tardia, um testamento. A saúde de Britten, frágil e mesmo precária; o estilo difícil e compacto da peça, que Mitchell compara ao gênero da “arte parabólica”; e a catástrofe de Gustav von Aschenbach: tudo isso converge na opção de Britten pela figura solitária do artista alemão (mas simbolicamente europeu), autor célebre e sóbrio, assediado agora pelo impulso “tardio” de fugir de Munique rumo a um novo cenário em boa parte porque (nas palavras de Mann) “faltavam a seu trabalho aqueles traços de fantasia ardente e brincalhona que são fruto da alegria”.9 Na novela de Mann, a viagem sonâmbula mas inevitável de Aschenbach sugere, por muitas premonições e associações (por exemplo, a morte de Wagner ali, em 1883), bem como por seu caráter singular, que Veneza é um ponto final. Tudo no percurso de Aschenbach — em especial a galeria de personagens demoníacos, do estranho passageiro no vapor ao barbeiro mais que amável — reforça nossa sensação de que ele não tem como sair vivo de Veneza.

Mann publicou A morte em Veneza em 1911, isto é, num momento relativamente precoce da carreira, o que se torna ainda mais paradoxal em vista de seu teor outonal e mesmo elegíaco. Britten deu com ela numa altura avançada da vida e da carreira: como assinala Rosamund Strode, sabemos que ele a “tinha em mente por volta de 1965”, mas que levou nove anos mais para completá-la e estreá-la.10 Mas o que há de notável tanto na ópera como na novela é a intensidade com que suscitam e rejeitam uma interpretação principal ou exclusivamente biográfica. Ambas tratam de crises, desafios e complexidades próprias da vida artística, análogas às que Mann e Britten decerto viveram. Sabemos igualmente que para os dois a homossexualidade instigava a exploração da própria criatividade artística: nem ópera nem novela se esquivam do fato. Mais importante, contudo, é o fato de que ambas representam um triunfo da criação artística sobre a degeneração final de Aschenbach, sobre sua submissão terminal à doença e à paixão irracional, ilícita (e não consumada). Nas duas obras, o velho morto na praia é um objeto cuidadosamente distanciado — patético e triste, é bem verdade — que escritor e compositor deixam para trás, como quem diz: eu não sou isto, sejam quais forem os paralelos e insinuações.

Segundo Dorrit Cohn, Mann deve esse resultado a um “esquema narrativo bifurcado”, por meio do qual “o narrador [que não é Aschenbach] conserva a intimidade com as sensações, ideias e sentimentos de Aschenbach ao mesmo tempo que se distancia cada vez mais no plano ideológico”. E Cohn segue em frente, distinguindo o narrador do próprio Mann: “o autor por trás da obra transmite uma mensagem que escapa ao narrador que ele situou dentro da obra”.11 Ao contrário de Mann, cujo modo irônico impede qualquer visão moral mais simples da experiência de Aschenbach, o narrador emprega constantemente uma retórica moralizante que alguns comentadores (Cohn cita T. S. Reed) associam a uma timidez de Mann: tendo concebido a história como um “hino”, ele agora tenta dar-lhe um desfecho “moral”, o que, para Reed, torna a novela ambígua no mau sentido do termo — desagregada e insegura do próprio significado.

À maneira de Cohn, prefiro supor que a resolução aparentemente moral da novela responde antes às necessidades do narrador que ao próprio Mann, que cuida de se manter a uma distância irônica de seu narrador. Com razão, Cohn pede que olhemos adiante, para o Doutor Fausto, mais uma das indagações de Mann sobre os dilemas do artista. Nem Serenus Zeitblom nem o narrador de A morte em Veneza teriam sido capazes de “criar” um Adrian Leverkühn ou um Gustav von Aschenbach.

A “ironia de mão dupla” de Mann — que opera entre ele mesmo e o narrador, bem como entre o narrador e o protagonista — é fruto de procedimentos literários, narrativos que não estão prontamente à disposição de um compositor. Penso que essa percepção simples, elementar mesmo, está na origem da empresa de Britten em A morte em Veneza, na forma de uma ascese que se impõe forçosamente a ele no processo de transferir a novela de um meio para outro. É o que a própria Mifanwy Piper admite em seu testemunho valioso sobre a gênese do libreto a partir do livro de Mann — este último, um texto referencial, ambíguo, infinitamente evocativo, “denso e perturbador”; o primeiro, uma tradução da “prosa poética intricada” de Mann para as convenções do teatro.12 Ela não deixa de anotar que boa parte de seu trabalho consistiu em cortar, parafrasear e condensar. O resultado foi um libreto concebido com exclusividade para uma encenação simultânea de história e música.

