CAPÍTULO 3

O carvalho de Goethe

Weimar

O monstro foi obrigado a se joelhar agonizando. Morra, fera, símbolo do Reich alemão. E Goethe? Para nós, Goethe não existe mais, Himmler o aniquilou.

Diário do Prisioneiro 4935

Uma névoa densa envolve o bosque exuberante como uma membrana opaca. É difícil enxergar além de dez metros adiante. Sigo o asfalto rachado. Nos limites borrados da neblina vejo outras pessoas, andando com cuidado. Suas vozes sussurram. Chego aos portões do campo, com suas torres de madeira marrom, que lembram uma Igreja de um antigo vilarejo. Os portões de ferro trazem a inscrição Jedem das Seine, uma versão alemã para o lema latino Suum cuique, que, em tradução livre, significa algo como “a cada um, aquilo que lhe cabe”. É uma expressão idiomática que tem raízes profundas na cultura alemã, aparecendo nos textos de Martinho Lutero e de outros pensadores da Reforma. Também é o título de uma cantata de Johann Sebastian Bach, executada pela primeira vez em 1715, a apenas seis quilômetros de distância do local onde estou agora, na cidade alemã de Weimar, um centro importante da cultura alemã. A expressão pode ser interpretada de vários modos, mas nos portões do campo de concentração Buchenwald não pode haver dúvidas sobre a mensagem transmitida: todo mundo deve receber o que merece. Viajei algumas horas partindo de Berlim para o sul, chegando ao coração da Turíngia. Pouco depois do portão fica o crematório, um edifício de concreto dominado por uma rústica chaminé de tijolos. Aqui dezenas de milhares de mortos foram incineradas.

Buchenwald, um dos maiores campos de concentração alemães, fica na colina de Ettersberg, em meio à bela floresta caducifólia conhecida por suas faias e pelos antigos carvalhos. Elie Wiesel, escritor e ganhador do Prêmio Nobel, deportado para cá aos 16 anos, disse sobre o lugar, ao visitá-lo mais tarde: “Se estas árvores pudessem falar”.[1] Segundo Wiesel, havia uma ironia especial no contraste entre os encantadores bosques de Ettersberg e os pesadelos que ocorreram ali entre 1937 e 1945. Wiesel não foi o único futuro vencedor do Prêmio Nobel a ser encarcerado ali. Outro prisioneiro foi o escritor húngaro Imre Kertész, que descreveu esse período em Sem destino. Muitos outros escritores, poetas, artistas, músicos, arquitetos, acadêmicos e intelectuais estavam ali. Mais de 230 mil prisioneiros de toda a Europa ocupada foram enviados a Buchenwald: os inimigos políticos e intelectuais do regime nazista, judeus, homossexuais, poloneses, ciganos e prisioneiros de guerra. Sessenta e cinco mil foram assassinados. Métodos especialmente cruéis de tortura e execução foram usados pelos guardas do campo e pelo SS-Hauptscharführer, Martin Sommer. Ele hoje é conhecido pela alcunha de “o carrasco de Buchenwald”, porque, nos bosques ao norte dos alojamentos, costumava pendurar os prisioneiros em árvores pelas mãos, atadas atrás das costas. Esse método de tortura, conhecido como estrapada, também foi usado na Inquisição.

O peso do corpo frequentemente arranca os braços dos ombros. Ao mesmo tempo, dizem, Sommer e seus guardas andavam em meio às árvores, batendo com bastões de madeira nos rostos, nas pernas e nos genitais dos prisioneiros indefesos. “A tortura levou alguns presos à beira da loucura. Muitos pediam aos homens da SS que atirassem neles para que sua agonia acabasse”, disse o sobrevivente Willy Apel.[2] Os gritos de dor e os gemidos que se ouviam fizeram com que o lugar ganhasse o nome de “A floresta cantora”.

Uma das árvores de Ettersberg teria significado especial. Saio andando do lugar onde fica o crematório e sigo fileiras falhas de fundações de concreto – resquícios dos alojamentos dos prisioneiros. À esquerda fica a área do campo que abrigava prisioneiros de guerra tomados dos Aliados, homossexuais, testemunhas de Jeová e desertores. Perto do grande edifício de tijolos, que também abrigava a unidade de desinfecção, vejo entre dois alojamentos: um largo toco verde-acinzentado, com raízes ainda presas com firmeza ao solo. A inscrição numa placa de pedra esculpida rusticamente diz “Goethe-Eiche” [o carvalho de Goethe].

Quando a floresta de Ettersberg foi derrubada em 1937 para dar lugar ao campo de concentração, os guardas da SS deixaram um carvalho de pé. Havia boatos de que Goethe costumava se sentar debaixo da grossa e imponente árvore. Não era o único carvalho na Turíngia associado ao poeta nacional, mas esse, em específico, estava fadado a se tornar um símbolo especial do campo, dos guardas e dos prisioneiros. Goethe, que passou a maior parte da vida em Weimar, fazia excursões a cavalo até Ettersberg, um lugar popular para passeios românticos no século XVIII. Ele disse a seu amigo e biógrafo Johann Peter Eckermann que nessa floresta ele se sentia “generoso e livre”.

Quando Buchenwald foi construído, a SS inicialmente tinha a intenção de denominar o campo de “K.L. Ettersberg”. A ideia, porém, irritou profundamente a burguesia de Weimar, porque Ettersberg tinha ligações bem estabelecidas com Goethe e com o classicismo de Weimar. Não era considerado apropriado batizar um campo de concentração assim. Por isso, Heinrich Himmler decidiu dar ao campo um nome inventado: Buchenwald [a floresta de faias].[3]

Segundo uma tradição local, foi nessa exata árvore que Goethe escreveu a passagem da Noite de Santa Valburga, do Fausto, quando Mefistófeles leva Fausto a uma montanha em Brocken para o sabá noturno das bruxas. Além disso, segundo os rumores, ele havia se sentado debaixo dessa árvore enquanto escrevia “A canção noturna do andarilho”, que enviou em uma carta, em 1776, à amiga e amante Charlotte von Stein, com uma dedicatória “das colinas de Ettersberg”:

No alto das colinas
há paz;
não se ouve, ali nas
frondes, mais
que um sopro manso.
Nem há no bosque um trino. Aguarda:
tampouco tarda
o teu descanso.
(Tradução Nelson Ascher)

Será que os dois amantes chegaram a se sentar juntos algum dia debaixo do carvalho? Mas havia ainda outro mito intrincado à árvore: a história de que ela, de algum modo místico, estava atrelada ao destino da Alemanha. Enquanto a árvore vivesse, a Alemanha existiria. Mas quando ela caísse, a nação alemã se extinguiria.

