Um olhar sul-americano*

Como livro de história política, Balmaceda1 transcende a época em que foi escrito e, sobretudo, o país e o personagem examinado. Foi publicado em 1895 quando foi reunida a série de artigos que Joaquim Nabuco havia publicado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro nos primeiros meses daquele ano. Um postscriptum intitulado “A questão da América Latina” completou a coleção.

O intelectual, político e diplomata brasileiro abordava um dos períodos mais agitados da história chilena — a presidência de José Manuel Balmaceda (1886-91) e seus conflitos com o Congresso —, que terminou com a instalação de uma ditadura, a explosão de uma guerra civil, tragédia que culminou no suicídio do mandatário asilado na missão argentina em Santiago.

Nabuco deteve-se nesses episódios ao fazer a resenha da obra de Julio Bafiados Espinosa, colaborador direto de Balmaceda, que o encarregara da missão de deixar a “verdadeira história” do seu governo para a posteridade. A riqueza da análise é uma das qualidades reconhecidas no estudo de Nabuco na medida em que expôs os aspectos fundamentais de sua visão política e tirou conclusões diametralmente opostas àquelas do autor chileno tolhido pela parcialidade. Deixou entrever sua paixão pelo Parlamento, sua aversão à autoridade ditatorial ou caudilhesca e, principalmente, a percepção dos desafios e das incertezas que, naquela época, atormentavam as nações americanas, entre elas o próprio Brasil, que vivia os primeiros passos do regime republicano. Essa mesma consciência de Nabuco o fez dedicar-se, posteriormente, a outra série de ensaios políticos — desta vez sobre uma grave crise que marcou o início da República brasileira — que se transformou no livro A intervenção estrangeira durante a Revolta de 1893.

O Chile era um país que havia gozado, no século xix, um longo período de estabilidade e, por isso, representava para muitos a esperança de que o sistema republicano poderia prosperar no Brasil. Com suas convicções monarquistas e liberais, Nabuco preocupava-se com a possibilidade de que, com a chegada da República, o Brasil ficasse associado ao quadro de convulsões políticas nas quais se debatia a região. Aliás, no epílogo de Balmaceda, ele observou que o país vizinho, com seu regime de liberdade e de transmissão ordenada de governo, constituía uma “exceção que podia ser considerada um capricho de ordem moral na formação da América do Sul”. A ruptura do processo chileno causava grande inquietude a seu espírito americanista e, por isso, saudou a Revolução de 1891 como a confirmação do “bem que a forma republicana fez ao Chile” e que “serviu, como a Guerra de Secessão nos Estados Unidos, não apenas para revelar ao mundo o vigor dos fundamentos [...] do seu edifício nacional, mas mais ainda para cimentá-lo novamente”.

Os estudiosos de Nabuco identificam em Balmaceda o momento em que os assuntos do continente passam a estimular o militante político já, naquele momento, absorvido pelos ecos da causa abolicionista.

Havia regressado do seu exílio europeu e começava a escrever a biografia do seu pai, Um estadista do Império, e esta, sua obra mais importante, foi elaborada no mesmo tempo em que se dedicava ao estudo da crise chilena. Na verdade, o próprio Nabuco reconheceu no seu postscriptum que a Proclamação da República no Brasil havia provocado o aumento do interesse que, já antes, lhe inspiravam os “assuntos sul-americanos”. Desde então “começamos a formar parte de um sistema político mais vasto”. Por isso insistia na necessidade do observador brasileiro de “estudar a marcha do continente, auscultar o murmúrio, a pulsação continental”. A pesquisa minuciosa que fez sobre a revolução chilena fez parte desse trabalho de observação da política hemisférica e seria posteriormente enriquecida pela contribuição de Nabuco ao debate das ideias em torno do pan-americanismo.

O que Nabuco denominou a “questão da América Latina” refletia apenas a importância da região como foco de atenção prioritária e permanente da diplomacia brasileira. Havia sido assim durante o Império e o seria mais ainda durante a República, sobretudo depois da resolução definitiva das disputas fronteiriças com alguns vizinhos, gestão conduzida pelo barão do Rio Branco com a contribuição de Nabuco na questão específica do litígio com a Grã-Bretanha em torno da Guiana Inglesa. O enriquecimento mútuo das experiências nacionais, a influência recíproca entre as conjunturas dos diferentes países, a proximidade dos interesses, marcariam cada vez mais a história das relações do Brasil com os seus vizinhos, propiciando formas crescentemente aperfeiçoadas de diálogo e cooperação. A Conferência Pan-Americana de 1906, realizada no Rio de Janeiro, presidida por Nabuco, foi o marco desse processo e, inclusive, estabeleceu as bases de uma convivência mais próxima com os Estados Unidos.

As reflexões de Nabuco sobre o drama político-institucional vivido pelo Chile de Balmaceda constituem uma referência para a compreensão das diferentes facetas da evolução do panorama geral da América Latina durante o século xx. Muitos dos fenômenos examinados — fragmentação do sistema partidário, estrutura oligárquica do poder, militarismo, populismo — são comuns aos diferentes ciclos de instabilidade pelos quais passaram os paí­ses da região, até que a democracia se fixasse com raízes sólidas. Por outro lado, alguns dos temas evocados por Nabuco, além de aludir a experiências suscetíveis de comparação com outras da região, nunca perderam atualidade. (Qual dos líderes políticos, dos presidentes de hoje em dia não concordaria com a afirmação de que o “valor dos chefes de Estado sul-americanos tem que ser julgado pelo resultado de sua administração”?)2

Ninguém que tenha que lidar com o desafio de governar, sobretudo sociedades tão complexas e injustas quanto as nossas, deixaria de reconhecer que o papel dos chefes de Estado não pode se restringir às boas intenções, aos atos de vontade, aos compromissos, os quais devem materializar-se em ações efetivas, em mudanças e realizações.

Com sua aguda percepção da história política do continente, Nabuco sabia do alcance desse desafio que, no juízo crítico de Balmaceda, não vacilou em generalizar: o valor dos chefes de Estado sul-americanos não deve somente traduzir-se pela sua tenacidade — “em tenacidade, quem se compara com López?” — nem por seu orgulho patriótico — “em patriotismo agressivo, quem se compara com Rosas?” — e nem sequer pela sua honestidade — “em honestidade, quem supera a França?”. Para julgá-los, dizia finalmente: “é preciso comparar o estado em que receberam o país e o estado em que o deixaram, o inventário nacional ao entrar e ao sair”.3 A essa formulação singela, cabe agregar: não constituiria o eixo fundamental dos processos democráticos? Quantas situações não terão ocorrido na América Latina em que ao desvirtuar a natureza das funções do homem de Estado sucederam experiên­cias políticas igualmente penosas?

Analista sutil, com seu domínio das ciências políticas e sociais, Nabuco suscita este e outro tipo de reflexão, e é por isso que se pode caracterizar sua obra sobre Balmaceda como um trabalho de interesse permanente.

Pelos laços antigos e profundos que tenho com o Chile, e como homenagem a esse país — que soube, do mesmo modo que o Brasil, atravessar os momentos de escuridão de sua história e hoje avança confiante em regime democrático —, deu-me muito prazer a oportunidade, por iniciativa da embaixada do Brasil em Santiago, de prefaciar com esses breves comentários a reedição em espanhol desta significativa obra de Joaquim Nabuco.

 

 

 

 


* “Prefácio”. In: Joaquim Nabuco, 1849-1910, Balmaceda. Santiago do Chile: Editorial Universitaria, 2000, pp. 9-12.