CAPÍTULO 11

A vala comum é uma fábrica de papel

Vilnius

Com um mapa impresso na mão encontro o caminho para o endereço, Vivulskio gatvé, 18, em Vilnius, na Lituânia. Não sei o que esperar. Talvez seja o que sempre atraiu gente para lugares de importância histórica. Uma campina onde certa vez se travou uma importante batalha, ou um café onde supostamente um romance relevante foi escrito. A atração desses lugares está no fato de nos oferecerem um modo de nos aproximarmos de eventos históricos e de pessoas que fizeram parte deles. Na nossa imaginação, pelo menos, parece que nos oferecem um modo de superar o espaço temporal que nos separa de tudo isso.

Na Vivulskio gatvé, 18, se ergue um bloco de apartamentos de nove andares de construção recente, moderno, com janelas de vidros negros que vão do chão ao teto. Um símbolo da nova e jovem Vilnius com seus hipsters, restaurantes fusion minimalistas e boates. Mas para quem sabe do que se trata, esse endereço está associado a algo bem diferente. Ele teve um papel importante no mais dramático capítulo da história de Vilnius.

Na época, o nome da rua tinha uma grafia diferente – ela era conhecida como Wiwulskiego quando Vilnius fazia parte da Polônia. Esse era o endereço do Yidisher Visnshaftlekher Institut [Instituto Científico de Iídiche], abreviado como YIVO. O instituto ficava em uma casa de pedras e a primeira coisa que os visitantes encontravam no espaçoso vestíbulo era um mapa-múndi, no qual o instituto e suas filiais estavam marcados. Quando a ERR tomou a casa em 1942, ela se transformou em um alojamento para os soldados alemães. Sobre o mapa-múndi havia uma bandeira com a águia alemã e a suástica.[1] Nas salas, a ERR encontrou livros e jornais espalhados pelo chão. Mas no subsolo estava o que os nazistas realmente queriam: dezenas de milhares de livros e periódicos que haviam sido atirados ali quando os soldados chegaram.

Jogada no subsolo estava uma das mais importantes bibliotecas judaicas da Europa Oriental, produto de um projeto ambicioso para salvar a herança literária, cultural e histórica dos judeus asquenazes. Era um projeto, ou melhor dizendo, um movimento, com origem em finais do século XIX.

Ao contrário da Europa Ocidental, onde os judeus receberam direitos de cidadania nos século XIX, a maior parte dos judeus da Europa Oriental ainda vivia, na virada do século, em condições que não haviam mudado significativamente desde os tempos medievais. Entre as muitas restrições impostas, talvez a mais debilitante fosse a que os excluía do ensino superior. Pelo menos era o que Simon Dubnow achava.

Ele nasceu em 1860 na pequena comunidade russa de Mszislau, na zona de assentamento judeu. Como outros judeus asquenazes, sua língua materna era o iídiche, a língua germânica que começou a ser falada pelos judeus na Alemanha na Idade Média, baseada no alemão falado à época, com influências adicionais de hebraico, aramaico e línguas eslavas. Dubnow frequentou uma escola judaica estatal, onde aprendeu russo, mas sua educação foi interrompida por uma nova lei no final do século XIX que retirou dos judeus essa possibilidade. Dubnow prosseguiu estudando história e linguística por conta própria, escapou da zona de assentamento judeu e, com documentos falsificados, foi para São Petersburgo.

Pouco depois ele havia se transformado em um importante jornalista, ativista e historiador autodidata, que escrevia sobre as más condições dos judeus na Rússia. Dubnow lutou acima de tudo pelo direito a uma educação moderna para os judeus russos, o que, na opinião dele, era o único modo de conseguir que eles tivessem liberdade.

Mas ele também falava sobre a necessidade de que os judeus tivessem maior consciência sobre sua história e sua cultura. Dubnow descreveu os judeus asquenazes como “crianças imaturas” que não conheciam sua história de oitocentos anos na Europa Oriental. O que mais o preocupava era que essa história estava prestes a se perder, e que os documentos e livros judeus estavam sendo negligenciados e destruídos: “Eles estão em sótãos, em pilhas de lixo, ou em salas igualmente desagradáveis e imundas, entre vários utensílios domésticos quebrados e trapos. Esses manuscritos estão apodrecendo, sendo comidos por camundongos e usados por servos ignorantes e por crianças que arrancam uma página depois da outra para todo tipo de uso. Em uma palavra: ano a ano eles desaparecem e se perdem para a história”, escreveu Dubnow em um panfleto em 1891. Para preservar o que estava por se perder, ele convocou uma “expedição arqueológica” para recolher, preservar e catalogar esses tesouros literários, dispersos por toda a Europa Oriental. Em seu panfleto ele falava de modo entusiasmado, exortando os judeus a participar dessa expedição épica: “Vamos trabalhar, reunir nossos papéis esparsos dos lugares onde estão exilados, organizá-los, publicá-los e fazer deles a fundação do templo de nossa história. Venha, vamos procurar e investigar”.[2]

A convocação de Dubnow não passou despercebida, embora fossem necessárias algumas décadas até que sua expedição fosse implementada em escala considerável. Outros intelectuais iídiches da Europa Oriental já haviam percebido, como Dubnow, a necessidade de salvar sua cultura.

Essa cultura não sofria apenas com a negligência, também era atacada por dois novos movimentos da época. Por um lado havia os sionistas, que buscavam criar um “novo judeu”, e por outro, havia a assimilação, que significava que um número cada vez maior de judeus preferia abandonar sua identidade judaica. O movimento que mais tarde levou à formação do Instituto YIVO tentou confrontar ambas as correntes. Havia um desejo de salvar o que parecia estar sendo ameaçado por números cada vez maiores de judeus que optavam pela assimilação, embora também se opondo à tentativa dos sionistas de substituir as línguas e dialetos judeus como o iídiche, o ladino e o dzhidi pelo hebraico moderno – a língua falada hoje em Israel.

Uma nova geração de jovens historiadores, escritores, etnógrafos e arquivistas judeus começou a assumir a missão defendida por Dubnow. Nos anos que antecederam à Primeira Guerra Mundial, o escritor e pesquisador de folclore judeu-russo Shloyme Zanvl Rappoport, mais conhecido por seu pseudônimo S. Ansky, liderou uma expedição a pequenas aldeias ucranianas, onde documentou centenas de horas de canções, provérbios e histórias em iídiche. Era um retrato inestimável da época, já que muitas dessas comunidades foram aniquiladas durante pogroms sob o regime de Symon Petliura depois da Revolução Russa.

O YIVO começou a tomar forma depois da Primeira Guerra Mundial. Em 1924, o linguista e historiador Nokhem Shtif esboçou a ideia de um instituto de pesquisa iídiche, com departamentos concentrados em história, filologia, pedagogia e economia, além de um arquivo e uma biblioteca. A missão do instituto seria aumentar a legitimidade do iídiche como idioma, mas também modernizar a língua para garantir que ela continuasse a ser utilizada.

No ano seguinte, em 1925, o YIVO foi fundado em Berlim, onde dois outros historiadores e linguistas seriam forças motrizes: Elias Tcherikower e Max Weinreich. O quartel-general do instituto ficava em Vilnius, o centro histórico da cultura iídiche na Europa Oriental.

Antes da Segunda Guerra Mundial, a cidade ostentava 105 sinagogas e igrejas e seis jornais judeus diários. A população judaica de aproximadamente sessenta mil pessoas representava um terço do total da cidade. Por séculos, rabinos, escritores, intelectuais e artistas judeus foram atraídos para a cidade. De acordo com a lenda, quando Napoleão parou lá a caminho de Moscou, ele chamou Vilnius de “a Jerusalém do Norte”.[3]

Seu mais famoso cidadão no século XVIII foi o rabino Elijah ben Solomon Zalman, chamado de Vilna Gaon [Gênio de Vilnius]. Ele era visto em sua época como um dos mais importantes intérpretes da Torá e do Talmude. De igual importância era sua oposição ao hassidismo ortodoxo, que se espalhava quase como um movimento evangélico judeu no século XVIII. Ele desprezava o hassidismo dizendo que se tratava mais de uma posição emocional em relação à fé, e também seu foco nos milagres, e exortava os judeus a, ao invés disso, estudar fontes seculares e ciência.

