Um crítico do Estado:

Raymundo Faoro*

Raymundo Faoro é referência obrigatória para quem quiser entender o significado do patrimonialismo na evolução sociopolítica do Brasil. Não foi o único autor que se dedicou ao tema, mas terá sido um dos poucos, ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, que, ao analisar nossa história, não se deixou enredar na mística gerada pelo próprio Estado: a de que ele seria a melhor, se não a única, mola na formação nacional. Que se trata de mola fundamental, disso há pouca discordância; que não foi a única é opinião que os mais exaltados defensores do predomínio estatal custam a reconhecer. Mas que, independentemente de sua importância, o Estado não seria “bom em si mesmo” é mais raro de ver entre analistas do que se costuma chamar de “a formação do Brasil”. Tão abrangente e persistente foram os efeitos da ideologia patrimonialista e tão vital foi o papel do Estado na sociedade brasileira que é difícil manter o olhar crítico. Esta talvez seja a maior virtude de Raymundo Faoro: sua persistência na crença democrática e em compreender a importância do liberalismo como contraponto ao roldão que o culto ao Estado representa entre nós. Isso, diga-se, na pena de alguém que soube desvendar a importância efetiva que a burocracia e o Estado jogaram desde a época da Monarquia portuguesa até aos dias republicanos atuais e que, a meu ver, chegou a exagerar o peso e a persistência do que ele chama de “estamento burocrático” na vida brasileira.

Na reedição revista e ampliada de Os donos do poder, publicada em 1975, rendendo-se embora às evidências do papel crescente do Estado, reforçado no período Vargas e mais ainda pelo autoritarismo militar vigente na época em que escreveu a revisão, Faoro continuou valorizando as pressões democratizadoras vindas da base da sociedade como contraponto à realidade patrimonialista. Reconhece o predomínio desta, quase elege o “estamento burocrático” em motor da história brasileira, mas não o desvincula do jogo das classes nem se resigna com a marginalização crescente dos impulsos liberais e democráticos. Sem que seja explícito, deixa entrever certa nostalgia dos ideais americanos do self government temperados com pitadas de social-democracia.

A releitura de Os donos do poder é um bom antídoto para evitar que a paixão pelo Estado confunda a eventual modernização progressista, mesmo que autoritária, com os melhores interesses populares e com a democracia. Na verdade a predominância burocrático-estatal mais leva água ao moinho do conservadorismo tradicional do que representa um avanço na democratização das instituições e da sociedade. Entre nós, contudo, custa muito fazer prevalecer o papel da sociedade civil e valorizar como progressista uma visão democrática não autoritária. E custa mais ainda aceitar o lado positivo da tradição liberal que valoriza a cidadania, o respeito às leis e o repúdio ao arbítrio inerente à cultura do populismo paternalista. O empreguismo e a aceitação das estripulias praticadas pelos detentores do poder estatal em nome do interesse nacional e popular acabam por facilitar a persistência do pior de nossa tradição, o patrimonialismo. Este se afina mais com o personalismo autoritário, confunde a vida privada com a pública, além de gerar arbítrio e corrupção, como se depreende da leitura de Os donos do poder.

os fundamentos da interpretação

Apoiando-se conceitualmente em Max Weber, Faoro mostra como a dinastia de Avis transformou o patrimonialismo tradicional, baseado nas prerrogativas do senhor de terras, em patrimonialismo estamental. O que antes se baseava na relação entre família e propriedade da terra e poderia ter se desenvolvido como um tipo de feudalismo, criando uma hierarquia entre senhores, avassalando uns aos outros, modifica-se com a centralização política. Com os Bragança se consolida o novo sistema de poder. As forças produtivas ao se expandirem, em lugar de abrigarem práticas sociais próprias do mercado livre, dão lugar a monopólios reais. A estes se junta uma burocracia que sustenta o poder monárquico. A “nobreza” que se forma a partir de então é criada pela nobilitação de funcionários leais ao rei — aos quais se concedem favores e terras — ou pela incorporação dos antigos proprietários que se submetem à ordem monárquico-burocrática e dela também recebem favores.

A forma de dominação burocrático-estamental sob centralização monárquica não impediu o avanço do capitalismo comercial. Apenas, diferentemente do que ocorreu na Inglaterra, onde houve uma transição feudal-burguesa, em Portugal a racionalização requerida para o avanço do capitalismo se deu com o predomínio da tutela monárquico-burocrática. Era essa quem racionalizava as normas de direito, criava os monopólios e outorgava concessões reais, assim como monetizava os favores, por intermédio de pensões e vencimentos previsíveis. Racionalização que era mais exterior, formal, do que substantiva, com a intromissão da Casa Real nos negócios de uma economia regulada de cima. Cresceu o comércio, mas não se desenvolveu a empresa produtiva mais puramente capitalista, assegurada pela impessoalidade do mercado e pela vigência do direito racional. O capitalismo financeiro também ficou inibido em Portugal com a contínua proibição da usura, da qual se livrava apenas o Tesouro Real, sempre carente de fundos.

Criava-se assim um Estado monárquico centralizador, monopolístico, baseado em códigos de direito que ele próprio definia, portanto, com escasso grau de racionalidade mais ampla, com a economia sendo animada por uma classe comercial tutelada pela burocracia monárquica. Um capitalismo de Estado controlado pelo estamento burocrático com o propósito de servir aos objetivos maiores da Coroa: a dilatação da fé e a conquista do Império. O contraste com as sociedades democraticamente organizadas é imediato: enquanto nestas a camada dirigente é um reflexo do povo, em Portugal (melhor, na península Ibérica) o estamento burocrático é autônomo da nação. Reafirmando sua perspectiva, diz Faoro:

Em virtude deste fenômeno — que estrutura a tese central deste estudo — o Estado projeta-se, independente e autônomo, sobre as classes sociais e sobre a própria nação. Estado e Nação, governo e povo são realidades diversas, que se desconhecem, e, não raro, se antagonizam.1

Características estas que, no dizer de Faoro, atravessam o período monárquico português para alcançar o Primeiro e o Segundo Reinado.

O crítico mais severo poderá ver nestas palavras uma interpretação que desliza para o enaltecimento do Estado e da burocracia como os verdadeiros fautores da história, o que é, no mínimo, um exagero. A trama entre Estado e burocracia, por um lado, e sociedade civil, classes e mercado pelo outro é mais complexa, sendo difícil admitir uma autonomia tão forte entre um dos dois polos do binômio. No decorrer do livro não falta a Faoro a argúcia para se dar conta disso. No afã de convencer o leitor de sua tese, contudo, a reafirmação da síntese leva-o a palavras que escondem o que está sendo contraditado pelas análises.

os reflexos do patrimonialismo no novo mundo

Faoro mostrou, não sem razão, que a própria empresa colonizadora, depois da descoberta, menos do que um empreendimento econômico foi uma ocupação territorial com objetivos políticos. As capitanias gerais, embora a Coroa distribuísse terras aos sesmeiros para serem cultivadas, eram na verdade repartições administrativas nas quais o poder real se fazia presente pelo sesmeiro que era capitão-geral. A exploração econômica se organizava por meio de concessões de um monopólio real, ainda que o beneficiário pudesse vir a ser, como ocorreu com o pau-brasil, um judeu converso, no caso Fernão de Noronha. As próprias expedições comerciais marítimas, autorizadas pelo rei, viajavam acompanhadas de tropas: o Estado absolutista monárquico não deixava de se mostrar.