Na verdade, o carvalho carregava duas realidades simbólicas totalmente diferentes, uma para os guardas da SS que decidiram que o carvalho devia ser preservado e outra para os prisioneiros do campo. Para a SS, o carvalho era um elo com uma grande tradição cultural alemã, da qual eles se sentiam verdadeiros herdeiros. Os integrantes da SS que faziam a guarda do campo participavam ativamente da vida cultural de Weimar. No Teatro Nacional, do qual Goethe foi diretor, alguns dos melhores assentos eram reservados para o Regimento da SS conhecido como Esquadrão da Morte. Os artistas também faziam visitas a Buchenwald, onde se apresentavam para os guardas. Em uma ocasião foi montada a opereta romântica O país dos sorrisos – ironicamente o libreto havia sido escrito por um dos prisioneiros do campo, o austríaco Fritz Löhner-Beda. Posteriormente ele foi mandado para Auschwitz, onde foi espancado até a morte por um guarda.

Para muitos prisioneiros do campo, o carvalho, em meio a esse mundo infernal, era uma representação dos sonhos, das fantasias e das esperanças que ainda os mantinham vivos. Para os prisioneiros que tinham raízes na cultura alemã, a árvore simbolizava um país diferente, melhor e mais iluminado do que aquele em que eles estavam encarcerados. O escritor e poeta Ernst Wiechert descreveu em seu retrato da vida no campo, Der Totenwald [A floresta da morte], como a árvore servia de consolo para seu alter ego, Johannes:

O crepúsculo já caía quando Johannes saiu mais uma vez do espaço entre os alojamentos onde eles passavam a hora de descanso a que tinham direito no fim da tarde. Ele só precisou de um minuto andando e estava de frente ao carvalho, cuja sombra, segundo se dizia, caíra um dia sobre Goethe e Charlotte von Stein. Ele ficava em uma das alamedas do campo e este era o único lugar de onde se tinha uma visão desimpedida do campo lá embaixo. A lua ultrapassara as colinas cobertas por árvores e os últimos sons do campo iam se reduzindo rumo ao silêncio.

Durante um tempo ele olhou para o céu que escurecia, tão só, como se ele fosse o último ser humano sobre a terra, e tentou se lembrar de todos os versos que conhecia daquele que talvez tivesse estado ali cento e cinquenta anos antes. Nada de sua grandeza havia se perdido, e mesmo que ele fosse confinado às galés aos cinquenta anos nada se perderia. “Nobre, útil e bom...” Não, nem mesmo isso tinha se perdido, desde que continuasse repetindo isso para si, e que tentasse preservar isso até a chegada da hora final.[4]

Para Wiechert, Goethe personificava a verdadeira tradição cultural alemã, como um caminho belamente iluminado, embora o povo tivesse se desviado do caminho e estivesse percorrendo trechos mais sombrios da floresta. Muitos sobreviventes do campo descreveram o carvalho. O artista francês e combatente da resistência Léon Delarbre muitas vezes se sentou sob o carvalho, desenhando sua rede de galhos.

Nem todos compartilhavam do ponto de vista de Wiechert. Pelo contrário, havia quem visse no carvalho o símbolo do mal inerente à cultura alemã, de opressão e crueldade. Esses prisioneiros mantiveram vivo o mito de que o carvalho estava ligado ao destino da Alemanha. E isso lhes dava esperança. O carvalho do campo começou lentamente a murchar e a morrer. As folhas não se renovaram depois de um inverno e a casca foi caindo até o tronco ficar branco, seco e nu. Mas a árvore permanecia de pé, até um dia de agosto de 1944, quando bombardeiros Aliados atacaram as fábricas ao lado do campo de concentração. Uma das bombas atingiu a lavanderia, que se incendiou. Em pouco tempo as chamas se espalharam para o vulnerável carvalho. Um prisioneiro polonês que conhecemos apenas por seu número de identificação no campo, 4935, descreveu os fatos assim:

Eu ouvia o fogo crepitando e as fagulhas voando: os galhos do carvalho que queimavam caíam e rolavam pelos telhados cobertos por piche. Eu sentia o cheiro da fumaça. Os prisioneiros formaram uma longa filha e passavam baldes de água tirada do poço para combater o incêndio. Eles salvaram a lavanderia, mas não o carvalho. Era possível ver em seus rostos uma alegria secreta surgindo, uma vitória silenciosa: agora sabíamos que a profecia iria se realizar. Diante de nossos olhos, com a fumaça se misturando à fantasia, aquilo não era uma árvore e sim um monstro cheio de braços, murchando em meio às chamas. Víamos seus braços despencarem e o tronco diminuir de tamanho enquanto ele ruía. O monstro foi obrigado a se joelhar agonizando. Morra, fera, símbolo do Reich alemão. E Goethe? Para nós, Goethe não existe mais, Himmler o aniquilou.[5]

Em frente ao Teatro Nacional em Weimar estão Goethe e Schiller, olhos fixos na eternidade. A mão de Goethe descansa sobre os ombros do amigo, enquanto Schiller estende a mão para aceitar a coroa de louros que Goethe lhe entrega. A estátua de Ernst Rietschel, de 1857, é típica da época, e serviria, em meados do século XIX, de modelo para diversas outras estátuas dos dois gênios em todo o país. Estátuas de Goethe e Schiller eram uma expressão direta dos fortes sentimentos nacionalistas que agitavam a Alemanha inteira, numa época em que Weimar se tornou um culto.

Nos limites da cidade fica o Park an der Ilm, um parque com pequenas trilhas em meio a áreas arborizadas tão densas que chegam a transformar os caminhos em túneis verdes. Uma das trilhas leva a uma campina aberta, outra, a uma construção extravagante; uma leva a uma fonte que jorra das pedras, outra, a uma gruta ou a uma ruína pitoresca. O parque é uma fantasia romântica. Pouco mudou desde o final do século XVIII, quando foi criado, inspirado nos jardins ingleses. Sobre os campos fica a casa de campo branca do poeta, onde ele morou durante seus primeiros anos em Weimar. Nessa época, Goethe já tinha conquistado a fama em toda a Europa com seu romance de estreia, Os sofrimentos do jovem Werther – cuja prosa passional, tremendamente emocional, fez surgir uma enorme ansiedade em um século ocupado com a razão, a racionalidade e o pensamento iluminista. Essa ideia romântica de devoção à beleza, de adoração da natureza e de poesia se tornou um aspecto importante da autopercepção alemã. No entanto, ao mesmo tempo parecia haver uma nódoa negra nessa ideia. Como era possível que dentro de poucas gerações os herdeiros dessa ideia estivessem enforcando, torturando e assassinando pessoas exatamente nas mesmas florestas em que Goethe sentava para escrever poemas? Essa imagem, por um lado radiante e por outro cheia de trevas, já foi chamada de “dicotomia Weimar-Buchenwald”. Esses dois aspectos formam um microcosmo do dilema alemão, a face de Jano da Alemanha. O paradoxo é muito bem ilustrado pelos pontos de vista diferentes em relação ao carvalho de Goethe em Buchenwald.

