· Introdução ·

A vigilância é uma dimensão-chave do mundo moderno; e, na maioria dos países, as pessoas têm muita consciência de como ela as afeta. Não apenas em Londres e Nova York, mas também em Nova Délhi, Xangai e Rio de Janeiro, as câmeras de vídeo são elemento comum nos lugares públicos. Por toda parte, viajantes em passagem por aeroportos sabem que precisam atravessar não apenas o controle de passaportes em sua versão do século XXI, mas também por novos dispositivos, como escâneres corporais e aparelhos de checagem biométrica, que têm proliferado desde o 11 de Setembro. E se tudo isso tem a ver com segurança, outros tipos de vigilância, relativos a compras rotineiras e comuns, acesso on-line ou participação em mídias sociais, também se tornam cada vez mais onipresentes. Temos de mostrar documentos de identidade, inserir senhas e usar controles codificados em numerosos contextos, desde fazer compras pela internet até entrar em prédios. A cada dia o Google anota nossas buscas, estimulando estratégias de marketing customizadas.

Mas o que significa isso do ponto de vista social, cultural, político? Se partirmos simplesmente de novas tecnologias ou de regimes regulatórios, poderemos formar uma ideia da amplitude desse fenômeno. Mas será que conseguiremos compreendê-lo? Decerto, ter uma noção da magnitude e da rápida difusão do processamento de dados é fundamental para que a onda de vigilância seja avaliada pelo que ela é; e descobrir exatamente quais chances e oportunidades de vida são afetadas por esse fenômeno irá galvanizar os esforços no sentido de controlá-lo. Mas este diálogo tem uma pretensão maior: a de cavar mais fundo – investigar as origens históricas e ocidentais da vigilância atual e sugerir questões éticas, assim como políticas, sobre sua expansão.

Por muitas décadas, a vigilância tem sido tema constante da obra de Zygmunt Bauman, e muitas de suas observações, a meu ver, são de grande interesse para os que hoje tentam entender esse fenômeno e reagir a ele. Na primeira década do século XXI, Bauman tornou-se mais conhecido por suas análises sobre a ascensão da “modernidade líquida”, e aqui examinamos se esse arcabouço também é esclarecedor quando se avalia o papel contemporâneo da vigilância. Mas o outro leitmotiv da análise de Bauman é a ênfase na ética, principalmente a ética do Outro. Em que medida isso oferece uma compreensão crítica sobre a vigilância nos nossos dias?

Vigilância líquida?

“Vigilância líquida” é menos uma forma completa de especificar a vigilância e mais uma orientação, um modo de situar as mudanças nessa área na modernidade fluida e perturbadora da atualidade. A vigilância suaviza-se especialmente no reino do consumo. Velhas amarras se afrouxam à medida que fragmentos de dados pessoais obtidos para um objetivo são facilmente usados com outro fim. A vigilância se espalha de formas até então inimagináveis, reagindo à liquidez e reproduzindo-a. Sem um contêiner fixo, mas sacudida pelas demandas de “segurança” e aconselhada pelo marketing insistente das empresas de tecnologia, a segurança se esparrama por toda parte.

A noção de Bauman de modernidade líquida estrutura a vigilância de novas maneiras; oferece também notáveis insights sobre o motivo pelo qual a vigilância se desenvolve tal como o faz e algumas ideias produtivas sobre como seus piores efeitos podem ser confrontados e neutralizados. Evidentemente, essa é minha visão da situação. O que Zygmunt Bauman pensa torna-se claro em nosso diálogo.

Aceita-se de forma ampla que a vigilância é uma dimensão central da modernidade. Mas a modernidade não fica parada. Também temos de indagar: que tipo de modernidade? As condições atuais podem ser descritas como modernidade “tardia”, possivelmente “pós-modernidade” ou, de modo mais pitoresco, modernidade “líquida”. Zygmunt Bauman sugere que a modernidade tem se liquidificado de novas e diferentes maneiras (para além do insight de Marx e Engels, na fase inicial da modernidade, de que “tudo que é sólido se desmancha no ar”). Duas características se destacam.

