CAPÍTULO 2
VIVEMOS EM UMA ÁREA DE DUOPÓLIO NO SETOR DE TECNOLOGIA. Há muita tecnologia formidável sendo desenvolvida em Israel, na Coreia do Sul, na Finlândia, na Índia etc. Mas os dois grandes líderes tanto em desenvolvimento quanto em aplicação são, indiscutivelmente, China e Estados Unidos. Não é uma opinião particular, mas um consenso global. A renomada revista britânica The Economist estampou na capa “A batalha pela supremacia digital”29 e a respeitada revista norte-americana Wired também fez matéria de capa onde explicitou “Como a China se tornou a superpotência dominante em tecnologia”.30
A China tornou-se a líder mundial em número de unicórnios, um total de 202, seguida pelos Estados Unidos. Esse número é subjetivo, pois as empresas são privadas. No meu trabalho para a Forbes que retrata a fortuna dos bilionários brasileiros, aprendi muito sobre a arte e a ciência para descobrir o valor de mercado de uma empresa privada. O valor correto de um ativo é “quanto alguém está disposto a pagar”.
Mais importante do que apenas o número que expressa o valor de mercado dessas empresas é o que elas representam. O termo unicórnio foi cunhado pela VC Aileen Lee em 2013 para descrever as empresas que evocam o mito do animal conhecido por muitos, mas capturado por poucos. Ao redor do mundo, quase que por definição, a maioria das startups falece depois de poucos anos. Competidores mais estabelecidos não facilitam a prosperidade delas, em busca de morder suas fatias de mercado. Nos últimos anos, uma série de empresas promissoras atingiram o status de unicórnios na China. Essas startups estão crescendo vertiginosamente e muitas estão gerando enormes fortunas logo no início de seus desenvolvimentos. A maioria dessas empresas está na vanguarda de sua indústria, abrindo caminho para a adoção de novas tecnologias e modelos de negócios. Sua ascensão é, portanto, considerada um indicador da modernização da economia. Por isso, os unicórnios são importantes; mesmo que seus valores de mercado estejam inflados, eles mostram que a economia está aberta para o novo prosperar.
Diferente de negócios na velha economia, a maioria dos unicórnios são competitivos porque encontraram modelos de negócios para extrair valor a partir do uso de tecnologia e/ou novos modelos de negócios, e não por terem mais capital, melhores conexões ou mais distribuição. A China já é muito mais digitalizada que os observadores que não visitaram o país podem imaginar.
Esses unicórnios chineses estão bem capitalizados e se movem em velocidade de Jedi – especialmente se comparados com corporações da velha economia. É impressionante a velocidade com que nascem unicórnios na China. O país criou um novo unicórnio a cada 3,8 dias em 2018. A diferença dos unicórnios chineses é seu acesso quase que exclusivo a um mercado gigantesco, não maduro e em rápida evolução. A maioria dos unicórnios chineses são visíveis na China, mas não muito bem entendidas fora dela. Vários serão relevantes em âmbito global em seus setores. Nem todos sobreviverão, mas creio que muitos não continuarão desconhecidos por muito tempo. A PwC31 afirma que mais de 70% deles possuem planos de expansão internacional.
Encontrar talento é um dos fatores-chave de sucesso para os unicórnios ganharem e manterem vantagem competitiva. Grande parte dos funcionários desses unicórnios são jovens nascidos depois de 1990. Em razão da Revolução Cultural e do passado recente turbulento e pobre da China, as diferentes gerações parecem viver em mundos paralelos e têm dificuldade em se comunicar. Quem tem mais de 45 anos e viveu os períodos de vacas magras muitas vezes não entende o jovem com menos de 30 anos. Portanto, muitos talentos recém-formados preferem trabalhar para empresas não estabelecidas, com outros jovens na liderança, do que para corporações maiores e com pessoas de outra geração no poder.
O duopólio China versus Estados Unidos na nova economia digital é representado não só na dominação no número dos unicórnios globais, mas também na quantidade de capital investida em startups por fundos de capital de investimento na China e nos Estados Unidos.
Por mais de duas décadas, os Estados Unidos, liderados por caucasianos do Vale do Silício, reinaram sozinhos no topo dos maiores investidores em startups de tecnologia. Essa liderança em inovação foi um dos pilares vitais para o poder e a dominância norte-americana. Recentemente, chegou um rival de olho puxado ameaçando a posição de líder. Seguem dados provando o duopólio: em 2017, mais de 75% de todo o capital no mundo investido por VCs em startups veio de duas fontes (Estados Unidos e China). Impressiona notar que em 2014 o VC da China não representava nem 15% de todo o capital investido por VCs em startups em todo o planeta. Três anos depois, em 2017, já representava 31,5%.
Na primeira metade de 2018, o inimaginável aconteceu. Os Estados Unidos perderam a soberania, e o volume de capital investido por VCs chineses superou o volume de capital investido por fundos de capital de risco norte-americanos. Alguns afirmam que esse surpreendente crescimento do setor tecnológico chinês foi a principal causa que motivou o presidente Trump a colocar lenha na fogueira da guerra comercial.
É um consenso que a China não teria atingido esse status de superpotência inovadora sem a definição do Xi e da cúpula do partido, que lançaram programas nacionais como “Made in China 2025” e “China Internet Plus”. Os mais críticos batem na tecla que o excesso de capital está encorajando empresas que não deveriam sobreviver, mas esse fenômeno de capital abundante não é exclusivo da China e, certamente, está ocorrendo nos quatro cantos do mundo.
VC COM CARACTERÍSTICAS CHINESAS
Capital é fator fundamental em um ecossistema inovador maduro. Há grande abundância de capital nos principais polos de inovação do mundo. Seja no Vale do Silício, em Israel ou na China, o capital abundante é fundamental para que ideias saiam do papel, mesmo sabendo que a maioria das ambiciosas startups não vingarão. Todo esse capital também serve como combustível para algumas crescerem da maneira mais veloz possível, atropelarem concorrentes, às vezes abrindo mão completamente de lucros no curto prazo. Na era do “winner takes all” (o vencedor leva tudo), a velocidade de crescimento é uma métrica fundamental na corrida para dominar mercados nacionais e internacionais.
O homem mais rico do Japão, Masayoshi Son, lançou o Vision Fund, com capital de 100 bilhões de dólares, investindo capital próprio no fundo da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos, na Apple, na Qualcomm, na Foxconn e outras gigantes multinacionais. Quem não olha para a China, como muitos da imprensa ocidental parecem fazer, afirma que o Vision Fund é o maior fundo de fundo de capital de risco (VC) do mundo. Quem entende de China sabe que o governo chinês é o maior VC do mundo.
Ninguém sabe ao certo quanto a China investe ou separou para investir em empresas de alta tecnologia, mas o consenso é que o maior VC do mundo é o governo chinês. No primeiro semestre de 2018, diversos níveis governamentais já estabeleceram 1.171 fundos de orientação, com o objetivo de investir 5,9 trilhões de yuans (856 bilhões de dólares) de acordo com a China Venture. A Zero2IPO32 coloca o número em mais de 11 trilhões de yuans. O Financial Times33 afirma que foram 12,5 trilhões de RMB ou 1,8 trilhão de dólares. Independentemente da quantia exata, a presença do Estado é óbvia. O premier Li Keqiang34 afirmou que: “A China apoiará o desenvolvimento de fundos de capital de risco (VC) como parte de seus esforços para impulsionar a inovação”.
Esses fundos de investimentos apoiados pelo Estado atuam como capital de risco ou fundos de fundos. O governo entra como sócio minoritário, tentando ser dono de até 30% no máximo, e deixa nas mãos de empreendedores do setor privado o difícil desenvolvimento de áreas como inteligência artificial, robótica, internet das coisas (IoT na sigla em inglês), entre outras. Esses fundos buscam retornos, e a saída mais comum para eles é ou a startup ser adquirida por empresa maior, ou fazer seu IPO (Initial Public Offering), ou seja, abrir o capital na bolsa de valores. Em novembro de 2018, o presidente Xi Jinping35 anunciou que a bolsa de valores de Xangai lançaria uma nova plataforma para empresas focadas em alta tecnologia e inovação “para encorajar pequenos e médios investidores a participar em investimentos em ciência e tecnologia por meio de fundos públicos”.