Houve quem desejasse ver esses dois lados da cultura alemã como totalmente separados, para não macular o brilho da era clássica. Essa foi a abordagem predominante em Weimar durante a maior parte do pós-guerra. Outros afirmam que isso é uma simplificação histórica, até mesmo uma falsificação, simplesmente porque esses dois lados estão interligados por raízes culturais, filosóficas e literárias. Talvez eles não estejam diretamente relacionados, mas o nacional-socialismo ampliou e explorou de maneira implacável algumas dessas ideias, que se desenvolveram da mesma raiz: o nacionalismo alemão e a rejeição dos ideais do Iluminismo.

O alto Romantismo alemão resistia fortemente à escassez de emoções do período iluminista. Especialmente importantes eram as ideias que se formaram na Universidade de Jena, cerca de vinte quilômetros a leste de Weimar, durante a primeira metade do século XIX, quando pensadores como Friedrich Hegel, Johann Gottlieb Fichte e Friedrich von Schelling, numa reação ao Iluminismo, começaram a formular o pensamento hoje conhecido como idealismo alemão. Eles deixaram como legado uma grande herança de ideias que foram facilmente exploradas pelos nacional-socialistas do século XX em busca de inspiração – a mais influente delas a ideia da singularidade alemã, na forma de sua elevação espiritual. Ainda mais influente foi o filósofo e historiador Johann Gottfried von Herder, um dos grandes pensadores que Goethe levou para Weimar, e alguns sugerem que pode até mesmo ter sido o protótipo usado pelo poeta para seu Fausto. A ideia de Herder da singularidade da alma de um povo e sua forte ênfase sobre o patriotismo seriam de importância decisiva para o surgimento do nacionalismo alemão. O objetivo de Herder era acima de tudo distanciar a cultura alemã da forte influência francesa da época – a cultura europeia do século XVIII foi dominada pela França. Johann Gottlieb Fichte, outro filósofo muitas vezes chamado de pai do nacionalismo, achava que o povo alemão tinha características únicas e que por isso os alemães deveriam “criar e liderar uma nova era na história humana”.[6] Já em Fichte havia um antissemitismo plenamente articulado: ele afirmava que haveria danos para a Alemanha caso os judeus tivessem plenos direitos como cidadãos – como havia ocorrido em toda a Europa, em um processo de desenvolvimento político que havia se espraiado desde a Revolução Francesa. Na França, os judeus haviam conquistado direito de cidadania, o que deu início à emancipação em que os judeus da Europa cada vez mais decidiam sair de seu isolamento em guetos e se mesclar linguística e culturalmente à sociedade europeia.

O principal objetivo do emergente nacionalismo alemão na primeira metade do século XIX era a criação de uma Alemanha linguística e culturalmente homogênea. Os sentimentos nacionalistas culminaram em 1848, quando uma onda de ardor revolucionário varreu a Europa. Na Alemanha houve um levante de liberais, intelectuais, estudantes e trabalhadores contra as velhas, autocráticas e repressoras elites nos miniestados alemães, que, porém, acabou sufocado pelos principados conservadores.

A estátua de Goethe e Schiller esculpida por Ernst Rietschel foi erigida diante do Teatro Nacional em Weimar logo depois dessa revolução e da melancolia política que se seguiu.

“Quando as guerras de libertação em territórios alemães não trouxeram nem liberdade política nem unidade nacional, os cidadãos começaram a buscar na cultura um substituto para o que lhes faltava. Por exemplo, ergueram monumentos a gigantes intelectuais, normalmente nos pontos centrais da cidade, uma honra até então reservada a príncipes e militares”, escreve o historiador da arte alemão Paul Zanker.[7]

Até meados do século XIX era incomum erigir monumentos caros em homenagem a artistas, mas depois da revolução estátuas de Goethe e Schiller adornariam muitas cidades, como expressão de um movimento literário e nacionalista. De acordo com Zanker, essas estátuas de escritores e poetas eram vistas como representativas dos ideais alemães, modelos morais retratados em figurino contemporâneo – nada de divindades gregas nuas e intocáveis e, sim, cidadãos. Criou-se em torno desses monumentos um culto que inspirou a publicação de jornais, livros ilustrados e volumes luxuosos com coletâneas das obras dos autores. Foi nesse período, escreve Zanker, que os alemães começaram a se ver como “um povo de poetas e pensadores”. No entanto, prossegue o historiador, esses monumentos não tinham a intenção de atrair as pessoas para novas revoluções e protestos – pelo contrário. A burguesia erigiu essas estátuas para promover virtudes cidadãs: ordem, obediência e lealdade aos superiores. O fato de os grandes escritores nativos terem servido à corte de Weimar era considerado um ideal digno de ser seguido.

Goethe, o poeta nacional, que passou a personificar esses ideais, estava fadado a se transformar, no fim do século XIX, no modelo moral da nação alemã. Tudo que não se encaixasse na imagem de Goethe era colocado no fundo dos arquivos ou mesmo destruído. Cartas de admiração mandadas por Goethe a Napoleão foram queimadas. Goethe tinha se pronunciado abertamente a favor do cosmopolitismo e do internacionalismo, mas suas ideias foram reinterpretadas após a sua morte como sendo estritamente nacionalistas – principalmente depois da formação do império alemão em 1871. As mesmas distorções também afetaram filósofos como Hegel, Fichte e Herder, cujas ideias foram usadas de modo equivocado, receberam ênfase excessiva ou até mesmo foram falsificadas para dar legitimidade ao nacionalismo.

A crítica de Goethe à esfera política foi usada mais tarde por nacionalistas de direita como arma contra a formação de partidos políticos e contra a democracia.[8] Enquanto isso, a esquerda via Goethe como um defensor do liberalismo e do parlamentarismo. A batalha pela alma de Goethe prosseguiu no século seguinte. As fortes tensões internas entre a luz e as trevas de Weimar logo aumentariam violentamente, e o palco para essa conflagração foi simbólico: o Teatro Nacional atrás da estátua de Rietschel retratando Goethe e Schiller.

