CAPÍTULO 5
QUALQUER TRATADO SOBRE A CHINA QUE NÃO SE APROFUNDE em como são encarados a educação e o estudo no país não só é incompleto, como também irresponsável. A matéria-prima fundamental nessa nova economia digital em que vivemos é cérebro bem treinado.
Quando elaboro sobre bilionários, geralmente:
•Brasileiros me perguntam: “Este bilionário é feliz?”.
•Norte-americanos me perguntam: “Qual o tamanho da fortuna deste bilionário?”.
•Chineses me perguntam: “Onde este bilionário estudou? Onde os filhos dele estudam?”.
•Franceses não me perguntam, me contam alguma teoria da conspiração que justifique aquela absurda concentração de capital.
Toda generalização é estúpida, mas essa breve anedota mostra quão valorizado é o estudo na China. Nestas mal traçadas linhas, vamos aprofundar nas edtechs da China, que estão causando frisson nos quatro cantos do planeta, e servirão de pano de fundo para aprofundarmos em mais detalhes sobre estudos e educação na China.
Os avanços tecnológicos facilitaram o empreendedorismo. Hoje é mais barato, rápido e fácil lançar uma nova empresa de tecnologia do que antes da época da internet onipresente. As tais startups proliferam ao redor do mundo. A definição exata de startup exige que o modelo de negócio seja escalável, repetível e trabalhe em condições de extrema incerteza. Ou seja, se você abrir um restaurante tradicional, isso não pode ser, a priori, chamado de startup. Edtech é o termo que define startups focadas no mercado de educação. Construtech serve para startups no mercado de construção; healtech para o mercado de saúde; autotech para o setor automobilístico; há também mediatech, retailtech, HRtech, agrotech etc.
Quem é o líder mundial em edtech? Já lhe contei, mas vale repetir: um bilionário me disse que não importa qual a pergunta, para encontrar a resposta basta seguir o dinheiro. Se você concordar com essa tese, a China será indiscutivelmente a resposta correta. Em 2018, a China recebeu mais de 50% de todo o capital que foi investido por VCs em edtechs. De fato, as edtechs chinesas receberam mais capital do que a quantia somada de todos os outros países do mundo.
Apenas em Pequim são 3 mil edtechs. Apesar de a população de Pequim ser de mais de 20 milhões de pessoas, a concentração de edtech por pessoa na capital chinesa é a maior do mundo, com cerca de 120 edtechs para cada milhão de pessoas, seguido por Nova York (117), Vale do Silício (91) e Bangalore (77).
A segunda cidade com mais edtechs é Xangai, onde diariamente vejo propagandas em outdoors e ônibus dos unicórnios de educação VIPKID e 17ZUOYE. As startups precisam gastar parte de todo aquele capital levantado e, por aqui, fazem também muitas propagandas off-line.
Na China, não é apenas a quantidade de capital e de startups que impressiona, mas também a qualidade das líderes – eles atingiram relevância global muito rapidamente. Você sabe quantos unicórnios em edtech existem no mundo? Vou deixar como lição de casa a resposta precisa para essa pergunta – até porque esse número muda com velocidade chinesa, em 2018 nasceram 97 novos unicórnios chineses, ou um a cada 3,8 dias em média. Em julho de 2018, entre os dez maiores unicórnios em edtech do mundo, seis haviam nascido na China – lembrando que unicórnio é a empresa de capital fechado, que não está listada na bolsa, com valuation de ao menos 1 bilhão de dólares.
Se você não sabia que a China era a líder mundial em edtech e sente que chegou atrasado, não se preocupe. Há um consenso entre os analistas de que o mercado das edtechs da China seguirá crescendo exponencialmente por vários motivos. Abaixo vamos aprofundar em três fatores extremamente importantes, que, aliás, podem ser usados para entender diversas faces da China.
Escala
O recente fim da política do filho único, que durou cerca de trinta anos, deve causar um aumento extraordinário no número de estudantes nos próximos anos. As entidades públicas e privadas relacionadas a ensino precisam preparar-se para essa nova realidade.
O pragmatismo chinês, alinhado à disciplina forjada por extrema competição, ajuda a explicar por que o país é o grande líder mundial em número de alunos graduados em STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática). Converso com muitos empresários de sucesso no Brasil, e vários deles reclamam que um dos principais gargalos de seus negócios é a falta de mão de obra qualificada em seu setor de tecnologia. Em um período no qual o Brasil possui mais de 12 milhões de desempregados, é bizarro escutar sobre a dificuldade em encontrar empregados.