A conquista e a colonização se fizeram sob estrito controle de regras muito detalhadas. A colonização era mais obra de interesse político do que empresa capitalista; menos do que promover a agricultura ou qualquer atividade do gênero, o que se queria era garantir a posse e o controle do território contra invasores. “O capitalismo de Estado, diretamente pelos privilégios, isenções e doações, e indiretamente pela política fiscal, a tudo provia.”2 Nem se tratava de feudalismo, nem propriamente, como ocorreu com os ingleses na América do Norte, a tarefa de ocupar e colonizar foi entregue aos capitais particulares, à iniciativa privada, sem agenciamento nem regulações estatais.

Faoro não vê no latifúndio as bases para uma dominação “feudal”. Se esta já não existia em Portugal, menos ainda no Brasil, onde a concessão de grandes tratos de terra vinha junto com a assunção de responsabilidades em nome do rei. Mais tarde, quando o capitalismo agrário se desenvolveu, sobretudo com os engenhos de açúcar à base da escravidão, os agentes reais, o fisco, e os controles de toda ordem deixaram bem marcadas as características de um capitalismo de Estado, sobreposto à empresa escravocrata-capitalista:

A natureza do empreendimento da colonização brasileira não pode ser confundida com a organização feudal. Não deverá desvirtuar a análise o fato de estarem os núcleos da lavoura esparsos, e os engenhos espalhados pelo território vasto. Eles não se desenvolveram, nem se criaram por impulso próprio; obedeceram a um plano público, que porfiou em estabelecer-se com o controle e vigilância dos agentes reais.3

Estamos distantes da visão de Oliveira Vianna, que via na dispersão geográfica e no isolamento dos núcleos econômicos o risco da dispersão e clamava por um Estado que os unificasse. Este, para Faoro, fora congênito à descoberta, atravessara o primeiro século da colonização e entrara no segundo, tão ativo e ávido de impostos que gerou descontentamentos políticos.

À fase das capitanias hereditárias se seguiu um período de maior centralização do poder monárquico. A criação de vilas e a formação de conselhos — sempre definidas por alvarás e regras reais muito estritas — obedeceram menos a impulsos autonomistas locais do que aos interesses da Coroa. Os conselhos eram encarregados do recolhimento de tributos, tornando-se, portanto, caudatários do fisco. Os fundadores das vilas levavam o título de capitão-mor regente, a indicar o fato de serem agentes do rei. O impulso autonômico que alguns conselhos poderiam abrigar (as câmaras ficavam com dois terços da arrecadação e o outro terço ia para o Erário Real) foi se perdendo no decorrer do século xvii, com a crescente subordinação de todos à autoridade real:

Com a centralização, [os conselhos] perdem a soberania, transformando-se em departamentos executivos. Assimilam-se — ou são assimilados — à autoridade real, que, por meio deles, governa e administra, estendendo-se pela vastidão do sertão. A autonomia municipal, estimulada por motivos fiscais, é esmagada pelo fiscalismo.4

Faoro concorda com Caio Prado quando afirma que a economia colonial era um “negócio do Rei”. Negócio, é bem verdade, que estava assentado no latifúndio e na escravidão e era regulado e espoliado pela Coroa, embora não dispensasse o braço comercial, fresta pela qual entrava algo do espírito capitalista, conquanto nada do feudal.

A figura que vai se justapor e até certo ponto ameaçar as bases do capitalismo burocraticamente tutelado é a do “caudilho”. Este, à imitação do que poderia ter sido o capitalista inovador para Weber, digo eu, se contrapunha às tendências burocratizantes e rotineiras, quebrando o modelo estritamente legalista. É a partir deste tipo social, o caudilho, que se formam os “bandeirantes”: verdadeiras ameaças à disciplina monárquico-burocrática. Enquanto no litoral a figura do governador-geral e, mais tarde, a do vice-rei mantêm intacto o espírito da monarquia burocrática, no interior os “paulistas” — verdadeira “aristocracia militar” que, no dizer de nosso autor, antecipa em dois séculos a aristocracia de guerreiros do Sul — impõem seu poder sem respeitar a hierarquia burocrática. Pedem ao rei e obtém dele enormes tratos territoriais. De posse deles, atuam, entretanto, discricionariamente, sem respeitar os interesses da Coroa. Violentos e atropeladores de tudo que se antepunha a seus interesses, os bandeirantes são os novos conquistadores que trazem o espírito de iniciativa que se contrapõe à rotina dos administradores reais.

Já no século xviii, descobertas as minas de ouro, este germe de autonomismo se oporá às derramas fiscais, à sede insaciável da Coroa por mais ganhos à custa do esforço dos desbravadores e dos “nativos” em geral. Até então a Coroa fazia vista grossa para não se antepor à ação dos que, bem ou mal, alargavam seus domínios. Com o ouro abundante, entretanto, a pressão fiscalista aumenta e as insurgências nativistas, juntando ricos senhores de terras ou de minas, às vezes aliados às camadas mercantis, passam a ser uma dor de cabeça para o distante Poder Monárquico. A Coroa cria novas capitanias (São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, além de enviar batalhões para controlar as minas de Goiás e Mato Grosso) e aumenta o controle administrativo, de tal forma que as classes locais nunca enxergaram no Estado um aliado, ou um representante de seus interesses, mas um algoz. Insurgem-se os mineiros com Tiradentes, e o mesmo fazem os pernambucanos, forçando a Coroa a vincular-se aos comerciantes de Recife contra os produtores de Olinda. Esmaga-se, assim, aos poucos, o espírito autonomista que nascera com o tipo especial de caudilho que se formara no Brasil, o dos “paulistas”, com suas entradas, e o dos latifundiários com seus escravos, que só renascerá mais tarde quando da “arrancada da Independência”.5

Faoro faz uma análise detalhada da administração colonial, desde o tempo das capitanias hereditárias até aos governadores-gerais e ao vice-rei, título dado ao governador-geral do Rio de Janeiro. Apesar do pomposo título o vice-rei não exercia poder sobre os outros governadores, os quais acumulavam as funções de chefe das forças militares e de presidentes de todos os órgãos colegiados da província. Estas se subdividiam em departamentos, e obedeciam em conjunto ao governador, a quem, como está escrito na carta patente dada pelo rei ao conde de Cunha (1763), se deveria obedecer como se suas ordens fossem as d’el-rei. Os governadores podiam se fazer assessorar por juntas, mas sua subordinação hierárquica se dava diretamente ao Conselho Ultramarino de Portugal, que decidia como melhor servir aos propósitos reais. Para azeitar esta máquina burocrática hierarquizada e para melhor ligá-la às sociedades locais, funcionava o sistema de nomeações para empregos públicos, de pensões concedidas e favores de toda ordem, como habitual nos sistemas patrimonialistas.