Em 6 de fevereiro de 1919, teve início um congresso no Teatro Nacional de Weimar. Mais de quatrocentos delegados de cerca de dez partidos políticos tomaram assento diante do palco que pertenceu a Goethe e Schiller. Eles se uniram para salvar a Alemanha. O império, que mal chegava a cinquenta anos, e que bem pouco tempo atrás parecia forte e mesmo invencível, estava se dissolvendo. A nação alemã, forjada por Bismarck a “sangue e ferro”, ruía como um castelo de cartas. Para salvar a Alemanha, eles voltaram às raízes se reunindo em Weimar.

Quase um ano antes, em 21 de março, o Exército alemão tinha iniciado a Kaiserschlacht [Batalha do Kaiser, mais conhecida em português como Ofensiva da Primavera], um amplo ataque ao longo de trechos extensos do front ocidental, em uma tentativa de romper o impasse da guerra. Na verdade, a demonstração de força era um último recurso desesperado para vencer o confronto. Quando os Aliados contra-atacaram no verão, as linhas alemãs ficaram à beira do colapso total. No final de outubro de 1918, forças da Marinha em Kiel se rebelaram e em questão de dias a Revolução de Novembro havia se espalhado pela Alemanha inteira. A guerra tinha acabado. Mas o levante continuou, com um terrível caos político enquanto grupos rivais se confrontavam e milhões de soldados alemães desiludidos voltavam do front. Comunistas alemães formaram sovietes, com base no precedente russo, e chegaram a tomar o poder na Baviera na primavera de 1919. Mas os sociais-democratas alemães resistiram, assim como os Freikorps [exércitos livres], grupos paramilitares formados por soldados e oficiais que haviam dado baixa, e que trouxeram da guerra uma cultura brutal e desumana de violência alimentada nas trincheiras.

A sombra desses eventos recaía sobre os delegados quando eles se reuniram em fevereiro de 1919, em Weimar, por iniciativa dos sociais-democratas alemães, cuja ambição era formar uma democracia parlamentar. Depois da abdicação do Kaiser, o partido liderado por Friedrich Ebert formou um governo provisório. Ebert, um político moderado e pragmático, foi forçado a formar uma aliança com os nacionalistas e com grupos reacionários de Freikorps para isolar a esquerda radical. Foi ideia de Ebert levar os constituintes para Weimar, onde uma nova Constituição seria escrita para estabelecer o que viria a ser chamado de República de Weimar.

A escolha de Weimar foi ao mesmo tempo um ato de simbolismo e de realpolitik. Um golpe contra o governo de Ebert era altamente provável em Berlim, onde o chamado Levante de Janeiro havia eclodido. Os Freikorps acabaram com a resistência remanescente com uma brutalidade assustadora, tanto em Berlim quanto em Munique: centenas de pessoas foram assassinadas em execuções sumárias, já que os comunistas eram incapazes de resistir aos soldados embrutecidos pelas batalhas no front. E assim, apesar de a nascente democracia alemã estar banhada em sangue, Friedrich Ebert pretendia limpá-la com a ajuda de Goethe. O fato de Ebert ter escolhido Weimar como berço da democracia alemã era uma tentativa de dar legitimidade ao novo regime, associando-o aos elevados ideais do classicismo local.

Mas a escolha de Weimar como capital não era apenas nostalgia do período clássico, era também a marca de um novo tipo de cultura, que acabaria definindo a nova república. O movimento modernista, retratado de maneira mais articulada no expressionismo alemão, permearia e revitalizaria a literatura, as artes, a música, o teatro, a arquitetura na República de Weimar. Em todas as áreas, uma nova geração rompeu com as rígidas convenções do passado. No entanto, a cultura de Weimar se tornou foco de uma incandescente luta entre dois aspectos irreconciliáveis da Alemanha – o modernismo, o cosmopolitismo e a democracia de um lado e o culto à beleza, a violência e o fascismo de outro. Na literatura, um novo tipo de prosa experimental surgiu, na qual ideais burgueses vazios, estruturas de família patriarcais e sentimentos reprimidos passaram a ser os temas centrais. O novo movimento era capaz de liberar sua energia reprimida sem qualquer restrição, encontrando o oxigênio essencial para seu crescimento no vácuo existencial deixado pela guerra. “Não foi apenas uma guerra que perdemos. Um mundo acabou. Precisamos encontrar uma solução radical para nossos problemas”, escreveu o arquiteto alemão Walter Gropius, fundador da escola Bauhaus.[9],[10]

Porém, embora parecesse nocauteado, o antigo mundo jamais foi derrotado. O movimento modernista imediatamente dividiu Weimar e a Alemanha em duas entidades. O Modernismo foi recebido com hostilidade pela velha elite guilhermina: a aristocracia, a burguesia reacionária e as universidades, que se viam como guardiãs da tradição. O novo movimento era visto como depravado e imoral – e havia quem se sentisse nauseado com o que via, ouvia e lia.

A reação começou a se mobilizar. A resistência à República de Weimar, aos seus ideais democráticos, à sua cultura e ao modernismo estava fadada a ter uma natureza violenta, reunindo conservadores, nacionalistas e extremistas de direita.

Ao contrário dos comunistas e dos democratas, a direita alemã esperava uma verdadeira revolução conservadora. Era uma reação ao modernismo, que, a seus olhos, estava entrando de maneira desordenada na arena da vida, criando no processo uma sociedade de massas sem alma, da qual todo encanto era roubado.[11] A reação rejeitava o materialismo, o racionalismo e o capitalismo da época – que esvaziavam as relações humanas e o idealismo. O novo mundo erodia os valores aristocráticos e românticos considerados mais elevados do que quaisquer outros: honra, beleza e cultura. Como movimento, a reação já havia começado a crescer antes da guerra. Muitos punham fé em um renascimento conservador como consequência da Grande Guerra. Apenas a guerra poderia alterar o curso da ruína que estava em andamento, submetendo a nação a um necessário rito de purificação e forçando as pessoas a se elevarem acima do materialismo rumo a um novo nível espiritual. Para esses revolucionários conservadores a Primeira Guerra Mundial não tinha a ver com território, recursos naturais ou hegemonia comercial; era, na verdade, uma guerra espiritual em que a civilização francesa se opunha à cultura alemã. Em outras palavras, uma guerra entre o Iluminismo francês e o Romantismo alemão.