Perto da virada do século, Vilnius tinha se transformado em um centro cultural de oposição política aos pogroms e às restrições que atormentavam os judeus nas zonas de assentamento. Em 1897, formou-se a União Judaica Trabalhista da Lituânia, Polônia e Rússia, um partido socialista secular que trabalhava pelos direitos dos judeus. O partido, frequentemente chamado de Bund, defendia o uso do iídiche como primeira opção de língua de judeus lituanos, poloneses e russos.[4]

Vilnius era uma cidade vibrante, com escolas, bibliotecas, teatros, editoras e jornais judaicos. O desenvolvimento foi acelerado quando, depois da guerra, a cidade foi unida à reencarnada nação polonesa. No entreguerras, Vilnius se transformou no lar de um movimento que buscava renovar o iídiche num sentido literário. O Yung Vilne [Jovem Vilnius]3 era um grupo de poetas e escritores experimentais judeus, entre os quais Chaim Grade e Abraham Sutzkever.

A cidade era obviamente o nervo central para a missão que os pesquisadores do YIVO lançariam em meados da década de 1920. O instituto foi construído do zero. Não houve patrocínio estatal, e na fase inicial a sede ficava em um cômodo do apartamento de Max Weinreich, em Vilnius.

Mas logo o instituto recebeu apoio financeiro vindo do exterior, de doadores dos Estados Unidos, da América do Sul e da Alemanha – muitos dos quais eram imigrantes asquenazes. Graças a esse apoio foi possível, no início da década de 1930, mudar o instituto para a casa no número 18 da Vivulskio gatvé, para dar espaço ao acervo que não parava de crescer. Filiais do instituto também foram abertas em Berlim, Varsóvia e Nova York. Um pequeno exército YIVO de historiadores, etnógrafos, filólogos, experts literários, filósofos, escritores e outros intelectuais judeus trabalhava para salvar o negligenciado legado cultural dos judeus da Europa Oriental. Entre seus membros estava Simon Dubnow, que agora via seu sonho de três décadas virar realidade.

O instituto se tornou o templo de um culto de colecionadores, em que quantidades enormes de fontes primárias, livros, documentos, fotografias, gravações e outros itens associados à cultura iídiche foram salvas, reunidas e estudadas.

O trabalho do YIVO tinha muito em comum com o movimento que emergiu em vários países europeus quando o romantismo e um nacionalismo latente fizeram despertar um renovado interesse pelo folclore. Pioneiros como Elias Lönnrot viajaram para a Carélia para recolher os contos de fadas que acabariam sendo incorporados ao poema épico Kalevala. Cem anos mais tarde os métodos eram mais científicos, embora o entusiasmo e o tom nacionalista fossem muito semelhantes. O grupo folclórico do instituto era um dos mais ativos, e já em 1929 havia recolhido mais de cinquenta mil histórias, sagas e canções em iídiche.[5]

Mas o YIVO era mais do que uma instituição para preservação de um legado cultural; o instituto também coletava informações contemporâneas sobre a cultura iídiche, e deu início a um projeto de reforma linguística: a padronização da grafia em iídiche. Correspondentes em todos os países em que o idioma era falado foram incentivados a estudar e a documentar os costumes locais, e a depois repassar seu material para o YIVO. Segundo Cecile E. Kuznitz, a historiadora, o instituto era menos um projeto histórico do que um projeto para o futuro:

Como mais prestigiada instituição de seu movimento cultural, o YIVO foi muito além da coleta de documentos históricos e da publicação de monografias acadêmicas, e desempenhou um papel central na redefinição dos povos judeus na era moderna [...] Ao se concentrar em um futuro em que sua [...] visão sobre o conhecimento judaico se tornaria viável, os líderes do YIVO puderam olhar além da marginalização econômica e política da época e manter sua fé na visão que tinham da cultura judaica.[6] No fim da década de 1930 o acervo tinha crescido a ponto de o instituto construir uma nova ala para acomodar seu material. Em apenas treze anos, o YIVO havia realizado milagres. Quinhentos grupos de colecionadores espalhados pelo mundo estavam associados ao instituto. Antes da guerra estimava-se que o arquivo tivesse cerca de 100 mil volumes e mais 100 mil objetos: manuscritos, fotografias, cartas, diários e outros materiais de arquivo.[7] O instituto também construiu um dos maiores acervos do mundo de artefatos culturais e etnográficos relativos à história dos judeus da Europa Oriental. Além disso, o instituto reuniu uma impressionante coleção de arte de mais ou menos cem obras de artistas judeus como Marc Chagall, que foi um dos mais destacados patronos e colaboradores do instituto, ao lado de figuras como Sigmund Freud e Albert Einstein.[8],[9]

Em 19 de setembro de 1939, dois dias depois do ataque soviético à Polônia, o Exército Vermelho ocupou Vilnius. O destino da Polônia havia sido decidido nos últimos dias de agosto, quando a Alemanha nazista e a União Soviética assinaram o Pacto Molotov-Ribbentrop. Formalmente se tratava de um pacto de não agressão, mas em um apêndice secreto Hitler e Stálin dividiam entre si a Europa Oriental. Quando meio milhão de soldados do Exército Vermelho passou pela fronteira, o exército polonês já estava em grande medida derrotado, depois do ataque alemão ocorrido poucas semanas antes.

Depois da invasão, Vilnius foi transferida para a Lituânia, que via a cidade como sua capital histórica. Mas isso durou pouco, já que em 1940 o Exército Vermelho também atacou a Lituânia. Em uma série de incursões brutais, as autoridades soviéticas reprimiram seus inimigos, reais e imaginários. Entre 1939 e 1941, centenas de milhares de poloneses e lituanos, dos quais dezenas de milhares eram judeus, foram deportados para o leste pelos governantes soviéticos.

Os mais afetados foram os patrões e donos de fábricas judeus, que viram suas propriedades nacionalizadas e frequentemente acabaram deportados. Os judeus eram donos da maior parte das empresas privadas e das indústrias de Vilnius. O novo regime também sufocou a livre expressão da cultura judaica na cidade. A educação em hebraico foi posta na ilegalidade, assim como instituições e organizações religiosas. Todos os jornais em iídiche foram fechados, à exceção de um, o Vilner Emes. O “nacionalismo” judeu, assim como outras expressões de sentimento nacional por parte de grupos minoritários, foi sistematicamente reprimido. O YIVO, que foi nacionalizado, foi rebatizado como Instituto para a Cultura Judaica e absorvido pelo sistema acadêmico soviético, formalmente pela Academia de Ciências da Lituânia, na recém-formada República Socialista Soviética da Lituânia.

Foi emitida uma ordem para que se capturasse o jornalista e pesquisador iídiche Zalmen Reyzen, que era editor do jornal do instituto, o bleter YIVO. Em 1941 o regime soviético fez com que ele fosse executado pelo pelotão de fuzilamento.[10]

Max Weinreich, fundador e presidente do instituto, conseguiu escapar, já que estava a caminho de uma conferência em Copenhague quando a guerra começou em 1939. Weinreich imediatamente partiu da Europa para estabelecer a nova sede do YIVO em Nova York. Na época, era a única filial do instituto que havia restado. A sede de Berlim foi dissolvida depois que os nazistas chegaram ao poder, e em 1939 as atividades em Varsóvia também se encerraram quando a cidade foi ocupada pelos nazistas.

O YIVO em Vilnius foi nacionalizado e teve sua independência roubada durante o regime soviético, mas algo consideravelmente pior estava por vir. Já era possível ter premonições do que poderia acontecer nas partes da Polônia que estavam sob ocupação nazista.

A pilhagem das bibliotecas e dos acervos poloneses começou semanas após a rendição do país em 1939. Mas nessa época não era a ERR a responsável pelo roubo, pois ela só seria fundada no verão de 1940.

Em vez disso, a operação foi realizada por uma unidade especial conhecida como Sonderkommando Paulsen, liderada por um oficial da SS e professor de arqueologia chamado Peter Paulsen. A tarefa de Paulsen era acima de tudo repatriar tesouros culturais “germânicos” para a terra natal – por exemplo o Veit Stoss Altar, na igreja da Virgem Maria em Cracóvia.

O grupo de assalto fez uma incursão no seminário em Pelplin para capturar a Bíblia de Gutenberg, que segundo se sabia estava lá, mas descobriu que ela já havia sido retirada do país pelo padre Antoni Liedtke. Ao perceber que a Bíblia tinha escapado por entre seus dedos, a SS se vingou queimando uma parte da biblioteca Pelplin nos fornos de uma usina de açúcar ali perto.[11] Os livros remanescentes foram transportados para uma velha Igreja em Poznań, que se transformou em depósito de livros. A Igreja acabaria abrigando mais de um milhão de livros poloneses saqueados.