O número absoluto de graduados em STEM na China já é impressionante. O número relativo ajuda a comprovar a tese de que a China continuará sendo uma superpotência inovadora. A população da China (aproximadamente 1,4 bilhão) é cerca de 4,3 vezes maior que a população dos Estados Unidos (cerca de 320 milhões de habitantes). No entanto, o número de graduados em STEM é por volta de 8,27 vezes maior. Segue mais uma lição de casa para você: descubra o número de engenheiros formados a cada ano no Brasil. Depois descubra o número de advogados. Compare os dois com os totais na China. Não tenho nada contra advogados, pelo contrário, minha mãe é advogada. Mas acho que uma nação com tantos graduados em STEM tem vantagem competitiva nessa nova economia digital, na qual estamos inseridos.
Investimento
Tanto as crianças como os pais valorizam e dedicam recursos (tempo, capital, energia etc.) para o estudo com uma intensidade que ocidentais têm dificuldade em entender. Tanto investimento e foco gera uma velocidade de mudança marcante. Uma pesquisa126 indica que as famílias urbanas chinesas gastam, em média, 20% da renda com educação para crianças e adolescentes entre o ensino fundamental e o fim do ensino médio; 93% dos pais chineses pagam por tutores privados para seus filhos. Por quê? Para terem vantagem no extremamente competitivo teste para entrar nas melhores universidades.
Apoio do governo
O governo chinês apoia diversas causas inovadoras na educação, como um prédio de 22 andares na região de Zhongguancun, que abriga apenas edtechs. Em 2017, o premier Li Keiang anunciou a formulação e a implementação do plano de modernização da educação na China até 2030 e perguntou: “Como podemos usar novas tecnologias para habilitar que a educação seja realizada de maneira mais efetiva?”.
O fato de a qualidade do professor interferir com a qualidade do aprendizado é um grande desafio em um país do tamanho da China. O governo investe pesado em aplicação de tecnologia na sala de aula para preencher lacunas e proporcionar ensino de qualidade para crianças com fome de aprender, mas sem acesso a recursos. Os alunos estão dispostos a gastar tempo e esforço, suas famílias estão dispostas a investir dinheiro, e esse público cativo deu origem ao crescimento exponencial de edtechs na China, um setor totalmente novo, com startups se esforçando para faturarem milhões enquanto ajudam as pessoas a estudarem.
Em 2018, ficou claro para os especialistas que a China largou na frente na aplicação de IA na educação. Em algumas escolas, utilizam-se câmeras com tecnologia de reconhecimento facial127 para monitorar a atenção dos estudantes em sala de aula e fazer a chamada. Em outras escolas, é normal ter robôs128 interagindo com as crianças, impressoras 3D estão em centenas de milhares de escolas129 e ainda há aquelas que deixam a IA corrigir redações.130 A China chegou atrasada na primeira revolução industrial, mas o governo decidiu que liderará a próxima revolução encabeçada por IA e já inclui o estudo de IA em escolas por meio de livros131 – fundamentos de inteligência artificial. O governo local permite que tecnologias não maduras sejam testadas em alunos. Os pais dos alunos, ávidos por qualquer vantagem competitiva e notadamente pragmáticos, estão mais preocupados com resultados do que eventuais questões de privacidade.
Em 2019, o Ministério de Educação aprovou 35 universidades para criar curso de inteligência artificial, inclusive as duas principais universidades de Pequim, de Peking e de Tsinghua. Na China, 479 universidades já oferecem cursos relacionados a big data.
O governo chinês não só apoia a implementação de novas tecnologias no ensino, como também incentiva empresas inovadoras a lucrarem com isso. É o caso da YiXue, plataforma que desenvolve sofisticados sistemas de aprendizagem personalizados por IA usando processamento de linguagem natural e tecnologia de detecção de emoções para definir exatamente o que cada aluno deve estudar. Os alunos começam completando um conjunto de problemas. O sistema da YiXue analisa suas respostas e as compara com as exigidas no exame para ingresso na faculdade. Então, sua IA cria um plano de estudo personalizado que ajuda o aluno a treinar por meio de lições on-line e off-line. Focando em conhecimento em “nanoescala” e direcionando o aprendizado de cada estudante em fragmentos de conhecimento nos quais eles são mais fracos, a YiXue afirma que é capaz de provar que seu sistema pode ensinar alunos de maneira mais eficaz do que professores altamente treinados. Os dados mais recentes da Yixue mostram que a empresa já tem mais de 100 mil usuários pagantes em mais de vinte províncias. A receita total da empresa ultrapassou 300 milhões de RMB (cerca de 150 milhões de reais), dez vezes a receita do ano anterior.