Não devemos esquecer que à burocracia civil se juntavam as hierarquias paramilitares, os antigos terços transformados em milícia. O oficialato destas — o capitão-mor, que no quartel das milícias correspondia aos coronéis da tropa de linha, e o sargento-mor, que correspondia aos majores ou aos tenentes-coronéis — era escolhido pelo governador de listas tríplices indicadas pelas câmaras. Formava-se assim outro canal de ascensão e reconhecimento social e, ao mesmo tempo, de subordinação das elites locais ao rei. Mesmo alguns antigos caudilhos acabaram por ser incorporados a este corpo mais disciplinado de servidores do rei. A incorporação e as promoções nesta milícia se davam, naturalmente, por intermédio do jogo de pistolões e favores característico desse tipo de ordenação social. E assim foi até 1831, quando as milícias foram extintas, sendo substituídas pela Guarda Nacional, que cumpriu papel semelhante àquelas até a República.

A análise que Faoro faz da estrutura social da Colônia merece referência. Ele escapa ao dualismo simplificador de proprietários de terra e escravos — tão criticado por Jorge Caldeira em sua História do Brasil com empreendedores — para mostrar (servindo-se uma vez mais de referências conceituais de Weber) que, além da classe que ele chamou de proprietária, havia a classe lucrativa composta de financistas, prestamistas a juros, comerciantes, exportadores etc. Refere-se também a um campesinato composto de pequenos proprietários, a profissionais liberais e, naturalmente, aos pobres livres, além dos escravos. A importância econômica, social e política dessas camadas variou no tempo. Ora os membros da classe lucrativa se transformam em proprietários de terras, embora em geral absenteístas, ora são eles que subordinam os proprietários, dadas as agruras da agricultura, que requer financiamento e mecanismos comerciais para a exportação.

O que não varia durante o período colonial é a relação que cada uma das camadas estabelecia com a Monarquia por intermédio dos segmentos burocráticos, nem o afã daquela de manter mecanismos de “nobilitação” e incorporação dos colonos mais importantes aos quadros hierárquicos do Império. Assim, para poder ser votado e participar dos conselhos das vilas e cidades, além de auferir certa renda, era preciso ser aceito no Livro de Nobreza existente nos senados das câmaras. Do mesmo modo era importante dispor do apoio da Coroa para ganhar as pendências constantes entre proprietários e lucrativos. Estes últimos, à medida que a economia da Colônia prosperava, se tornavam moradores dos sobrados, que faziam frente às casas-grandes. O apoio da Coroa aos comerciantes na Guerra dos Mascates é exemplo disso, assim como o fato de, já sob Pedro i, a Coroa ter se jogado em favor do partido dos comerciantes, dos “portugueses” como se dizia, em choque aberto com os nativistas que queriam a Independência:

O estamento burocrático, que de Portugal se estendera ao Brasil, ganha incremento com o enriquecimento da burguesia urbana. Não se integrou esta naquele, senão que o reforçou, ajudando-a a burocracia com as fontes de negócio (contratos, privilégios, arrendamentos, fornecimentos) que lhe propiciava. Enquanto os empresários agrícolas, afirmando-se como rendeiros, abandonavam a classe lucrativa para se integrarem na classe proprietária, que aspirava evoluir para o estamento feudal, como estratificação própria hostil à burocracia e à sua camada original, o comércio percorria caminho oposto. Fiel a sua classe, agrupava-se em torno do estamento burocrático, procurando nele ingressar seduzido pela fascinação que lhe despertava, com a entrega de seus filhos. Muitos dos membros da burguesia comercial eram “cristãos-novos”, cujos filhos transformavam Coimbra em “covil de heréticos”. [...] A Colônia conheceu forte conflito social, latente e aberto, entre os senhores territoriais, cuja concepção de vida se aproximava do espírito feudal, liberal e descentralizador, e a classe mercantil.

A tal ponto que “Diante dele desaparecem as pequenas rebeliões interiores das classes, entre dominados e senhores, como as rebeliões negras e as resistências dos indígenas à escravização”.6

Em suma, por mais que os latifundiários transformados em agricultores e senhores de escravos quisessem se liberar do capitalismo de Estado burocrático, que servia de base ao Império português, jamais tiveram força, até a Independência (menos ainda quando d. João vi se deslocou para o Rio), para impor a característica fundamental da sociedade colonial: esta sempre foi moldada pelo Estado imperial e burocrático. O quadro de tensões se aguçou com a volta de d. João vi, quando os senhores de terra passaram a se opor mais diretamente aos conchavos entre a burguesia mercantil e a burocracia imperial. Havendo regressado o rei a Portugal, as lutas prosseguiram entre “comerciantes” aliados ao Paço Imperial e os autonomistas que refletiam os impulsos mais liberalizantes, apoiados pelos senhores de terra, pela intelectualidade e pela chusma urbana. Esses grupos contaram no impulso antimonarquia autocrática com a adesão dos bacharéis regressados de Coimbra, contaminados por ideias liberais e pelos efeitos da Revolução do Porto de 1820, também de acento liberal. O sentimento autonomista brasileiro era recente e englobava desde o liberal Feijó — que até pouco tempo antes da Independência falava exclusivamente em nome de sua província sem sustentar uma ideia propriamente nacional — até um burocrata imperial de corte mais conservador, como José Bonifácio. A Constituição falhada, de 1823, expressa o sentimento destes grupos. A de 1824, embora outorgada, não se diferenciará tanto da anterior, salvo pelo gesto autoritário da outorga.

A despeito da Independência, os atores sociais continuaram os mesmos. A camada administrativa se fortalecera desde que d. João vi multiplicara a concessão de títulos nobiliárquicos, embora sem doar terras ou outras riquezas para dar-lhes suporte material. Ademais, o rei português abusara do Erário (quando saiu, deixou o filho Pedro à míngua), incorporando funcionários e fazendo favores aos magotes. Foi em grande parte neste corpo de funcionários que o Reinado recrutou seus melhores quadros. Embora ele fosse composto pelos filhos dos “proprietários” e dos “lucrativos”, sua cultura e seus interesses se redefiniram no crisol do Estado.

poder no império do brasil

Na análise do período da Independência, Faoro mostra mais claramente seus supostos teóricos. O êxito do empreendimento emancipacionista, que no dia a dia decorreu de um enredo entre clubes, jornais e personalidades ora mais próximas ora mais afastadas do Trono — como continuou a ser até a Abdicação —, deveu-se na verdade às cisões na remanescente nobreza burocrática (depois da volta de João vi) e na classe mercantil, e não à força dos senhores de terra. É certo que

A classe territorial tentou criar o Estado de baixo para cima, afastando a película importada, que a esmagava. Lutou ela pelo ideal dos antigos caudilhos territoriais, definindo as cores do liberalismo, sem alcançar o domínio pleno. Esta ideologia, que veio das capitanias, continuará a fluir como corrente subterrânea, pressionando para vir à tona, e logrando vitórias incompletas, com a Independência, a Abdicação e a República.7

Embora Faoro registre que a noção do conjunto das províncias como parte de um mesmo país tivesse sido mais expressão de um sentimento do segmento burocrático do que dos senhores de terra, não deixa de mostrar que estes, especialmente por meio de seus filhos bacharéis, infiltravam ideais liberais no jogo político e teriam mesmo tentado fazer a Independência “de baixo para cima”, o que no contexto quer dizer sem o comando dos burocratas e dos comerciantes. Convém registrar também a análise de Faoro sobre o modo como a burguesia mercantil e os financistas influenciaram o curso dos acontecimentos e pesaram o tempo todo, não só na economia como na política. Por certo, os verdadeiramente “de baixo” — escravos, libertos e brancos pobres — não entravam nesta cena.

