Florestan, cientista*

Reler este livro1 tantos anos depois de publicado foi para mim uma experiência humana e intelectual compensadora.

Digo experiência humana porque hoje, em 1999, ocupando as funções sabidas, fez-me recordar um passado de cinquenta anos. Isso mesmo, cinquenta anos! Conheci Florestan Fernandes em 1949, quando ingressei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da usp (assim se chamava), então instalada no antigo prédio da Escola Caetano de Campos, na praça da República, bem no centro de São Paulo.

Fui aluno, auxiliar de ensino, assistente e colega de Florestan. Ninguém influenciou tanto quanto ele a minha geração. Na época, Florestan, como todos nós, usava bata branca nas aulas e nos corredores: queríamos ser “cientistas” e, pela influência positivista, o Departamento de Sociologia pertencia à seção das Ciências na Faculdade. Estudávamos matemática e estatística, e nos davam licença para ensinar no curso secundário tanto sociologia — e mais amplamente “ciências sociais”, em geral história — como matemática.

Florestan Fernandes nos anos 1950 era mais que o apóstolo, era o profeta do projeto da sociologia como “ciência empírica”. Com ele e com Roger Bastide fazíamos pesquisas de campo para sermos treinados na análise objetiva dos processos sociais. Ao lado dessa devoção à disciplina, ao método, Florestan fazia arder em nós a paixão, que nele era vulcânica, por uma vida de comprometimento com a ciência e com os valores de uma sociedade melhor.

Na época em que foi meu professor — e mesmo mais tarde, até precisamente o período de elaboração dos primeiros ensaios deste seu livro —, Florestan não exibiu seu lado de militante político. Embora guardasse os ideais socialistas do fim da juventude, a paixão maior era pela ciência. Isso não obstante (aí sim, permanentemente) um comportamento indissoluvelmente ligado às práticas democráticas e republicanas, cujo momento áureo de militância se concretizou na Campanha em Defesa da Escola Pública.

A obstinação de Florestan em superar obstáculos na busca do aprendizado e, depois, no ensino, suas dificuldades financeiras, seu entusiasmo de quase pai dos alunos, seu exemplo comovedor de professor universitário honrado, marcaram toda a minha geração. Para mim, particularmente, que, além das ligações profissionais, tinha um relacionamento estreito com ele (fomos vizinhos anos a fio, nossos filhos cresciam juntos), Florestan era uma referência indispensável.

Ao iniciar a releitura deste livro, deparo logo com o Florestan de sempre. Diz na “Nota explicativa”: “É preciso que o leitor entenda que não projetamos fazer obra de ‘sociologia acadêmica’”.2 Imaginava ele estar escrevendo um ensaio livre, com linguagem simples... Impossível: o militante Florestan Fernandes, sendo como foi na fase final de sua vida verdadeiramente um militante, nunca sufocou o acadêmico.

E neste aspecto, entrando a considerar a experiência intelec­tual desta releitura, é interessantíssimo ver a evolução do nosso autor, comparando-se os ensaios finais do livro com as primeiras partes.

Em “As origens da revolução burguesa”, Florestan faz uma análise que (seguindo a caracterização dele próprio noutro livro, Fundamentos empíricos da explicação sociológica)3 é típico-ideal. Ele está à busca dos “agentes humanos” — o burguês — capazes de encarnar o “espírito burguês”. Juntos, os burgueses e o espírito do capitalismo instaurariam a “ordem social competitiva”, típica do capitalismo em sua fase gloriosa.

É Werner Sombart quem o inspira. E, por trás, Max Weber dá-lhe o traçado metodológico.

Todos os ensaios desta parte do livro são uma anotação contrastante entre os agentes humanos (os fazendeiros, os comerciantes-exportadores) que, encarnando virtudes burguesas, opõem-se aos agentes humanos da “sociedade colonial” e a seu espírito. É a luta pela “modernização” daquela sociedade.

Florestan revela, em muitas passagens, seu inconformismo com o que na linguagem da época se diria “o coetâneo do não contemporâneo”, ou seja, a permanência da antiga ordem (do Ancien Régime) na nova ordem.

É de salientar que a erudição e o espírito científico de Florestan Fernandes nunca o deixaram incorrer em equívocos habituais nos “intelectuais de esquerda”, tipicamente ideológicos. A análise sobre os efeitos construtivos do liberalismo constitui um belo exemplo desta atitude. Para Florestan, o liberalismo — ontem como hoje bête noire dos ideólogos de esquerda — “concorreu para revolucionar o horizonte cultural das elites nativas”4 e deu substância aos processos de modernização.

Do mesmo modo, Florestan ressalta as modificações na estrutura da sociedade ocorridas sob os impulsos do “espírito burguês” e portanto do liberalismo, na passagem da “sociedade colonial” para a “sociedade imperial”. Embora nas duas houvesse “senhores” e “escravos”, havia novas dimensões na “sociedade imperial” que não se exauriam na oposição binária mais simplista.