Em primeiro lugar, todas as formas sociais se desmancham mais depressa que a velocidade com que se criam novas formas. Elas não podem manter seu molde nem se solidificar em arcabouços de referência para as ações e estratégias de vida dos seres humanos em função da brevidade de sua própria vida útil. Será que isso se aplica à vigilância? Uma série de teóricos tem observado as maneiras pelas quais a vigilância, antes aparentemente sólida e estável, se tornou muito mais móvel e flexível, infiltrando-se e se espalhando em muitas áreas da vida sobre as quais sua influência era apenas marginal.

Gilles Deleuze introduziu a expressão “sociedade de controle”, na qual a vigilância cresce menos como uma árvore – relativamente rígida, num plano vertical, como o pan-óptico – e mais como ervas daninhas.1 Como observam Kevin Haggerty e Richard Ericson, a “montagem da vigilância” capta fluxos do que se poderia chamar de dados corporais, transformando-os em “duplicatas de dados” altamente móveis e fluidas.2 William Staples também observa que a vigilância atual ocorre em culturas “caracterizadas pela fragmentação e pela incerteza, quando muitos dos significados, símbolos e instituições antes tidos como certos se dissolvem diante de nossos olhos”.3 Assim, o que é seguro, estruturado e estável se liquefaz.

Bauman concorda que o pan-óptico foi um meio moderno fundamental no que se refere à manutenção do controle, imobilizando os prisioneiros e promovendo o movimento dos observadores. Mas estes às vezes ainda tinham de estar presentes. Evidentemente, o projeto pan-óptico da prisão também era caro. Foi planejado para facilitar o controle mediante a organização semicircular dos blocos de celas, e o “inspetor”, situado no centro, podia ver todas elas mantendo-se invisível para os prisioneiros por trás de uma cortina. Ele obrigava o inspetor a assumir certa responsabilidade pela vida dos prisioneiros. O mundo de hoje, diz Bauman, é pós-pan-ótico.4 O inspetor pode escapulir, fugindo para domínios inalcançáveis. O engajamento mútuo acabou. Mobilidade e nomadismo são agora valorizados (a menos que você seja pobre ou sem-teto). O menor, mais leve e mais rápido é considerado bom – pelo menos no mundo dos iPhones e iPads.

O pan-óptico é apenas um modelo de vigilância.5 A arquitetura das tecnologias eletrônicas pelas quais o poder se afirma nas mutáveis e móveis organizações atuais torna a arquitetura de paredes e janelas amplamente redundante (não obstante firewalls e windows). E ela permite formas de controle que apresentam diferentes faces, que não têm uma conexão óbvia com o aprisionamento e, além disso, amiúde compartilham as características da flexibilidade e da diversão encontradas no entretenimento e no consumo. O check-in do aeroporto pode ser feito com um smartphone, mesmo que as trocas internacionais envolvendo o crucial RNP (Registro do Nome do Passageiro) ainda ocorram, estimuladas pelo mecanismo original de reserva (ela própria possivelmente gerada no mesmo smartphone).

Desse ponto de vista, disciplina e segurança têm realmente uma conexão entre si, algo que Michel Foucault não conseguiu reconhecer. Ele insistia em afirmar que eram duas coisas distintas, embora suas conexões (eletrônicas) já estivessem evidentes. A segurança transformou-se num empreendimento orientado para o futuro – agora nitidamente descrito no filme e no romance intitulados Minority Report (2002) – e funciona por meio da vigilância, tentando monitorar o que vai acontecer pelo emprego de técnicas digitais e raciocínio estatístico. Como assinala Didier Bigo, essa segurança opera acompanhando “qualquer coisa que se mova (produtos, informações, seres humanos)”.6 Assim, a segurança funciona a distância tanto no espaço quanto no tempo, circulando de maneira fluida, juntamente com os Estados-nação, mas para além deles, num domínio globalizado. Tranquilidade e recompensas acompanham esses grupos móveis para os quais essas técnicas são feitas como se fossem “naturais”. Processos de estereotipia e medidas de exclusão estão à espera dos grupos desafortunados o bastante para serem rotulados de “indesejados”.

