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Investigando eticamente a vigilância

DAVID LYON: Até agora, cada tema de nossa conversa suscita questões não somente sobre a análise adequada da vigilância. Ela seria líquida? Que diferença isso faz? Mas também sobre os insistentes desafios éticos que acompanham essa análise, ou melhor, que estão nela embutidos, que lhe dão forma. Um dos mais conhecidos formuladores de denúncias sobre a vigilância atual no campo acadêmico, Gary Marx, advertia ainda em 1998 que a ética era necessária para a “nova vigilância”.1 Como é uma das poucas peças “éticas” nesse campo, ela tende a ser citada porque pelo menos o autor tenta avançar um pouco nessa área. Argumenta ele que a mudança tecnológica ocorre tão depressa e com consequências tão profundas no campo da segurança que formas de regulação mais antigas precisam urgentemente ser atualizadas.

Em outras palavras, o louvável trabalho de Gary Marx oferece um guia para a intervenção jurídica e regulatória quanto à difusão da vigilância. Ele dá prioridade à dignidade das pessoas e enfatiza a prevenção de prejuízos, quer as pessoas estejam ou não conscientes de que são objeto de vigilância, e outros princípios gerais adequados para se traduzir em regras. Como eu digo, os estudos de Gary Marx sobre vigilância foram definitivos para esse campo em desenvolvimento. Ele foi um dos primeiros, por exemplo, a insistir que o que chamava de suspeito categórico tinha de ser considerado juntamente com tipos individuais, mais convencionais, quando o software e as estatísticas ajudam a determinar quem é de interesse para a polícia.2

Embora os princípios éticos de Gary Marx sejam de caráter geral, eles de fato têm a virtude de corresponder a situações específicas, na esperança de que práticas alternativas possam ser forjadas. Por mim, contudo, tenho o sentimento incômodo de que há questões éticas que também devemos confrontar num plano bem diferente. Sem querer que a discussão levite num domínio desconectado dos “prejuízos” e danos vinculados às novas técnicas de vigilância – das quais já tivemos algo a dizer em nossa conversa –, parece-me que alguns temas éticos fundamentais nos confrontam porque a vigilância eletronicamente mediada envolve nossas vidas no cotidiano.

Podemos voltar atrás por um instante? Está claro que alguns dos sonhos iniciais da “cibernética” (da década de 1950) vieram alojar-se no “ciberespaço” e em sua sócia, a vigilância. Os tipos de controle por laços de feedback que se buscava desenvolver para fins de manufatura industrial e que migraram para a administração-geral antes de se generalizar como estratégia básica da prática organizacional no século XX são fundamentais para o que tenho em mente. Não é à toa que autores tão distantes quanto Gilles Deleuze e David Garland viram a vigilância se desenvolver muito depressa em relação, respectivamente, ao “controle de sociedades” e ao “controle de culturas”.3 E embora o controle hoje tenha se tornado amplamente líquido, em oposição a operar nos espaços e recintos fixos do pan-óptico, o velho tema amado por Bentham ainda é visível (ou talvez se torne visível pela ação de pessoas corajosas o bastante para revelá-lo e expô-lo).

Parte da história aqui é, como Katherine Hayles pungentemente aponta, o modo como a informação perdeu seu corpo.4 A cibernética que germinou na década de 1950 não estava desconectada da emergente definição de informação que, para resumir, concebia esta última como algo quantificável e comodificável. Nos anos do pós-guerra, teóricos da comunicação engajaram-se numa série de encontros “de cúpula” de caráter transatlântico, conhecidos como Conferências Macy, para debater como a informação seria concebida nesse campo em rápida expansão. O participante britânico nesses encontros decisivos, o neurocientista Donald MacKay, da Universidade Keele, sustentou inutilmente que a informação, para ser considerada como tal, precisava ter uma associação demonstrável com o significado. Mas a chamada Escola Americana – Claude Shannon em particular – foi vitoriosa, e a palavra “informação” seria cada vez mais utilizada em teoria da comunicação como uma entidade isolada de suas origens humanas e significativas.