Obviamente, o reconhecimento das transformações e do surgimento de agentes portadores de novas “virtudes” não diminuía as características negativas do Ancien Régime nem obscurecia os aspectos perversos do novo. De qualquer modo, a “sociedade imperial”, sob este ângulo, incorporou agentes sociais que desencadearam uma nova dinâmica favorável à instauração da “ordem social competitiva”. Mais ainda — isto para Florestan era essencial —, iniciava-se o processo de consolidação de uma “ordem social nacional”. Florestan assinala invariavelmente uma certa “incompletude”: “O que ocorreu com o Estado nacional independente é que ele era liberal somente em seus fundamentos formais. Na prática, ele era instrumento da dominação patrimonialista”.5

Por certo, quem quisesse assumir uma atitude crítica diante das análises de Florestan Fernandes poderia questionar o que significaria uma estrutura socioeconômica “imperial” — confusão entre a infraestrutura econômica e a superestrutura política, dirão os marxistas à antiga. Assim como poderia criticar certa visão “humanista”, em contraposição à análise categorial marxista. Por exemplo: “A autonomização política e a burocratização da dominação patrimonialista imprimiriam à produção e à exportação as funções de processos sociais de acumulação estamental de capital”.6

Há inumeráveis exemplos semelhantes, assim como os há para mostrar que à sociedade era atribuída a capacidade de “absorver” o espírito do capitalismo e ao mesmo tempo “eternizar” o pré-capitalismo. Era um capitalismo “vindo de fora”, assim como o liberalismo.

Mas não é isso que me preocupa, pois essas críticas são externas à metodologia adotada pelo autor. Preocupa-me a razão pela qual Florestan, descrevendo processos de mudança estrutural de longa duração (para os quais ele prescrevia, no já referido livro sobre os Fundamentos empíricos da explicação sociológica, a utilização da dialética marxista), tivesse feito uma análise típico-ideal, de nítido corte weberiano.

Digo isso não para diminuir a força analítica de Florestan, mas para ressaltá-la: a despeito desse viés metodológico, e de seu caráter altamente abstrato, o livro é denso na observação de processos sociais concretos e na categorização de situações de classe.

Visto isso, passo a considerar os ensaios da terceira parte do livro, especialmente os capítulos 6 e 7. Nos primeiros ensaios, escritos em 1966, nosso autor está à busca dos “agentes humanos” da revolução burguesa no Brasil e vai encontrá-los no “fazendeiro” (sobretudo de café) e no “homem de negócios”, antes de chegar ao “capitão de indústria” sombartiano e ao “imigrante”. Nos últimos ensaios passa-se a um estilo de análise mais marxista, sobre as fases de acumulação do capital.

Certamente, Florestan tinha consciência da escolha metodológica que fizera nos primeiros ensaios (basta ler a nota 14, na página 133) e, portanto, da sensação que o leitor teria de que a “economia de mercado”, a “sociedade competitiva”, a “mentalidade burguesa” pairassem, não se sabe onde, talvez “lá fora”, e fossem “absorvidas” pelos agentes humanos concretos. No entanto, como eu disse acima, à margem Florestan ia anotando os “processos sociais concretos”: a expansão do mercado interno, a urbanização, as conexões de dependência com o exterior, a autonomia nacional etc.

Pois bem, nos capítulos finais, escritos em 1973, quase dez anos depois dos primeiros, Florestan como que reconta a história dos agentes humanos da revolução burguesa, à luz das “etapas da acumulação do capital”. Nessa síntese mais recente existem três fases: a da “eclosão de um mercado capitalista moderno”, a da “expansão do capitalismo competitivo” e a “irrupção do capitalismo monopolista”.7

Sem entrar nas minúcias de suas descrições, lembro apenas que Florestan reitera que não estava diante do “desenvolvimento do capitalismo em si mesmo”, que, em nosso caso, os influxos dinâmicos “vinham de fora”, que não havia, portanto, “espaço histórico para a repetição das evoluções do capitalismo na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, ou na Alemanha e no Japão”.8

Assim, nossa revolução burguesa não só foi internamente incompleta (pela convivência permanente com os momentos históricos anteriores) mas também deformada: não repetimos a história do verdadeiro capitalismo, “o deles”.

Por trás dessa análise, as vicissitudes do final da década de 1960: os tormentos e “imbróglios” da assim chamada teoria da dependência.

Mas tampouco nesse caso Florestan Fernandes se deixa levar pelo “marxismo vulgar” ou pela distorção analítica dos processos históricos que são “engolidos” pela lógica abstrata da acumulação do capital. Ao contrário (como eu fizera nos estudos sobre desenvolvimento e dependência), Florestan valoriza as peculiaridades do desenvolvimento capitalista na periferia do sistema mundial, critica suas distorções, chega a ser nostálgico das perdas de oportunidades históricas que a “burguesia brasileira” teria tido para avançar,9 mas não deixa de fazer análises concretas.

Por que escrevo isso?

Porque a meu ver o que este livro mostra não é a superioridade da análise weberiana em contraposição à análise marxista (ou vice-versa), mas a força de um sociólogo de excelente formação teórica e paixão pela pesquisa, que não sufoca os processos históricos no vazio de análises “típico-ideais” ou economicistas. Faz observações histórico-estruturais com fino espírito analítico e não deixa que a paixão ideológica sufoque a argúcia científica.

Talvez seja este, contrario sensu, o maior legado de Florestan Fernandes. Legado que no futuro será ainda mais valorizado e que faz deste livro e de seu autor uma referência permanente na bibliografia brasileira.

Rio de Janeiro, Gávea Pequena, 14 de agosto de 1999

 

 

 

 


* “Florestan Fernandes: a revolução burguesa no Brasil: texto introdutório”. In: Silviano Santiago (org.). Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, v. 3, pp. 1491-6. (Biblioteca Luso-Brasileira. Série Brasileira).