Em segundo lugar, e relacionado com isso, poder e política estão se separando. O poder agora existe num espaço global e extraterritorial, mas a política, que antes ligava interesses individuais e públicos, continua local, incapaz de agir em nível planetário. Sem controle político, o poder torna-se fonte de grande incerteza, enquanto a política parece irrelevante para os problemas e temores da vida das pessoas. O poder de vigilância, tal como o exercido por departamentos governamentais, agências de polícia e corporações privadas, enquadra-se muito bem nessa descrição. Até as fronteiras nacionais, antes geograficamente localizadas – ainda que de modo arbitrário –, agora aparecem, nos aeroportos, distantes das “bordas” territoriais, e, o que é mais significativo, em bases de dados que podem nem estar “no” país em questão.7

Prosseguindo com o exemplo, a questão das fronteiras mutáveis, para muitos, é fonte de grande incerteza. É um momento de ansiedade passar pela segurança de um aeroporto sem saber exatamente em que jurisdição se está ou para onde irão seus dados pessoais, em especial quando se faz parte de uma população suspeita. E se você for desafortunado a ponto de ser detido ou descobrir que seu nome está numa lista de pessoas proibidas de voar, saber o que fazer é muitíssimo difícil. Além disso, é um desafio assustador realizar mudanças políticas que possam, por exemplo, tornar mais simples as viagens necessárias.

A fusão de formas sociais e a separação entre poder e política são duas características básicas da modernidade líquida que têm óbvia repercussão na questão da vigilância, mas vale mencionar duas outras conexões. Uma delas é a conexão mútua entre as novas mídias e os relacionamentos fluidos. Enquanto alguns culpam as novas mídias pela fragmentação social, Bauman vê as coisas funcionando nas duas direções. Ele sugere que as mídias sociais são um produto da fragmentação social, e não apenas – ou necessariamente – o contrário. Diz ele que, na modernidade líquida, o poder deve ser livre para flutuar, e barreiras, cercas, fronteiras e postos de controle são um transtorno a ser superado ou contornado. Densas e estreitas redes de vínculos sociais, especialmente com base no território, devem ser eliminadas. Para ele, é antes de tudo o caráter instável desses vínculos que permite o funcionamento dos poderes.

Aplicado à mídia social, isso é controverso, pois muitos ativistas veem um grande potencial de solidariedade social e organização política em tuítes e mensagens. Pense nos movimentos Occupy, o protesto generalizado dos chamados 99% contra o privilégio e o poder do 1% nos países mais ricos do mundo; ou na Primavera Árabe de 2011. Entretanto, essa é uma área a ser cuidadosamente observada, no mínimo porque está sob vigilância. A mídia social depende, para sua existência, do monitoramento de usuários e da venda de seus dados para outros. As possibilidades de resistência da mídia social são atraentes e, de alguma forma, fecundas, mas também são limitadas, tanto pela falta de recursos para relacionamentos duradouros num mundo em liquefação quanto pelo fato de o poder de vigilância no interior da mídia social ser endêmico e significativo.

A conexão final a ser feita aqui é que os tempos líquidos oferecem alguns desafios profundos para quem deseja agir de maneira ética, ainda mais no mundo da vigilância. O reconhecimento por Bauman das incertezas endêmicas num mundo líquido moderno exprimem o problema tal como ele o vê. E sua atitude preferida, rejeitando regras e regulações inertes, é vista em sua ênfase na relevância do encontro vivido com o Outro. Perceber nossa responsabilidade para com o ser humano diante de nós é o ponto de partida.

Duas grandes questões confrontam aqui a ética da segurança. Uma delas é a lastimável tendência ao que Bauman chama de “adiaforização”, em que sistemas e processos se divorciam de qualquer consideração de caráter moral.8 “Não é meu departamento”, seria a típica resposta burocrática a questionamentos sobre a correção de avaliações ou julgamentos oficiais. A outra é que a vigilância torna mais eficiente o processo de fazer coisas a distância, de separar uma pessoa das consequências de sua ação. Assim, os controles de fronteiras podem parecer automatizados, desapaixonados, mesmo quando negam a entrada de uma pessoa em busca de asilo que tenha a origem étnica “errada”, temendo por sua própria vida se for enviada de volta.