O que o enredo operístico tão bem trabalhado acaba por deixar de fora é o narrador de Mann, a voz zombeteira, moralizante, de ironia explícita, que tanto descreve o que Aschenbach faz ou pensa como tenta direcionar nosso juízo a respeito. Por exemplo, quando o protagonista vaga pela cidade (logo depois de proferir o “Eu te amo”), o narrador se refere a ele como “nosso aventureiro” e descreve o comportamento desvairado de Aschenbach, ao mesmo tempo que toma distância dele (em termos de reprovação crescente). Esse procedimento está ausente da ópera; melhor dizendo, foi abandonado de propósito, como se vê nos primeiros esboços de Britten: o plano original previa uma espécie de narração externa por meio do próprio Aschenbach, que devia ler trechos de seu diário (à maneira de um narrador que recua alguns passos), mas Britten acabou por preferir um recitativo cantado com acompanhamento de piano. A dimensão narrativa exterior foi fundida à música, submergindo, por assim dizer, no elemento musical e, em particular, na orquestra.

Outra alteração muito interessante diz respeito a um episódio bem no começo da novela. Aschenbach acaba de ver o sujeito exótico diante da capela mortuária, que lhe inspira (sem que o homem diga nada) o desejo de viajar para o sul. O narrador então relata os pensamentos de Aschenbach, anotando os limites prudentes que Aschenbach impõe a si mesmo: “viajar — não muito longe, não até os tigres”,13 referindo-se aos “olhos do tigre” que reluzem na visão alucinatória suscitada pelo sujeito exótico. A ópera deixa de lado tanto a prudência de Aschenbach como a moldura narrativa mais ampla. O sujeito exótico fala diretamente de “um súbito lampejo predatório nos olhos do tigre que prepara o bote”, como parte de uma injunção (de novo direta) a “viajar para o sul”. Pouco depois, Aschenbach entoa sua resolução de ir rumo “ao sul e ao sol”, onde sua “alma ordeira poderá enfim se recobrar”; a ária sucede alguns versos de dúvida, em que ele se pergunta se deve romper com sua vida rotineira, como logo fará.

A ópera parece imediata e explícita, quando o texto de Mann é circunspecto e ironicamente tortuoso, uma vez que, em Veneza, será justo o mundo do tigre — o mundo do Oriente exótico — que levará a melhor sobre Aschenbach, na forma de uma peste asiática. “Viajar — não muito longe, não até os tigres” é uma daquelas passagens da narrativa que tanto poderiam ser monólogo interior de Aschenbach como intrusão do narrador irônico. Lendo-o “normalmente”, apenas passamos por ele como mero detalhe que logo fica para trás. Mas a releitura solitária permite pausas e retornos; voltamos ao texto, fazemos distinções, avançamos e recuamos e volta e meia descobrimos esses momentos de ambiguidade ou instabilidade em que as palavras podem pertencer a um ou outro nível do discurso. A temporalidade linear da prosa escrita (e portanto lida) permite e até estimula essa espécie de atividade íntima e não linear. A morte em Veneza é, com efeito, um texto cuja densidade, amplitude alusiva e textura intricada exigem uma decifração lenta, atenta e muito diferente da leitura ditada por um espetáculo de teatro musical, com sua sequência irrefreável de recitativos, cenas, árias e conjuntos vocais.

Por outro lado, a ópera é o gênero musical que veicula mais informação. Palavras, notas, figurinos, personagens, gestos, instrumentos, danças, cenários: tudo no palco se dirige diretamente aos espectadores, que devem dar conta do que está acontecendo por mais que a massa de material desafie sua capacidade de absorção e entendimento. A morte em Veneza, de Britten, tem que suportar ainda o peso considerável da novela de Mann, que não há como não ter em mente enquanto o espetáculo segue adiante. Assim, o que vemos é uma complexa simultaneidade de memória e presença, dominada pela figura de Aschenbach, cujas primeiras palavras — “minha cabeça não descansa” — explicitam o avanço inelutável da história. A obra de Mann interioriza a ação, a de Britten deve — necessariamente — exteriorizá-la: os pensamentos de Aschenbach devem ser audíveis na ópera, devem ser ouvidos e vistos, ao passo que, na novela, Aschenbach é sobretudo legível, cifrado que é pelo estranho vaivém entre seus próprios pensamentos e os do narrador que mencionei acima.