O Sonderkommando Paulsen logo voltou suas atenções para instituições, museus, bibliotecas e sinagogas judaicos e poloneses. O saque da Polônia foi totalmente diferentes do roubo seletivo que afetou sobretudo judeus e inimigos ideológicos em territórios ocupados no oeste e no sul da Europa. Na Polônia, a operação de saque tinha como alvo toda a população. O motivo eram os tipos de guerra muito diferentes aplicados nos fronts ocidental e oriental. Dinamarqueses, noruegueses, holandeses, belgas, franceses e britânicos eram arianos e, portanto, povos fraternos naquilo que um dia seria a Europa nacional-socialista. Os nazistas se viam como libertadores que haviam resgatado essas pessoas do efeito pernicioso do judaísmo global. O regime dedicava recursos importantes a exercícios de propaganda para tentar conquistar essas “populações fraternas” do Ocidente para a retidão de seus propósitos ideológicos.

A guerra no front oriental não podia ser mais diferente. Os milhões de judeus que viviam na Europa Oriental não eram os únicos inimigos – todos os eslavos, por extensão, também eram. Era para leste que o Lebensraum da Alemanha se ampliaria. Portanto, no futuro da Europa não havia espaço para a Polônia nem para o povo polonês. O saque era uma consequência direta dessa linha política, e pretendia roubar dos poloneses todas as suas formas de cultura mais elevada, seu conhecimento, sua literatura e sua educação. Desse modo seu povo seria intelectualmente reduzido à sub-humanidade.

O saque estava intimamente associado à Intelligenzaktion. Essa era uma operação voltada à destruição da cultura e da educação polonesas por meio do extermínio daqueles que as personificavam. Em um sentido bastante literal a intenção era “cortar a cabeça” da estrutura social polonesa por meio do assassinato da elite intelectual, religiosa e política da sociedade. A Intelligenzaktion foi posta em ação imediatamente após a invasão em 1939, e trabalhou segundo uma lista preparada previamente, a Sonderfahndungsbuch Polen [Livro do Ministério Público Especial para a Polônia], que trazia cerca de 61 mil nomes. A lista incluía políticos, empresários, professores, jornalistas, escritores, aristocratas, atores, juízes, padres e oficiais militares – além de vários atletas de alto desempenho que participaram da Olimpíada de Berlim em 1936.[12]

A detenção e o assassinato de acadêmicos, professores, escritores, jornalistas e padres seguiam acompanhados pelo saque das bibliotecas, universidades, igrejas e acervos particulares. A escala da pilhagem na Polônia foi enorme, com o roubo de aproximadamente dois ou três milhões de livros. Os mais valiosos, incluindo mais de dois mil incunábulos, foram enviados para a Alemanha.[13]

Como o objetivo de tudo isso era a subjugação intelectual, também eram roubados livros que não tinham qualquer interesse do ponto de vista da “pesquisa” nazista: livros escolares, livros infantis e obras literárias. Esses foram vítimas de uma erradicação sistemática e planejada. Portanto, a destruição de livros na Polônia ultrapassou a quantidade de exemplares saqueados. De acordo com uma estimativa, cerca de 15 milhões de livros poloneses foram destruídos nessa operação.[14] O acervo de aproximadamente 350 bibliotecas foi enviado para fábricas de papel, onde os exemplares seriam reciclados.[15]

A guerra na Polônia foi tão violenta e brutal que mesmo muitas coleções mais valiosas do ponto de vista histórico foram dizimadas. As melhores bibliotecas de Varsóvia foram as mais atingidas. Durante o Levante de Varsóvia, em 1944, soldados alemães incendiaram vários acervos, incluindo a Biblioteka Załuski, erguida em 1747, a mais antiga biblioteca pública da Polônia. Do conjunto de bens, que incluía mais de 400 mil volumes, mapas e manuscritos, menos de 10% sobreviveu. Em outubro de 1944 soldados alemães atearam fogo no histórico acervo da Biblioteca Nacional. Oitenta mil livros dos séculos XVI a XVIII foram destruídos. Além disso, 100 mil desenhos e gravuras, 35 mil manuscritos, 2,5 mil incunábulos e 50 mil partituras foram consumidos pelas chamas.[16]

Até mesmo a Biblioteca Militar em Varsóvia, com um acervo de 350 mil volumes, foi incendiada. O prédio central abrigava a Biblioteca Rapperswil, uma biblioteca de migrantes poloneses que havia sido organizada na Suíça durante o século XIX e trazida de volta para a Polônia na década de 1920.

O extermínio da herança literária polonesa foi assustadoramente eficiente. Pesquisadores estimaram que 70% de todos os livros da Polônia foram destruídos ou perdidos para a pilhagem. Mais de 90% dos acervos pertencentes a bibliotecas públicas ou escolas foram perdidos ou destruídos.[17]

Só os judeus poloneses e sua cultura foram atingidos com violência ainda maior. De uma população de mais de 3 milhões de pessoas antes da guerra, apenas 100 mil ainda estariam vivos em 1945. De modo muito semelhante ao que aconteceu com as coleções polonesas, as bibliotecas judaicas na Polônia não foram apenas saqueadas, foram também destruídas. Uma das bibliotecas mais valiosas dentre as que foram perdidas foi a grande Biblioteca Talmúdica do Seminário Teológico Judaico em Lublin. Um dos nazistas que participou dessa destruição deu seu testemunho sobre os eventos:

Para nós era uma questão de orgulho especial destruir a Academia Talmúdica, conhecida como a maior da Polônia [...] Jogamos para fora do prédio a grande Biblioteca Talmúdica e levamos em carrinhos de mão para o mercado. Lá queimamos os livros. A fogueira durou vinte horas. Os judeus de Lublin se reuniram em volta do fogo e choraram dolorosamente. Os gritos deles quase nos silenciaram. Então chamamos a banda marcial, e os gritos de alegria dos soldados silenciaram o som dos gritos dos judeus.[18]

Até mesmo em bibliotecas polonesas a literatura judaica e os livros escritos por judeus foram retirados:

“A intenção principal de tornar ilegais as obras de judeus poloneses era simplesmente erradicar qualquer influência judaica que ainda existisse sobre a cultura polonesa. Os nazistas chegavam a considerar guias turísticos sobre lugares judaicos como perigosos e hostis”, escreve o historiador Marek Sroka. Sroka sugere que “o plano para eliminar a contribuição cultural e literária dos judeus na Polônia e também na civilização europeia como um todo passou a ser quase tão importante para os alemães quanto o extermínio físico do povo judeu”.[19]

Uma explicação para que até mesmo os acervos mais importantes dos judeus e dos poloneses tenham sido destruídos é o fato de a pilhagem na Polônia ter sido menos organizada. A ERR ainda não tinha se envolvido na operação. Mas o processo também podia ser explicado pela natureza implacável da guerra e da ocupação. Muita coisa foi destruída simplesmente pela pressa.

A escala do saque e da destruição das bibliotecas judaicas foi diretamente proporcional ao extermínio dos judeus poloneses. Não só sinagogas, escolas e organizações foram saqueadas, mas também todas as casas de judeus; tudo desde grandes bibliotecas particulares até os poucos livros das famílias mais pobres. Quando os nazistas deram início à deportação em grande escala dos judeus para os campos de extermínio em 1942, os guetos foram fechados e as bibliotecas remanescentes foram saqueadas, queimadas ou enviadas para fábricas de papel. Quando os guetos foram esvaziados, ainda foi possível encontrar acervos que os habitantes tentaram salvar por meio de medidas desesperadas. Por exemplo, 150 Torás das sinagogas de Cracóvia foram encontradas escondidas em um compartimento secreto construído especialmente para isso em um sótão em cima de uma casa funerária. A maior parte dos rolos foi queimada.[20]

Em Varsóvia, o Sonderkommando Paulsen saqueou trinta mil livros da Grande Sinagoga, uma das maiores da Europa. A sinagoga posteriormente foi usada como depósito para muitas das mais de cinquenta bibliotecas judaicas da cidade.[21]

Em abril de 1943, os judeus que ainda estavam no gueto de Varsóvia se rebelaram. A essa altura, haviam restado apenas cinquenta mil pessoas de uma população que um ano antes era de meio milhão de habitantes. O levante foi um gesto de desespero sem esperança de sucesso, mas por outro lado os homens e mulheres que o instigaram sabiam muito bem o que os esperava. A maior parte das pessoas deportadas do gueto já tinha morrido.