Outro ângulo da adiaforização em termos de vigilância é a forma como dados do corpo (dados biométricos, DNA) ou por ele desencadeados (por exemplo, situações em que se faz um login, usa-se um cartão de acesso ou mostra-se a identidade) são sugados para bases de dados a fim de serem processados, analisados, concatenados com outros dados e depois cuspidos de volta como “replicação de dados”. As informações que fazem as vezes da pessoa são constituídas de “dados pessoais” apenas no sentido de que se originaram em seu corpo e podem afetar suas oportunidades e escolhas existenciais. A “replicação e fragmentação de dados” tende a inspirar mais confiança que a própria pessoa – que prefere contar sua própria história. Os designers de software dizem que estão simplesmente “lidando com dados”, de modo que seu papel é “moralmente neutro” e suas avaliações e distinções são apenas “racionais”.9

Pense líquido

Assim, até que ponto a noção de modernidade líquida – e, aqui, de vigilância líquida – nos ajuda a entender o que está ocorrendo no mundo de monitoramento, rastreamento, localização, classificação e observação sistemática que é a vigilância? A resposta simples, em uma só palavra, é “contexto”. É fácil interpretar a difusão da vigilância como fenômeno tecnológico ou como algo que lida simplesmente com “controle social” e “Grande Irmão”. Mas isso é colocar toda a ênfase em instrumentos e tiranos, e ignorar o espírito que anima a vigilância; as ideologias que a impulsionam; os eventos que a possibilitam; e as pessoas comuns que concordam com ela, a questionam ou decidem que, se não podem vencê-la, é melhor juntarem-se a ela.

As interpretações populares da vigilância veem essas manifestações como a marcha cada vez mais acelerada da tecnologia, colonizando sempre novas áreas da vida e deixando cada vez menos áreas intocadas, “indígenas”, da existência “privada”. Assim, do onipresente código de barras que identifica várias classes de produtos segundo o tipo ou a fábrica, passamos para os chips de identificação por radiofrequência (RFID, de Radio Frequency Identification), que oferecem identificadores individuais para cada produto. Mas não apenas produtos. RFIDs também são usados em passaportes e roupas, e os dados que emitem podem ser facilmente conectados ao portador ou usuário. Ao mesmo tempo, outros dispositivos, como os códigos de resposta rápida (QR, de Quick Response code), conjuntos de símbolos quadriculados que podem ser escaneados com um smartphone, aparecem em muitos produtos, marcas e, sim, roupas (embora também tenham origem na busca de cadeias aceleradas de suprimentos). Use um bracelete de silício com um QR como acessório da moda, e basta sussurrar “me escaneie”. Isso faz com que se abra uma página da web com seus dados de contato, links de mídia social e todo o resto. Você é um hyperlink humano.

Os habitantes do mundo da modernidade “sólida” reconheceriam, e talvez aplaudissem, a ideia de códigos de barras como forma eficiente de catalogar estoques. Observem a racionalização burocrática perfeitamente expressa num dispositivo tecnológico. Mas a etiqueta RFID significa mais num mundo onde se deve dar mais atenção não apenas a classificar e vender produtos, mas também a descobrir exatamente onde eles estão a qualquer momento num regime de administração conhecido como just-in-time. Manter apenas o estoque é desperdício. Você precisa que os kanban (como os japoneses os chamam) sinalizem que a coisa certa está no lugar certo no momento certo. Não admira que essa ideia funcione de modo tão equivalente no mundo da segurança!

Mas enquanto no universo sólido moderno alguns aprovariam a noção de conhecer detalhes para garantir que as pessoas certas estejam no lugar certo no momento certo, quem poderia imaginar (num mundo solidamente moderno) que tais detalhes seriam anunciados espontaneamente para todos? Embora o RFID se ajuste a situações em que os dados são constantemente exigidos, as novas aplicações de QR falam a um mundo onde as pessoas estão ativamente engajadas no compartilhamento de dados. O RFID, por exemplo, verifica os fluxos transfronteiriços, filtrando-os para permitir a passagem fácil de alguns produtos e pessoas, mas não de outros. Mas o novo QR, embora ainda sirva a propósitos de vigilância, tem como objetivo minimizar a fricção do consumo compartilhando livremente informações sobre eventos, oportunidades e, possivelmente, pessoas. Sua atração reflete seu contexto líquido-moderno.