O que desejo ressaltar é que estamos diante de uma análise mais rica sobre a estrutura sociopolítica do Brasil no século xix do que suas próprias afirmações mais sintéticas que levam a crer na contínua supremacia do Estado sobre a sociedade. Faoro ressalta que os donos do poder eram mais os burocratas do que os fazendeiros, mas mostra estar consciente da existência de uma trama socioeconômica complexa. Mesmo sem ter a miopia dos idólatras do Estado, concorda com análises de timbre mais conservador sobre o papel positivo que a burocracia imperial desempenhou. Depois de mostrar os esforços feitos para reorganizar a economia e a situação fiscal do país, situação cujo desagrado levara à Confederação do Equador (1824) com frei Caneca e à frente o próprio Antônio Carlos, irmão de Bonifácio, afirma: “Reorganizado o estamento burocrático, com a reforma dos meios fiscais, estaria preparada a Monarquia para vencer a propriedade rural, dominando-a e atando-a ao carro vitorioso”. Sem isso, haveria a desordem:

[...] 1817 foi a mostra do que seria o movimento da Independência se ela não fosse conduzida por uma parcela da nobreza burocrática, que, com d. Pedro, se afastara de Portugal. Faltar-lhe-ia a moderação e a medida, e se extremaria no combate áspero, depois do qual reinaria, provavelmente, a caudilhagem anárquica.8

Para não reinar a caudilhagem anárquica, os homens da Regência, pós-Abdicação, mesmo quando movidos por ventos democrático-liberais, agiram como estadistas autoritários, agora sim, para preservar a unidade territorial. Feijó, mais do que qualquer outro, é o exemplo dessa atitude. O sentimento liberal, descentralizador, antirregulamentador que a classe dos proprietários conseguira consagrar na Constituição de 1823, sem ser propriamente banido na de 1824, já começara a desenhar o Império brasileiro mantendo a continuidade da tutela burocrática: “O estamento burocrático aninhava-se no poder executivo, no Senado Vitalício e, principalmente, no Poder Moderador”.9 Junte-se a isso o papel do Conselho de Estado, onde tinham assento os notáveis que aconselhariam o Moderador.

Não preciso seguir os episódios da história, de todos conhecidos. Interessa-me apenas mostrar como Faoro caracterizava o entrelaçamento da Monarquia com a burocracia e com as classes sociais. Ressalto ainda uma vez: a tutela autocrático-burocrática atravessou os tempos, modificando-se. Mas não foi força exclusiva na moldagem das instituições:

O liberalismo que se frustrara no movimento de emancipação, fizera a Abdicação. Esteado na propriedade rural, era sua bandeira, fundamentalmente, revigorar o município, tornando-o centro das autoridades locais, descentralizadas. Seu ideal de inspiração norte-americana era o self government. O instrumento legal dessa reivindicação foi o Código do Processo Criminal, promulgado em 1832. Representa o estatuto a mais avançada conquista liberal do 7 de abril, por onde se abriram as portas aos potentados dos latifúndios.10

O novo Código tornava eletivo o juiz. Este, no passado, jugulava os municípios servindo aos interesses da Coroa que o nomeava. Eleitos, poderiam antes servir aos potentados locais do que à Coroa.

Não durou muito a experiência localista-liberal. Com a Interpretação do Ato Adicional de 1834, viria o “regresso”. A lei de 1841 modifica o Código do Processo e cassa o localismo. Assim, além da ação autoritária de Feijó e de seus companheiros, que se contrapuseram à descentralização autonomista, as forças estatais evitaram, no dizer de Faoro, desacertos maiores: “O liberalismo pretendera que a Nação se governasse sem tutelas, e revelava o caos, a anarquia dos sertões”.11

Com a maioridade e a revisão do Ato Institucional, o jovem imperador começa a exercer suas funções governativas. Nem mesmo o liberalismo do marquês do Paraná — Honório Hermeto Carneiro Leão — nem as sucessivas tentativas liberais de modificar o sistema eleitoral com as leis “dos círculos”, visando a obter na Câmara resultados mais próximos da vontade nacional, lograram derrubar a lei de ferro não inscrita nos códigos: o Poder Moderador se transformou em poder pessoal e, na verdade, por intermédio dele, o segmento burocrático e os órgãos vitalícios (Conselho de Estado e Senado) funcionavam como aletas do avião imperial. Este, de fato, navegava guiado pelos mapas do segmento burocrático.

No capítulo x de Os donos do poder, Raymundo Faoro faz uma síntese brilhante das forças que moldaram o Segundo Reinado. A ela só se compara a análise do mesmo tema feita por Sérgio Buarque de Holanda, no tomo relativo ao “Segundo Reinado” da História geral da civilização brasileira. Com uma diferença: enquanto Sérgio desmistifica a existência de uma democracia parlamentarista mostrando a força inegável da transformação do Poder Moderador em poder pessoal e exibe a articulação entre o Trono e sua base escravocrata-latifundiária, Faoro, sem negar tal interpretação, nuança-a para mostrar que, no final, o próprio conservadorismo, pela voz de seus representantes mais conspícuos, preferia a tutela burocrático-imperial à preeminência dos proprietários de terra. A ideologia centralizadora e autoritária penetrara tanto o tecido político do Império que até mesmo os “liberais realistas”, como o pai e o filho Nabuco de Araújo, aos quais os dois autores citados acima devem muito de suas análises e interpretações, achavam que a “ditadura de fato” não poderia ser abolida:

Eu nunca denunciei o nosso governo de ser pessoal, porque com os nossos costumes o governo entre nós há de ser sempre por muito tempo ainda pessoal, toda questão consistindo em saber se a pessoa central será o monarca que nomeia o ministro ou o ministro que faz a Câmara... O que eu sempre fiz foi acusar o governo pessoal de não ser um governo pessoal nacional, isto é, de não se servir do seu poder, criação da Providência que lhe deu o trono, como benefício do nosso povo sem representação, sem voz, sem aspirações mesmo.12

Como se dava o jogo político no Segundo Reinado é de todos sabido. A interpretação luminosa foi feita em famoso discurso do conselheiro Tomás Nabuco sobre o que ele chamou de sorites, ou polissilogismo:

Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com o sistema representativo: o Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí o sistema representativo do nosso país.