A repressão ao levante foi um inferno, com a SS incendiando o gueto casa a casa com lança-chamas e granadas. Em 16 de maio, o dia em que o levante foi reprimido, engenheiros da SS, sob comando do SS-Gruppenführer Jürgen Stroop, puseram explosivos na Grande Sinagoga. Em uma entrevista ao jornalista polonês Kazimierz Moczarski, que dividiu uma cela com ele depois da guerra, Stroop descreveu o evento:

Que visão maravilhosa era aquela. Um momento teatral maravilhoso. Minha equipe e eu ficamos de longe. Segurei o dispositivo elétrico que detonaria todos os explosivos simultaneamente. Jesuiter pediu silêncio. Olhei meus valorosos oficiais e meus homens, cansados e sujos, sua silhueta contra o brilho dos prédios em chamas. Depois de um momento prolongado de suspense, gritei “Heil Hitler” e apertei o botão. Com o barulho ensurdecedor de trovão e uma explosão de cores que parecia um arco-íris, a explosão violenta ressoou até as nuvens, uma homenagem inesquecível ao nosso triunfo sobre os judeus. O gueto de Varsóvia já não existia. A vontade de Adolf Hitler e de Heinrich Himmler havia sido feita.[22]

Dois anos depois da invasão da Polônia, o mesmo tipo de saque e destruição implacáveis se repetiu em escala maior quando, em 22 de junho de 1941, a Alemanha nazista deu início à Operação Barbarossa, o codinome do ataque à União Soviética. A essa altura, tanto Alfred Roosenberg quanto Heinrich Himmler haviam construído organizações de pilhagem altamente funcionais, e essa “expertise” agora seria usada no front oriental. A ERR havia crescido e se transformado na mais eficiente organização de saque no Terceiro Reich. A ERR também estava em boa situação como consequência da ascensão de Alfred Roosenberg na hierarquia de poder nazista. Adolf Hitler há muito tempo considerava o germano-báltico a maior autoridade dentro do partido em relação a questões sobre o Oriente. Agora que a invasão estava em curso, Hitler finalmente deu a Roosenberg um departamento apropriado: o Reichsministerium für die besetzten Ostgebiete [Ministério do Reich para os Territórios Orientais Ocupados]. A função do ministério era criar e implantar governos civis nas áreas ocupadas da União Soviética.

O Ministério do Reich controlaria Reichskommissariats nomeados pelo regime nos territórios orientais ocupados. Roosenberg havia sugerido que a União Soviética fosse subdividida em várias regiões menores, para tornar a imensa área mais fácil de administrar. Duas das seis regiões que os nazistas pretendiam implantar chegaram a ser estabelecidas durante a guerra. A região do Báltico, a Rússia Branca, e partes da Rússia ocidental compunham o Reichskommissariat Ostland, enquanto o Reichskommissariat Ukraine cobria partes do que hoje é a Ucrânia independente. Quatro outros comissariados estavam planejados para as regiões em torno de Moscou, o Cáucaso, a Ásia Central e a bacia do Volga.

No papel, a promoção deu a Alfred Roosenberg um poder enorme, mas na prática sua influência sempre seria limitada por Hitler. Roosenberg e o Führer logo divergiram sobre o melhor modo de lidar com os povos do leste.

Roosenberg acreditava que os eslavos eram arianos, embora de um tipo inferior. Ele estava convencido de que a Alemanha jamais conseguiria controlar o enorme território russo sem alianças estratégicas com grupos étnicos que haviam sido forçados a se sujeitar ao bolchevismo. O plano que ele apresentou a Hitler era mostrar os alemães como libertadores e depois fazer com que os fortes sentimentos anticomunistas e antirrussos se voltassem contra os governantes do Kremlin. Especialmente os ucranianos, na opinião de Roosenberg, podiam ser transformados em aliados contra o bolchevismo. Por isso, eles deviam ter certa autonomia e receber permissão para instalar um estado vassalo sob a liderança dos nazistas.

Era um plano pragmático, em que Roosenberg pelo menos uma vez pareceu ter consciência da realpolitik. Provavelmente seu plano se baseava em experiência prática – ele sabia muito bem como era extraordinariamente complexa a colcha de retalhos de povos e culturas dentro do Império soviético. Ao contrário de outros líderes nazistas, ele tinha visto as imensas estepes russas e ucranianas. Era um plano que, caso tivesse sido implantado, poderia ter mudado o curso da guerra.

Mas o plano jamais conquistou a liderança nazista. Do ponto de vista de Adolf Hitler e Heinrich Himmler, era inconcebível dar a escravos o direito de se autogovernar – imagine pensar que esses “sub-humanos” fossem companheiros de batalha. Em uma conversa entre os líderes, registrada por ordens de Martin Bormann, Hitler afirmou que os povos eslavos “nasceram para serem escravos”.[23] Além de Hitler e Himmler, Hermann Göring e Martin Bormann também se opunham à política de Roosenberg para o leste. Com uma oposição como essa, Roosenberg não tinha a menor chance.

Os líderes dos Reichskommissariats eram nomeados diretamente por Adolf Hitler e respondiam diretamente a ele, o que levou a uma diluição da autoridade de Roosenberg.

O brutal nazista Erich Koch foi escolhido para chefiar o Reichskommissariat Ukraine. “Caso eu encontre um ucraniano digno de se sentar à mesa comigo, preciso mandar matá-lo”, ele disse, resumindo sua visão sobre os novos súditos. Segundo Koch, “o mais baixo trabalhador alemão que se possa conceber é racial e biologicamente mais valoroso do que a população daqui”.[24]

As políticas sumárias de Koch tiveram efeito prejudicial sobre o modo inicialmente positivo como os alemães foram vistos, como Roosenberg havia previsto. Houve feroz resistência aos invasores e às suas políticas de extermínio quando a população percebeu que os opressores bolcheviques eram, em todos os sentidos, preferíveis aos nazistas.

Outra realidade que minou o poder de Roosenberg foi o fato de ele não contar com recursos militares próprios nos dois Reichskommissariats criados. O vácuo de poder foi ocupado por Himmler e pela SS. Desde o início da guerra, a influência da SS tinha se consolidado em quase todas as partes do regime. Hitler, com certa justificação, tinha uma desconfiança quase paranoica de seus generais da Wehrmacht, e cada vez mais foi transferindo o poder para sua leal Guarda Pretoriana.

O que mais aumentou o poder de Himmler foi a ala militar de sua organização, a Waffen-ss, que cresceu continuamente desde 1939 até se transformar em um exército que, no fim da guerra, contava com quase um milhão de soldados. Na implacável guerra do front oriental, a SS assumiria muitas tarefas da Wehrmacht. Uma delas era a luta contra os “partisans”, uma atividade que na prática servia como modo de implantar as políticas de extermínio.

Apesar das tentativas fracassadas de Alfred Roosenberg de influenciar a política relativa ao front oriental, ele pôde se consolar com o bem-sucedido trabalho da ERR na zona soviética. Adolf Hitler havia dado à ERR a atribuição de passar um pente-fino em “bibliotecas, arquivos, lojas maçônicas e outras instituições ideológicas e culturais de todos os tipos, para identificar material útil e confiscá-lo para uso na esfera ideológica do NSDAP e em pesquisas na Hohe Schule”.

Em princípio, a ERR podia utilizar todos os meios e métodos necessários para o saque. O Führer também deu ordens à Wehrmacht para que auxiliasse a ERR em seu trabalho. O que tornava as coisas fundamentalmente diferentes do que era rotineiro no front ocidental era o fato de que a ERR agora estava Wehrmachtsgefolge – ou seja, acompanhada pelo exército. No front ocidental, a Wehrmacht muitas vezes manteve certo isolamento ou trabalhou ativamente contra a pilhagem, que muitos generais achavam prejudicial à reputação do exército.

Mas na União Soviética as considerações morais da Wehrmacht eram significativamente menos elevadas.

No front ocidental, a pilhagem se limitou a grupos claramente definidos: judeus, maçons e inimigos políticos – as propriedades de franceses, holandeses e dinamarqueses “normais” foram, em grande medida, respeitadas. No front oriental, as regras do jogo eram muito diferentes. Resistindo a todo pragmatismo, Roosenberg se envolveu diretamente no saque com crueldade sistemática – o que, na raiz, estava relacionado a seu ódio pessoal ao bolchevismo, como ele afirmou nos julgamentos de Nuremberg depois da guerra: “Porque no ocidente aqueles que consideramos nossos adversários ou oponentes do ponto de vista da nossa concepção do mundo são diferentes dos nossos oponentes no Oriente. No Ocidente havia algumas organizações judaicas e lojas maçônicas, e no Oriente não havia nada além do Partido Comunista”.[25]

Do ponto de vista de Roosenberg, aquilo que era de propriedade do Partido Comunista devia obrigatoriamente ser visto como “judeu”, porque o regime bolchevique era parte da conspiração mundial judaica.