Amarremos isso às realidades da vigilância em nossos dias. Cada vez mais os corpos são “informatizados”, palavra feia, mas adequada. Em numerosas situações de vigilância, corpos são reduzidos a dados, mais obviamente, talvez, pelo uso da biometria em fronteiras. Porém, nesse caso paradigmático, o objetivo em questão é verificar a identidade do corpo, de fato, da pessoa, para permitir que cruze a fronteira (ou não). Só podemos concluir que a informação sobre esse corpo está sendo tratada como se fosse conclusiva na determinação da identidade da pessoa. Se a distinção for mantida, então a pessoa pode se preocupar se a impressão digital ou o escaneamento da íris a registra adequadamente ou não no sistema, ignorando o que Irma van der Ploeg chama de “integridade corporal”.5 Em forma condensada, essa é a história de como a informação desincorporada termina afetando de modo crítico as chances de vida de gente de carne e osso, como migrantes, pessoas em busca de asilo, e assim por diante.6

Ora, penso que isso dá outra volta orientada para a vigilância naquilo que você fala sobre adiaforização, as ações isentadas de avaliação ética por meios técnicos. A mediação eletrônica permite um distanciamento maior entre ator e resultado do que se poderia imaginar na burocracia pré-digital. Mas também se baseia numa noção de “informação” limitada e escassamente reconhecível, que se declarou liberta da pessoa. Como julgo que a adiaforização é essencial aqui, esse parece um bom lugar para começar. Antes de fazê-lo, contudo, também gostaria que abordássemos esses temas de uma perspectiva, por assim dizer, oposta: da perspectiva de uma ética da proteção. Podemos começar testando a vigilância adiaforicamente?

ZYGMUNT BAUMAN: Mais uma vez você acertou na mosca, David. Sua intuição quanto às interfaces da vigilância e da moral, além daquelas assinaladas por Gary Marx, incluindo uma interface ainda mais seminal e que exige uma atenção mais inquisitiva, é tão correta quanto oportuna. Para começar, nunca ocorreria a Bentham que tentação e sedução fossem as chaves da eficiência do pan-óptico em produzir um comportamento desejável. Não havia cenoura, apenas uma vareta na caixa de ferramentas do pan-óptico. A vigilância ao estilo pan-óptico presume que o caminho para a submissão a uma oferta passa pela eliminação da escolha. Nossa vigilância empregada pelo mercado presume que a manipulação da escolha (pela sedução, não pela coerção) é o caminho mais seguro para esgotar as ofertas por meio da demanda. A cooperação não apenas voluntária, mas entusiástica, dos manipulados é o principal recurso empregado pelos sinópticos dos mercados de consumo.

Essa seria, porém, uma observação lateral, talvez conveniente, se desejássemos estabelecer o cenário para sua pergunta principal. Decompor, fatiar, pulverizar totalidades em agregados de características capazes de se recompor (mas, em princípio, reordenadas e arranjadas numa “totalidade” diferente) não é invenção da polícia ou dos agentes de fronteira. Tampouco é uma idiossincrasia de poderes totalitários ou, de modo mais geral, de regimes obcecados com o poder. Particularmente vista em retrospecto, parece um atributo geral da forma de vida moderna (conhecida por sua obsessão por diferenciação, classificação e arquivos), agora amplamente reempregado para uma estratégia em tudo alterada no curso da transição para a sociedade líquida moderna de consumidores. Reempregada em nome da inclusão da “livre escolha” na estratégia de marketing, ou, mais precisamente, de tornar voluntária a servidão e fazer com que a submissão seja vivenciada como um avanço da liberdade e um testemunho da autonomia de quem escolhe (já descrevi esse processo em outro texto, chamando-o de “fetichismo da subjetividade”).7

Um exemplo um tanto extremo, e talvez desconcertantemente ruidoso, mas bastante característico, é fornecido pelo hábito universal das agências de namoro de arranjar os potenciais objetos de desejo segundo as preferências apresentadas pelos potenciais clientes – como cor da pele ou do cabelo, peso, tamanho dos seios, interesses declarados, passatempos favoritos etc. O pressuposto tácito é de que os seres humanos que procuram a ajuda da agência na busca de companheiros humanos precisam e podem constituí-los a partir de sua seleção de características. No curso dessa “decomposição em nome da recomposição”, algo vital desaparece da vista e da mente, e, para todos os fins e propósitos práticos, está perdido: a “pessoa humana”, “o Outro” da moralidade, o sujeito por seu próprio direito e o objeto de minha responsabilidade.