Veja alguns resultados que tamanha quantidade de capital gera: a China apresenta mais de duzentos unicórnios na primeira metade de 201936 e investe massivamente em startups ao redor do mundo. Em um envolvente relatório oficial37 do Escritório do Representante de Comércio dos Estados Unidos, fica claro que o governo norte-americano acredita que o Vale do Silício está sendo infiltrado pela China. O relatório cita o caso da Oriza Holdings, 100% de propriedade de um braço do município de Suzhou (cidade próxima a Xangai, conhecida como a Veneza da China), que investiu em 61 empresas de estágio inicial apenas nos Estados Unidos. De acordo com os norte-americanos, a Oriza já investiu 2,7 bilhões de dólares em 593 projetos e montou 84 fundos de capital de risco (VC) como subsidiários que gerenciam 10,2 bilhões de dólares e investiram em mais de 1.200 empresas.
A Bloomberg38 explicita a influência do capital chinês em startups nos Estados Unidos:
Não é só nos Estados Unidos que investidores chineses focados em tecnologia estão apostando suas fichas. De drones autônomos a startups focadas em mobilidade, de diagnósticos baseados em inteligência artificial a meios de pagamentos, dinheiro oriundo da China está sendo investido nos quatro cantos do globo, ampliando o acesso chinês à elite mundial de tecnologia, acumulando novos dados valiosos e solidificando a crescente influência e domínio tecnológicos.
A China já é uma superpotência no mundo de investimentos em empresas de alta tecnologia e está sentando à mesa onde estão os maiores negócios. Investidores chineses estão envolvidos em mais de 90 bilhões de dólares em negócios, perdendo apenas para os Estados Unidos – repare que cinco anos antes, a cifra investida era de apenas 11,5 bilhões de dólares.
No final do dia, o que importa é o resultado gerado de todos esses massivos investimentos. Entre 1997 e 2018, as empresas chinesas de capital de risco registraram melhor resultado, em média, que suas rivais norte-americanas, retornando 1,79 vezes o valor investido, em comparação com 1,7 vezes nos Estados Unidos, de acordo com a análise de 4 mil fundos feita pela eFront.39
O investimento de VCs na China é muito concentrado. As principais gigantes de tecnologia da Baidu, da Alibaba e da Tencent (BAT) são conglomerados ávidos compradores de empresas jovens. Quando as empresas chinesas atingem 5 bilhões de dólares de valor de mercado (valuation), cerca de 80% já aceitou investimentos de um desses três gigantes.40 Apenas a Tencent já investiu em mais de setecentas empresas – inclusive em mais de 120 unicórnios. A ByteDance, gigante mais nova e menor, vem seguindo a mesma cartilha e já reservou 3 bilhões de dólares para investir em outras empresas.
Na primeira metade de 2018, as startups situadas na China levantaram mais dinheiro do que as startups nos Estados Unidos: 56 bilhões de dólares na China versus 42 bilhões de dólares nos Estados Unidos. A velocidade desse crescimento é surpreendente: em 2010, apenas 4,6 bilhões de dólares haviam sido investidos em startups na China por VCs; em 2017, o valor cresceu quase catorze vezes, atingindo 64 bilhões de dólares.41 Veja a seguir a tabela com os fundos mais ativos da China:
A velocidade de crescimento do setor de VC na China é algo que não tem nenhum paralelo na história da humanidade. Em dez anos, foi de um setor inexistente da economia para líder mundial junto com os Estados Unidos. Repare no crescimento na quantidade de negócios realizados por VCs:
Apesar de os números do recente passado serem ascendentes, o futuro da indústria de VC na China tem que ser analisado com altas doses de ambiguidade. Quando o governo chinês decidir desalavancar a economia, uma das medidas prováveis será o fim do crescimento expansivo do financiamento de capital de risco, reduzindo os estímulos fiscais e diminuindo a oferta monetária para desencorajar empréstimos. Enquanto eu escrevo, os esforços de desalavancagem da China foram temporariamente revertidos por causa do atual conflito comercial com os Estados Unidos. A indústria de fundos de capital de risco na China é extremamente nova e nunca passou por um período de baixa. Não experimentaram ainda a inevitável seca que vem com as crises econômicas. Eu acredito que o inverno chegará, mas não vai matar o setor de VC chinês. Pelo contrário, vai doer no curto prazo, mas vai deixar o setor de VC do país mais forte no longo prazo. Quando a maré baixa, enxergamos quem está nadando pelado. Muitos no oceano sofrerão demais, alguns morrerão; os que ficarem, serão melhores nadadores. Os mais pessimistas dizem que 2020 será o pior ano desta década e o melhor da próxima.
NEIL SHEN, O MESSI DOS VCs
Você sabe quem é o Messi do mundo de investimentos em tecnologia? Quem é o melhor VC do planeta? Tente ao menos adivinhar a nacionalidade do camarada!
O melhor investidor em tecnologia do mundo é chinês!!! De acordo com a Forbes, Neil Shen, da Sequoia Capital China, é o bicampeão da lista Midas 2018 e 2019 – na mitologia grega, tudo o que o Rei Midas tocava virava ouro.
Neil Shen nasceu em Xangai e seu nome original era Shen Nanpeng. Muitos chineses adotam um nome ocidental e, na China, o sobrenome vem primeiro. Para ficar claro: eu seria Geromel Ricardo em vez de Ricardo Geromel. Shen Nanpeng foi estudar nos Estados Unidos, virou Neil Shen na prestigiosa Yale (onde também estudaram George W. Bush, Hillary e Bill Clinton, Meryl Streep, Edward Norton e outros poderosos) e trabalhou no mercado financeiro em Wall Street para o Deutsche Bank, a Lehman Brothers e o Citibank – antes de voltar à China para empreender.
Ele foi cofundador e CFO do Ctrip.com, espécie de KAYAK ou Expedia Group da China. O Ctrip é um dos apps essenciais que recomendo para todos que vêm visitar ou passar uma temporada por aqui. A chinesada usa o Ctrip para comprar passagens de trem, de avião e muito mais. Uma anedota interessante do Ctrip é que a empresa cresceu com Shen e seus sócios apostando que as pessoas gostariam de falar com alguém antes de comprar os bilhetes. Então, foram na contramão da economia digital e empregaram um gigantesco número de pessoas em call center – enquanto os competidores não ofereciam essa opção. A estratégia deu certo e o Ctrip hoje vale mais de 19 bilhões de dólares.
Depois de ser um empreendedor de muito sucesso, Shen decidiu voltar para o mundo dos investimentos e foi convidado para liderar o escritório da Sequoia na China. A Sequoia é o Real Madrid dos fundos focados em tecnologia. Eles simplesmente investiram cedo em Apple, Google, WhatsApp, Facebook e outras empresas que fazem parte do cotidiano de bilhões de pessoas ao redor do mundo. Parte essencial do trabalho do investidor profissional em empresas de tecnologia (os famosos VCs) é identificar os melhores talentos o mais cedo possível. Seria como identificar Messi ou Cristiano Ronaldo ou o zagueiro do Grêmio Pedro Geromel (eleito o melhor zagueiro do campeonato brasileiro em 2015, 2016, 2017 e 2018 e o melhor irmão do mundo nos últimos trinta anos) quando eles eram crianças com menos de 5 anos, apostar firme neles, ajudar a bancar seu crescimento, dar conselhos e sugestões nas tomadas de decisões e torcer para o craque mirim não se lesionar de maneira grave.
Na liderança da Sequoia na China, Shen tornou-se bilionário em dólares. A China só está atrás dos Estados Unidos em números de bilionários. Shen teve papel fundamental em levar para a China o LinkedIn, rede social entre profissionais, e o Airbnb, que permite pessoas alugarem quartos de sua casa para estranhos; também liderou investimentos na Alibaba, a gigante com o maior IPO da história da humanidade; na agressiva varejista JD.com, espécie de Amazon da China e na DJI, empresa chinesa que vende mais de 70% dos drones comerciais no planeta.
Além de investir em empresas que somadas valem mais de 1 trilhão de dólares e liderar bilhões de dólares em investimentos, Shen é conhecido por carregar três celulares, ser rigoroso no processo de due dilligence (o estudo aprofundado dos números, dos contratos, dos históricos etc. de uma empresa), gostar de golfe e empregar mais pessoas na sua equipe do que os fundos norte-americanos estão acostumados. Na ilha tropical de Hainan, espécie de Havaí para os chineses, Shen tem uma mansão colada na de Jack Ma, fundador da Alibaba e a pessoa mais rica da China, segundo a última lista da Forbes.
Shen é uma celebridade no mundo dos investimentos, o simples fato de ele investir em uma empresa automaticamente aprecia o valor de mercado da dita cuja. Ou seja, a empresa não muda em nada, apenas tendo o nome dele como investidor, ela passa a valer mais (lembre-se de que o mercado não é racional). Shen afirma que: “[Na China] ainda estamos no começo da urbanização. O consumo crescerá gradualmente com a migração de pessoas para cidades. A tecnologia vai seguir crescendo e ganhando uma parte do mercado dos setores tradicionais”.