Um dos que aderiram a esse ponto de vista, e que falou em defesa de uma revolução conservadora, foi Thomas Mann, que por muito tempo foi cético e mesmo hostil em relação aos avanços democráticos que, ele achava, eram estranhos ao povo alemão. Mann romantizava a guerra e achava que a vida violenta das trincheiras fazia surgir o melhor dos seres humanos. Segundo Mann, a guerra acabaria induzindo “as massas” a se sacrificarem em nome de um propósito mais elevado e, ao fazer isso, a se transformarem em um “povo”: “A guerra é a cura efetiva para a destruição racionalista de nossa cultura nacional”, continuou Mann, que sonhava com um estado nacionalista autoritário em que poder e cultura seriam integrados – um “Terceiro Reich”, como ele profeticamente decidiu chamá-lo. Essas ideias não desaparecem com a guerra ou seus horrores e as perdas inimagináveis sofridas pela Alemanha – longe disso, a resistência dependia de ideais como esses para mobilizar sua rejeição, e durante a “decadência” democrática da República de Weimar esses foram os conceitos que formaram a imagem de mundo da extrema direita. Intelectuais conservadores como Thomas Mann tinham um ponto de partida ligeiramente diferente, mas seu nacionalismo feroz, seu interesse pelas ideias feudais e pelo romantismo da guerra como uma luta espiritual mais elevada contribuíram para legitimar o nacional-socialismo e sua visão ainda mais radical da realidade.

A resistência literária ao modernismo ganhou forma em um gênero próprio, conhecido como literatura freikorps. Grupos Freikorps, que vinham sendo formados por soldados que voltavam da guerra, atuariam durante toda a década de 1920 e preencheriam o vácuo espiritual criado pela limitação de tamanho do Exército alemão, que de acordo com o Tratado de Versalhes não poderia ter mais de 100 mil homens. Os Freikorps não estavam em sintonia com a nova ordem da República de Weimar, em que as velhas virtudes militares de honra, obediência e camaradagem eram ridicularizadas. Seus sacrifícios no front agora pareciam, em grande medida, sem sentido. Foi nos grupos de Freikorps que a chamada “Lenda da punhalada pelas costas” [Dolchstoßlegende] foi cultivada, uma visão segundo a qual a Alemanha não foi derrotada no front ocidental e sim no front doméstico – onde os sociais-democratas, os socialistas e os judeus apunhalaram a nação pelas costas. Muito difundida na sociedade alemã, a teoria acabaria se tornando a principal questão política formulada pelo recém-formado Partido Nazista.

A literatura freikorps, que surgiu nos anos 1920, era um gênero de livros muitas vezes vendidos em quiosques ou em outros pontos de venda populares, em que a guerra, a violência e a masculinidade eram idealizadas. O gênero obteve grande sucesso no entreguerras, e certos livros chegaram mesmo a uma repercussão maior, às massas. Os livros davam vazão aos sentimentos de amargura, nojo e ódio experimentados por muitos alemães após a guerra, mas também a um desejo por algo mais profundo – um mundo que havia sido perdido.

A ação arquetípica dessas histórias tem como centro um jovem de origem burguesa e sua jornada de autodesenvolvimento. Aturdido com o vazio do materialismo e com a pobreza espiritual da vida contemporânea nas cidades no “front doméstico”, o rapaz busca um sentido mais profundo. É na presença da morte, no front, que ele “desperta” e tem uma revelação do que deve ser o verdadeiro sentido da vida, de que ele deve aceitar seu destino e se sacrificar por sua pátria, por seus amigos e por seu sangue. As lições aprendidas no front criam uma experiência existencial, quase religiosa. Essa também é a fonte da “Punhalada pelas costas”: as massas desinformadas na cidade enfiam o punhal nas costas dos soldados honrados, cujo retorno do front se torna uma experiência cheia de humilhação e desgosto. Ali, os veteranos encontram todos os aspectos revoltantes da modernização: a democratização, o avanço dos trabalhadores, a cultura experimental e a emancipação das mulheres. O imaginário de combate da literatura freikorps – a sexualidade reprimida, a romantização de atos violentos e os sentimentos de repulsa em relação ao mundo moderno – em muitos casos estava intimamente aliado à ideologia de violência dos nazistas, e foi por ela incorporado.

Mas havia os que apresentavam outra perspectiva. Em Nada de novo no front, Erich Maria Remarque examinava o imaginário do combate no front e desnudava o vazio e a desonestidade dos sacrifícios “honrados”. Ele também retratava as amizades íntimas que se criavam com a proximidade constante da morte, mas não havia heroísmo, e os amigos eram vistos encontrando um destino coincidente e sem sentido. Remarque, que também era um veterano, deu um golpe no coração do romantismo inspirado na guerra. Por isso, quando foi publicado em 1928, o livro deu origem a uma resposta veemente dos reacionários e da extrema direita – e, portanto, foi uma das primeiras vítimas da queima de livros de 1933.

No entreguerras, houve também um gênero emergente de racismo mais explícito, com romances antissemitas, alguns atingindo grande repercussão. A literatura se tornou um meio de comunicação de massas para divulgar e estabelecer o conceito fascista do mundo. Os alemães eram um povo que lia livros, e não tinham apenas Os Buddenbrook, de Thomas Mann, na mesinha de cabeceira, tinham também romances hoje não muito conhecidos, como Um povo sem espaço, de Hans Grimm, e Der Hitlerjunge Quex [O jovem hitlerista Quex], de Karl Aloys Schenzinger.

Até a ascensão dos nazistas ao poder, as ideias modernistas e expressionistas da época coexistiram com os textos freikorps que glamorizavam a violência, e também com romances antissemitas e racistas. A tensão entre violência e ideias progressistas estava presente constantemente na literatura e na vida cultural da República de Weimar. Por um lado havia escritores e poetas liberais e de esquerda como Heinrich Mann, Kurt Tucholsky e Bertolt Brecht, e por outro lado, extremistas de direita e escritores nacionalistas como Emil Strauss, Hans Carossa e Hanns Johst.[12] Mas também havia escritores que se posicionaram em um ponto intermediário.

A posição mais difícil era a ocupada por intelectuais burgueses e conservadores como Thomas Mann, que se preocupavam com o avanço democrático, mas ao mesmo tempo se revoltavam contra as vulgaridades dos nazistas. Em 1922, depois do brutal assassinato do ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Walter Rathenau, Mann achou que a única opção era mudar seu ponto de vista, o que ele fez em um discurso muito divulgado em Berlim: Von deutscher Republik [A República Alemã]. Na palestra ele rejeitou publicamente as ambições imperiais da Alemanha guilhermina e falou a favor da República de Weimar. Mann afirmou ver agora que a democracia era, na verdade, mais “alemã” do que ele imaginava. Era uma conversão motivada por seu sentimento de culpa por ter de alguma forma desempenhado um papel na promoção da violência política.[13] Mas provavelmente também havia certo medo do “demônio”, que a violência, a guerra e a derrota militar haviam invocado, e que agora dava seus primeiros passos cambaleantes na forma de um partido radical fascista em Munique.