E quanto à questão do controle social, do Grande Irmão de George Orwell? Se a vigilância não diz respeito unicamente ao poder crescente das novas tecnologias, será que ela não se refere à forma como esse poder é distribuído? A metáfora-chave para a vigilância, pelo menos no mundo ocidental, sem dúvida é o Grande Irmão. Quando a administração governamental se concentra nas mãos de uma só pessoa ou partido que usa o aparato administrativo, com seus registros e arquivos, como forma de controle total, estamos falando do Grande Irmão. Em 1984, de Orwell, “imaginado” – como já o descrevi – “como uma advertência pós-Segunda Guerra Mundial sobre o potencial totalitário das democracias ocidentais, o Estado tornou-se patologicamente absorto pelo próprio poder e está intimamente envolvido no controle cotidiano das vidas de seus cidadãos”.10

Mas, embora a metáfora de Orwell seja convincente (assim como seu compromisso com a “decência” humana como seu antídoto), há outras metáforas. A descrição que Franz Kafka faz dos poderes obscuros que o deixam inseguro em relação a qualquer coisa (Quem sabe sobre você? Como sabem? Como esse conhecimento o afeta?) talvez seja quase correta no mundo das bases de dados dos dias atuais (como Daniel Solove e outros têm afirmado),11 mas, tal como a de Orwell, ainda se refere essencialmente a agentes do Estado. Metáfora um pouco mais recente vem do utilitarista reformador prisional Jeremy Bentham, com uma palavra baseada no grego, “pan-óptico”, que significa “lugar de onde tudo se vê”. Todavia, isso não era ficção. Era um plano, um diagrama, o desenho de um arquiteto. Mais que isso, significava “arquitetura moral”, uma receita para refazer o mundo.

Esse postulado, o pan-óptico, conecta mais amplamente o mundo acadêmico com a vigilância, não apenas em função de Bentham, mas por causa de Michel Foucault, que, em meados do século XX, viu nele a principal característica do que Bauman chama de modernidade sólida. Foucault concentrou-se na disciplina pan-óptica, ou “treinamento da alma”, produzindo trabalhadores bem-ordenados. Para Bauman, Foucault usa o pan-óptico como a “arquimetáfora do poder moderno”. No panóptico, os prisioneiros “não podiam mover-se porque estavam sob vigilância constante; tinham de permanecer o tempo todo nos lugares designados porque não sabiam, nem tinham como saber, onde estariam os guardas – estes, livres para se mover à vontade – naquele momento”.12 Hoje, porém, essa fixidez rígida se dissolveu de tal forma que (quer chamemos ou não de “líquido” esse estágio da modernidade) “também é, e talvez acima de tudo, pós-pan-óptica”. Se naquela época era possível presumir que o inspetor pan-óptico estava presente (em algum lugar), nas atuais relações de poder, os que controlam suas alavancas “têm a possibilidade de, a qualquer momento, fugir para algum lugar inalcançável – para a pura e simples inacessibilidade”.13

Tanto Bauman quanto eu pensamos (não necessariamente pelos mesmos motivos!) que hoje muito se liga ao destino do panóptico, e parte de nosso projeto neste livro é desenredar as implicações prementes e as práticas do que para alguns pode parecer um debate abstratamente acadêmico. Tal como a expressão “Grande Irmão” continua a captar a imaginação dos que se preocupam com o poder arrogante do Estado, a descrição do pan-óptico nos diz muito sobre como opera a vigilância no século XXI. Se Bauman está certo, fechou-se a cortina de uma era de “engajamento mútuo”, em que administradores e administrados confrontavam-se. O novo espetáculo é um drama mais ardiloso, em que “o poder pode mover-se à velocidade de um sinal eletrônico”.

São enormes os desafios que isso apresenta. Expressando de uma forma muito simples, as novas práticas de vigilância, baseadas no processamento de informações e não nos discursos que Foucault tinha em mente,14 permitem uma nova transparência, em que não somente os cidadãos, mas todos nós, por todo o espectro dos papéis que desempenhamos na vida cotidiana, somos permanentemente checados, monitorados, testados, avaliados, apreciados e julgados. Mas, claramente, o inverso não é verdadeiro. À medida que os detalhes de nossa vida diária se tornam mais transparentes às organizações de vigilância, suas próprias atividades são cada vez mais difíceis de discernir. À proporção que o poder se move à velocidade dos sinais eletrônicos na fluidez da modernidade líquida, a transparência simultaneamente aumenta para uns e diminui para outros.