Em entrevista que vale a pena assistir para estudantes em MBA de Stanford,42 Neil recomendou:
Você tem que seguir o seu coração. É difícil fazer a escolha perfeita. Cada vez que eu decido, eu me pergunto primeiro: ‘Isso segue uma grande tendência?’. Segundo, talvez mais importante: ‘Eu realmente gosto de fazer isso?’. Se você não amar realmente o que vai fazer, não vai ser sustentável. Se você apenas perseguir uma oportunidade mas é algo que você não gosta, ou é algo que você não sabe se você gosta ou não, você vai pular para outra tendência em pouco tempo [...] não importa a opinião de outros, encontre a sua paixão e os seus interesses, e vá atrás deles.
Em outra entrevista,43 ele disse: “Ter uma startup de sucesso não é um Sprint, é uma corrida de longa duração, uma maratona ou até uma grande marcha44 [...] empreendedores de sucesso têm apetite PARA risco e são persistentes”. As falas de Neil Shen revelam algo muito profundo da cultura chinesa: admiração por trabalho duro. E quem convive com chineses entende o apreço da cultura local pelo foco em resultados práticos. Também revelam a importância de entender a história contemporânea da China. O franco Neil Shen foi perguntado sobre o que é necessário para ser promovido, avançar na sua empresa Sequoia Capital China, e ele respondeu imediatamente “ganhar dinheiro”.45 Quando perguntado, além de ganhar dinheiro, o que mais é necessário, Neil confirmou: “é apenas isso”. O pragmatismo dos chineses é um fator essencial e não pode ser exagerado, por mais inspiradora que a história do empreendedor de sucesso seja.
Um dos exemplos de golaço do Neil Shen foi que a Sequoia investiu 34,6 milhões de dólares na Bytedance em 2014. Em 2018, aquele investimento valia 885 milhões de dólares, mais de 25 vezes o valor investido, e isso ainda foi antes de a empresa levantar capital em valor de mercado global de 80 bilhões de dólares.
Em 2019, Sequoia China, liderada por Shen, fechou em pouco tempo um fundo de 8 bilhões de dólares para investir em startups de estágio inicial. Eu aposto que Neil vai continuar sendo protagonista na cena da internet global.
MAIS SOBRE A LISTA MIDAS DA FORBES
A Forbes entrega o prêmio Midas e lança uma lista dos cem melhores investidores de tecnologia a cada ano. Participei da cerimônia de entrega do prêmio no Nasdaq Entrepeneurial Center – prédio vizinho ao escritório da StartSe em São Francisco. Foi uma honra estar na mesma sala que vários membros da realeza do Vale do Silício. No Oscar para a indústria de investimentos em tecnologia, a maioria das pessoas estavam vestidas de jeans e havia pouquíssimas mulheres. O setor de investimentos em tecnologia é um dos que tem menor participação feminina nos Estados Unidos: em 74% dos fundos de investimentos norte-americanos não há mulheres em posições de tomar decisão; 53% dos maiores fundos não tem mulher nenhuma. Esses dados são de Alex Konrad,46 um dos editores da lista Midas, que explica a metodologia da Forbes para compilar a lista Midas: leva-se em consideração os retornos em mais de 4 mil deals (negócios) de centenas de fundos de capital de risco.
Incomoda-me demais a falta de representação das mulheres no mundo dos investimentos. Por isso, gostei de ver que no artigo47 que anunciava a lista deste ano, a Forbes incluiu fotos de 36 mulheres se destacando em fundos de capital de risco (apesar de só ter nove mulheres entre os cem principais investidores em tecnologia no mundo). Aliás, uma delas foi Emily Melton, que havia investido no San Francisco Deltas, time de futebol que cofundei, que ganhou o campeonato nacional em sua primeira temporada derrotando o New York Cosmos na final e, como a maioria das startups, fechou as portas.
Tenho duas grandes apostas para a lista Midas do ano que vem:
•Mais investidores da China!
•Mais investidoras mulheres!
Assim como me incomoda a falta de representação feminina no mundo de investimentos, me incomoda quão pouco a maioria dos brasileiros sabe sobre a China. Lembre-se do nome Neil Shen. Tanto as empresas de tecnologia chinesas quanto os investidores chineses começarão a ser mais conhecidos ao redor do mundo. É importante entender quem são, como pensam e o que os motiva. Para tentar entender e prever seus próximos movimentos no jogo de xadrez da vida, vale a pena estudar atentamente os movimentos passados.
HANGZHOU E A CIDADE DOS SONHOS DOS EMPREENDEDORES
Hangzhou é conhecida na China como o “Paraíso na Terra”. Não estou exagerando. Ao entrar no site da Universidade Zhejiang, universidade de negócios mais antiga da China, é possível ver explicitamente escrito: “[...] localizada em Hangzhou, Paraíso na Terra”. Quando você contar para qualquer chinês que visitou Hangzhou, ele provavelmente vai fazer comentários elogiosos sobre a ex-capital do império. Ou vai perguntar se foi fazer reunião na Alibaba, sediada nessa cidade que fica a cerca de uma hora de trem de alta velocidade de Xangai. Foi em Hangzhou que a China recebeu líderes do mundo todo quando sediou a conferência G-20 em 2016. Mais de 4 mil voluntários ajudaram na organização do evento que também serviu para ajustar a imagem da China no mundo. O show de luzes de Hangzhou é o mais impressionante que já vi na vida – deixa o de Singapura no chinelo.
Hangzhou é a terceira cidade da China com o maior número de unicórnios (atrás apenas da capital Pequim e de Xangai e na frente de Shenzhen). Em maio de 2019, o número era dezenove de acordo com o Instituto Hurun. São mais unicórnios naquela cidade de cerca de 10 milhões de habitantes que no Brasil inteiro.
Arrisco afirmar que em nenhum outro lugar do mundo a presença do governo para impulsionar startups pode ser sentida de maneira tão expressiva quanto em Hangzhou. Em abril de 2018, o governo aderiu a um fundo de 10 bilhões de RMB (isso, com “B” – ou cerca de 5 bilhões reais) para investir em startups focadas em blockchain.
Hangzhou é o berço para várias iniciativas governamentais que almejam transformar a cidade em um dos principais polos de inovação do mundo que apoia startups. Ao redor do mundo, governos apoiam empresas de tecnologia gigantes e já estabelecidas – lembre que os governos locais dos Estados Unidos facilitaram para a fábrica da Tesla e os armazéns/escritório da Amazon; e no Brasil, temos a Zona Franca de Manaus. Em Hangzhou, um dos focos principais é startups.
A cidade construiu a Dream Town, região de 3 mil quilômetros e local utópico para empreendedores. Onde antes havia celeiros de grãos, agora se concentram incubadoras, aceleradoras, fundos e espaços modernos na cidade dos sonhos dos empreendedores. Com mais de trinta incubadoras e 1.386 fundos com capital comprometidos de mais de 40 bilhões de dólares, a Dream Town oferece condições quase que inacreditáveis para startups e empreendedores do mundo inteiro que passam no seu processo seletivo. O governo também investe milhões diretamente.
Em diversas reuniões, pedi para as pessoas repetirem os benefícios, pois achei que tinha entendido mal o inglês não tão perfeito delas. Veja só: o governo não só aceita investir na startup, como também cede escritório de graça, condições de visto preferenciais e chega até a pagar por moradia dos empreendedores selecionados. Tudo isso sem ter nenhuma contrapartida de equity (participação no capital social) da startup. Um membro do partido me revelou as condições oferecidas para os vencedores de Prêmio Nobel que querem mudar e fazer empresas na Dream Town. Para mim, foi até difícil de acreditar. Chega a ser obsceno.
Essa Dream Town parece boa demais para ser verdade, né!? Em um dos grupos que organizo para ir direto na fonte explorar a inovação na China, vieram membros da imprensa brasileira, que relataram extensivamente sobre a Dream Town. Confira os relatos de jornalistas do Valor Econômico,48 da Folha de S.Paulo49 e do Globo50 sobre a Dream Town.
E a inovação em Hangzhou não termina por aí. Em 2017, a cidade de Hangzhou inaugurou a AI Town (cidade da inteligência artificial), no coração da Future Technology City em Hangzhou (cidade de tecnologia do futuro), próxima ao Dream Town e à renomada Universidade Zhejiang. Na cerimônia de lançamento, o secretário-geral do Partido Comunista (CPC) prometeu investimentos bilionários na AI Town.