AS MÃES-TIGRE TRATAM A INFÂNCIA COMO UM PERÍODO DE TREINAMENTO PESADO E INVESTIMENTO NO FUTURO: ISSO SIGNIFICA INTENSAS AULAS EXTRAS, EXPECTATIVA DE SER O NÚMERO 1 DA CLASSE EM TODAS AS MATÉRIAS, SALVO EDUCAÇÃO FÍSICA E ARTES CÊNICAS, SEM FOLGA NAS FÉRIAS, E COM SESSÕES DUPLAS NOS FINS DE SEMANA.
O jornal China Daily132 confirma que o governo encoraja investimentos privados no setor de educação: “Até o final de 2016, a China tinha 171 mil escolas particulares, com mais de 48 milhões de estudantes”.
Espero que esteja claro que na China o estudo é um dos focos mais importantes do desenvolvimento de uma criança. Qualquer vantagem que um pai ou uma mãe possa dar ao seu filho é muito procurada e será adotada a qualquer custo por grande parcela da população. Muitos não apoiam a prática de esporte durante períodos extensos, por acreditar que pode ser uma distração do que realmente importa, os estudos. Quem quiser entender como os chineses educam (o que vai muito mais além dos estudos) seus filhos, recomendo o livro Grito de guerra da mãe-tigre, de Amy Chua,133 relato honesto sobre a rigidez de como é criar os filhos à moda chinesa. As mães-tigre tratam a infância como um período de treinamento pesado e investimento no futuro: isso significa intensas aulas extras, expectativa de ser o número 1 da classe em todas as matérias, salvo Educação Física e Artes Cênicas, sem folga nas férias, e com sessões duplas nos fins de semana.
Por que você acha que as mães-tigre são assim? Muitas pessoas comentam algo como “os chineses são completamente diferentes de nós. É como se fossem de outro planeta”. Eles são realmente diferentes, mas em vez de constatarmos isso e virarmos a página, devemos tentar entendê-los para derrubar preconceitos. Para compreender essa completa obsessão por estudos, é fundamental olhar para trás. Faz milhares de anos que famílias chinesas acreditam e apostam na força do estudo para terem uma chance de melhorar de vida.
CONFÚCIO E KEJU
Educação é muito diferente de estudo. Para começar a entender essa completa obsessão dos chineses com o estudo, precisamos dar alguns passos para trás. Precisamos nos aprofundar nos ensinamentos de Confúcio, que viveu mais ou menos na época de Sócrates e mudou a história da humanidade. Quando estava vivo, Confúcio não conseguiu ter os ouvidos de um imperador. Ele viajava ao redor do país pregando suas crenças. Ao falecer, seus ensinamentos foram divulgados pelos seus discípulos por meio do livro Analetos.
Os exames do serviço público, chamados de keju,134 da China Imperial permitiram ao Estado encontrar os melhores candidatos para administrar a vasta burocracia que governava a China.135 Os exames eram um meio para homens de qualquer classe se tornarem parte da classe privilegiada de funcionários acadêmicos. Na Europa, não havia ascensão de classe social: nasceu vassalo, morreu vassalo. Na China, há essa tradição milenar em que o chinês típico sabe que pode melhorar de vida se ir bem em uma prova. O resultado persiste até hoje na cultura chinesa que valoriza o estudo e acredita intensamente que o sucesso no estudo, medido no resultado de um exame, pode melhorar a vida.
Os exames tinham múltiplos níveis e eram extremamente difíceis de passar. Exigiam amplo conhecimento de clássicos confucianos, direito, governo, matemática, poesia, habilidades de oratória e muito mais. Se você está achando que essa prova era parecida com o vestibular de hoje, reconsidere. Os examinados eram trancados em uma cela com uma mesa e uma cadeira, e os exames duravam alguns dias. Há muitos relatos de pessoas que morreram durante os exames. Muitos candidatos repetiam o exame a vida inteira. Não era completamente bizarro que um avô, um pai e um filho fizessem a prova no mesmo ano.