A velha Alemanha hierárquica com seus ideais militaristas, imperiais e nacionalistas havia reencarnado como um novo movimento político radicalizado pela guerra e alimentado pela “Lenda da punhalada pelas costas”. Por sua vez, os Freikorps haviam encontrado um novo canal para demonstrações de violência em nome do Partido Nacional Socialista, que estava em crescimento.

O movimento teria suas primeiras conquistas exatamente no período do nascimento da República de Weimar. O Partido Nazista foi refundado em 1925, depois de ter sido colocado na ilegalidade após o fracassado Putsch da Cervejaria, poucos anos antes. Apenas quatro anos depois o Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei [Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou NSDAP] teve sua primeira grande vitória eleitoral na Alemanha, quando o partido foi incluído na coalizão que assumiu a Turíngia. Os nazistas, liderados pelo ministro do Interior e da Educação, Wilhelm Frick, deram início a um feroz ataque à vida cultural de Weimar por meio da adoção de um programa cultural extremista, institucionalmente racista, desenvolvido por Alfred Roosenberg e seu círculo. Sua organização, a Kampfbund für Deutsche Kultur [Liga Militante pela Cultura Alemã], foi criada em 1928 e buscava amalgamar as abundantes organizações culturais de extrema direita do país para eliminar da cultura alemã as influências judaicas e de outros “forasteiros”. Em poucos anos, Weimar passou de zona livre para a experimentação modernista a local de culto ao nazismo. A Turíngia se tornou o lugar de testes e o estado modelo para a política racial radical que logo seria implantada em toda a Alemanha.[14]

A versão cinematográfica de Nada de novo no front foi proibida no estado, e o Museu do Castelo, em Weimar, parou de expor obras de Wassily Kandinsky, Franz Marc e Paul Klee. Compositores como Stravinsky entraram para a lista negra, assim como a música “negra”, o que incluía o jazz.

Assim como anteriormente o estado havia atraído artistas progressistas, agora a Turíngia se tornava um ímã para intelectuais mais sombrios. Wilhelm Frick promoveu o eugenista Hans F. K. Günther a professor de biologia racial na Universidade de Jena. Günther, que atendia pelo apelido de Günther-Racial ou Papa da Raça, era visto na época como a mais destacada autoridade mundial em pesquisas sobre raça. As teorias de Günther em grande medida formariam a base da política racial nazista. Outro teórico racial, o arquiteto e crítico cultural Paul Schultze-Naumburg, foi indicado para chefiar a Faculdade de Artes de Weimar, que substituiu a escola Bauhaus de Gropius. Schultze-Naumburg, que entre outras obras havia escrito o livro Kunst und Rasse [Arte e raça], acreditava que a arte verdadeira só podia ser criada por artistas racialmente puros. O braço direito de Frick, o radical nazista e literato Hans Severus Ziegler, foi levado ao estado para exercer o papel de expert em cultura, artes e teatro. Poucos anos depois ele se tornou presidente da Associação Schiller e diretor criativo do Teatro Nacional, em Weimar.

Um vasto programa também foi colocado em prática para “nazificar” Johann Wolfgang von Goethe, o que exigiu muita habilidade e trabalho. Embora os nacionalistas já tivessem dado início no século XIX a uma distorção da imagem de Goethe, ele ainda era conhecido como um humanista e um internacionalista – valores aos quais os fundadores da República de Weimar eram leais. Goethe também esteve envolvido numa série de ligações “incômodas”, inclusive com insinuações de que tinha sido “amigo dos judeus”, e até mesmo certos boatos de que o próprio Goethe tinha sangue judeu. Além disso, a Associação Goethe e várias instituições em Weimar ligadas ao poeta nacional estavam “infiltradas” por judeus. Por exemplo, o professor Julius Wahle, que havia dirigido o Arquivo Goethe e Schiller, era judeu.

Por sorte, o chefe do arquivo à época, Hans Wahl, estava disposto a assumir a tarefa de “limpar” Goethe e de preparar um lugar de honra para ele no panteão Nacional Socialista. Poucos anos antes, Wahl tinha participado da criação da seção de Weimar da Liga Militante para a Cultura Alemã.

Wahl estava disposto a fazer o que fosse necessário para salvar a honra do grande filho de Weimar. Como vice-presidente da Associação Goethe, ele se certificou de que não arianos fossem proibidos de se afiliar, e afirmou que a instituição era agora “a mais antijudaica de todas as associações literárias da Alemanha”.[15] Na verdade a associação literária só expulsou os membros judeus no fim da década de 1930. A associação tentou, usando sua revista, acabar com a “aura” humanista de Goethe publicando textos que falavam como o poeta havia previsto o surgimento do Terceiro Reich. Hans Wahl sugeriu que Goethe era antissemita e se opunha à maçonaria, o que evidentemente era mentira – o poeta foi, ele próprio, maçom. Wahl ameaçou silenciar qualquer pesquisador que sugerisse que Goethe fora “amigo dos judeus”. O presidente da associação, Julius Petersen, levou o processo um passo adiante ao ligar Goethe a Hitler – os dois eram “grandes” estadistas e artistas. Quando Thomas Mann chegou à cidade em 1932 para participar do centenário da morte do poeta, ele observou enojado: “Weimar é o centro do hitlerismo”.[16]

O ápice do ato de mutilação de Wahl foi o novo Museu Goethe, cujo financiamento foi pessoalmente garantido por Adolf Hitler. O museu abriu em 1935, em um edifício ao lado da casa de Goethe. Na entrada, Wahl colocou um busto de Adolf Hitler, com uma placa cheia de exagerados agradecimentos ao patrono. Na parede, foi colocada uma “árvore genealógica” de Goethe, para deixar clara a linhagem puramente ariana do poeta.

Hoje, todos os traços do patrono do museu foram eliminados. O busto foi removido, assim como a árvore genealógica. Mas ainda há um medalhão de Adolf Hitler na argamassa de um dos pilares.

“Tudo começou com o incêndio”, diz Michael Knoche olhando pela janela. A sala no alto da casa, conhecida como Castelo Verde, tem uma bela vista do Park an der Ilm. A exuberante vegetação de julho quase força sua entrada pela janela, que está escancarada. Knoche, um sujeito de aparência modesta, vestindo um paletó xadrez cinza, é o diretor de uma das bibliotecas mais famosas da Alemanha: a Biblioteca Duquesa Anna Amalia. Em 1761, a duquesa Anna Amalia von Braunschweig-Wolfenbüttel transformou seu castelo do século XVI em uma biblioteca para os livros da corte. A biblioteca, mobiliada em estilo rococó, é considerada Patrimônio Mundial pela Unesco. Hoje é parte da Klassik Stiftung Weimar, uma fundação que supervisiona a administração das instituições culturais de Weimar.