O governo de Zhejiang, província da qual Hangzhou é a capital, promete investir mais de 500 bilhões de RMB (cerca de 250 bilhões de reais) em cem centros de inovação, como AI Town e Dream Town, para transformar a região na líder em inovação e atrair os melhores empreendedores e startups da China e do mundo. Algumas das outras faraônicas já construídas e em funcionamento: E-Fashion Town (cidade da e-moda), Autonomus Vehicle Town (cidade dos veículos autônomos), Mobile Gaming Town (cidade dos jogos para dispositivos móveis), IoT Town (cidade da internet das coisas).
Está decidido: uma das mais belas cidades da China será um dos principais polos de inovação no mundo. As pessoas mudam para cá não só pelas facilidades referentes ao acesso ao capital, à burocracia mais simples, menos impostos, mas também por encontrarem melhor talento aqui. O governo se esforça para criar esse círculo virtuoso para os empreendedores. Conversei com europeus, africanos e pessoas do Oriente Médio que mudaram para Hangzhou para tocar suas empresas – aqueles benefícios prometidos pelo governo são verdadeiros. Comparado com Shenzhen e Xangai, veremos menos laowais (estrangeiros) em Hangzhou e as pessoas tendem a falar menos (e pior) inglês.
Além do capital, pesquisa acadêmica da mais alta qualidade é essencial para a construção de um ecossistema de inovação maduro. O Vale não seria o Vale sem a presença de Stanford e de Berkeley. Israel não seria a “Startup Nation” (Nação Startup) sem a Technion e a Universidade de Tel-Aviv (TAU). Enquanto em Shenzhen são as empresas que investem milhões de dólares e milhares de funcionários em pesquisa e desenvolvimento, o ambiente acadêmico de Hangzhou traz o ar utópico e sonhador típico do ambiente universitário.
Embora a cidade tenha passado por muitos desenvolvimentos urbanos recentes, ainda mantém seu patrimônio histórico e cultural. Hangzhou é o lar para a versão chinesa de Romeu e Julieta. A primeira vez que eu fui para Hangzhou foi em 2011. Naquela época, conheci apenas o lado turístico da cidade, uma das mais visitadas do país e berço do West Lake, apontado pela Unesco como patrimônio da humanidade. Ao lado do lago, há uma área cênica com pagodes históricos, locais culturais como templos e colinas, incluindo a montanha Phoenix. Um dos maiores estúdios de filmagem a céu aberto do mundo, o Hengdian World Studios ou Chinawood, fica muito próximo de Hangzhou. Há muito para explorar em termos turísticos e culturais em Hangzhou.
A Dream Town não é a única cidade chinesa a construir parques tecnológicos e a ceder condições extremamente interessantes para empreendedores nacionais e estrangeiros. Fui convidado para dar palestras sobre oportunidades da nova economia no Brasil em Chengdu, Chongqing e Qingdao. Membros do partido dessas três cidades me chamaram para conversar e ofereceram condições similares às oferecidas em Hangzhou. Também foram comigo João Ricardo Ng Roldão, acionista dos Supermercados Roldão, e Rodrigo Streishorst, empreendedor em série com startup promissora em AI, GOT IT – se parecer bom demais para ser verdade, fique à vontade para perguntar diretamente a eles.51
POR QUE A CHINA SERÁ LÍDER EM INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL?
Se você considera inteligência artificial (IA ou AI em inglês) um termo muito distante do seu dia a dia, “coisa de nerd” ou “algo impossível de entender”, lembre-se de que quem sabia enviar um e-mail ou usar uma planilha de Excel trinta anos atrás também era chamado de futurista. E a velocidade de adoção de novas tecnologias está cada vez mais rápida. Compare quanto tempo levou para 50 milhões de pessoas usarem o telefone ou a televisão ou o cartão de crédito com quanto tempo levou para uma nova tecnologia (como o norte-americano Facebook ou a chinesa WeChat) alcançar 50 milhões de usuários. O fundador da Singularity, universidade no campus da Nasa, na Califórnia, popularizou diversas versões do gráfico a seguir:
Fontes: <https://www.visualcapitalist.com/how-long-does-it-take-to-hit-50-million-users/>.<https://blogs.wsj.com/economics/2015/03/13/it-took-the-telephone-75-years-to-do-what-angry-birds-did-in-35-days-but-what-does-that-mean/>.
Sundar Pichai, CEO do Google, disse: “Inteligência artificial é provavelmente a coisa mais importante que a humanidade já desenvolveu. Eu penso nisso como algo ainda mais profundo do que eletricidade ou fogo”.
Vladimir Putin, líder máximo da Rússia, declarou: “Quem liderar a IA vai dominar o mundo”.
Andrew Ng – ex-cientista-chefe da Baidu (espécie de Google da China), cofundador da Coursera e professor de Stanford – afirmou: “Inteligência Artificial é a nova eletricidade. Cem anos atrás, a eletricidade alterou as principais indústrias. A IA já avançou o suficiente para começar a transformar”.
Quando pessoas desse calibre falam, acho que vale a pena prestar atenção. Tenho como filosofia pessoal tentar sempre “subir nos ombros de gigantes” e aprender com os melhores. Há um consenso de que a inteligência artificial está no centro da próxima revolução tecnológica. No campo de inteligência artificial, as líderes mundiais são certamente a China e os Estados Unidos. A CB Insights, consultoria da nova economia, declara que em IA a China é maior que os Estados Unidos.52 Kai-Fu Lee, autor do livro AI Superpowers – China, Sillicon Valley and the New World Order [AI Superpowers, China, Vale do Silício e a Nova Ordem Mundial], deu uma palestra louvável no MIT sobre IA e o futuro do trabalho.53 Lee completou seu Ph.D em inteligência artificial na prestigiosa Universidade Carnegie Mellon em 1988, trabalhou na Apple, na Microsoft, foi o líder do escritório do Google na China e hoje lidera o Sinovation Ventures, fundo de investimento de capital de risco focado em startups em estágio inicial. Ele concluiu que, em grande parte graças aos avanços de IA, carros autônomos serão uma realidade nos Estados Unidos entre 15 e 20 anos, mas na China em apenas dez anos.
Você já dever ter ouvido que “dados são o petróleo da nova economia”. A inteligência artificial existe há mais de cinquenta anos. Entretanto, uma das razões principais para o avanço recente é a quantidade de dados disponíveis. Quanto mais dados, melhor para avançar a inteligência artificial. Sem uma quantidade expressiva de dados, a inteligência artificial tem dificuldade em progredir. A China tem uma população mais de quatro vezes superior à dos Estados Unidos. Além disso, os chineses estão mais habituados a pagar por dispositivos móveis. Em 2016, foram gastos na China mais de 9 trilhões de dólares em pagamentos por dispositivos móveis (smartphones, tablets etc.) e nos Estados Unidos foram gastos apenas 112 bilhões de dólares – cerca de oitenta vezes menos.
Em outubro de 2018, o Fórum Econômico Mundial (WEF na sigla em inglês) publicou um gráfico revelando que o PIB da China representava 15,4% de toda economia mundial e que havia alcançado 12,4 trilhões de dólares. E o leitor mais atento vai ficar atônito ao lembrar que 9 trilhões de dólares foram transacionados em pagamentos por dispositivos móveis na China em 2016. É importante explicar um detalhe: nem todas as transferências de dinheiro entram para a conta que calcula o PIB de um país. Exemplo: vamos imaginar que o Ricardo foi levar a Madison e a Sophia para jantar. A conta deu 3 mil RMB e o Ricardo pagou a conta inteira para o restaurante. Depois, tanto a Sophia quanto a Madison enviaram suas partes da conta (1 mil RMB cada) para o Ricardo pelo Alipay. No total, 5 mil RMB foram transacionados (3 mil do Ricardo para o restaurante e 2 mil para o Ricardo), porém apenas foi contabilizado na conta do PIB 3 mil RMB pagos para o restaurante. As outras transações não fazem parte da contagem do PIB. Para quem acha inovador pagar com o celular, na China já é normal pagar com o rosto pela identificação facial em vários locais, inclusive o McDonald’s e o KFC já aceitam esse tipo de pagamento.