Faoro insiste em que o descolamento do sistema político da sociedade era tão grande que o jogo do Moderador não era “reflexo” das forças econômico-sociais, mas da apreciação que o imperador, com sua burocracia, seus áulicos e seus conselheiros, fazia do que deveria ser a “vontade nacional”. É verdade que houve, em certos momentos, imposição sobre o imperador, como quando Caxias “derrubou” o governo liberal de Zacarias em 1868. Mas, sobretudo, daí em diante, quando se forma o marasmo conservador e os liberais vão para a oposição, até que parte deles adere ao republicanismo, d. Pedro ii punha e dispunha das câmaras seguindo o mecanismo descrito no sorites. Para fazer as maiorias nas câmaras, ou mesmo a unanimidade, o poder dispunha da livre nomeação dos presidentes de província e da subordinação de tudo mais, justiça, polícia, Guarda Nacional e o que mais fosse, às decisões hierárquicas. Era o voto “de cabresto”. “O domínio de cima, despótico, absoluto, era possível porque a nação fora triturada, amarrada ao carro do Estado, de pés e mãos atadas, pela organização centralizadora”13 e porque “O cidadão brasileiro não dispunha de cultura política, pelos costumes e pelo trato dos negócios públicos, que o habilitassem a orientar-se acerca das questões que seus representantes deveriam opinar”.14 “O erro não estava apenas na manifestação da vontade, mas no próprio ente que iria expressar-se nas urnas.”15

A luta feroz contra o poder pessoal e contra a falsidade da representação política travada pelos liberais e outros críticos não acertava em cheio no alvo. Mais do que poder ou capricho pessoal do imperador, tratava-se de uma forma de dominação burocrático-patrimonialista. O substrato do poder, que tinha a aparência de ser pessoal, fora herdado do Império absolutista português e fora mantido em suas formas básicas pela Constituição de 1824. O Império não nasceu da nação, senão que se instituiu de fora com os mecanismos centralizadores advindos da Monarquia portuguesa:

O poder pessoal do Imperador, o imenso e irritante poder pessoal, não se constituiu pela expansão de um ânimo autocrático e despótico. Ao contrário, um espírito liberal exerceu a ditadura constitucional, abrandando-a nas atribuições arbitrárias. O monarca foi a consequência do Império, não o criador dele, à margem da lei.16

O regime parlamentarista foi definido pelos costumes. Foram vozes como as de Bernardo Pereira de Vasconcelos que em sua reviravolta regressista ajudaram a moldar o parlamentarismo. Os pressupostos sociais deste, entretanto, diferiam dos que marcaram o início do parlamentarismo inglês, fruto da transação entre a Coroa britânica e os poderes latifundiários, quase feudais como já dito. Entre nós o parlamentarismo foi um arranjo político que serviu aos interesses de parcelas do estamento burocrático, dirigidas pelos órgãos vitalícios, “com leve toque de opinião popular”, diz Faoro: “D. Pedro ii exercia o comando de uma burocracia — como chefe inflexível muitas vezes, atento, na maior parte das ocasiões, à voz de seu quadro administrativo. Seu papel era o oposto ao de um monarca constitucional”.17 E, logo adiante, acrescenta:

Apoiando o poder pessoal, biombo do estamento burocrático pelo qual pugnava a ordem econômica patrimonial, os conservadores ampliavam a mentalidade absolutista e centralizadora. [O visconde de] Itaboraí encontrou a bandeira desse combate com o lema: o rei reina, governa e administra.18

Poder do estamento burocrático, às vezes nobilitado, quase sempre servindo ao status quo econômico, que se somava aos impulsos do imperador. Estes podiam contrariar os interesses econômicos predominantes (como, por exemplo, quando o Trono aceitou o fim da escravidão), mas no geral exprimiam um sentimento tradicionalista, centralizador e conservador, coincidente com a opinião dos mais conspícuos interesses dominantes.

Mesmo insistindo em sua tese central, nas análises Faoro não se esqueceu do jogo de interesses entre as classes e o poder político. A pugna se dava entre os que acreditavam no princípio territorial, isto é, nos interesses dos proprietários de terra, contra o princípio da autoridade encarnado pelo estamento burocrático. Os liberais mais puros acreditavam que o princípio territorial incorporaria melhor a nação ao Estado, enquanto seus oponentes, mesmo os “liberais realistas”, temiam que, por trás do democratismo das leis “dos círculos” que ampliavam as chances de as oposições elegerem representantes, se encobrisse a realidade do país: em vez das manipulações políticas que se faziam por meio da máquina burocrático-repressiva — que, contudo, precisava do voto das classes intermediárias —, o poder do latifúndio com sua capangagem designaria diretamente os deputados, em nome do povo. Povo, como já dito, que estaria distante de ter “condição de independência e liberdade para o exercício do voto”.19

Com o declínio da influência liberal nas camadas decisórias do Império, pouco a pouco o marasmo conservador passou a expressar o “país real, que não era o dos independentes e arrogantes senhores territoriais, mas o dos pedidos de emprego”.20 Nem mais o cabresto era necessário. A promessa de emprego e a dependência pessoal para com o chefe político substituiu o cabresto pelo governismo, pelo oficialismo eleitoral. A pregação liberal baseada nas ideias de self government, no autonomismo, assentava sobre corpos estranhos ao solo centralizador que vinha do Portugal das Ordenanças, atravessara a Independência, a Constituição de 1824, o Ato Adicional e as tentativas para tornar mais legítima a representação. Ideias utópicas, “importadas”, fora de lugar, diría­mos hoje. Em suma, também abaixo do equador o Estado era quase tudo, a nação quase nada. “O Estado Imperial, com a aliança das classes lucrativas, era mais forte, economicamente, que a corrente contrária.”21

Ao esmiuçar as relações entre as classes e o Trono, Faoro deixa clara sua interpretação. A sociedade independente, opulenta e rústica que ganhara influência no Paço com o reinado de d. João vi, fizera o Sete de Abril e se expandira na Regência, foi sendo substituída pelo estamento burocrático, ao qual parte dos liberais aderiu, assim como a tutela do Estado sobre as classes e a nação foi sendo restaurada. As classes predominantes a partir daí já não giravam ao redor dos proprietários de terra, dos lavradores, mas sim do Trono. Elas eram compostas pelos comerciantes e industriais, todos dependendo de favores do Tesouro. Seus rebentos, assim como parte das classes intermediárias — diríamos mais propriamente hoje, das classes médias —, competiam por empregos e regalias. Vivia-se, no dizer de Joaquim Nabuco, em plena “empregomania”.