“Quando cheguei a Weimar no começo da década de 1990, não acreditei que havia um problema aqui com objetos saqueados. Tive alguns contatos com organizações judaicas ligadas a esse tema, mas disse a eles: ‘Aqui não temos esse tipo de problema’. Era uma espécie de consenso. Mas o incêndio mudou isso”, diz Knoche.

Uma noite em setembro de 2004 uma fagulha saiu de um cabo elétrico com defeito e caiu nas vigas secas do telhado. O andar superior da renomada biblioteca em estilo rococó, com dezenas de milhares de exemplares de papel, pegou fogo. O mesmo aconteceu com as pinturas a óleo, retratos de cinco séculos da realeza do Império alemão. Cinquenta mil volumes se perderam nas chamas, muitos deles primeiras edições insubstituíveis do século XVI. A Biblioteca Anna Amalia, onde Goethe trabalhou, abrigava o maior acervo na Alemanha das edições de Shakespeare e do Fausto. Milhares de livros também foram danificados pela fumaça, pelo calor e pela água.

“Parte do que se perdeu é insubstituível; outras perdas levarão décadas para serem substituídas”, diz Knoche, que mesmo assim está aliviado por ter conseguido salvar a Bíblia de Gutenberg das chamas.

A biblioteca foi reconstruída, mas dezenas de milhares de livros continuam na geladeira esperando um trabalho de restauração extremamente demorado. O incêndio não apenas dizimou parte da herança cultural da biblioteca – na verdade, as chamas também expuseram uma parte muito menos edificante do passado da biblioteca.

“Depois do incêndio começamos a verificar cada livro da biblioteca. Precisávamos ter uma ideia geral do que havia sido perdido. Examinamos os velhos diários para ver quando e como os exemplares tinham sido adquiridos. Os diários não sugeriam expressamente nada ‘ilegal’, mas havia indícios que nos fizeram ficar desconfiados de que os livros não tinham entrado para o acervo de maneira adequada, se é que se pode dizer assim... Havia carimbos, correspondências e outras coisas que indicavam algo do gênero.”

A investigação mostrou que mais de 35 mil livros que foram acrescentados ao acervo entre 1933 e 1945 tinham procedência “duvidosa”. Essa informação forçou a Biblioteca Anna Amalia e a Klassik Stiftung Weimar a reavaliarem totalmente a história e o papel da biblioteca durante a guerra. Hans Wahl há muito tempo é visto como o salvador de Weimar e continua sendo uma figura controversa na história da cidade – tão controversa que recentemente foi organizada uma conferência de pesquisadores para investigar sua história.

Depois da guerra, Hans Wahl conseguiu convencer as autoridades soviéticas de que era inocente, apesar de ter sido membro do Partido Nazista e de ter feito repetidas afirmações agressivas contra os judeus. Wahl não só conseguiu manter o emprego no novo regime como, em 1945, foi promovido a vice-presidente de um novo organismo cultural criado para a reconstrução democrática da Alemanha, cuja primeira tarefa foi livrar o país da influência fascista.[17] Em 1946 ele também foi colocado à frente do Arquivo Nietzsche, em Weimar.

Os defensores de Wahl sugeriram que ele fez jogo duplo durante a era nazista para salvar a herança cultural de Weimar. No fundo da alma, diz essa versão, ele era um democrata que guiou a cidade em seu período mais difícil, fazendo os acordos políticos que acreditava serem necessários. Depois da guerra, Wahl afirmou que seu propósito o tempo todo tinha sido “proteger a imagem de Goethe durante esse período”.[18] Por outro lado, a imagem de Wahl como um “nazista involuntário” se tornou cada vez mais difícil de defender. Cinco anos antes de os nazistas chegarem ao poder na Alemanha ele já tinha se envolvido na formação da seção de Weimar da Liga Militante para a Cultura Alemã, de Alfred Roosenberg.

Novas informações sobre o acervo da Anna Amalia que vieram à tona recentemente tornaram ainda mais fraca a defesa de Wahl. A capacidade dele de se safar com tanta tranquilidade, para não dizer completamente imaculado, depois da guerra explica-se, em parte, pelo interesse do novo regime em ganhar legitimidade, bem como nos casos da República de Weimar e do Terceiro Reich, fazendo uso de Goethe. Mais uma vez a essência de Goethe seria moldada em uma nova forma. Wahl, que uma década antes tinha transformado Goethe em antissemita, agora transformaria o poeta em um herói socialista.

Hans Wahl morreu de infarto no ano do bicentenário de Goethe, em 1949. Como reconhecimento aos seus cuidados com o legado espiritual do poeta, teve direito a um funeral com honras de Estado e foi enterrado ao lado de Schiller e de Goethe no Historische Friedhof, em Weimar. A rua que leva ao Arquivo Goethe e Schiller no outro lado do Park an der Ilm foi batizada em sua homenagem, e até hoje leva seu nome.

“Ainda se fala muito dele em Weimar. Para alguns ele é um herói, e para outros... Bom, ele não é alguém que deva ser visto dessa forma. A verdade é que os comunistas precisavam de gente como Wahl. Eles precisavam de Weimar. As brigadas de caça a troféus do Exército Vermelho roubaram obras de arte e objetos ligados à cultura em toda a Alemanha, mas deixaram a cidade intacta. Como se Weimar fosse um lugar sagrado”, Knoche me conta.

Hoje, três experts em origens de acervo investigam todos os milhões de livros, documentos, cartas, obras de arte e outros objetos que estão sob a guarda da Klassik Stiftung Weimar. Pego o elevador no andar superior onde fica a sala de Knoche. Ele desce, passando pelo saguão de entrada, pelo subsolo, e desce ainda mais. Debaixo do castelo, os institutos, a biblioteca, os salões onde se serve cerveja e as alamedas inclinadas de pedras, como longas e estreitas catacumbas, se estendem em uma rede subterrânea. É um lugar bonito, com as lâmpadas refletindo no chão reluzente. A maior parte do acervo, hoje em dia, fica nesse complexo subterrâneo – onde a luz, o ar e a temperatura são controlados.

Dois dos pesquisadores da fundação encarregados de investigar a origem do acervo, Rüdiger Haufe e Heike Krokowski, me mostram uma prateleira ao longo da parede de um corredor bastante comprido. Ali eles mantêm seus “achados”.