A questão da privacidade também permite que mais dados sejam acumulados na China. Alguns dizem que o governo usa tecnologia de reconhecimento facial em mais de 170 milhões de câmeras em locais públicos, e o número total de câmeras vai saltar para 400 milhões até 2020.54 Enquanto no Brasil câmeras são usadas para identificar e fotografar placa de carros que cometem infração – como usar o carro em dia de rodízio ou passar do limite de velocidade –, na China as câmeras fotografam o rosto do sujeito infrator, que recebe a multa em casa. Os motoqueiros geralmente não usam capacete e, ao cometer infrações, já recebem a multa em casa. A câmera, armada com IA, identifica a cara, fotografa, e a multa é emitida direto para o endereço da pessoa. Isso também é usado para pedestres que cruzam fora da faixa ou no farol vermelho. Muitas vezes, a imagem de quem cometeu a infração também é exibida em praça pública para explicar para os outros como funciona e também para servir de exemplo. As câmeras em locais públicos também são usadas para multar quem fala ao telefone enquanto dirige. A tecnologia é nova e vem se aperfeiçoando. Houve um caso escandaloso de um camarada que recebeu multa por falar ao telefone enquanto dirigia. A multa chegou à sua casa, acompanhada de uma foto. Ao conferir a foto, ele viu que não estava falando ao telefone, apenas coçando o rosto. Recorreu, não precisou pagar a multa e o caso viralizou. A máquina também erra (ainda).
Uma das empresas líderes em reconhecimento facial é a gigantesca Megvii. Sua plataforma aberta permite a qualquer pessoa desenvolver aplicativos usando seu algoritmo. Em pouco tempo, ela já se tornou a maior plataforma de reconhecimento facial do mundo, com 300 mil desenvolvedores de 150 países. A Megvii conta com essa popularidade para tornar seu sistema o maior e melhor do mundo. Imagine uma Apple Store ou um Google Play, no qual, em vez de baixar apps, você baixe softwares para instalar em suas câmeras e outros aparelhos. Visitamos a matriz da Megvii em Pequim diversas vezes onde me mostraram que suas tecnologias são aplicadas em câmeras de escolas, celulares, cruzamentos, aeroportos, escritórios e até mesmo em cafeterias, que podem interpretar as calorias do que você come e, ao identificar seu rosto, já avisam em seu celular (ou de sua esposa ou de seus pais) quantas calorias você está consumindo.
Mais de 1 bilhão de pessoas usam WeChat diariamente na China. São mais de 38 bilhões de mensagens enviadas a cada dia. Apenas com IA para as autoridades conseguirem controlar todo esse fluxo de informação. No WeChat, é possível ter grupos de até quinhentas pessoas atualmente. Alguns termos não são autorizados e, se transmitir algo subversivo, você pode ser seriamente punido. Desde 2013, difamação on-line por mensagens ou posts podem ser considerados graves violações das leis, se o post ofensivo for clicado mais de 5 mil vezes ou encaminhado mais de quinhentas vezes – a pena pode ser até três anos de prisão.55
Compare a cooperação das gigantes chinesas com as autoridades locais com aquele caso da Apple recusando publicamente o pedido do FBI de ter acesso ao iPhone do suspeito dos crimes em San Bernardino. O iPhone estava travado com uma senha de quatro dígitos que o FBI não conseguiu decifrar. O FBI queria que a Apple criasse uma versão especial do iOS que aceitasse uma combinação ilimitada de senhas eletronicamente, até que a correta fosse encontrada. Mas a Apple recusou alegando que uma nova versão desbloqueada do iOS poderia ser muito perigosa. Se mal utilizada, vazada ou roubada, poderia minar a segurança de centenas de milhões de usuários da Apple. Resumindo, a Apple não colaborou com o FBI e seu CEO publicou uma carta aberta dizendo: “Se o governo puder usar o All Writs Act para facilitar o desbloqueio do seu iPhone, ele terá o poder de acessar o dispositivo de qualquer pessoa para capturar dados”. Essa foi a frase usada por Tim Cook, CEO da Apple, para ganhar a opinião nacional. Importante fazer o contraste dessa opinião com qualquer declaração de líderes das grandes empresas de tecnologia chinesas.
Outros fatores essenciais para entender a liderança chinesa em IA incluem a atuação do governo e a quantidade de capital dedicado a essa nova tecnologia. O governo chinês anunciou publicamente sua intenção de ser o principal centro de inovação em inteligência artificial do mundo até 2030. Não sabemos ao certo quanto capital foi investido pelo governo chinês em inteligência artificial, mas tanto a cidade de Xangai56 quanto a de Tianjin anunciaram a criação de fundos de investimentos dedicados a IA no valor de 100 bilhões de RMB cada – ou seja, mais de 100 bilhões de reais em apenas duas cidades.57 Empresas de inteligência artificial na China receberam mais investimentos do que empresas de IA nos Estados Unidos e também desenvolveram quatro vezes mais patentes relacionadas a IA que os norte-americanos.58 As gigantes Baidu, Tencent e Alibaba (apelidados de BAT) possuem capital e outros recursos para competirem com as gigantes norte-americanas por talentos globais na área de IA. Em contraste, as FAMGA (Facebook, Amazon, Microsoft, Google, Apple) não possuem apoio governamental e competem entre si em diversos segmentos.
O Google não funciona na China desde 2010. Mas a gigante de Mountain View anunciou em dezembro de 2017 que abriria um centro de inteligência artificial em Pequim. Por quê? Pois as empresas da nova economia sabem que seu ativo mais importante são pessoas, e o Google foi em Pequim buscar o melhor arsenal possível para ganhar a guerra por talentos. A estratégia de recrutamento mais usada tem sido pagar salários astronômicos para os talentos, como se fossem jogadores de NBA.59 Google, Facebook, Apple, Amazon, Uber e outros desembolsam ofertas de emprego deslumbrantes para atrair os melhores para trabalharem em equipes que desenvolvem tecnologias de reconhecimento facial, assistentes digitais e carros autônomos. Recém-formados e Ph.Ds em Machine Learning e Data Science podem ganhar mais de 300 mil de dólares por ano no seu primeiro ano na empresa. Além da indústria de tecnologia, outras pagam salários exorbitantes para especialistas em tecnologia como: bancos, montadoras de automóveis e empresas farmacêuticas. Na China, há qualidade, quantidade e preços mais atraentes para contratar a única arma que pode fazer você ganhar essa guerra.
Aqui em Xangai, escuto que a IA terá implicações em todas as empresas. Praticamente todos os pitches (apresentações) de startups locais mencionam a IA como parte essencial da sua estratégia. Mas preciso fazer um desabafo: a IA me faz pensar em como os adolescentes encaram o sexo. Vários estão curiosos e não conseguem parar de falar sobre isso, alguns até já experimentaram, mas poucos entendem realmente como funciona. Há também um consenso de que em pouco tempo será parte essencial da vida deles – algumas linhas da Psicologia defendem que o ímpeto sexual é uma das principais motivações do ser humano. Quando alguém me pergunta uma habilidade que eu recomendaria aprender, a resposta é óbvia. Estude sobre inteligência artificial, simplesmente há mais demanda do que oferta de profissionais qualificados nessa área que traz e trará implicações em todos os setores da economia.
Nessa nova economia em que vivemos, as coisas mudam em uma velocidade avassaladora. O primeiro iPhone foi lançado há pouco mais de dez anos. Hoje é difícil imaginar nossas vidas sem smartphones. Os exemplos mais banais de como a IA já faz parte em nosso dia a dia são: nas recomendações de filmes do Netflix, na timeline do Facebook, quando você fala com a Siri ou a Alexa, quando você compra na Amazon, ao ouvir música no Spotify, em suas buscas no Google, nos portais de notícias das principais publicações do mundo etc. Na China, é um pouco mais futurista e há cidades como Hangzhou, que já deixam a IA decidir quando os faróis estarão vermelhos ou verdes; crianças já aprendem inglês de maneira personalizada em seus smartphones; algumas empresas usam a IA para oferecer empréstimos de dinheiro sem envolver nenhum humano. Em breve, a IA estará nos serviços médicos, na sua geladeira, no jeito que você estuda, nas câmeras, nas guerras... será como o smartphone, onipresente. E várias dessas tendências serão iniciadas na China.
Quando olhamos para o futuro, as implicações econômicas do uso de IA são quase infinitas. McKinsey revelou que 800 milhões de trabalhadores serão substituídos por máquinas automatizadas até 2030.60 Países menos desenvolvidos e com menos recursos para investirem em robótica ficarão para trás. Será como uma transição que ocorreu no começo do século XX quando as pessoas começaram a migrar em grande escala do campo para as cidades. Nem tudo será apocalíptico, assim como a introdução do computador pessoal gerou novos empregos em 1980, a era do IA trará oportunidades que nunca existiram. Falando em emprego, na China, mais de 25% dos trabalhadores ainda estão no campo e cerca de 25% trabalham em produção industrial. Nos Estados Unidos, apenas 2% da mão de obra está no campo, visto que o número de pessoas por metro quadrado que trabalha no campo é extremamente menor em razão da maior automação; e cerca de 18% dos trabalhadores norte-americanos estão no setor de produção industrial.