Apesar de sua posição privilegiada, não faltavam concorrentes à ERR na União Soviética. À medida que o exército avançava, uma força-tarefa especial conhecida como Sonderkommando Künsberg, seguida de perto por três grupamentos do exército, invadiu museus, bibliotecas e arquivos, enviando o material confiscado de volta para Berlim. Formalmente, as unidades estavam sob o comando do departamento de assuntos internacionais de Joachim von Ribbentrop, mas elas eram chefiadas por um SS-Obersturmbannführer, o historiador barão Eberhard von Künsberg.

As três unidades formavam uma espécie de destacamento avançado, com rotinas de pilhagem mais minuciosas vindo na retaguarda. O Sonderkommando Künsberg invadiu alvos importantes, e, assim como aconteceu no caso do Sonderkommando Paulsen na Polônia, artefatos vistos como “germânicos” estavam no topo da lista. Dentre esses estava a famosa Sala de Âmbar no Palácio de Catarina, perto de Leningrado. Mas dezenas de milhares de livros também foram retirados do palácio do tzar e despachados para a Alemanha em caixas marcadas como “Zarenbibliothek Quatchina”. Parte do que foi roubado por Künsberg mais tarde foi entregue à ERR, incluindo livros do palácio do tzar e uma grande parte da literatura judaica confiscada.[26]

A ERR tinha uma abordagem mais acadêmica, baseada em inspeções a instituições, bibliotecas, arquivos e museus. O tipo de pilhagem realizado era metódico, minucioso e seletivo. Experts foram enviados à União Soviética no verão e no outono de 1941 para fazer uma inspeção inicial e compilar listas de acervos valiosos. Um desses experts, o arquivista germano-báltico Gottlieb Ney, passaria um ano inteiro avaliando bibliotecas nas áreas ocupadas da União Soviética. Ney, que havia trabalhado na biblioteca da Hohe Schule der NSDAP, se mudou para a Suécia depois da guerra e trabalhou como arquivista em Lund.

A ERR criou três grupos separados: Hauptarbeitsgruppe Ostland [região do Báltico], Hauptarbeitsgruppe Mitte [Rússia Branca e Rússia Ocidental] e Hauptarbeitsgruppe Ukraine. Foram estabelecidas sedes em Riga, Minsk e Kiev para administrar o trabalho de pilhagem nos territórios, o que incluía as zonas de assentamento judeu em que a maior parte dos judeus orientais ainda morava.

Até certo ponto, Roosenberg tinha razão quando dizia que no oriente não havia “nada além” do Partido Comunista. O regime soviético realmente havia aberto o caminho para os saqueadores nazistas, uma vez que muitos acervos já haviam sido confiscados e nacionalizados, e organizações como a maçonaria haviam sido banidas. Grande parte do butim ou tinha sido vendida para o Ocidente ou foi incorporada a acervos públicos. Por isso os nazistas se concentraram na pilhagem de instituições públicas, que tinham os acervos mais relevantes.[27]

O processo de nacionalização também havia sido iniciado na região do Báltico e na Polônia oriental durante o curto período de domínio soviético, um processo do qual o Instituto YIVO era apenas um exemplo. Mas a nacionalização se concentrou principalmente em acervos públicos, instituições e grupos religiosos – a apropriação da propriedade individual pelo Estado ainda não tinha ido tão longe.[28]

A operação de pilhagem realizada pela ERR na União Soviética foi tão ambiciosa quanto extensa. De acordo com o relatório de uma das organizações, foram feitas buscas em 2.265 instituições. O trabalho exigiu íntima cooperação com a Wehrmacht e a SD, mas também com arquivistas, bibliotecários e experts de outras instituições alemãs.

Dentro do Hauptarbeitsgruppe Ukraine, por exemplo, havia 150 experts organizando o saque de centenas de bibliotecas, acervos públicos, universidades, igrejas, palácios e sinagogas.[29] Instituições religiosas na União Soviética, que já haviam sido atacadas pelos bolcheviques, sofreram um golpe particularmente duro. Milhares de sacerdotes tinham sido assassinados ou enviados para campos de trabalho forçado na Sibéria pelo regime soviético. Ao todo, estima-se que as organizações nazistas saquearam 1.670 igrejas ortodoxas russas, 532 sinagogas e 237 igrejas católicas.

Além dos acervos judaicos, receberam particular atenção os arquivos e as bibliotecas pertencentes ao Partido Comunista. A RSHA reivindicava para si qualquer coisa que tivesse relevância para o trabalho de inteligência, embora muitos outros materiais fossem para o projeto de biblioteca que Alfred Roosenberg tinha para o Oriente, a Ostbücherei, a que também foram incorporados os acervos dos exilados que viviam em Paris. Além disso, outros institutos de pesquisa alemães voltados para estudos orientais, como o Wannsee Institute e o Instituto para a Europa Oriental em Breslau, reivindicavam uma fatia do butim soviético.

Centenas de bibliotecas foram saqueadas em Minsk, sendo que só a Biblioteca Lênin encheu dezessete vagões.[30] Em Kiev, o chamado arquivo revolucionário – um enorme acervo de documentos dos anos da Revolução Russa – foi levado. O arquivo também tinha documentos sobre a República Nacional Ucraniana, governada por Symon Petliura. A ERR também conseguiu obter a totalidade do arquivo do Partido Comunista de Oblast de Smolensk – mil e quinhentos metros de estantes no total.[31]

Esse material foi reservado para a produção de propaganda antibolchevique, mas também foi levado porque “os alemães precisam saber mais sobre o bolchevismo para poder combatê-lo”, como explicava um boletim da ERR. A Ostbücherei, na GertraudenStraße em Berlim, se tornaria o principal centro dessa pesquisa. Já no primeiro ano depois da invasão em 1941, a biblioteca absorveu meio milhão de livros. Duzentos mil livros foram despachados da sede da ERR em Riga, e até 300 mil foram roubados em Smolensk.[32] A biblioteca também continha grandes quantidades de material de arquivo, fotografias, jornais, periódicos e mapas.

Assim como na Polônia, a destruição de materiais na União Soviética foi muito maior do que a pilhagem. Um pesquisador estimou que os nazistas podem ter destruído até 100 milhões de livros na guerra, sendo a maioria esmagadora na União Soviética.[33]

A guerra entre a Alemanha nazista e a União Soviética entre 1941 e 1945 foi o conflito mais brutal da história mundial, com um custo humano na casa de 30 milhões de vidas. Foi uma guerra que causou uma devastação sem paralelos, tanto no sentido material quanto no cultural. Parte disso pode ser atribuída ao Exército Vermelho, que usou a tradicional tática russa de terras arrasadas, deixando a menor quantidade possível de objetos de valor para o inimigo. A terra arrasada seria arrasada novamente quando os alemães aplicaram a mesma tática ao bater em retirada.

Mas os nazistas declararam guerra à cultura eslava em nome de sua redução e extermínio. Dezenas de milhões de livros que não tinham relevância para a pesquisa nazista foram destruídas. Em função da própria escala do roubo, o processo de seleção também foi muito rigoroso.

Símbolos importantes do ponto de vista cultural e histórico, como palácios reais, foram sistematicamente destruídos. O objetivo de Hitler era aniquilar totalmente as grandes cidades da União Soviética. A cidade cultural de Leningrado (São Petersburgo), vista pelos povos asiáticos como uma “porta de entrada da Europa”, seria demolida e sua população morreria de fome. A região do Báltico acabaria anexada ao Terceiro Reich. Moscou, centro do bolchevismo, seria varrida da superfície da Terra pela criação de um lago artificial no local onde a cidade ficava – os nazistas planejavam abrir as comportas do canal Volga-Don e inundar toda a área.[34] Até mesmo Kiev seria totalmente destruída. De acordo com os planos de Hitler, a Crimeia e grandes áreas do sul da Ucrânia seriam evacuadas, criando espaço para colônias germânicas.

Até mesmo áreas como o distrito de Baku, a Galícia (Ucrânia ocidental) e a colônia do Volga, uma república soviética autônoma povoada por uma minoria germânica que se estabeleceu na Rússia no século XVIII, seriam anexadas ao Terceiro Reich. Era assim que se estenderia o lebensraum do povo alemão rumo ao oriente. Como ocorreu na Polônia, o plano era transformar russos, ucranianos, cossacos e outros povos em escravos sob domínio alemão. No entanto, nas áreas que os alemães pretendiam incorporar imediatamente ao Terceiro Reich, os habitantes seriam retirados ou exterminados para abrir caminho para colonos alemães. Nesses lugares, tudo que pudesse lembrar a cultura anterior tinha de ser totalmente aniquilado.