Assim como os bibliotecários da Stadtbibliothek de Berlim, Hans Wahl aceitou a oportunidade única que se apresentou para expandir o acervo. Haufe e Krokowski pegam alguns livros da prateleira e me mostram os belos ex-líbris de famílias judias que moravam em Weimar. Alguns dos livros foram “presentes” da Gestapo ou do partido. Outros vieram da estação central de triagem da Preussische Staatsbibliothek, em Berlim. Quantidades maiores foram compradas de livreiros inescrupulosos que tinham feito bons negócios com judeus em fuga, de Viena e outros lugares.

Mas Hans Wahl também ficou de olho em coleções particulares – mais especificamente, o acervo do comerciante judeu Arthur Goldschmidt, que fez fortuna produzindo ração animal. A verdadeira paixão de Goldschmidt eram os livros. Na época em que os nazistas chegaram ao poder, ele tinha uma biblioteca de mais ou menos quarenta mil volumes. A joia dessa biblioteca era uma coleção única, e bem conhecida, de mais ou menos dois mil almanaques antigos dos séculos XVII a XIX. Goldschmidt era fascinado pela proliferação, nessa época, de almanaques ilustrados sobre vários temas, de balé e carnavais até insetos e agricultura.[19] Muitas vezes os almanaques eram destinados a certos grupos e serviam como referência para saber as datas de festivais importantes e da floração de certas plantas. Também se publicavam almanaques literários, em que havia textos de poetas e escritores. Como era de esperar, Goethe, que se interessou pelo formato, publicou alguns almanaques, cujas primeiras edições Goldschmidt tinha conseguido obter. Em 1932, Goldschmidt publicou uma bibliografia sobre o tema, com o título Goethe im Almanach, uma publicação que não passou despercebida a Wahl. Por acaso faltavam ao acervo do Arquivo Goethe e Schiller exatamente esses almanaques. Poucos anos depois, Wahl teve sua chance quando a empresa de Arthur Goldschmidt foi confiscada pelo Estado. Em nome de sua própria sobrevivência, Goldschmidt foi forçado a vender sua coleção para o Arquivo Goethe e Schiller. O próprio Goldschmidt estimava que o valor da coleção fosse de pelo menos 50 mil marcos. Wahl informou que o arquivo não tinha como pagar mais do que 1 marco por almanaque. Goldschmidt devia estar disposto a “fazer um sacrifício” para ver seu acervo levado ao renomado arquivo, Wahl argumentou.[20] Como tantos outros judeus na Alemanha dos anos 1930, Goldschmidt não estava em uma posição decente para barganhar. Era impossível tirar uma coleção tão conhecida do país, e a família estava começando a ficar sem recursos. A única opção era aceitar a oferta de Wahl. Wahl, em um relatório interno, pôde confirmar com satisfação que o negócio “tinha sido excepcionalmente vantajoso, resultando em um acréscimo muito desejável à fraca coleção de almanaques do arquivo”. Ele também mencionou como o arquivo havia conseguido comprar a coleção por um preço tão modesto: “pela óbvia razão de que Herr Goldschmidt era judeu”.[21] Perto do fim da década de 1930, a família conseguiu abandonar a Alemanha nazista e fugir para a América do Sul, onde Goldschmidt morreu, empobrecido, na Bolívia.

Depois da guerra, os almanaques foram transferidos do Arquivo Goethe e Schiller para a Biblioteca Anna Amalia.[22] A origem desses valiosos almanaques era indicada por um críptico A, que simbolizada o primeiro nome do proprietário. Apenas em 2006, quando a biblioteca começou sua investigação, surgiram suspeitas de que algo estava errado.

“Com a ajuda do escritório de Londres da Comissão para Arte Saqueada na Europa, conseguimos encontrar os descendentes, que vieram ver a coleção”, diz Rüdiger Haufe.

Depois de negociações, as duas partes concordaram que a coleção deveria permanecer em Weimar, mas que a fundação iria compensar a família com base no valor real – o que acabou levando a biblioteca a pagar 100 mil euros pela coleção.

O caso de Goldschmidt é a restituição mais valiosa já feita até hoje por uma biblioteca alemã. Mas, apesar dos quase dez anos de investigações na Biblioteca Anna Amalia, ainda há muito trabalho a ser feito. A biblioteca conseguiu devolver uma pequena quantidade de livros roubados, mas ainda há muitos outros escondidos nas catacumbas sob Weimar. “Planejamos terminar em 2018 a vistoria dos acréscimos feitos entre 1933 e 1945. Mas ainda vamos precisar investigar todos os livros que chegaram ao acervo depois da guerra, até chegar aos nossos dias. Falando francamente, não sei quanto tempo isso vai levar, mas é evidente que vamos precisar pelo menos de mais uma década. Às vezes as pessoas falam disso como sendo um processo que vai durar uma geração inteira”, Michael Knoche me diz antes de eu sair de sua sala.

No subsolo, Rüdiger Haufe e Heike Krokowski continuam tirando livros de uma prateleira e colocando-os sobre uma mesa à minha frente. Como em tantas outras bibliotecas alemãs que estou prestes a visitar, eles querem separar esses exemplares dos demais, também em um sentido físico, como se eles estivessem contaminados. Extraí-los do corpo principal da biblioteca e mantê-los isolados em uma prateleira, a uma distância segura do restante do acervo, evitando o risco de contágio. Centenas de livros de centenas de acervos.

Haufe me mostra um volume que eles encontraram recentemente, do acervo de Arthur Goldschmidt. Dentro, seu ex-líbris retrata um soldado sentado debaixo de uma árvore, lendo. O marcador de livros está datado 1914-1918. A ilustração é do próprio Goldschmidt, que combateu pela Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Talvez seja uma memória do consolo que os livros lhe ofereciam nas trincheiras da guerra, uma possibilidade de escapar por um momento para um mundo de sonhos. Todos os livros têm uma história de roubo, chantagem e um destino trágico. Na melhor das hipóteses, pode ser a história de uma fuga, de alguém que pagou pela própria vida – mas, no pior caso, pode ser uma história de pessoas que não deixaram qualquer rastro além desses livros. Pergunto a esses dois homens o que eles vão fazer com os livros que ficaram para trás, sem possibilidade de encontrar uma casa para onde voltar. Haufe e Krokowski se entreolham; parece que esse pensamento nunca lhes ocorreu. Eles encolhem os ombros, como se dissessem: “Não sei”. Talvez eles acabem simplesmente ficando onde estão.

Images

Ex-líbris do colecionador Arthur Goldschmidt, uma ilustração de sua própria experiência como soldado alemão no front da Primeira Guerra Mundial. Entre outros itens, a Biblioteca Duquesa Anna Amalia, em Weimar, adquiriu a valiosa coleção de almanaques literários dele.