Diferentemente da revolução industrial, na revolução da IA os trabalhos mais simples não serão automaticamente eliminados pelas máquinas. Os mais rotineiros, sim, mas a eliminação dos mais manuais será mais complicada. É muito mais fácil construir complexos algoritmos de IA do que robôs inteligentes. O cerne dessa lógica é um princípio conhecido como Paradoxo de Moravec, que aprendi com Kai-Fu Lee. Hans Moravec, especialista em inteligência artificial e robótica, chegou em uma verdade fundamental sobre a combinação dos dois: ao contrário das suposições populares, é relativamente fácil para a IA imitar o poder intelectual de alto nível de um adulto, mas é muito mais difícil ensinar a um robô a percepção e as habilidades sensório-motoras de uma criança. Os algoritmos são infinitamente superiores aos seres humanos quando se trata de fazer previsões complexas. Enquanto a IA pode vencer os melhores seres humanos no xadrez e diagnosticar câncer com extrema precisão, os robôs ainda não conseguem realizar as simples tarefas de limpeza de uma empregada de hotel de maneira mais eficiente que um ser humano. Resumindo, a IA já é fabulosa para pensar, robôs ainda são ruins em movimentar seus dedos.
O que mais me alarma em relação ao uso massivo de IA é sua tendência de monopólio. Obviamente para ter uma boa IA, precisa-se de muitos dados para treinar as máquinas. E nenhum país no mundo consegue gerar tantos dados quanto a China, não só pelo seu tamanho, mas também porque a privacidade é encarada de modo distinto no país. De maneira menos óbvia, me assusta que, com a IA, o tal do “winner takes all” será levado ao extremo. Os mais puros defendem que, graças à internet, nunca foi tão barato começar um novo negócio. No entanto, essa mesma internet, que era para ser um local que dava oportunidades para mais pessoas, em poucos anos gerou impérios monopolísticos que se tornaram algumas das maiores empresas do mundo. O Google domina ferramentas de busca, o Facebook manda nas redes sociais e a Amazon é a líder suprema em e-commerce. Eu tenho receio de que a IA vai destruir os mecanismos de competição que estamos acostumados e vai criar alguns poucos vencedores donos de monopólios. As leis antitruste dos Estados Unidos, que servem para parar os monopólios, encontrarão problemas para funcionar, pois exigem prova de que o tal monopólio prejudicam os consumidores. Esses potenciais monopólios de IA vão entregar serviços melhores e mais baratos, uma vez que terão muito mais eficiência e ganhos de produtividade quase que inimagináveis. Monopólios em IA podem baixar os preços e concentrar os lucros, aumentando a desigualdade ao mesmo tempo. Imagine quão lucrativo o Uber não seria se não tivesse que pagar seus motoristas? Imagine os lucros da Apple se não tivesse que pagar trabalhadores para fazer seus iPhones? Ou se o Walmart não pagasse seus caixas registradores, seus motoristas de ônibus e seus empregados em seus armazéns? Hoje, o Walmart emprega mais de 2,2 milhões de pessoas.61 Quantas pessoas empregará depois da implementação massiva de IA?
A IA gera pânico quando pensamos em suas implicações para guerras futuras. Talvez a próxima guerra seja a última. No futuro, será tão barato desenvolver IA, que será muito fácil usá-la para atacar seriamente um inimigo. Imagine um drone do tamanho de uma abelha capaz de atirar e matar seres humanos. Esse exemplo do drone é um dos mais fáceis de imaginar, os mais macabros não terão dificuldades em agonizar sobre um possível e assustador futuro com robôs bélicos inteligentes. Os relatórios dos militares chineses já falam em armamentos e tecnologia militar “inteligenciada” () ou “com inteligência”. Jack Ma,62 que afirma ser um terço empreendedor, um terço showman e um terço estrategista de negócios, disse em Davos:63
A primeira revolução tecnológica causou a Primeira Guerra Mundial e a segunda revolução tecnológica causou a Segunda Guerra Mundial. A IA é a terceira revolução. Mas, se existir uma Terceira Guerra Mundial, acho que deveria ser contra doenças, poluição e pobreza, não contra nós mesmos... Inteligência artificial, big data é uma ameaça para os seres humanos. Eu acho que a IA deveria apoiar os seres humanos. A tecnologia deve sempre fazer algo que ajude a dar poder para as pessoas, e não tirar o poder das pessoas. O computador sempre será mais esperto do que você; eles nunca esquecem, nunca ficam bravos. Mas os computadores nunca podem ser um homem sábio.
Israel é indiscutivelmente um dos polos mundiais de inovação. Quando pensamos em Israel, é óbvio entender que várias das inovações são criadas primeiramente para uso militar e depois adaptadas para uso civil, e então exportadas para o mundo todo. Em Israel, homens e mulheres servem no exército (homens por três anos e mulheres por dois anos) e a cada ano fazem um período de reciclagem de um mês no exército, até completarem 40 anos. O empreendedor de Israel cria empresas para o mercado global, pois seu país possui menos de 9 milhões de habitantes – mesmo se forem líderes nacionais, o mercado é tão pequeno que não geraria tanta riqueza. Faço questão de destacar Israel para assimilarmos facilmente que algo semelhante acontece na China (e no resto do mundo). O que vai impactar o seu dia a dia pode ter começado com fins bélicos.
Em 2018, o governo chinês anunciou que a Baidu, a Alibaba, a Tencent, a iFlytek e a SenseTime eram oficialmente as campeãs nacionais em IA.64 Essa classificação coloca essas empresas em posições privilegiadas para a definição de padrões técnicos nacionais e também proporciona confiança de que não seriam ameaçadas pela concorrência de empresas estatais. Em dezembro de 2018, o cofundador da SenseTime, Bing Xu, disse: “Temos muita sorte de ser uma empresa privada que trabalha com uma tecnologia que será fundamental nas próximas duas décadas. Historicamente, os governos dominariam tecnologias nucleares, de foguetes e comparáveis e não confiariam em empresas privadas”. Ao comparar explicitamente a IA à tecnologia nuclear e de foguetes, Xu parece estar se referindo ao papel crítico da IA no futuro da segurança nacional. O preço que SenseTime e os outros campeões nacionais em IA pagam para terem permissão para dominar essas tecnologias é a ampla cooperação com as autoridades de segurança nacional da China.
RATIO, O ROBÔ BARISTA
Pense em sua jornada para consumir um cafezinho enquanto está se deslocando longe de casa. Mudou muito de como seu avô experienciava isso? Você ainda encara fila? Ainda fica esperando o garçom para fazer o pedido? Ou fica na fila?
Na RATIO, em Xangai, imagine que não há baristas, não se aceita dinheiro nem cartão e a jornada é a seguinte: você escaneia um miniprograma dentro do WeChat, faz o pedido e o pagamento em seu celular, o braço de um robô prepara seu drinque ou seu café e você recebe em sua mesa. A RATIO permite personalizar sua bebida nos mínimos detalhes. Imagine que gostaria do seu café com 37 mililitros de leite, 50 mililitros de café, 3 gotas de mel e um quinto de xícara de açúcar. Seu amigo gostaria de um café americano com 60% de água, 30% de café e 10% de licor de cacau. Ou então você não quer pensar muito e quer apenas degustar um coquetel feito por algum famoso bartender (antes da RATIO, eu não sabia que havia bartenders famosos). Seu pedido personalizado é preparado por um braço de robô automático em menos de noventa segundos. Seu pedido vai do seu celular direto para o robô e fica registrado para facilitar a contabilização de seus pontos de fidelidade quando voltar, com zero esforço adicional. Ah, também é 20% mais barato do que o Starbucks e 50% mais barato que os bares de hotéis cinco estrelas.
Uma vez que o pedido é feito por robô, você não precisa se preocupar se seu barista vai errar e exagerar no açúcar da sua caipirinha ou se ele vai julgar suas estranhas preferências (leite de soja com gin!?); o dono do estabelecimento não se preocupa se o barista chega atrasado, de mau-humor, faz hora extra, erra nas porções, serve bebidas grátis para amigos etc.