Enquanto isso, pesquisadores nazistas procuravam constantemente nessas regiões – e muitas vezes sem resultados – traços de presença histórica germânica que pudessem legitimar as anexações. Nenhuma outra área foi tão devastada pela destruição e pelo saque quanto a Ucrânia. De acordo com uma estimativa, perto de 50 milhões de livros foram destruídos lá durante a guerra.[35]

Na parede de pedras acima de uma das janelas na rua, a cor esmaeceu à luz do sol. Abaixo, é possível distinguir umas poucas e elegantes letras hebraicas. O distrito judaico de Vilnius se oculta debaixo de uma fina camada de tinta amarela – umas poucas e pitorescas quadras de casas baixas de pedra e de tortuosas ruas medievais. Muitas casas parecem praticamente intocadas desde a guerra. Algumas parecem afundar para dentro de si mesmas, tetos se curvando para baixo, dando a impressão de estar prestes a desabar. Hoje, restaurantes vegetarianos convivem com boates de striptease e pequenas editoras de livros nas quadras que um dia foram o centro da Vilnius judaica.

Ando pela rua que antes se chamava Straszuna, mas que foi rebatizada como Žemaitijos gatvę depois da guerra. O nome original era uma homenagem ao rabino, pesquisador e empresário Mattiyahu Strashun, um dos mais destacados intelectuais de Vilnius no século XIX. Entre outras coisas, Strashun contribuiu para a expansão do sistema educacional judaico na cidade. Mas sua fama se devia à biblioteca fundada por ele. Strashun, que falava alemão, francês, latim e russo, colecionava de tudo, de manuscritos medievais em hebraico a obras literárias, poesia, guias de viagem e literatura científica. Ao morrer em 1885, doou seu acervo para a congregação judaica de Vilnius, que, poucos anos depois, abriu a biblioteca ao público. Depois de receber novas doações, a biblioteca passou a ser vista como um dos mais importantes acervos judaicos na Europa Oriental. O acervo histórico atraía pesquisadores, historiadores e rabinos do mundo todo.

A biblioteca foi um fator que contribuiu significativamente para que Vilnius se firmasse como o coração da cultura iídiche, segundo o historiador Hirsz Abramowicz.[36] Abramowicz foi várias vezes à biblioteca e passou a admirar Khaykl Lunski, o excêntrico e de certa forma lendário bibliotecário de Strashun. Lunski vivia para a biblioteca e morava em uma casa anexa à grande sinagoga no distrito judaico. Lunski tinha um registro completo do acervo em sua cabeça: “Ele conhecia cada texto religioso, cada texto secular e cada periódico”. Todo pesquisador e autor que tinha um tema em mente precisava encontrar o “inimitável” Khaykl Lunski.[37]

De acordo com Abramowicz, Lunski sempre usava as mesmas roupas e podia passar um dia inteiro com “um pedaço de pão de centeio e uma cabeça de arenque”. Lunski estava perto dos sessenta anos e continuava trabalhando na biblioteca quando a Wehrmacht tomou Vilnius em 24 de junho de 1941. A Operação Barbarossa – o ataque da Alemanha nazista contra a União Soviética – havia começado dois dias antes. A cidade foi tomada sem batalhas significativas, já que o Exército Vermelho preferiu bater em retirada diante do avanço das forças alemãs.

Em julho de 1941 Alfred Roosenberg enviou um pesquisador chamado Hermann Gotthardt a Vilnius. De início, Gotthardt adotou Vilnius quase como se fosse um turista ou um pesquisador com interesses culturais que estivesse visitando o local para escrever uma tese. Ele visitou os museus, as sinagogas e as bibliotecas da cidade para ter uma noção melhor sobre as congregações judaicas. Entrevistou funcionários e perguntou sobre pesquisadores judeus. No final de julho, ele tinha realizado uma avaliação completa e pediu à Gestapo que prendesse três pessoas: o linguista e jornalista Noah Prilutski, que chefiou o Instituto para Cultura Judaica (YIVO) durante o breve domínio soviético; o jornalista Elijah Jacob Goldschmidt, que escrevia em iídiche e era curador do museu etnográfico S. Ansky, em Vilnius; e o terceiro homem, Khaykl Lunski, bibliotecário da Biblioteca Strashun. Durante as semanas seguintes, os três eram retirados todos os dias de suas celas na sede da Gestapo e levados à Biblioteca Strashun, onde eram forçados a compilar listas das obras mais valiosas dos acervos locais.

Ao mesmo tempo, do lado de fora das janelas da biblioteca um massacre estava em andamento. Em julho, uma unidade de extermínio da SS, o grupo Einsatz, chegou a Vilnius e prendeu cinco mil homens judeus. Em grupos de cem eles eram levados a uma pequena cidade chamada Ponar, dez quilômetros ao sul de Vilnius. Antes da guerra, o Exército Vermelho havia cavado ao lado de uma base aérea imensos poços para estocar combustível. Os homens recebiam ordens de se despir e eram levados em grupos de dez ou vinte até a beira do poço, onde eram assassinados a tiros. Os corpos no poço eram cobertos por uma fina camada de areia antes de o próximo grupo ser obrigado a seguir até o local para ser executado.[38] Os nazistas também criaram unidades de extermínio compostas por voluntários lituanos, as Ypatingasis Būrys. Judeus eram presos em mobilizações súbitas, muitas vezes realizadas durante feriados judaicos. Pessoas mais velhas, doentes e outros considerados “improdutivos” eram assassinados. A maior parte das vítimas era enterrada nos poços de Ponar, onde sete mil prisioneiros de guerra soviéticos e cerca de vinte mil poloneses também foram mortos.

Não demorou para que mulheres e crianças também fossem presas e levadas aos poços de Ponar. Quando Goldschmidt, Prilutski e Lunski terminaram seu trabalho para Hermann Gotthardt em agosto, milhares de judeus de Vilnius tinham sido assassinados. Pouco depois de Gotthardt voltar para Berlim com sua lista, Noah Priluski e Elijah Jacob Goldschmidt foram assassinados pela Gestapo. Por motivos obscuros, Khaykl Lunski foi libertado.[39]

Logo ficou claro para a equipe de Roosenberg em Paris que a pilhagem no front oriental precisava ser feita de modo muito diferente do que vinha ocorrendo no front ocidental. O número de bibliotecas, arquivos e de outros acervos era alto demais, como demonstravam as conclusões a que Gotthardt havia chegado em Vilnius. Não era nem possível nem prático confiscar uma quantidade tão grande de material em uma única incursão, como tinha sido comum em Paris ou Roma. Outro problema era a falta de pesquisadores alemães que falassem hebraico e iídiche, o que tornava difícil determinar quais livros teriam valor em futuras pesquisas. A solução para esses problemas muitas vezes foi sádica, mas essa também era uma característica típica dos nazistas – delegar o trabalho para as próprias vítimas.

Em abril de 1942, Johannes Pohl, do Instituto para Pesquisa da Questão Judaica em Frankfurt, viajou com três outros “experts em judaísmo” para Vilnius.[40] A essa altura apenas um terço dos judeus de Vilnius permanecia vivo. Quarenta mil haviam sido executados pelo grupo Einsatz no final do verão e no outono de 1941. Pouco antes da chegada de Pohl o ritmo das execuções em massa tinha começado a diminuir. A Wehrmacht e a indústria bélica alemã precisavam de mais trabalhadores escravos bem na mesma época em que a SS começou a mudar sua estratégia de assassinatos em massa, trocando pelotões de fuzilamento por campos de extermínio. Os vinte mil judeus que continuavam vivos haviam sido obrigados a ir para um gueto superlotado, que havia sido criado no distrito judaico.

O começo de 1942 foi marcado por uma traiçoeira sensação de calma no gueto, onde a vida voltou a uma espécie de normalidade, na medida do possível. Uma biblioteca chegou a ser criada no gueto, sob a orientação de um bibliotecário, Herman Kruk. A biblioteca, uma evidente manifestação da resistência espiritual dos moradores do gueto, foi criada em meio às execuções em massa. Ficava em um prédio no número 6 da Straszuna, e continua lá até hoje. A bela casa vermelha com argamassa vermelha segue sendo a construção mais imponente da rua, apesar de sua evidente deterioração.