O sistema de exames do serviço público teve vários efeitos importantes na sociedade chinesa:
•Para o Estado, o sistema fornecia não apenas candidatos capazes, que eram selecionados por mérito, mas também assegurava que toda uma classe se desenvolvesse e tivesse simpatia pelo status quo dominante. O desejo de ingressar na classe de acadêmico-oficial originou uma seção obediente da sociedade que compartilhava valores comuns, um dos quais era preservar o sistema a que eles aspiravam aderir.
•A obsessão com esse exame gerou completa disseminação por toda a China dos valores promovidos por Confúcio. Um dos ensinamentos-chave de Confúcio era o respeito aos três laços: obediência aos pais, aos mais velhos e aos governantes. Esta foi uma das lições primárias incutida em crianças chinesas tradicionalmente.
•A radical ideia meritocrática de que habilidade era mais importante que as conexões familiares despertou em pessoas de todos os tipos a percepção de que não era necessário seguir a mesma vida e o mesmo trabalho dos pais.
•O conceito de escola gratuita de qualidade não era difundido, então historiadores defendem que muitas das pessoas que eram aprovadas vinham de famílias que tinham meios para apoiar as crianças a focarem nos estudos e podiam arcar com os custos de tutores privados.
•As crianças camponesas, que não podiam escrever ou não tinham acesso a textos acadêmicos, não tinham chance de melhorar sua posição na sociedade. Naquela época, tornou-se normal pais gastarem boas quantias de dinheiro com professores particulares para preparar seus filhos para o teste mais importante de suas vidas. Até hoje a prática de reforço escolar é presente.
•Um dos efeitos colaterais do sistema de exames baseado no mérito foi a redução no controle do poder e da riqueza da aristocracia hereditária. Houve também uma redução no potencial de corrupção, visto que as provas substituíram o antigo sistema no qual autoridades locais nomeavam seus próprios subordinados com base em ligações familiares e subornos. A meritocracia certamente aumentou – embora funcionários de alto escalão ainda pudessem contornar o sistema de provas e nomear pessoas para certas posições.
•Finalmente, como aqueles que faziam as provas tinham que percorrer grandes distâncias e, se bem-sucedidos, sua nomeação para o funcionalismo público poderia ser em qualquer lugar do império, foi propagada a ideia de nação em vez do apego a sua própria região, e pelo menos uma parte da sociedade se tornou mais móvel.
Nem tudo foi positivo em relação aos exames. Enquanto avanços científicos eram feitos ao redor do mundo, particularmente na Europa, a China ficou para trás em parte, porque o sistema de exames enfatizava mais o conhecimento de literatura clássica e o cultivo da sensibilidade moral do que assuntos científicos e técnicos.
Quando o exame já fazia parte do tecido social da vida pública chinesa por gerações, o sistema de exames do serviço civil foi abolido em 1905, nos anos finais da dinastia Qin. Seu legado permanece e ajuda a explicar a completa obsessão dos chineses pelo estudo na cultura atual.
GAOKAO – O ALTO TESTE
Precisamos levar em consideração os três aspectos fundamentais (escala, investimento e apoio do governo) para entendermos a importância do gaokao na vida dos chineses. Em muitos veículos da imprensa internacional, ele é traduzido simplesmente como o vestibular chinês. No entanto, o gaokao é tratado como uma questão de vida ou morte pelos chineses – a palavra significa “alto teste” e também é a abreviação de “Exame nacional de admissão no ensino superior.” A maioria das pessoas faz a prova no último ano do ensino médio, mas desde 2001 não há restrições de idade. O exame dura cerca de nove horas e leva dois ou três dias para ser completado, dependendo da província. Além de matemática, chinês e uma língua estrangeira (a maioria escolhe o inglês), os alunos escolhem três das seis matérias a seguir: história, política, geografia, física, química ou biologia.