Contudo, apesar das diferenças, as duas obras terminam com um mesmo sentimento de solidão avassaladora e — uma vez que Aschenbach jamais consuma seu amor por Tadzio — de grande tristeza. O fracasso de Aschenbach em possuir Tadzio fisicamente contrasta com a intimidade física entre Tadzio e seu amigo- -antagonista, Jaschiu. E na última cena, quando Tadzio parece avançar pelo mar, um Aschenbach contagiado de morte — e perfumado, penteado e enfeitado de modo grotesco — fica sentado em sua cadeira de praia para depois expirar. Essa lacuna literal entre o amante e o amado se mantém ao longo de toda A morte em Veneza, como se escritor e compositor quisessem nos recordar que, embora rume para o sul, Aschenbach não vai até os tigres, isto é, não chega nunca àquela região selvática e supostamente desregrada em que os desejos se realizam e as fantasias se consumam. Tanto para Mann como para Britten, Veneza é o lugar onde Aschenbach vai parar, uma cidade meridional, e não de fato oriental, um cenário europeu, e não propriamente exótica. Mas tanto no caso de Mann como no de Britten, que segue à risca seu grande predecessor, podemos nos perguntar: por que não deixar que Aschenbach vá até o final e por que escolher Veneza como cenário?

Deixando de lado a associação incidental com a morte de Wagner, Veneza tem uma história cultural espantosa, de tremenda densidade, que é o tema de um livro notável de Tony Tanner, Venice desired. Com mais agudeza do que nunca, Tanner mostra como a cidade de Mann é herdeira de um rico percurso da imaginação oitocentista: Byron, Ruskin, Henry James, Melville e Proust distinguiram em Veneza certa característica que suscitava “estudos, resgates e alucinações”, muitas vezes a partir do aspecto característico da cidade, de sua decadência e de seu poder de atrair o desejo. “Em meio à decadência e ao declínio”, afirma Tanner,

(sobretudo em meio à decadência e ao declínio), desmoronando ou afundando em ruínas e fragmentos, mas saturada de uma sexualidade secreta — e assim exudando ou sugerindo um mistura inebriante de morte e desejo —, Veneza se torna para muitos escritores o que já fora, premonitoriamente, para Byron: “a ilha mais verde de minha imaginação”. Ao deixar Veneza dois anos mais tarde, ela lhe parecia uma “Sodoma do mar”. Veneza sabia se voltar contra seus admiradores literários como nenhuma outra cidade.14

A realidade urbana de Veneza combina dois extremos quase sem transição: uma criatividade brilhante, gloriosa, sem igual, e uma história de corrupção sórdida, labiríntica, e degradação profunda. Veneza como república soberana e quase platônica; Veneza como cidade de prisões, policiais sinistros, conspirações e tiranias.

O interesse maior do livro de Tanner, o primeiro a tratar Veneza desse modo sinóptico, consiste em demonstrar que, a despeito da enorme variedade de autores, há uma coerência perturbadora e recorrente na imagem de Veneza. Ninguém deixa de notar (e Tanner está pensando sobretudo em Ruskin) como na cidade “a transição do luxo ao lixo se faz rapidamente”. Ele cita a seguinte passagem de As pedras de Veneza:

Na infância, Veneza semeara em lágrimas os frutos que colheria em festa. Agora plantava sorridente as sementes da morte. Desde então, ano a ano, a nação bebeu com sede crescente das fontes do prazer proibido e escavou mananciais desconhecidos em partes obscuras da terra. Na prática do prazer, nas variedades da vaidade, Veneza ultrapassou as cidades da Cristandade como outrora as ultrapassara em poder e devoção; e assim como antes as potências da Europa haviam comparecido ante seu tribunal para acatar as sentenças de sua justiça, agora a juventude europeia se reunia em seus salões de luxúria para aprender as artes do prazer.

É tão inútil quanto penoso fazer a crônica de sua ruína final. A maldição antiga pesava sobre ela, a maldição das Cidades da Planície: “Soberba, pão de sobra, ócio abundante”. A combustão interna de suas paixões, tão fatal quanto a chuva de fogo de Gomorra, consumiu seu lugar entre as nações; e as cinzas obstruem os canais do mar morto e salgado. (vd, p. 124)

Tanner nota que essa rápida oscilação entre Paraíso e Inferno é decisiva para a visão de Ruskin — mas quanta coisa ela não sugere a respeito de A morte em Veneza! Não há dúvida de que Mann e Britten resgataram e, cada qual à sua maneira, reelaboraram esse topos em suas obras.