Ao contrário da voga predominante entre os intérpretes do Segundo Reinado de que o poder assentava no latifúndio e na escravidão, Faoro vê a subordinação do que chama de “classe proprietária” aos donos do crédito, por intermédio de hipotecas constantes que os lavradores faziam aos comerciantes e especuladores: “O proprietário rural, asfixiado por esse sistema, perdeu o antigo porte de rendeiro, independente e ocioso, para tornar-se apenas um dependente do especulador citadino”.22

Para dar substância a sua tese, Faoro analisa as várias leis sobre posse e propriedade da terra, desde a que extinguiu o morgadio, em 1835, até a lei de terras de 1850. Todas elas extinguindo a possibilidade da feudalização e diminuindo a independência do latifundiário. O governo, taxando sempre, tentando aumentar seus ingressos e controlando crescentemente o poder político da classe proprietária. Os comerciantes, dada a inexistência de crédito público e a fraqueza do sistema financeiro, eram os prestamistas dos agricultores, a quem estes viviam hipotecados. Assim, o “poder econômico e político do senhor territorial é controlado pela pressão de dois focos: o governo e a burguesia comercial. Em outras palavras: pelo estamento burocrático e os especuladores, cuja ação conjugada vitalizava o patrimonialismo, base do Estado”.23 Os pequenos agricultores e os raros trabalhadores agrícolas — partes das classes intermediárias — desaparecem. Também na zona da cana, o lavrador sem engenho padecia do mesmo infortúnio: transformara-se em mero partícipe da clientela do senhor de engenho. Todos impotentes diante da especulação e da burocracia imperial.

Convém ponderar melhor a força relativa dos componentes do jogo de poder. À medida que o tempo passa, a economia se diversifica e se adensa; formam-se também institutos bancários, como o de Mauá. Todos, contudo, pensa Faoro, se subordinam ao estamento burocrático. De tal maneira que praticamente “tudo dependia do governo, com autorizações, favores, tarifas protecionistas e concessões; fora da faixa do Tesouro não conseguia medrar a iniciativa particular”.24 A intervenção do Estado não se limitava à legislação e às autorizações, mas penetrava na esfera particular. O governo escolhia os empresários a quem dar concessões garantidas e taxas de juros subvencionadas, aprovadas pela Câmara. De igual modo como fez com a análise das leis de terras para mostrar como as peias do Estado enroscavam os proprietários rurais, nosso autor mostra minuciosamente como a burocracia punha e dispunha sobre as regras para a emissão de moeda e sobre os limites de crédito, assim como exemplifica o modo como funcionavam as concessões de serviços públicos. As atividades econômicas, que se expandiram com a extinção do tráfico de escravos, em vez de dar lugar à autonomia das iniciativas privadas ensejaram maior controle burocrático. Não se pense, entretanto, que a fobia reguladora do Estado patrimonial fosse abominada pelos empresários. Pelo contrário, o intervencionismo, com seu manto de tarifas protetoras e toda sorte de privilégios, era desejado.

A partir de 1865 e especialmente depois do final da Guerra do Paraguai os lucros agrícolas aumentaram muito e este processo continuou até a década de 1890. Com isso houve novo élan para as iniciativas liberais. Estes, já na lei de hipotecas de 1864, haviam clamado pelo crédito à lavoura. Nada escaparia, contudo, ao todo-poderoso Estado: mesmo os agricultores, a classe proprietária adstrita ao princípio territorial, que daria fundamento a uma atitude mais autonomista, para sobreviver recorria ao auxílio do Estado... Os próprios bacharéis, apanágio da condição para participar da vida política e administrativa, ainda que fossem filhos de lavradores, educavam-se nas mesmas escolas que formavam o núcleo do estamento burocrático, as faculdades de direito, de medicina e as escolas militares. Criavam-se todos na mesma cultura patrimonialista, tentados pelo que o visconde do Uruguai chamou de chaga do funcionalismo, que devorava os orçamentos provinciais e os do próprio Império. O espírito patrimonial fazia a glória dos bacharéis e sustentava o ânimo da máquina burocrática. Dessa forma, no dizer de Tavares Bastos — este, sim, liberal à outrance —, criava-se um “país oficial diferente do país real em sentimentos, em opiniões, em interesses”.25

Carro-chefe do apoio ao Paço de São Cristóvão, o Partido Conservador era o esteio do Império, sem esquecer que os próprios membros do Partido Liberal frequentemente amoldavam à augusta vontade imperial, como a qualificou Faoro, seus impulsos nacionalmente mais abrangentes e sua inquietude transformadora. Daí que, na fórmula consagrada de Holanda Cavalcanti, outro liberal, não haveria “nada mais parecido com um saquarema [conservador] do que um luzia [liberal] no poder”...

Não se pense, contudo, que nada mudou do Império à República. Se o patrimonialismo se manteve, se a ideologia básica era a mesma, houve também a emergência de novos atores sociais e o sentimento liberal ganhou outros contornos. Na última fase do Império, a pugna política girava ao redor de mais autonomia para as unidades da federação e, ipso facto, de fortalecimento do princípio territorial, quer dizer, dos agricultores, no caso os cafeicultores. Na passagem para a República, com o apoio de setores liberais, a radicalização da crítica ao centralismo veio com novas cores. Ao descolamento de parte das classes proprietárias do bloco de sustentação do Império por causa da Abolição (fruto da ação de intelectuais e militares, com as bênçãos imperiais, muito mais do que reivindicação de produtores), se somaram as insatisfações de segmentos do próprio estamento burocrático: a Igreja, com a questão do patronato, e os militares, que em 1868, com a espada de Caxias, derrubaram um ministério. No final da Guerra do Paraguai (1870) eles começaram a se mover corporativamente. Os militares participavam do estamento burocrático e junto com os juristas, médicos e jornalistas formavam parte da “opinião nacional” e em conjunto a moldavam. Foram estes segmentos, mais que quaisquer outros, que derrubaram o Império, seduzidos pelo radicalismo utópico republicano.

Faoro acrescenta aos agentes sociais reformistas um novo ator, “a jovem indústria”. Para ele, a “ausência de intervenção estatal — salvo para protegê-la com tarifas e barreiras alfandegárias — é procurada por essa classe, que aspira a organizar as empresas como entidades orgânicas, que evolvem por si, sem amparos exteriores que, caprichosamente, podem arruiná-las”.26 Com estes novos personagens — parte da “classe proprietária” que descola do Império, a jovem indústria, os militares, a intelectualidade e os antigos liberais transformados em republicanos — o que fora a ideologia da descentralização administrativa, sob o Império, passa a ser a defesa do federalismo, com maior autonomia para os estados. Outra vez, não se tratava tanto do self government e das garantias políticas individuais, embora essas fossem também lembradas, mas de uma reorganização política a qual, sob o manto do combate à centralização administrativa, daria maior autonomia às oligarquias locais.