Um ditado chinês compara adequadamente o exame a “uma debandada de milhares de soldados e dezenas de milhares de cavalos em uma única ponte de madeira”. Nesses dois dias, a China fica silenciosa. O país parece andar na ponta dos pés para não incomodar os jovens que estão decidindo seu futuro: buzinas são proibidas; drones rodeiam algumas escolas atrás de trapaceiros; obras perto de centros onde alunos estão decidindo sua vida reduzem a intensidade dos trabalhos e param os barulhos completamente; música não é permitida nos parques. Desde 2015, quem é pego trapaceando pode encarar até sete anos na prisão. Em 2016, onze instituições de ensino superior foram sumariamente fechadas,136 após as investigações concluírem que estavam envolvidas em caso de trapaças.
Por que os estudantes chineses fazem tanta lição de casa? Para aumentar suas chances no gaokao.
O gaokao é o único critério de admissão para chineses entrarem em universidades chinesas. Esqueça a maneira norte-americana de incluir atividades extracurriculares, redação, carta de recomendação e entrevista. O modelo norte-americano avalia o ser humano de maneira holística, mas não é transparente, pois não é divulgado exatamente por que alguém foi escolhido ou não.
Antes ou depois de os alunos fazerem o gaokao, eles precisam preencher um formulário listando as faculdades nas quais desejam ingressar. Cada faculdade terá uma pontuação de admissão mínima, que varia de acordo com a província, e quem atingir essa nota de corte é admitido. Apenas a nota define quem será aceito.137
O que acontece com os cerca de 5 milhões de estudantes que fazem o gaokao, mas não são aceitos em nenhuma universidade? Se um aluno não atingir a nota mínima de nenhuma instituição, ele perderá completamente a chance de entrar na instituição no próximo ano letivo. Mas poderá ingressar em outras escolas profissionalizantes ou, como o gaokao aboliu o limite de idade oficial, pode refazer o gaokao no ano seguinte. Jack Ma, fundador da Alibaba e homem mais rico da China, falhou nas duas primeiras tentativas no gaokao. Passou somente na terceira.
Muitos decidem passar o ano todo estudando em ritmo alucinado para entrar nas melhores universidades. Não tente comparar esse ano de estudo intenso com a ideia de que temos no Brasil de cursinho. Em geral, a intensidade e o nível de estresse e competição são incomparáveis.138
É importante entender que o governo chinês tenta criar mecanismos para ser justo com os jovens que cresceram em famílias pobres, em que os pais não tinham tantos recursos para pagar por aulas extras como é norma nas grandes cidades. Na Universidade de Tsinghua, a número 1 da China, o governo lançou programa de cotas, que gerou aumento do número de alunos das províncias com o mais baixo PIB per capita entre 2010 e 2015 – Yunnan, Guangxi, Gansu, Tibet e Guizhou.
O gaokao tem impacto direto no mundo todo. Muitos filhos de mais ricos crescem sabendo que não terão que passar pelo extenuante gaokao, pois farão faculdade fora da China. Apenas nos Estados Unidos, “estudantes chineses contribuem com 12 bilhões de dólares, além de inúmeros outros benefícios”, de acordo com Esther D. Brimmer,139 diretora executiva da Associação Internacional de Educadores. De acordo com o governo federal dos Estados Unidos,140 mais de um terço de todos os estudantes internacionais nos Estados Unidos são chineses. Muitos dos estudantes chineses proporcionam faturamento essencial para universidades norte-americanas. Nos últimos anos, o gaokao, que acontece todos os anos no mês de junho, é cada vez mais aceito como critério de admissão por universidades e faculdades na Europa, na Austrália, nos Estados Unidos e no Canadá. Por exemplo, a renomadíssima Universidade de Cambridge confirmou que aceita o gaokao como parte do pacote de inscrição – junto com outros itens como exames de proficiência do idioma, entrevista e prova em inglês.
Para o resto da vida do chinês, o nome da universidade onde se graduou vai acompanhá-lo e ajudar ou atrapalhar em seu futuro. Enquanto em alguns países do Ocidente, a pergunta “onde você se formou?” não é ouvida com frequência, na China faz parte da cultura. O diploma é altamente valorizado e muitas profissões ainda não permitem promoção para pessoas que não possuem diploma de ensino superior.
Creio que vale o investimento para aprender como funcionam e o que oferecem as edtechs chinesas. Algumas são jabuticabas chinesas e só funcionam na China. Mas várias apresentam características que podem ser adaptadas e implementadas em outros mercados. Algumas já nascem atacando mercados globais. Veja o caso da MakeBlock, que faz uma espécie de Lego, que serve para ensinar as crianças a escrever código de software. A empresa foi fundada menos de dez anos atrás e já está em mais de 140 países e em mais de 6 mil escolas apenas na França.
