As nações se desenvolvem criando, além da riqueza, mitos. Canudos é um mito nacional. Em Os sertões, Euclides da Cunha deu a forma acabada que o mito passou a ter: seu espaço se desenha entre a epopeia da luta militar e a tragédia de um punhado de desesperados.
Na crônica da época a imprensa esquadrinhou cada faceta da epopeia-trágica. Em livro recente — No calor da hora —1 Walnice Nogueira Galvão mostrou o que significou a Guerra de Canudos para a imprensa de 1897, no período da arrancada final contra o arraial rebelado. O tom das crônicas e das reportagens enviadas pelos correspondentes era de exaltação quase unânime à bravura do Exército nacional. Além disso, alguns republicanos de imaginação mais exuberante viam na rebelião de Antônio Conselheiro a armadilha preparada pelos restauradores monarquistas: o apego ingênuo e tradicionalista do pregador dos sertões transfigurava-se em “ideologia adversa”, soezmente instilada pelos inimigos do regime; não faltaram nem sequer alusões à mão estrangeira, corporificada na suposta presença de um capitão italiano que treinara os “guerrilheiros”. Isso tudo, apesar dos desmentidos honestos de alguns combatentes, como o coronel Carlos Teles, que foi taxativo: “Não há ali fim restaurador nem mesmo influência de pessoa estranha nesse sentido; [...] em Canudos não existe nenhum estrangeiro e muito menos capitão italiano instrutor de brigadas”.
Desfeita a crença no maquiavelismo restaurador, a consciência nacional teve que haver-se com uma epopeia envergonhada, cheia de aspectos deprimentes. A censura das notícias, o fato de que os principais correspondentes jornalísticos, inclusive Euclides, eram militares da reserva, o extermínio da coluna Moreira César que teve tremendo impacto na opinião nacional, tudo isso contribuía para que de Canudos se visse apenas uma face da medalha: o “atavismo”, o “primitivismo”, o “barbarismo”. E estas características se fixaram como se fossem atributos só do “outro Brasil”, dos sertões áridos, do fanatismo religioso, da lei da vingança que prevaleceria entre os “jagunços”. Nem mesmo a consciência liberal e civilista escapou: Rui Barbosa, defendendo os monarquistas da pecha de se terem aliado aos jagunços, qualifica estes últimos de “horda de mentecaptos e galés”. Massacrado Canudos, diante da degola generalizada dos sertanejos feita com a complacência das autoridades, Rui retorna ao liberalismo verbal, mas em discurso rascunhado que não chegou a ser proferido.
Em face disso, Walnice Galvão — de cujo livro extraí as informações acima — glosa com razão o mote do intelectual-complacente, disposto a fechar os olhos diante do arbítrio e da violência sempre que seja o Poder, em nome da Razão Nacional, quem os pratique. E sempre disposto, também, a recuperar a dignidade humana dos que tombaram, através de um discurso retórico que quase invariavelmente chega tarde. Nem Euclides, acrescenta, escapou disso. Fê-lo, entretanto, com grandeza. De seu livro permanecerão muitas análises. A retórica castigada, que machuca o leitor, somada a um certo pernosticismo técnico de engenheiro atento à geografia não foram suficientes para obscurecer a observação crucial: “O sertanejo é antes de tudo um forte”. Não é a luta, a epopeia, que marca Os sertões, embora sua discussão ocupe a maior parte do livro. É o mea culpa, que não foi só dele, mas de todo o país, que sobressai: os jagunços não eram monarquistas por deliberação; não estavam municiados até os dentes, senão que se armavam com o que sobrara na refrega das tropas legalistas; não tinham a animá-los a dieta farta, mas sim o sopro de uma crença, o fanatismo, o desespero, a palavra redentora. E foi sobre este punhado de marginais que desabou o fervor republicano e a indignação nacional, e no seu extermínio cobriram-se de glórias as forças legalistas. Euclides da Cunha não desmistifica o esforço oficialista. Mas redime o jagunço e tenta entendê-lo. O jornalista republicano e patriótico cede à razão do sociólogo. Escrevendo no fim do século xix e começo do xx, a sociologia de Euclides não podia deixar de ter sido fortemente influenciada pelas crenças da época: o meio — a geografia e as condicionantes biológicas — fornece a base sobre a qual a história dos homens se desenha. Mas, ao falar em história, nosso autor não se refere apenas ao desdobramento de um fator já determinado pela raça. Paga seu pleito à ideia da interpenetração das “três raças”: a branca, a negra e a indígena. Paulo Prado escreveria que somos formados por três raças tristes: o português, o índio e o negro. Euclides, entretanto, não se detém na tristeza ou em outras das supostas virtudes imanentes a nossas origens raciais: vai ressaltar a formação cultural. Medeia, assim, o condicionamento do meio pela ação dos homens. Contrasta o “jagunço” com o “paulista”, o “bandeirante”, e se refere ao papel do rio São Francisco como via de penetração.