Entretanto isso não é necessariamente intencional, muito menos conspiratório. Parte da obscuridade da nova vigilância tem a ver com seu caráter tecnicamente sofisticado e com os complexos fluxos de dados dentro das organizações e entre elas. Outra parte relaciona-se ao sigilo que cerca a “segurança nacional” ou a competição comercial. Além disso, no que Bauman chama de mundo pós-pan-óptico da modernidade líquida, grande parte das informações pessoais vigorosamente absorvida pelas organizações é, na verdade, disponibilizada por pessoas que usam telefones celulares, compram em shoppings, viajam de férias, divertem-se ou surfam na internet. Passamos nossos cartões, repetimos nossos códigos postais e mostramos nossas identidades de forma rotineira, automática, espontânea.

Nada disso, contudo, nos deixa impunes. Pois da mesma forma que o pan-óptico moderno causou profundas consequências sociais e políticas, esses efeitos ainda acompanham os poderes amplamente pós-pan-ópticos da modernidade líquida. Embora a perda da privacidade possa ser a primeira coisa que vem à cabeça de muitos quando se debate o tema da vigilância, é fácil comprovar que a privacidade não é a baixa mais relevante. As questões do anonimato, da confidencialidade e da privacidade não devem ser ignoradas, mas também estão estreitamente ligadas a imparcialidade, justiça, liberdades civis e direitos humanos. Isso porque, como veremos, a categorização social é basicamente o que a vigilância realiza hoje, para o bem ou para o mal.15

Evidentemente há algumas continuidades entre as formas mais antigas e mais novas do poder de vigilância, todas elas servindo para distribuir chances e oportunidades de vida, recompensas e privilégios. Princípios pan-ópticos serviram historicamente para manter a hierarquia e as distinções de classe, tanto em lares e escolas quanto em fábricas e prisões.16 Assim, embora, paradoxalmente, as correntes e contracorrentes da modernidade líquida possam parecer arbitrárias e acidentais, a lógica da estatística e do software que orienta a vigilância atual produz resultados estranhamente coerentes. Não apenas – e clamorosamente – “árabes” e “muçulmanos” percebem estar sujeitos a um exame mais “aleatório” que os outros nos aeroportos, mas também, como demonstra Oscar Gandy, a categorização social alcançada pela contemporânea vigilância do consumidor constrói um mundo de “desvantagens cumulativas”.17

Mas estamos nos adiantando. Sugiro que o conceito de modernidade líquida oferece um contexto mais amplo para uma reflexão sobre vigilância do que simplesmente o desenvolvimento de tecnologias ou o crescente alcance do poder. A vigilância, que só nos tempos modernos assumiu o papel de instituição social-chave, agora compartilha algumas características com as formas emergentes de modernidade que Bauman chama de “líquidas”, e por elas é moldada. Assim, um modo de entender os nascentes padrões de vigilância é investigar de que maneira eles se relacionam com a modernidade líquida.

Diálogo

Os diálogos que se seguem abrangem uma gama de tensões e paradoxos da vigilância contemporânea, usando a já descrita metáfora “líquida” como instrumento de sondagem. Começamos a jornada, por assim dizer, exatamente onde estamos, no mundo das relações eletronicamente mediadas. Bauman publicou, no verão de 2011, um texto tipicamente irônico, refletindo sobre os drones de vigilância e a mídia social – e esse tema vai nos levar diretamente ao assunto. Os drones podem ser agora tão minúsculos quanto um beija-flor, porém, o néctar que procuram é cada vez mais composto de imagens de alta resolução das pessoas que encontra em seu caminho. De qualquer forma, contudo, por que se preocupariam? Afinal, o anonimato já está em processo de auto-erosão no Facebook e em outras mídias sociais. O privado é público, é algo a ser celebrado e consumido tanto por incontáveis “amigos” quanto por “usuários” casuais.

Mas, como já insinuamos, não podemos fugir à questão das dimensões pós-pan-ópticas da modernidade líquida, e vamos investigar profundamente esse debate. Ele situa nossa discussão, contrastando a fixidez e a orientação espacial da vigilância sólida moderna com os sinais móveis, pulsantes, das formas fluidas de hoje. Em que aspectos devemos continuar seguindo Foucault e em que seu relato precisa ser atualizado, ampliado ou, no que nos interessa, repelido? Esses diálogos também vão entrelaçar fios correlatos: sobre a relação entre metáfora e conceito, sobre debates com pessoas como Deleuze, Derrida e Agamben, e, evidentemente, sobre as repercussões éticas e políticas de nossas opções teóricas e conceituais.