Você está certo em se preocupar com isso, David. Quando outro ser humano é tratado como uma mercadoria selecionada segundo cor, tamanho e números, a adiaforização está em pleno curso e é mais devastadora. Um conjunto de características, sejam elas animadas ou inanimadas, dificilmente poderia ser um objeto moral cujo tratamento se sujeite a um juízo moral. Isso se aplica às agências de namoro da mesma forma que às agências de policiamento, ainda que os objetivos da busca sejam diferentes. Qualquer que seja a função manifesta desse exercício, sua função latente, mas indetectável, é a exclusão do objeto da decomposição/ recomposição da classe das entidades moralmente relevantes e do universo das obrigações morais. Em outras palavras, a adiaforização de seu tratamento.

DL: Sim, mais uma vez receio que você esteja certo. Ironicamente, porém, a vigilância – alguém para me vigiar – pode ser valorizada e procurada nas vicissitudes da vida líquida moderna. Por infortúnio (para falar com moderação), contudo, esse “alguém” muitas vezes também é alguma coisa. E essa coisa é supostamente informação desencarnada, selecionada por meio de software e técnicas estatísticas. É o produto de uma dupla adiaforização, de tal forma que não apenas a responsabilidade é eliminada do processo de categorização, como também o próprio conceito de informação em si reduz a humanidade dos categorizados, quer a finalidade em vista seja o namoro, quer o assassinato.

Em outras palavras, esses filtros colaborativos e até, ironicamente, essas bases de dados relacionais tendem, em algumas circunstâncias, a negar ou pelo menos obscurecer nossa relação humana. Se, como nos ensina Levinas, nossa humanidade só é descoberta diante do Outro, ao reconhecermos nossa responsabilidade por ele, então existe algo profundamente perturbador em relação aos sistemas de vigilância que parecem romper essa capacidade de relação, ou até, de forma mais sutil, erodi-la pedaço por pedaço. Mas será que não é exatamente isso que devíamos esperar, se, como muitos concordam, um dos pontos de virada em direção à vigilância moderna foi o horrendo diagrama arquitetônico conhecido como pan-óptico?

Jeremy Bentham, entre outras coisas, foi um reformador prisional secular numa era em que a opinião preponderante sobre o que havia de errado com os lugares de punição incluía muitas vozes cristãs (para não mencionar outras que defendiam enviar os delinquentes para colônias penais no extremo oposto do planeta). Muitas vezes fiquei imaginando se Bentham não apenas tinha consciência disso, mas também se tentou neutralizar as críticas a seu plano citando em epígrafe o Salmo 139 da Bíblia, sobre o olho de Deus que a tudo enxerga. Mas a leitura que ele faz do olho de Deus enfatiza apenas o olhar aparentemente controlador, instrumental, de uma divindade invisível, inescrutável e possivelmente punitiva. Bentham enxergava somente a antolhada visão racional do Iluminismo.

Uma leitura mais equilibrada daquele salmo revela um tipo totalmente diferente de visão, uma visão relacional que apoia e protege; “até ali a tua mão me guiará e a tua destra me susterá” (Salmo 139:10). Evidentemente, há aqui uma orientação moral, mas a analogia contextual é o olhar calorosamente vigilante do amigo, do pai ou da mãe. Encontro nessa outra leitura do salmo usado por Bentham como epígrafe uma crítica da ética da proteção em estado embrionário. Não necessária ou basicamente para buscar práticas de vigilância alternativas, mas para testar as práticas existentes no objetivo de expor seus efeitos reais. Esse é o tipo de exercício em que Lucas Introna se engajou ao mostrar como o efeito de distanciamento da tela pode “des-figurar” o Outro excluindo pela “filtragem” quase todas as suas categorias.8 Encontro uma autêntica promessa nessa ética “reveladora”.