Daí para a frente, muito da sociologia brasileira se calcou neste modelo: na fixação dos “tipos históricos” fundamentais na formação da nacionalidade e sua luta pela conquista do espaço. Oliveira Vianna, na década de 1930, Vianna Moog na de 1940, e tantos mais, irão definir o que foram os bandeirantes, os gaúchos, os tropeiros do Norte, e assim por diante. Só que Euclides da Cunha, ao caracterizar os jagunços, não se limitou a recorrer a uma tipologia. Desvendou o que era o jagunço-fanático sentando as bases para um estilo de estudo que frutificou e continua vivo em nossos dias: sem a análise do messianismo não se entenderia Antônio Conselheiro.
Penso que no mergulho em profundidade feito pelo nosso autor na busca da compreensão do que era a vida do sertanejo e na projeção que soube dar ao fenômeno do misticismo e do messianismo — que podem ser hoje corrigidos, aqui e ali, por bibliografia mais douta — ficou estabelecido o que de melhor nos legou Euclides sociólogo. E, de passagem, na discussão do Homem ficaram também páginas literárias que, mesmo escapando ao gosto contemporâneo, são admiráveis.
Mas não é só porque Os sertões descreve com argúcia as condições de vida do jagunço que o livro continua um marco na literatura sobre o Brasil. Nem talvez seja só porque nele se abre enorme perspectiva para conhecer o “outro Brasil”, o Brasil-arcaico, o lado de lá dos dois Brasis de que falaria Jacques Lambert muito mais tarde. Os sertões constitui também importante, eu diria mesmo surpreendente, peça de criatividade metodológica. Euclides da Cunha passa de um nível de abstração para outro e deste para a discussão do concreto de forma admirável. Vai do meio ambiente à história cultural, dessa aos pormenores da vida cotidiana do sertanejo, devolve-nos de chofre o jagunço como “tipo-ideal” de uma formação sociocultural e, de repente, faz brotar pela reconstituição do tempo perdido (ou ganho) toda a movimentação de sua luta. A crônica funde-se com a análise e nos dá o quadro vivo da epopeia-trágica.
Porque foi capaz de desdobrar a análise em planos distintos, Euclides não transformou Antônio Conselheiro apenas num esqueleto — o Profeta — nem fez do sertanejo apenas o suporte de uma frase, que vê nele “um forte”. Mostrou-nos, também, no concreto, que o Profeta era um homem de carne e osso. Que a autonomia dos municípios, proclamada pela República, irritou ao temperamental Antônio Maciel, o Conselheiro, porque a cobrança de impostos pelas câmaras deixava os “donos do poder” mais visíveis. E nos mostrou que o forte sertanejo era um deserdado que refluía para o Além porque suportava a opressão sem face de um sistema impiedoso de dominação.
Por fim, uma palavra sobre A luta. Se já nos surpreende em Euclides o “sociólogo da vida cotidiana”, o quase psicólogo a debruçar-se sobre o vulcão anímico do Conselheiro — e que por isso vai muito além do parafraseador das qualidades intrínsecas do obscurantismo das três raças formadoras da nacionalidade e outras observações do gênero que fizeram furor na época mas não subsistem à crítica científica —, mais surpreende ainda o “sociólogo dos movimentos sociais”. A descrição do Monte Belo — designativo transfigurado que os jagunços davam ao sensaborão Canudos — bem como a narração sobre os movimentos da tropa oficial e da guerrilha do Conselheiro fundem a imagem cênica potente com a compreensão do aqui e do agora, dando aos determinantes do meio e da história a força da vida. O sociólogo-repórter suplanta na discussão da Luta o cientificismo do sábio e mesmo o culturalismo do intelectual que tentou fixar a imagem do sertanejo.
A partir de Os sertões a consciência crítica brasileira reforçou seu sentimento de culpa para com o outro Brasil. O Brasil da pobreza rural, do analfabetismo, da fome, da doença. Teve, pelo menos, que reconhecê-lo. E, mesmo sem conseguir modificá-lo, teve de amargar, como ainda o faz, a certeza de que muito do “progresso”, quando não é feito diretamente sob os corpos insepultos dos vários jagunços que erram nos campos (e nas cidades também), é pelo menos de pouca valia para os que, no desespero, ou mergulham na apatia da falta de esperança, ou, quando lutam, fazem-no enredados nalguma forma de messianismo. Isso só bastaria para explicar a permanência desse grande livro.
* “Canudos: o outro Brasil”. Senhor Vogue, 1978, pp. 108-9. Prefácio da série Livros Indispensáveis à Compreensão do Presente, 4, publicada na seção “Resumo do mês” referente à obra de Euclides da Cunha, Os sertões.