Seu telefone parece saber tudo sobre você, então saber como você bebe seu mojito não deve ser tão complicado. A experiência parece algo saído de um filme futurista. Mas o fundador da RATIO, Gavin Pathross, garante que os robôs e a IA não estão aqui para substituir humanos, eles são apenas melhores que os humanos na execução de trabalhos repetitivos. A ideia por trás da obsessão da RATIO com a precisão é que não há duas paletas de paladar iguais. A grande tendência que a startup segue é a personalização em massa: tecnologia aplicada permite que quase que sem custos adicionais possamos personalizar os mais diversos produtos. No passado, customização era o oposto da massificação por causa dos altos custos. Quando eu era criança, apenas o Romário e outras superestrelas tinham chuteiras feitas sob medida. Hoje, nas lojas varejistas japonesa UNIQLO, qualquer um pode mandar imprimir qualquer imagem no moletom (como desenho de sua sobrinha) e o produto chega em três dias, com baixíssimo custo adicional. Não muito longe da primeira loja da RATIO em Xangai, encontramos uma loja da Nike que permite que, por apenas cerca de 25 dólares, cada um pode personalizar seu próprio tênis.
O negócio é tão futurista que Jack Ma encomendou um braço para implementar no Alibaba Future Hotel em Hangzhou, ao lado de um dos principais campus da Alibaba. No dia dos solteiros (11 de novembro), a empresa foi uma das selecionadas para mostrar suas inovações, e a foto de Jack Ma conferindo o robô e conversando com o fundador Gavin Pathross foi a que gerou mais likes em seu WeChat.
Gavin, fundador da RATIO, foi CTO da Yum Brands, dona de marcas como Pizza Hut, Taco Bell, KFC, com mais de 6 mil estabelecimentos apenas na China. Ele identificou que a robotização no setor alimentício é uma tendência que não pode ser impedida na China e no mundo. Seu plano é vender braços de robô com tecnologia embarcada por meio de franquias. Do mesmo jeito que o Spotify aprende seus gostos musicais e lhe recomenda músicas que provavelmente você vai curtir e o Netflix faz o mesmo com filmes, a RATIO busca fazer isso com bebidas. Gavin explica que “muitas pessoas que trabalham como baristas apenas apertam um botão. E vão servir o café. Você pode imaginar a margem de erro e de desperdício envolvido em cada drinque. Os robôs são melhores nessas atividades repetitivas. Não vai dar para competir”.
A robótica, um dos segmentos do futuro, já tem a China como uma das pioneiras. Em 2016, 35% de todos as patentes registradas no mundo vieram da China, que investiu mais de 10 bilhões de dólares nesse setor.
Como conheci a RATIO? Um dia, chegando ao belo shopping Raffles City, parei para apreciar lindos buquês de flores. Aqui na China, quando um novo estabelecimento comercial abre, é normal colocarem chamativos ramalhetes na porta. Quando cheguei e vi aquele impressionante robô, quis experimentar. O novo me atrai demais. Enquanto degustava meu café, um cara de Singapura começou a me fazer perguntas sobre o que eu mudaria na loja, se eu estava gostando etc. Era Gavin, o fundador. Rapidamente nos tornamos amigos de infância, já estávamos em alguns dos mesmos grupos de pessoas relacionadas com inovação em Xangai no WeChat e tínhamos vários amigos em comum. Mesmo com mais de 23 milhões de habitantes, Xangai pode ser uma cidade pequena.
MERCADO DE MATRIMÔNIOS
Na China, o amanhã e o ontem convivem harmonicamente. Caminhando menos de três minutos da futurista RATIO, você pode visitar o passado no mercado de matrimônios, na Praça do Povo, onde centenas de aflitos pais e mães e avós se reúnem aos sábados e domingos. Seguram folhas de papel A4 preenchidas a mão ou impressas com descrições de seus netos e filhos, com altura, idade, salário, formação escolar e breve descrição cheia de elogios. Também há as exigências para a outra metade que estão buscando. Alguns pedem, por escrito, “história limpa” (leia-se: virgindade). Fotos são raríssimas e geralmente as páginas estão apoiadas em guarda-chuvas. Por exemplo: “Homem nascido em junho de 1987, solteiro, 1,77 metro de altura, 60 quilos, diploma de graduação, boa saúde... ganhou 870 mil yuan líquidos no ano passado, possui dois apartamentos... busca mulher saudável, entre 1,62 e 1,71 metro de altura, entre 46 e 56 quilos, com olhos naturais grandes e redondos”.
Os senhores conversam entre si, há um clima de bom humor no ar enquanto buscam candidatos e candidatas para seus(suas) netos(as) ou filhos(as), geralmente entre 25 e 35 anos, casarem. Eles me explicaram que, para os homens, o mais valioso é quanto dinheiro ganha; e para as mulheres, a idade e a beleza são as coisas que mais importam. Ninguém ali assina os papéis de casamento, o que buscam é marcar o primeiro encontro. Eles se importam com a tradição e estão preocupados, pois geralmente quem está descrito no cartaz não tem irmãos e, se os mais velhos morrerem, ficará sozinho(a). A bizarra política do filho único durou cerca de trinta anos e, além de traumatizar diversas famílias, gerou um excedente estimado em cerca de 42 milhões de homens a mais do que mulheres. Os pais tradicionalmente queriam filhos homens, pois estes colaborariam mais na vida rural – apenas em 2011/2012, a China se tornou um país onde mais da metade da população vive em cidades.
A outra razão para tantos homens a mais é que, tradicionalmente, após o casamento, a mulher entrava para a família do marido e esquecia a própria família. Funcionava assim: no terceiro dia após o casamento, o casal visita a família da noiva para mostrar que ela está fazendo muito bem à do noivo. Para muitas noivas na China antiga, esta poderia ser a última vez que veriam seus pais. Aqui, quando se casa, a noiva passa a pertencer à família do marido. E esse é um dos motivos da preferência dos pais por filhos homens. Quem tinha uma filha mulher criava para perdê-la. Hoje, em muitas regiões da China, isso não é mais uma realidade. Mas ainda não acabou totalmente.
Xangai não é o único local com mercado de matrimônios na China. Minha esposa ainda descreve o mercado de matrimônios como uma das coisas mais bizarras que já viu na vida. Em Shenzhen, encontramos por acaso um mercado de matrimônios parecido com o de Xangai, enquanto caminhávamos em um belo parque da cidade.
Algumas poucas gerações atrás, na China, a norma era “casar primeiro, se apaixonar depois”. Tradicionalmente, os pais arranjavam casamentos seguindo o princípio do “janelas e portas que combinam”, ou seja, compatibilidade de situações econômicas e sociais das famílias. Depois da Revolução Comunista, tornou-se normal as unidades de trabalho decidirem quem ia casar com quem e quando. Hoje, há liberdade para escolher com quem se casará, mas há a pressão social para casar antes dos 30. Proporcionalmente, o número de casamentos vem diminuindo nos últimos cinco anos e os divórcios vem aumentando a cada ano nos últimos sete. A sociedade chinesa está em franca mudança. Xangai tem a menor taxa de casamentos por mil pessoas do país todo, com 4,4 a cada mil pessoas em 2018.
Fonte: Ministérios dos Assuntos Civis da China – South China Morning Post (SCMP)Fonte: <https://www.scmp.com/news/china/society/article/2109868/marriage-rate-down-divorce-rate-more-chinese-couples-say-i-dont>.
O Partido Comunista ainda descreve as famílias como os tijolos essenciais da construção da sociedade chinesa. Em dezembro de 2016, Xi disse: “Famílias são as células da sociedade... A sociedade vai estar estável se as famílias estiverem em paz... A sociedade vai ter harmonia se tivermos famílias felizes”. Mesmo assim, o número de divórcios a cada mil pessoas dobrou de 1,46, em 2006, para 3, em 2016, e 3,2, em 2018.
Apesar de praticamente todas aquelas pessoas de mais idade com os cartazes claramente usarem WeChat, aposto que nenhum deles já experimentou drinques da RATIO. Os mais velhos querem ajudar suas famílias, os mais novos acreditam que “enriquecer é glorioso” e seguem acelerando, focados na vida profissional. Eu fiz questão de colocar esses dados sobre casamento neste breve espaço focado em IA, pois acredito que as implicações da inteligência artificial serão tão profundas que causarão ainda maior distanciamentos entre as gerações. E se os nossos netos aceitarem que é melhor casar com alguém que o IA diz ser melhor para eles? E se os nossos netos tiverem convicção de que seria completa loucura casar com alguém após um tempo de namoro sem ter mais dados para um IA realmente analisar se é o par ideal? Na China, fala-se muito do buraco entre gerações: muitos dos avós passaram fome e nunca tinham visto um estrangeiro até recentemente. Agora convivem com familiares que enxergam sucesso, felicidade e família de maneira extremamente diferente – e também encontram com laowais (estrangeiros) de nariz grande e curiosos que lhes perguntam sobre tudo. O passado e o futuro se encontram diariamente no presente aqui na China.