Deixo a provocação para considerarem o mercado de estudos na China como uma grande oportunidade para empreendedores brasileiros. Nossas missões aqui com frequência visitam as duas maiores empresas de educação do mundo, que são as chinesas: a Tal Education Group e a New Oriental. Ambas são listadas em bolsas nos Estados Unidos, a Tal vale mais de 5 bilhões dólares e a New Oriental mais de 14 bilhões de dólares. O mercado, porém, é tão fragmentado que juntas elas não possuem nem 7% do trilionário mercado de educação da China. Alguns dados para provocar os caçadores de oportunidades: há mais estudantes que querem aprender idiomas estrangeiros do que professores; na China, já são mais de 171 milhões de pessoas estudando de maneira digital; o país possui o maior mercado mundial de estudantes, são 283 milhões entre pré-escola e o ensino superior (19% da população).
Em perspectiva, o total da população estudantil (da pré-escola até o ensino superior) é de, aproximadamente, 77 milhões nos Estados Unidos, 12,5 milhões no Reino Unido e 5,3 milhões na Austrália. Esses estudantes e suas famílias possuem apoio governamental e orçamento para experimentar produtos e serviços inovadores que possam lhes ajudar a atingir seus objetivos relacionados aos estudos. Quem não estiver convencido, confira o gráfico abaixo que revela o faturamento total do setor de educação na China:
Para finalizar, me sinto grato e sortudo que o jovem Ricardo não precisou fazer esse exame tão extenuante: ganhei uma bolsa de estudos para estudar na Farleigh Dickinson nos Estados Unidos. Eles pagavam meus estudos e eu defendia o time de futebol da universidade. Não sei qual a viabilidade desse sistema que inclui esporte de alto nível e estudos ao mesmo tempo ser implementado ao redor do mundo, mas para mim seria o ideal. Reitero em várias de minhas palestras que acredito fortemente que educação e empreendedorismo são as ferramentas fundamentais para melhorar o nosso mundo de maneira sustentável.141 Acredito que cada ser humano deveria ter a chance de escolher se irá para universidade ou não. Também creio que o ideal é passar a maior parte do nosso tempo fazendo aquilo em que somos melhores, e precisamos concentrar nossa preparação nesses pontos. Sou fã do que disse Confúcio, “Educação para todos, sem discriminação. Ensine estudantes de acordo com suas aptidões”. Acredito que cada um deveria poder escolher o que vai estudar. Entretanto, ignorar a China, como fizemos por tantas décadas, não pode continuar sendo uma opção. Nesse mundo globalizado, é essencial saber o básico sobre a China. O país deve ser parte do currículo básico de todos, como disse o bilionário Schwarzman. Espero que estas mal traçadas linhas tenham sido enriquecedoras, passado ferramentas para seguir aprofundando, e, acima de tudo, espero que você tenha sido mordido pelo dragão e que isso tenha despertado ainda mais seu interesse no país com a civilização continuada mais antiga do planeta. Para quem gosta de aprender, cuidado! A China é um vício. Quando o assunto é China, quanto mais você aprofunda, mais percebe que mais fundo pode ir. O quebra-cabeça parece aumentar perpetuamente. O meu principal objetivo com esta obra foi ter lhe dado mais peças para o seu quebra-cabeça chinês.
Se você quiser entrar em contato comigo por qualquer motivo, escaneie o QR code a seguir. Disse o poeta: “Escrever é fácil. Basta abrir suas veias e deixar sangrar”. Que delícia essa tecnologia que permite esse contato direto com você, que passou tempo com uma parte de mim. Será uma honra saber qual parte da obra mais o tocou.