O segundo traço característico da imagem de Veneza é o modo como a cidade é sempre descrita de fora, por um escritor forasteiro, e portanto desde o início está “baseada numa imagem que, por sua vez, é alimentada por um texto anterior. Veneza é sempre o já escrito, tanto quanto o já visto e o já lido”. Assim, em certo sentido, Proust herda Veneza de Ruskin ao ler sobre a cidade e mais tarde descrevê-la, por assim dizer, à sua maneira idiossincrática. Tanner observa:

A distância é tudo. Nos termos do romance de Proust, Veneza (o nome) tanto representa quanto é o prazer indefinível e inesgotável da ausência, um prazer que não se distingue do prazer protelado ou daquela protelação que por si só já é prazer. Veneza presente é Veneza perdida. […] Mas talvez essa perda seja prelúdio a uma descoberta — a uma redescoberta — em outro modo. […] O prazer de Veneza não é livre de ambiguidade. (vd, p. 243)

Mann se incorpora a essa linhagem ao usar — ou, melhor, ao forçar Aschenbach a usar — Veneza como lugar distante ao qual se deseja retornar para aí localizar ou encontrar aquele imenso reservatório de memória cultural acumulado pelos predecessores; não bastasse isso, a obra de Mann é também “uma redescoberta — em outro modo”, da Veneza perdida no tempo e na distância. A ópera de Britten é mais um prolongamento ou uma redescoberta de Veneza, bem mais explícito que o de Mann, na medida em que depende abertamente de um texto literário prévio, do qual Britten se vale para explorar os esplendores da cidade nos termos de um artista que se vê às voltas com seus impulsos sensuais mais íntimos (e obscuros).

Assim, Britten aborda Veneza de fora, por via de um texto em consonância com aquela imagem que Tanner analisou com tanta perspicácia; de resto, a cidade, com sua história de esplendor e degradação, é um cenário marcadamente tardio para uma ópera madura, cuja música, num estilo cristalizado e muito trabalhado, constitui em si mesma uma alegoria (Mitchell diria parábola) do dilema artístico-pessoal de quem chega a um lugar, tema ou estilo num período tardio da vida, não como quem chega à ilha de Próspero, e sim a um lugar antigo, gasto e muito mundano, que agora se revisita como que pela última vez. Vale lembrar aqui o caráter problemático das alegorias e mesmo das parábolas, que sempre atuam em retrospecto: a fábula ou relato alegórico vem depois da experiência ou tema que se transmitirá na sequência, sempre, por assim dizer, de forma diferente, mais atenuada e codificada.

Antes observei que A morte em Veneza de Mann emprega um procedimento narrativo irônico, a fim de distanciar Aschenbach da persona que conta a história de sua paixão por Tadzio, e que Mann usa essa persona para criar ainda mais distância entre o autor e o personagem. A peça de Britten, contudo, descarta esses procedimentos narrativos da novela. Desse modo, a ópera alegoriza seu “original” alemão numa dimensão presente, no tempo operístico que se exibe aos nossos olhos (à exceção de duas cenas no começo do primeiro ato que precedem a “abertura” orquestral, intitulada “Veneza”).

À diferença de um texto literário como o de Mann, toda ópera é uma obra coletiva; ainda assim, o papel de Britten em A morte em Veneza foi com certeza preponderante: a música arrasta o libreto, cria um vocabulário auditivo total e conforma a estética da obra até os menores detalhes orquestrais e vocais. Veneza, de todo modo, permanece no centro da ópera, por mais que também ela seja absorvida pela textura musical da obra, por essa presença concreta que vai se desdobrando diante do espectador. Mas o papel da cidade é em tudo diverso daquele que ela cumpre nos antecedentes literários. O prólogo orquestral é uma aproximação musical à cidade, que aqui não é objeto de um discurso, mas se apresenta ou se encena como parte imediatamente sensível do que a plateia está vendo e ouvindo: daqui em diante, estamos em Veneza ao lado de Aschenbach. Assim, a música de Britten não apenas consuma a aproximação física (nas duas primeiras cenas) como supera a distância geográfica, para nos oferecer Veneza como um ambiente musical e teatral, sem narrador irônico ou ceticismo estudado.