29 “The Battle for Digital Supremacy”. The Economist. 03/2018. Disponível em: <https://www.economist.com/leaders/2018/03/15/the-battle-for-digital-supremacy>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
30 Crabtree, James. “Didi Chuxing Took on Uber and Won. Now it’s Taking on the World”. Wired. 9/02/2018. Disponível em: <https://www.wired.co.uk/article/didi-chuxing-china-startups-uber>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
31 Gao, Jianbin; Gou, Yuqing. “The New Chinese Unicorns: Seizing Opportunity in China’s Burgeoning Economy.” PwC, 2018. Disponível em: <https://www.pwccn.com/en/research-and-insights/pwc-chinese-unicorns.pdf>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
32 Ren, Shuli. “China’s $856 Billion Startup Juggernaut Is Getting Stuck”. Bloomberg. 16 de dezembro de 2018. Disponível em: <https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2018-12-16/china-s-856-billion-startup-juggernaut-is-getting-stuck>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
33 “China’s State Owned Venture Capital Funds Battle to Make an Impact”. Financial Time. 23 de dezembro de 2018. Disponível em: <https://www.ft.com/content/4fa2caaa-f9f0-11e8-af46-2022a0b02a6c>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
34 Lanxu, Zhou. “VC, PE Firms to Spur Innovation”. China Daily. 11 de março de 2019. Disponível em: <http://www.chinadaily.com.cn/a/201903/11/WS5c85c5aba3106c65c34ede02.html>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
35 “Science and Technology Innovation Board”. China Daily. 7 de novembro de 2018. Disponível em: <http://www.chinadaily.com.cn/a/201811/07/WS5be23110a310eff303286fda.html>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
36 Hunan Research Institute. Disponível em: <http://www.hurun.net/CN/Article/Details?num=539EF0BAD055>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
37 Office of the United States Trade Representative. Update Concerning China’s Acts, Policies and Practices Related to Technology Transfer, Intellectual Property, and Innovation. 20 nov. 2018. Disponível em: <https://ustr.gov/sites/default/files/enforcement/301Investigations/301%20Report%20Update.pdf>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
38 Ren, Shuli. “Beyond Huawei, Scientist’s Death Hurts China’s Technology Quest”. Bloomberg. 12 de outubro de 2018. Disponível em: <https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2018-12-10/scientist-s-death-adds-to-china-tech-setbacks-after-huawei>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
39 HE, Laura. “China’s Venture Capital Firms Outperform US, European Peers Amid Breakneck Economic Growth in Past Two Decades”. South China Morning Post. 21 de fevereiro de 2019. Disponível em: <https://www.scmp.com/business/china-business/article/2187147/chinas-venture-capital-firms-outperform-us-european-peers>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
40 “Alibaba and Tencent Have Become China’s Most Formidable Investors”. The Economist. 2 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www.economist.com/business/2018/08/02/alibaba-and-tencent-have-become-chinas-most-formidable-investors>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
41 Schubert, Maximilian. “What You Need to Know About Venture Capital in China.” 14 nov. 2018. Disponível em: <https://www.chinatechblog.org/blog/what-you-need-to-know-about-venture-capital-in-china>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
42 Billionaire Neil Shen: Becoming a Top Venture Capitalist and Successful Entrepreneur in China. 10 jul. 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=R9DeqA-UzgQ>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
43 Liu, Yujing. “Risk-Taking and Persistence Make Successful Entrepreneurs, Says Sequoia’s Shen”. South China Morning Post. 30 de setembro de 2017. Disponível em: <https://www.scmp.com/business/money/markets-investing/article/2113463/risk-taking-and-persistence-make-successful>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
44 Aqui Neil faz referência ao período em que Mao e os comunistas fugiram, batalharam e mataram para sobreviver. A Grande Marcha, mencionada por Neil Shen, é uma referência à jornada exaustiva de 6 mil quilômetros (quase o dobro da distância entre Nova York e São Francisco) empreendida pelas forças do Partido Comunista em 1934, quando fugiram da perseguição do exército nacionalista de Chiang Kai-shek. Mais de 86 mil pessoas começaram a marcha e menos de 8 mil terminaram vivas. Eles se reagruparam e acabaram assumindo o controle da China em 1949, tornando a Grande Marcha uma das lendas fundamentais do partido.
45 Fannin, Rebecca. “Sequoia’s `Make Money’ Motto Matters a lot in China”. Forbes. 3 de dezembro de 2018. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/rebeccafannin/2018/12/03/sequoias-make-money-motto-matters/#42fda5cf5ad5>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
46 Konrad, Alex. “How Neil Shen Built a Winner at Sequoia Capital China”. Forbes. 2 de abril de 2014. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/alexkonrad/2014/04/02/how-neil-shen-built-a-winner-at-sequoia-capital-china/#da42aac3f4aa>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
47 “The Midas List”. Forbes. 2 de abril de 2019. Disponível em: <https://www.forbes.com/midas/#7e32ce325650>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
48 Adachi, Vanessa. “A China acelera para dominar a inovação”. Valor Econômico. 23 de novembro de 2018. Disponível em: <https://www.valor.com.br/brasil/5995683/china-acelera-para-dominar-inovacao>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
49 Soprana, Paula. “China deixa cópia e cola e busca liderança em tecnologia”. Folha de S.Paulo. Dezembro de 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/12/china-deixa-copia-e-cola-e-busca-lideranca-em-tecnologia.shtml>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
50 Sorima Neto, João. “China usa recursos públicos para criar celeiro de startups”. O Globo. 6 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/china-usa-recursos-publicos-para-criar-celeiro-de-start-ups-23349575>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
51 O LinkedIn do João Ricardo Ng Roldão está disponível em: <https://www.linkedin.com/in/jo%C3%A3o-ricardo-ng-rold%C3%A3o-a20ab4161/>. O LinkedIn do Rodrigo Streishort está disponível em: <https://www.linkedin.com/in/rodrigostreithorst/>.
52 “In AI, China > US”. CBInsights. 16 de fevereiro de 2018. Disponível em: <https://www.cbinsights.com/research/in-ai-china-us/>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
53 Palestra sobre o futuro do trabalho e IA. Disponível em: <http://ide.mit.edu/events/ai-and-future-work>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
54 Liu, Joyce. “In Your Face: China’s All-seeing State”. BBC. 10 de dezembro de 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/av/world-asia-china-42248056/in-your-face-china-s-all-seeing-state>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
55 Wanli, Yang. ”Online Rules to Focus on Chat, Public Accounts”. 8 set. 2017. Disponível em: <http://english.gov.cn/news/top_news/2017/09/08/content_28147 5843915377.htm>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
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57 Jing, Meng. “Tianjin City in China Eyes US$ 16 Billion Fund For AI Work, Dwarfing EU’s Plan to Spend US$1.78 Billion”. South China Morning Post. 16 de maio de 2018. Disponível em: <https://www.scmp.com/tech/innovation/article/2146428/tianjin-city-china-eyes-us16-billion-fund-ai-work-dwarfing-eus-plan>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
58 “China AI Startups Scored More Funding Than America’s Last Year”. MIT Technology Review. 14 de fevereiro de 2018. Disponível em: <https://www.technologyreview.com/the-download/610271/chinas-ai-startups-scored-more-funding-than-americas-last-year/>. Acesso em: 19 de agosto de 2019. Schubert, Maximilian. “What You Need to Know About Venture Capital in China.” 14 nov. 2018. Disponível em: <https://www.chinatechblog.org/blog/what-you-need-to-know-about-venture-capital-in-china>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
59 Khan, Jeremy. “Sky-High Salaries are the Weapons in the AI Talent War.” Bloomberg. 13 de fevereiro de 2018. Disponível em: <https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-02-13/in-the-war-for-ai-talent-sky-high-salaries-are-the-weapons>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
60 “Robot Automation Will `Take 800 Million Jobs by 2030’.” BBC. 29 de novembro de 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-us-canada-42170100>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
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62 Browne, Ryan. “Alibaba’s Jack Ma Suggests Technology Could Result in a New World War.” CNBC. 23 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://www.cnbc.com/2019/01/23/alibaba-jack-ma-suggests-technology-could-result-in-a-new-world-war.html>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
63 Major, Mario L. “Alibaba Founder Jack Ma Says AI is a Big Threat to Humans and it Will Kill Many Jobs.” 26 de janeiro de 2018. Disponível em: <https://interestingengineering.com/alibaba-founder-jack-ma-says-ai-is-a-big-threat-to-humans-and-it-will-kill-many-jobs>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
64 Allen, Gregory. Understanding China’s AI Strategy. 6 fev. 2019. Disponível em: <https://www.cnas.org/publications/reports/understanding-chinas-ai-strategy#fn3>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.