Embora a interpretação de Faoro lance luz sobre a importância da herança burocrática, é preciso balancear o juízo histórico, digo eu. Sérgio Buarque não deixa de ter razão quando mostra que os fundamentos estruturais sobre os quais assentava o Império eram a escravidão e o latifúndio. A imagem de um processo ziguezagueante, onde despontam ora os interesses e o poder do estamento ora os interesses mais puramente econômicos, quando as classes ganham força — sem falar no peso de personalidades específicas —, parece-me mais ajustada para descrever os diversos momentos históricos do que a imagem de circularidade que decorre da insistência do predomínio do patrimonialismo imperial. A interpretação quase unidimensional de Faoro parece ser mais adequada para descrever as estruturas de mando no período do Brasil Colônia do que para englobar todo o período imperial. Neste o centralismo burocrático perdeu imantação em vários momentos e a força dos interesses econômicos primou sobre a dos estamentos com maior frequência. O mesmo ocorreu no período republicano, como já comentarei.

O próprio Faoro reconhece, como vimos, que depois da Independência houve momentos e movimentos de liberalismo democratizador favorecidos pelo fortalecimento da economia agroexportadora e pelo início da expansão urbana. Por isso torna-se necessária maior nuance na pintura do mural da dominação burocrático-imperial. Por esmiuçar este jogo complexo, Os donos do poder continua a ser um livro marcante. Como em toda síntese, contudo, ao sublinhar tão fortemente as características do Império burocrático, que sem dúvida herdou traços fundamentais de sua origem lusitana, o texto pode dar a impressão de que quase nada mudou, quando na verdade houve mutação contínua, a despeito da manutenção de certas características originais do patrimonialismo. Esta é a esfinge que desafia permanentemente a argúcia dos analistas: mostrar como se entrelaçam mercado e poder burocrático e evidenciar o jogo de oposições e alianças entre as classes — no caso a burguesia agroexportadora, os setores urbano-mercantis da economia e o financeiro — e destas com os estamentos, seja o militar, seja o civil. Neste contexto, o Moderador, sendo mais do que poder pessoal, não é apenas reflexo da ordem patrimonial, mas é também expressão e contraponto de forças econômicas e sociais.

poder republicano e permanência do patrimonialismo

Não nos enganemos, entretanto; quem de fato “fez” a República no dia a dia dos acontecimentos e na capacidade de impor uma nova ordem, muito mais do que um bloco de classes ligadas por uma ideologia, foram os militares: “A República foi fruto de uma conspiração maior e mais ampla, preparada de cima, dentro do estamento burocrático, com a separação da monarquia do exército”.27 Enquanto os políticos republicanos se perdiam em agitações demagógicas, os militares sediciosos agiam.

Teria ocorrido outra “journée des dupes”, com a Proclamação da República, o que acabaria dando razão ao realismo de Nabuco: por muito tempo, em vez de seguir as linhas de um poder eleito e verdadeiramente representativo do povo, o país teria de viver sob uma “ditadura de fato”, com uma vontade diretora, do monarca ou do presidente.

Na fase inicial da implantação do novo regime as forças sociais que predominavam ainda eram politicamente tímidas, hesitavam. Foi quando o Exército predominou, nos governos de Deo­doro e de Floriano, e até mesmo durante a presidência de Prudente de Morais. Com Campos Sales se define a nova hegemonia: a dos governadores, na prática a hegemonia de São Paulo e Minas Gerais, que, se não representavam os interesses econômicos dominantes, eram sensíveis a eles. Ao Exército, daí por diante, coube a missão de manter a integridade da nação, a despeito da fragmentação do poder pelo princípio federalista (diria Oliveira Vianna). Em cada estado os executivos amesquinhavam os municípios, dominavam a polícia e a política, exerciam a chefia suprema regional, subordinando os chefes locais. As eleições se faziam “a bico de pena”, isto é, com fraudes. Era o auge do coronelato; o compadrio político substituíra e tornara menos necessária a presença pretoriana da Guarda Nacional do Império. O presidente da República subsumia as funções do Poder Moderador, era o garante do poder estadual e de seus interesses na Assembleia Nacional. Nesta, assim como nas assembleias locais, as comissões de verificação de poderes se encarregavam, sob a batuta direta do líder do governo, de fazer a “degola”: os eventuais opositores eleitos perderiam os mandatos, com muito barulho por parte da oposição e nenhuma eficácia prática. Com o poder constitucional de intervir nos estados o presidente poderia afastar até mesmo governadores rebeldes. Por fim, cabia ao presidente apontar o sucessor. Revivia-se o sorites do conselheiro Nabuco...

Na condução da economia, apesar dos arreganhos iniciais quando da preparação da República e da Constituição de 1891, faltou ímpeto ao liberalismo, pois tampouco a empresa industrial o tinha. O liberalismo econômico se casou com um liberalismo comercial de voo curto, escreve Faoro, e na verdade foi mais um eco retórico da pregação baseada nos exemplos anglo-saxônicos do que expressão de uma ideologia econômica. Os exemplos ingleses e americanos entusiasmavam “nossos letrados irrealistas, alimentados intelectualmente mais pelas ideias estrangeiras que pela lição da realidade”.28 Mais peso teve o liberalismo político, que motivou nossos ideólogos, à frente de todos Rui Barbosa. Este, embora chamuscado com o “encilhamento” — a inflação desencadeada durante sua gestão nas finanças —, nem por isso deixou de ser oráculo das forças civis, democráticas e liberalizantes.

Esta situação se altera com as crises políticas dos anos 1920, marcadas pelas revoltas dos jovens tenentes em 1922 e 1924 contra a dominação oligárquica dos “cartolas”. Com a vitoriosa Revolução de 1930, Getúlio Vargas à frente (ele próprio expressão do domínio oligárquico anterior, como ministro da Fazenda de Washington Luís e, depois, governador do Rio Grande do Sul), voltaram os militares a exercer influência. O “exército”, diz Faoro, “passou a ocupar as funções do Poder Moderador, antes incorporadas pelo Presidente da Nação, restaurando a centralização, e renovando o Estado como tutor e protetor dos negócios públicos e privados”.29 Mantendo-se no banco de reserva, pensa Faoro, o Exército ensejou o revigoramento do Estado patrimonial, do qual ele próprio era parte como um dos estamentos burocráticos.

Na segunda edição revista do livro, de 1975, Faoro mostra, com riqueza de detalhes, como, pouco a pouco, os pruridos liberais, que ecoavam fortes na voz de Rui Barbosa e chegaram a encontrar eco em alguns tenentes e mesmo em generais — como no próprio Hermes da Fonseca depois da presidência —, vão sendo subsumidos pelas crenças na ordem como valor supremo e pelo nacionalismo. A visão e as práticas dos contestadores, tanto as dos ideólogos da ordem jurídica e liberal como as dos militares mais próximos dos anseios das classes médias, visavam a corrigir as distorções e abusos que os novos donos do poder haviam implantado. Os alvos eram

as oligarquias estaduais, a prepotência do presidente, as medidas opressivas contra a liberdade de associação e de imprensa [que] reduziram o regime republicano ao biombo do absolutismo, afirmado o sistema apenas na transitoriedade das funções públicas. Essa soma de oligarquias, dos municípios ao centro, não forma uma tirania, mas a contrafação do governo da maioria, em favor de poucos.30

Rui, que do alto de sua visão elitista vislumbrara o povo como parte do jogo, tem de reconhecer que este, dada a pouca educação e o alheamento das coisas de Estado, era antes massa de manobra do que fundamento da ordem política republicana. Nos albores da década de 1920 foi antes no Exército que fez suas apostas para uma prática republicana regeneradora. Faoro não acredita que faltasse motivação ideológica ao inconformismo dos anos 1920. Faltaria, diz ele, uma visão mais programática, embora esta existisse esparsamente: a reforma das instituições, o fim do voto de cabresto, substituído pelo voto secreto, a reorganização administrativa para descentralizar estados e municípios e dar-lhes maior autonomia.31 A contrarreforma de Artur Bernardes, de 1926, constituíra um recuo dos princípios liberais.