As dimensões tecnológicas, ou melhor, tecnossociais, da vigilância atual também serão colocadas sobre a mesa, e mais uma vez voltaremos atrás para recordar os legados terrivelmente ambivalentes da modernidade sólida expostos por Bauman em Modernidade e Holocausto, de 2001. Será que a organização meticulosa, a cuidadosa distinção entre o agente e a vítima, a eficiência mecânica da operação observada nos comboios de gado humano e nos campos de extermínio agora se devotam não mais à violência física, mas à classificação da população em categorias, tendo em vista um tratamento diferencial? Como as tecnologias eletrônicas e em rede provocam essas consequências menos catastróficas, porém não menos insidiosas, em particular para os grupos já discriminados? Indiferença, distanciamento e automação hoje desempenham cada qual o seu papel, com a ajuda do computador.

Outra linha do diálogo diz respeito às formas de vigilância relacionadas especificamente à segurança. No norte global, o 11 de Setembro serve para amplificar obsessões preexistentes com segurança e risco, ainda que os acontecimentos daquele dia sejam interpretados de forma diferente ao redor do planeta. Vamos evitar as noções simplistas de que segurança e liberdades civis constituem um jogo de soma zero, ou de que só aqueles com “algo a esconder” é que têm motivo para o medo. E vamos enviar nosso sonar para perscrutar o emergente complexo de segurança-vigilância, em que a terceirização e a mediação de contratos aproximam os mundos polvilhados de dados das agências de comércio e informações, e em que as clássicas armas do medo e da suspeita ainda são manuseadas.

E caso vocês estejam imaginando o que aconteceu aos temas clássicos de Bauman, como consumismo e reprodução da pobreza,18 antes que seu café esfrie também vamos confrontá-los, investigando o tempo todo suas relevantes dimensões de vigilância. Bauman tem exposto infatigavelmente as maneiras pelas quais o consumismo está em simbiose com a produção de divisões e também de identidades sociais. Um paradoxo aqui é que, enquanto o consumo exige a sedução prazerosa dos consumidores, essa sedução também é resultado da vigilância sistemática numa escala de massa. Se isso não era óbvio em função de formas anteriores de marketing de base de dados, o advento da Amazon, do Facebook e do Google indica o atual estado da arte. Uma vez mais, porém, estamos nos adiantando.

Cada tema deste diálogo sugere questões não apenas sobre a análise adequada da vigilância – “Será que ela é líquida?” “Que diferença isso faz?” –, mas também sobre os insistentes desafios de ordem ética que acompanham essa pesquisa. Partindo de uma análise de Bauman em Postmodern Ethics, de 1993, e em outros textos, perguntamos em que medida a ética expositiva, ou mesmo normativa, deve falar às realidades da vigilância contemporânea. Em que medida elas podem ser usadas na abordagem das atuais e urgentes realidades políticas da vigilância, seja em demandas do governo por acesso ilimitado aos dados pessoais dos provedores de serviços da internet, seja na utilização de perfis de saúde para limitar a cobertura dos planos de alguns pacientes?

O último diálogo, sobre “agência e esperança”, nos leva muito além da vigilância líquida (na verdade, o diálogo anterior também o faz; seria difícil evitar isso!). Mas esses temas reapareceram diversas vezes em conversas anteriores, de modo que tentamos enfrentá-los diretamente aqui. Devo confessar que quando nossos diálogos transatlânticos atingiram esse ponto, passei a considerá-los cada vez mais divertidos – para não dizer eletrizantes – e a achar difícil esperar pelas respostas. Ao mesmo tempo, quando elas vieram (mais depressa que as minhas, deve-se dizer), às vezes fiquei confuso para saber como chegamos até ali, em nosso diálogo! Penso que, francamente, há algumas coisas que meu querido amigo realmente quer dizer e outras sobre as quais ele preferiria não falar, embora eu possa pressioná-lo. E não há problema nisso. Eu o respeito ainda mais.

Em todo esse diálogo, deve-se enfatizar que estamos apenas fazendo uma exploração conjunta, trocando ideias e insights, estimulados pela convicção predominante de que o teorema da modernidade líquida oferece indicações vitais para examinarmos a vigilância em nossos dias. Mas, embora estejamos de acordo sobre alguns compromissos fundamentais comuns, não concordamos numa série de aspectos importantes. Mas também concordamos em que vale a pena discuti-los.

DAVID LYON