ZB: Não tenho tanta certeza de que a visão de Bentham sobre o Iluminismo fosse, como você disse, antolhada. Estava, afinal, em perfeita sintonia com os preceitos mais centrais, definidores, de fato, do Iluminismo: colocar os assuntos do mundo sob o gerenciamento humano e substituir a providência (o destino “cego”, a contingência “aleatória”) pela Razão, essa inimiga mortal de acidentes, ambiguidades, ambivalências e incoerências. Sou tentado a dizer que o pan-óptico de Bentham foi uma versão com tijolos e argamassa do espírito iluminista.

Um aspecto menos divulgado, embora não menos fundamental, desses preceitos gêmeos do Iluminismo foi o pressuposto da ignorância e incapacidade morais dos hoi polloi, as “pessoas comuns” (variadamente denominadas “o povo” ou “as massas”): como Rousseau proclamou (de modo um tanto abrupto), as pessoas devem ser forçadas a serem livres. Uma cruzada moral precisa sustentar-se na obediência das pessoas ou em sua ambição, não em seus duvidosos impulsos morais. É por essa razão, creio eu, que não se deve esperar um amplo alistamento voluntário na guerra declarada aos caprichos do destino; a aposta foi em codificar os deveres e não em desatrelar as liberdades de escolha. É por isso que Bentham, assim como os pioneiros dos “moinhos satânicos”, e Frederick Taylor, o homem das medições de tempo e movimento, que pretendia reduzir o operador da máquina ao papel de escravo obediente dela, podiam acreditar sinceramente que eram agentes, promotores e braços executivos da moral – no sentido de ambas as interpretações do Salmo 139:10: vigiar e guiar na direção correta. Juntamente com todas as iniciativas e manobras, a questão de fundamentar a moral era tarefa e prerrogativa dos gerentes. Era a razão gerencial, dos gerentes capturados em movimento e registrados por James Burnham em The Managerial Revolution (1939), que falava pelos lábios de Jeremy Bentham, assim como de Henry Ford.

Hoje em dia, porém, deixamos para trás as ambições éticas e ditatoriais dos gerentes de estilo Burnham. Nós as deixamos para trás em consequência da “Revolução Gerencial Parte 2” – tendo os gerentes descoberto uma receita muito melhor (mais barata e menos difícil de carregar e manusear, assim como potencialmente mais lucrativa) para o controle e a dominação: passar os deveres gerenciais para os próprios gerenciados, transferindo a tarefa de mantê-los na linha da coluna de débitos para a de créditos, de passivos para ativos, de custos para ganhos – “terceirizando” essa tarefa para aqueles que se encontram na extremidade receptora da operação. Isso é algo pelo qual a loja de móveis Ikea é famosa – deixar a montagem dos elementos produzidos pela fábrica para clientes que pagam pelo privilégio de executar essa tarefa, em vez de serem remunerados por seu desempenho –, mas é um princípio empregado de maneira cada vez mais ampla na moldagem dos atuais padrões da relação de dominação/subordinação.

O caminho para a reeticalização desses padrões antes assinalados com referência a Lucas Introna é tão estimulante e promissor quanto qualquer coisa que ainda possa ser testada na prática. Porém, não esqueçamos, ensinados como fomos no passado por uma longa série de falsas alvoradas e amargos despertares, que as linhas separando “proteção” de “dependência” e “liberdade” de “abandono” são endemicamente contenciosas; cada aparente oposição parece mais um par de aspectos inseparáveis (complementares, com efeito) da mesma relação. Simplificando: sim, a vigilância pode anular alguns escrúpulos morais ao manifestar suas “aplicações de proteção”. Mas isso tem um preço – de maneira alguma moralmente inocente. E sem parar de ser vigilância e sem eliminar as dúvidas de natureza moral com as quais ela tem sido, e não injustamente, associada. Ainda estamos esperando em vão pelo bolo que possamos comer e preservar, ainda que essa descoberta seja novamente anunciada a cada sucessiva novidade tecnológica.