@ricardogeromel
126 Cai, Jane. “China’s Middle Class Spend Less As They Scrimp and Save for Their Children’s Education”. South China Morning Post. 16 de outubro de 2018. Disponível em: <https://www.scmp.com/economy/china-economy/article/2168189/chinas-middle-class-spend-less-they-scrimp-and-save-their>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
127 Connor, Neil. “Chinese School uses Facial Recognition to Monitor Student Attention in Class”. Telegraph. 17 de maio de 2018. Disponível em: <https://www.telegraph.co.uk/news/2018/05/17/chinese-school-uses-facial-recognition-monitor-student-attention/>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
128 Zheng, Sarah. “Robots Being Used to Teach children in China’s Schools… Will They Replace Teachers?”. South China Morning Post. 13 de abril de 2017. Disponível em: <https://www.scmp.com/news/china/society/article/2087341/robots-are-being-used-teach-children-chinas-schools-no-fear-they>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
129 Krassenstein, Brian. Chinese Government to Put 3D Printers in All 400,000 Elementary Schools by Next Year. 8 de abril de 2015. Disponível em: <https://3dprint.com/56699/china-3d-printers-schools/>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
130 Chen, Stephen. “China’s Schools Are Quitly using AI to Mark Students Essays... But Do the Robots Make the Grade?”. South China Morning Post. 27 de maio de 2018. Disponível em: <https://www.scmp.com/news/china/society/article/2147833/chinas-schools-are-quietly-using-ai-mark-students-essays-do>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
131 Jing, Meng. “China Looks to School Kids to Win the Global Ai Race”. South China Morning Post. 3 de maio de 2018. Disponível em: <https://www.scmp.com/tech/china-tech/article/2144396/china-looks-school-kids-win-global-ai-race?_ga=2.183628390.1373392475.1558998773-661200318.1558998773>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
132 “China Encourages Private Investment in Education”. China Daily. 19 de janeiro de 2017. Disponível em: <http://www.chinadaily.com.cn/china/2017-01/19/content_27996652.htm>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
133 Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.
134 Há uma vasta literatura sobre os exames de serviço civil da China. Este artigo de Princeton é um breve resumo: Civil Service Examinations. Disponível em: <https://www.princeton.edu/~elman/documents/Civil%20Service%20Examinations.pdf>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
135 Em 2017, três autores escreveram artigo acadêmico com os efeitos persistentes do keju nos dias de hoje. Imperdível para quem gosta do tema. Chen, Ting; Kung, James Kai-sing; Ma, Chicheng. Long Live Keju! The Persistent Effects of China’s Imperial Examination System. Junho de 2017. Disponível em: <https://pdfs.semanticscholar.org/b11e/fb10e1b9667c266ff90226ffc92008d49ffb.pdf>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
136 “Hubei Cops Bust 11 Institutions for Role in Exam Cheating Ring”. Global Times. 7 de junho de 2016. Disponível em: <http://www.globaltimes.cn/content/987309.shtml>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
137 A CNN e a Business Insider criaram testes interativos em inglês do gaokao. Boa sorte para quem quiser arriscar. Lu, Shen; Griffiths, James. “Gaokao: Can You Pass China’s Grueling College Entrance Exam?”. CNN. 7 de junho de 2019. Disponível em: <https://www.cnn.com/2016/06/07/asia/gaokao-quiz/index.html>. Acesso em: 23 de agosto de 2019. Ma, Alexandra. “The Gaokao Is China’s Notoriously Tough Entrance Exam, which Can Also get You into Western Universities — Check Out Its Punishing Questions”. Business Insider. 5 de junho de 2019. Disponível em: <https://www.businessinsider.com/sample-questions-from-chinas-gaokao-one-of-worlds-toughest-tests-2018-6#if-x-y-a-x-y-1-and-the-minimum-value-of-z-x-ay-7-what-is-a-1>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
138 Este artigo do New York Times revela a brutalidade do cursinho na China. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2015/01/04/.../inside-a-chinese-test-prep-factory.html>. Acesso em: 20 de agosto de 2019.
139 “Gaokao Scores Gain Acceptance in US Schools”. China Daily. 25 de junho de 2018. Disponível em: <http://www.chinadaily.com.cn/a/201806/25/WS5b30888ba3103349141de9c5.html>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
140 Sevis by the Numbers. Biannual Report on International Students Trends. Abril de 2018. Disponível em: <https://www.ice.gov/doclib/sevis/pdf/byTheNumbersApr2018.pdf>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
141 Veja essa palestra para 10 mil pessoas no estádio do Palmeiras no evento TEDx. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5Jol0YAtrqw&utm_campaign=Newsletter%20Geromel%2020190219&utm_source=hs_email&utm_medium=email&_hsenc=p2ANqtz--aMkt9JwNMOut5PtXVTCBmvlWMsc4wNBjRLhYC-TQq9RTn3GEvidLYhrxtW9kmWkjt8NRF >. Acesso em: 23 de agosto de 2019.