Os moradores do gueto haviam doado seus livros, arquivos e obras de arte para a biblioteca. Mas os livros também haviam sido retirados de apartamentos abandonados cujos moradores foram assassinados. A casa no número 6 da Straszuna era mais do que uma biblioteca, e passou a ser conhecida como O Museu de Arte e Cultura Judaicas. Além de um acervo de 45 mil volumes, o prédio contava com livraria, museu, arquivo e departamento de pesquisa. Em segredo, provas dos crimes dos nazistas eram reunidas à medida que eles aconteciam. Testemunhas oculares escreviam relatos e ordens dadas pelos alemães eram arquivadas, junto com outros documentos. Um grupo de escritores começou a trabalhar na história do gueto.

“Apesar de toda a dor, de todos os problemas, e das circunstâncias difíceis do gueto, o coração de uma cultura bate aqui”, Kruk escreveu em seu diário. Milhares de judeus do gueto iam à biblioteca para pegar livros emprestados. Ler era fonte tanto de consolo quanto de esperança para os moradores, como um garoto de quinze anos de idade, Yitzhak Rudashevski, escreveu em seu diário no mesmo dia em que a biblioteca celebrava seu empréstimo de número cem mil: “Centenas de pessoas leem no gueto. Ler se tornou o maior prazer do gueto. Os livros te dão uma sensação de liberdade; os livros te conectam com o mundo. O gueto pode se orgulhar do empréstimo de número cem mil”.[41]

Herman Kruk registrava com cuidado as atividades da biblioteca, quem emprestava livros e quais eram mais populares. Ele descobriu que alguns leitores procuravam analogias com a sua situação no gueto. A história dos judeus na Idade Média, as Cruzadas e a Inquisição estavam entre esses temas, mas o livro que mais fazia sucesso com esses leitores era Guerra e paz, de Tolstói. Outro grupo queria o oposto; estavam atrás de livros “que os afastassem da realidade e os levassem a lugares distantes”. Em ambos os grupos o impulso de ler era grande: “O ser humano pode suportar a fome, a pobreza e a dor, mas não consegue suportar o isolamento. Então, mais do que nunca, a necessidade por livros e leitura está no auge”, escreveu Kruk.[42]

Foi durante esse período de relativa calma no gueto que a ERR deu início a seu trabalho. Uma dúzia de judeus eruditos foi escolhida para trabalho escravo. Khaykl Lunski, que também havia sobrevivido à campanha de extermínio do outono, estava no grupo.

Os líderes designados eram Herman Kruk e um antigo colega dele no YIVO, o filólogo e historiador Zelig Kalmanovitj. Grandes salas de um prédio pertencente à biblioteca universitária de Vilnius fora do gueto foram usadas como estação de triagem.

O trabalho do grupo consistia em triar e encaixotar os tesouros literários para que eles fossem levados para a Alemanha. O primeiro carregamento que chegou tinha quarenta mil livros da Biblioteca Strashun. Kruk, Kalmanovitj, Lunski e os demais membros do grupo se depararam com uma escolha, na qual as duas opções eram igualmente terríveis.

Eles eram obrigados a selecionar e catalogar livros de maior “valor” do acervo, e ao fazer isso contribuíam para a pesquisa que basicamente tinha como intenção justificar o Holocausto. A alternativa não era muito melhor, porque os livros que não fossem selecionados iriam para uma fábrica de papel nas proximidades, onde seriam reciclados.

Ou eles ajudavam os nazistas e salvavam os livros mais valiosos ou se recusavam e viam esses livros se perderem. “Kalmanovitz e eu não sabíamos se éramos salvadores ou coveiros”, Kruk escreveu em seu diário.[43]

O que deu força ao grupo, que mais tarde ficaria conhecido no gueto como Die Papier Brigade [A Brigada do Papel], era a esperança de estar, apesar de tudo, salvando essa herança literária. Logo, começaram a chegar livros das sinagogas e também uma valiosa coleção de livros da escola de Elijah ben Solomon Zalman.

O trabalho foi tão bem-sucedido que a ERR logo expandiu suas operações. Na primavera de 1942 uma segunda estação de triagem foi estabelecida no Instituto YIVO no número 18 da Vivulskio gatvé. A Brigada do Papel cresceu até chegar a quarenta pessoas, incluindo o poeta Abraham Sutzkever, de trinta anos. Com sua fama intelectual, seus óculos tortos de armação preta e sua crença quase religiosa no poder da linguagem, ele tinha se transformado em uma figura de ponta da geração mais jovem de poetas em iídiche no grupo Yung Vilne.

A ERR também enviou às duas estações de triagem o acervo de bibliotecas judaicas em pequenas cidades e vilas próximas. O trabalho era inspecionado atentamente pela ERR. “Assim como no Holocausto, havia registros minuciosos da destruição de livros judaicos, com relatórios enviados a cada duas semanas com estatísticas de quantos livros haviam sido despachados para a Alemanha e quantos para a fábrica de papel, com os livros subdivididos por língua e ano de publicação”, escreve o historiador David E. Fishman.[44]

A Brigada do Papel não podia salvar mais livros deixando volumes menos valiosos passarem pela seleção. A ERR impôs cotas específicas antecipadamente, segundo as quais dois terços dos livros tinham de ser destruídos. Kruk escreve em seu diário que o trabalho é “muito triste” e que os integrantes do grupo fazem seu trabalho forçado com lágrimas nos olhos: “O YIVO está morrendo; e sua vala comum é uma fábrica de papel”.[45] Sutzkever descreve o trabalho realizado no número 18 da Vivulskio como “uma Ponar para nossa cultura judaica”. Sob supervisão de guardas alemães, “estamos cavando as sepulturas de nossas almas”.[46]

Mas desde o começo os integrantes da Brigada do Papel tentaram encontrar oportunidades para resistir. Um dos meios encontrados era a passividade: assim que os alemães saíam do prédio, a brigada parava de trabalhar. Sutzkever, que trabalhou no prédio do YIVO, costumava ler poemas para os demais. Vários integrantes escreviam poemas, teses e periódicos no tempo que passaram no gueto. Era uma questão de sobrevivência. Sutzkever disse mais tarde: “Eu achava que, assim como um judeu atento acredita no Messias, enquanto eu continuasse escrevendo, enquanto eu fosse um poeta, eu tinha uma arma contra a morte”.[47]

Em pouco tempo a Brigada do Papel desenvolveu formas mais ativas de resistência, por meio do contrabando de obras de valor. Ao fim do dia de trabalho, antes de serem levados de volta ao gueto, Sutzkever e os outros escondiam manuscritos nas roupas. O risco era menor nos dias em que seus guardas eram integrantes da polícia judaica do gueto. Foram esses guardas, conscientes do que se passava, que batizaram o grupo. A Brigada do Papel eram guerreiros do papel, que arriscavam suas vidas para contrabandear um documento por vez para o gueto. “Outros judeus nos olhavam como se fôssemos loucos. Eles contrabandeavam comida para o gueto, escondida nas roupas e botas, mas nós contrabandeávamos livros, tiras de papel, e às vezes uma Torá”, escreveu um dos integrantes do grupo.[48]

Sutzkever, o mais ativo contrabandista do grupo, conseguiu levar para o gueto, entre outras coisas, um diário que havia pertencido ao pai do sionismo, Theodor Herzl. Também foi ele quem teve a ideia de pedir permissão aos alemães para levar “sobras de papel”. Sutzkever convenceu os alemães de que aquilo seria queimado nos fogões do gueto. Essa permissão permitiu que muito “refugo” fosse salvo, como cartas e manuscritos de Tolstói, Górki, Elijah ben Solomon Zalman e desenhos de Chagall.

Apesar dessa ação arriscada e corajosa, ainda havia mais um dilema: a brigada estava só traficando livros e manuscritos de uma prisão para outra – para onde aquilo seria transferido depois? Herman Kruk escondeu parte do material na biblioteca do gueto, enquanto Abraham Sutzkever dividiu seu material em vários esconderijos, inclusive atrás do papel de parede de seu apartamento. O esconderijo mais engenhoso foi um bunker construído às escondidas por um engenheiro chamado Gerson Abramovitsj. O bunker, a quase vinte metros abaixo da terra, contava com eletricidade e um sistema de ventilação. Abramovitsj construiu o bunker para esconder dos nazistas sua mãe deficiente. Logo ela ganhou a companhia de manuscritos, cartas, livros e obras de arte, enterrados sob o piso.[49] A Brigada do Papel conseguiu contrabandear parte do material para fora do gueto, em parte graças aos esforços de Ona Simaite, a bibliotecária lituana que enganou os alemães e disse que estava indo ao gueto para pegar livros que alunos judeus não haviam devolvido. Ao sair ela levou livros valiosos e manuscritos. Ela também escondeu uma menina judia, mas foi descoberta em 1944. Simaite foi detida, torturada e deportada para Dachau, o campo de concentração, mas conseguiu sobreviver à guerra.[50]

Além de livros, Abraham Sutzkever também contrabandeou armas. Ele era membro de um grupo clandestino chamado Fareynikte Partizaner Organizatsye [Organizações Partisans Unidas], um grupo de resistência militante judeu formado no gueto cujo lema era “Não vamos deixar que nos levem como ovelhas para o matadouro”. Usando contatos lituanos, enquanto trabalhava no prédio do YIVO, Sutzkever recebeu pistolas e partes de submetralhadoras, que foram contrabandeadas e montadas no gueto.