Britten usa a técnica operística para promover aquelas mesmas identificações imediatas e não irônicas que a arte narrativa de Thomas Mann evitava a todo custo; é o que se depreende, penso eu, da decisão de entregar a um mesmo barítono sete papéis diferentes que Mann distinguia com cuidado (ainda que, é claro, os vinculasse internamente). Vez por outra, mas sempre com toda a clareza, Britten nos recorda que Veneza é o cenário da ação, presente com todas as suas identidades múltiplas e simultâneas: a clientela poliglota do hotel, os funcionários, os vários personagens venezianos com que Aschenbach trava contato e assim por diante. Mas a Veneza de Britten também se mostra como lugar de uma disputa ou agone divino (prenunciado nos jogos apolíneos do final do primeiro ato) entre Apolo e Dioniso. É certo que, quando canta com sua própria voz, Dioniso surge como um forasteiro (“o deus estrangeiro”), mas sua aparição onírica é preparada pela aliança entre Aschenbach e uma Veneza clandestina: “minha esperança está no segredo da cidade, terrível, desastroso, destruidor”.

A essa altura — ou, para ser mais exato, uma cena antes — a cidade já foi invadida pela peste asiática, descrita em pormenor pelo funcionário inglês da agência de viagens em que Aschenbach tenta se informar. O que se dá para o Aschenbach da ópera é um acúmulo de identidades (à medida que um mesmo barítono acumula vários papéis ao longo da obra), todas ancoradas numa Veneza que é capital da Cristandade e Cidade da Planície, europeia e asiática, arte e caos. Do mesmo modo, o idioma tonal “ambíguo” de Britten resulta numa orquestra ao mesmo tempo europeia e oriental — politonal, polirrítmica, polimorfa. Como se, para penetrar em Veneza, Britten tivesse imposto a si mesmo uma série de obstáculos e mesmo provações que a natureza ambígua da cidade, meio infernal, meio paradisíaca, forçosamente impõe e dos quais Britten não se esquiva.

Penso que A morte em Veneza de Britten é uma obra tardia não apenas por usar Veneza como alegoria para o retorno, a recapitulação de uma longa trajetória artística, mas também por apresentar Veneza como lugar da ópera, como lugar em que — ao menos para o protagonista — opostos irreconciliáveis vêm se fundir, de caso pensado e sob risco de perda total do sentido. Tanner assinala com acerto que a música que o Aschenbach de Mann escuta em Veneza é uma espécie de antilinguagem, um idioma inteiramente a serviço de um ataque bestial, indecente e perturbador à limpidez de espírito e à comunicação artística consciente.

Ao compor a ópera, Britten não tinha à mão um contraste pronto entre as palavras e a música ou entre o textual e o extratextual, e por isso concebe uma música que recorre tanto a suas obras anteriores quanto a fontes não europeias. A música incorpora elementos em geral discordantes (muito à maneira de Veneza) num amálgama excêntrico que permite a Britten explorar, em termos íntimos e a curta distância, os limites do trabalho artístico, conservando e mesmo expandindo esses elementos opostos que remontam à disputa entre Dioniso, o deus estrangeiro, e Apolo, o deus luminoso que confere sentido às coisas. Assim, mesmo que não vá ter com os “tigres” — e não chegue à anulação de todo sentido —, a ópera tampouco resolve o conflito — e, até onde vejo, não provê nenhuma mensagem de redenção ou conciliação. Quando Aschenbach é forçado ao limite tanto de sua condição mortal como de sua capacidade estética, Britten apresenta seu destino como o de um homem incapaz tanto de recusar como de consumar por inteiro o desejo pelo objeto amado e fugidio. Essa é afinal, para mim, a essência da obra tardia de Britten, que se encarna com máxima pungência na lacuna entre Aschenbach sentado na praia e o menino polonês sempre mais distante. Como já vimos, Adorno afirma que essas figuras de proximidade e distância são “tanto subjetivas quanto objetivas”:

Objetiva é a paisagem fraturada, subjetiva é a luz à qual — e somente à qual — ela reluz renascida. Ele [o artista] não providencia sua síntese harmoniosa. Como poder de dissociação, ele as dilacera no tempo para, quem sabe, preservá-las para a eternidade. Na história da arte, as obras tardias são as catástrofes.15