À medida que o tempo passava, os membros da Brigada do Papel ficavam mais ousados e levavam volumes cada vez maiores de material. Numa última medida desesperada, a Brigada começou a esconder livros no próprio edifício do YIVO. Entre a primavera de 1943 e setembro de 1944, a Brigada do Papel conseguiu contrabandear milhares de livros e manuscritos. Mas em última instância, o que foi salvo era uma fração das centenas de milhares de livros e manuscritos enviados para a fábrica de papel ou para a Alemanha.

No final do verão de 1943, os membros da Brigada do Papel perceberam que seu trabalho em breve estaria acabado. Não havia novos acervos sendo entregues para triagem, e a ERR começou a encerrar a operação.

Kalmanovitj escreveu uma das últimas anoteções de seu diário no final de agosto: “A semana toda selecionei livros, milhares deles, e os lancei na pilha de refugos com as minhas próprias mãos. Uma pilha de livros na sala de leitura do YIVO, um túmulo de livros, uma sepultura de um irmão, livros que foram atingidos pela guerra como Gogue e Magogue, assim como seus donos [...] O que quer que nós possamos salvar irá sobreviver com a ajuda de Deus! Nós os veremos de novo quando voltarmos a este lugar como seres humanos”.[51]

Não era apenas o trabalho da ERR que estava perdendo fôlego, era toda a campanha alemã no front oriental. Depois da derrota em Stalingrado no inverno de 1943, o exército alemão estava batendo em retirada. Isso significava que a indústria bélica alemã na Europa Oriental estava sendo desmantelada e que milhares de trabalhadores escravos estavam se tornando supérfluos. Muitos foram mandados diretamente para as câmaras de gás.

O levante judeu em Varsóvia na primavera de 1943 também deixou Heinrich Himmler nervoso. Ele suspeitava, com razão, que os judeus de outros guetos tinham planos de resistência armada. Poucas semanas após a revolta, Himmler deu ordens para que o gueto de Ostlan (a região do Báltico) fosse encerrado. O gueto de Vilnius, visto pelo serviço de inteligência alemão como um potencial ponto de resistência, precisava ser destruído o quanto antes.[52]

As deportações dos judeus que continuavam em Vilnius começaram no início de agosto de 1943. Em dois meses o gueto foi esvaziado. Os que estavam em idade para trabalhar foram enviados para campos de trabalhos forçados, onde realizavam tarefas como cavar trincheiras. Os que eram velhos demais, jovens demais ou estavam doentes demais foram assassinados.

Mas antes do extermínio do gueto, os 180 membros das Organizações Partisans Unidas conseguiram fugir e se esconder nas florestas perto de Vilnius. Um deles era Abraham Sutzkever, que escapou em 12 de setembro com a esposa e outro poeta do grupo Yung Vilne, Shmerke Kaczerginski. Sutzkever já tinha perdido a mãe e o filho recém-nascido, envenenado pelos nazistas no hospital do gueto.[53]

Notícias sobre a fuga de Abraham Sutzkever logo chegaram a Moscou. No início de 1944, Ilya Ehrenburg, o mais famoso escritor e jornalista da União Soviética, ajudou Sutzkever e a mulher a fugirem para Moscou. Um pequeno avião soviético conseguiu atravessar o front e pousar em um lago congelado nas florestas próximas a Vilnius. Enfrentando pesado fogo antiaéreo alemão, o avião conseguiu voltar ao lado soviético. O artigo de Ehrenburg sobre Sutzkever no Pravda, o jornal do Partido Comunista, foi o primeiro a mencionar o assassinato em massa de judeus na União Soviética.[54]

No entanto, a maior parte das pessoas do gueto e a Brigada do Papel não conseguiram escapar. Em Ponar, a SS continuou com as execuções em massa. Um dos executados no fim desse período foi Yitzhak Rudashevski, o menino de quinze anos que mantinha um diário. Ao mesmo tempo, a SS deu início a uma ampla campanha para encobrir os assassinatos em massa. No outono de 1943, prisioneiros de um campo de concentração próximo, Stutthof, foram forçados a exumar dezenas de milhares de corpos em decomposição em Ponar. Os corpos foram queimados em enormes fogueiras e as cinzas, misturadas com areia e enterradas. Foram necessários vários meses para que os trabalhadores escravos queimassem os restos mortais de 100 mil vítimas.

O pai espiritual do YIVO, Simon Dubnow, já tinha sido assassinado em 1941. Dubnow, que tinha oitenta anos quando a guerra começou, havia se estabelecido em Riga nos anos 1930 para escrever suas memórias. Amigos que viam o perigo se aproximar ajudaram Dubnow a obter um visto sueco em 1940, mas ele escolheu não fazer uso do documento. Quando os nazistas ocuparam Riga em 1941, Dubnow foi expulso de seu apartamento e viu sua grande biblioteca ser confiscada. Com o restante da população judaica da cidade, foi confinado no gueto. No início de 1941 a SS obrigou 24 mil judeus a sair do gueto e ir para a floresta de Rumbula, perto de Riga. Ali, prisioneiros de guerra soviéticos haviam cavado seis grandes fossos, onde os judeus foram executados. Simon Dubnow, doente demais para andar os vários quilômetros até lá, foi assassinado na rua por um oficial da Gestapo. De acordo com testemunhas, Dubnow exortou até o fim os habitantes do gueto: “Judeus, escrevam e façam registros”.

Não se sabe exatamente como o bibliotecário Khaykl Lunski morreu, De acordo com uma testemunha, ele foi deportado com a filha para Treblinka, enquanto outra testemunha sugere que ele foi espancado até a morte em setembro de 1943. Zelig Kalmanovitj, chefe da Brigada do Papel, foi levado para o campo de concentração de Vaivara, na Estônia, onde morreu em 1944. Herman Kruk foi deportado para um campo de trabalhos forçados em Lagedi, na Estônia. Ele continuaria a fazer anotações em seu diário até o fim. Em 17 de setembro fez uma última anotação: “Estou enterrando os manuscritos em Lagedi, no alojamento de Herr Schulma, em frente à casa de guarda. Seis pessoas estão presentes para o funeral”.[55] Kruk tinha noção do que esperava por ele. No dia seguinte ele e dois mil prisioneiros foram forçados a carregar toras de madeira para uma floresta nas imediações. As toras foram alinhadas em longas fileiras e os prisioneiros obrigados a se deitar sobre elas. Eles haviam construído suas próprias piras funerárias. Depois que os guardas da SS atiraram na cabeça dos prisioneiros, uma nova camada de toras e prisioneiros foi acrescentada – e depois os corpos foram queimados. Mas quando o Exército Vermelho chegou à cena poucos dias depois, ainda havia corpos não queimados nas pilhas. Uma das testemunhas do “funeral” de Kruk conseguiu fugir e voltou para exumar seus diários.

A essa altura, Vilnius tinha sido libertada pelo Exército Vermelho. Na primeira semana de julho de 1944 começou um ataque contra a cidade, e em 13 de julho os últimos nazistas bateram em retirada. Entre os libertadores da cidade estavam Abraham Sutzkever e Shmerke Kaczerginski, que combatiam pelo grupo partisan judeu Nekome [os Vingadores]. Depois de encerrada a batalha, eles começaram a procurar manuscritos e livros escondidos. Com grande tristeza descobriram que o Instituto YIVO, no número 18 da Vivulskio gatvé, se transformara em uma ruína carbonizada e esvaziada depois que a casa fora atingida pela artilharia. O esconderijo de Kruk na biblioteca do gueto foi descoberto e os livros foram queimados no pátio. Por outro lado, o bunker secreto não havia sido destruído. Sutzkever e Kaczerginski retiraram de baixo do piso manuscritos, cartas, diários e um busto de Tolstói. Eles continuaram cavando e uma mão apareceu em meio à terra. Um dos judeus que havia se escondido no bunker morrera ali e alguém o enterrara em meio aos livros.[56]