Coube outra vez à sedição militar de 1930, aliada à insatisfação de segmentos oligárquicos, levar adiante as bandeiras reformistas e mesmo liberais. Só que o movimento revolucionário da Aliança Liberal, embora ultrapassando os limites de uma quartelada, veio marcado pela origem patrimonialista e estamental: uma dissidência entre oligarquias estaduais. E pelo agente principal que a executou, o Exército, saudosista dos ideais republicanos dos exaltados de 1889, dos quais os “tenentes” e o “Clube 30 de Outubro” foram a expressão maior.

No polo das propostas políticas provenientes do pensamento conservador surgia um nacionalismo autoritário. Oliveira Vianna e Azevedo Amaral estavam a sublinhar a necessidade de um Estado mais centralizador e de uma ideologia de valorização da nação, se não oposta à democracia e desdenhosa do povo, motivadora do aperfeiçoamento deste e de renovação daquela, corrompida pelas práticas oligárquicas. No meio militar o apelo nacionalista sempre foi forte, ainda que convivendo com a crítica às oligarquias corruptas, de inspiração democrático-liberal. Coube aos governos de Getúlio Vargas anteriores à democratização de 1945 irem se moldando às novas realidades do mundo e aos novos desafios de um país que se desenvolvia e não cabia mais nas vestes da República oligárquica.

No exterior, a aragem do fascismo de Mussolini, que já entusiasmara Vargas na juventude, soprava um ar de vitória. No país, a industrialização ganhava vulto, principalmente com as novas realidades do mercado internacional durante a Segunda Grande Guerra, que impunham políticas de substituição de importações. Expandia-se a classe trabalhadora; as classes médias tradicionais, por sua vez, se beneficiavam do “progresso” urbano, embora se tratasse de uma urbanização movida pelas migrações internas e pela expansão dos serviços e não, assinala Faoro, como a anterior, fruto das imigrações e da industrialização.

Com amargor nosso autor reconhece que as camadas negativamente privilegiadas não haviam logrado firmar-se a ponto de forçar uma nova ordem política que aniquilasse a predominante. Enquanto não logravam refazer as bases da dominação, apoiavam os “ditadores sociais”, representantes do Estado patrimonial. Estes costumam distribuir penas e favores, sem obediência a normas ou a direitos subjetivos garantidos, sendo, portanto, debilitadores da racionalidade. Por outra parte, o setor industrial, que poderia dar suporte eventual a uma ordem de cunho liberal-democrático, como vislumbrara Faoro na edição de 1958 de seu livro, acabou por ser

um prolongamento do oficialismo, pregando a iniciativa privada protegida, modalidade brasileira do liberalismo econômico. Mostra-se, por isso, inapto a organizar uma sociedade num quadro pluralista, com focos de poder sem que derivem do Estado. O setor se casa e prolifera no patrimonialismo, no qual um grupo estamental se incumbirá de distribuir estímulos e favores, com amor místico, um dia, ao planejamento global da economia.32

Anotando que as classes média urbana e a rural mal podiam se sustentar devido às ondas inflacionárias, Faoro via um rastro de esperança para a mudança da ordem existente no proletariado nascente, na pequena burguesia, nos proprietários privilegiados pela educação, nos intelectuais sem propriedade e nos técnicos assalariados que, apesar de sua heterogeneidade, talvez (quanto talvez!) pudessem lograr uma direção unificada que se contrapusesse à ordem patrimonialista. Indaga, contudo: “Mas, vencedora na sociedade, destruirá o estamento burocrático ou ainda mais o reforçará? Eis a questão...”.33

Sem entrar nas considerações teóricas finais nas quais nosso autor, inspirado em Max Weber, discute as especificidades do estamento burocrático e a capacidade do Estado patrimonial de pairar acima das classes como o árbitro de todos os interesses — capítulo em que dialoga com o marxismo —, é de ressaltar a caracterização que faz do príncipe no patrimonialismo. O príncipe, diz Faoro, fala diretamente ao povo, destacando como ordens separadas Estado e nação, e assume, como já o dissera Weber sobre a chefia do Estado patrimonial, que se trata do pai do povo: “Compraz-se o príncipe, armado nessa conjuntura, em desempenhar o papel de fazer do Estado a fonte de todas as esperanças, promessas e favores”.34

Também ao analisar o patrimonialismo triunfante no período republicano, creio que faltaria a Raymundo Faoro esmiuçar melhor o sentido da trama entre os estamentos e as classes, o Estado e as forças de mercado. Ver a cada passo da história a repetição do mesmo modelo estamental-patrimonialista empobrece a interpretação. Como procurei mostrar em ensaio escrito há muitos anos,35 o relacionamento entre o Exército e a ascendente burguesia agrária paulista, por exemplo, foi muito forte no período do florianismo. Este deu àquela o ardor cívico e popular para a legitimação da nova forma de governo. O fracasso das políticas liberais, contraditoriamente favoráveis à incipiente industrialização (com a corrida inflacionária do encilhamento e, mais tarde, as tarifas protecionistas de Serzedelo Corrêa), terminou por fortalecer os interesses agroexportadores e a visão “ortodoxa” das finanças. A partir daí, Campos Sales, eleito presidente, pôde organizar a nova face da dominação oligárquica, com a predominância dos interesses agroexportadores. Nesta construção política o Exército foi antes o instrumento que permitiu a aceitação das novas regras (a despeito de sua visão originária mais centralizadora e autoritária) do que o estamento que comandou o processo. Este passou às mãos das oligarquias estaduais sob a batuta do chefe entre os chefes “naturais”, o presidente da República. Restabeleceu-se o jogo entre o “localismo” — representado pelos “coronéis”, eles próprios proprietários rurais ou então servidores destes — e as oligarquias estaduais, sobretudo as de São Paulo e Minas. O Poder Federal respeitava, em geral, os interesses daquelas, embora reservasse para si as “grandes decisões”, a principal das quais seria a escolha do sucessor. A centralização republicana, até a Revolução de 1930, era frágil. Vivia-se mais de um equilíbrio entre parceiros poderosos e um primus inter pares, cuja aceitação estribava exatamente em ser o garante da ordem patrimonialista, a esta altura já bem diferente do que fora nos tempos dos Bragança: se não “feudal”, que nunca foi, pelo menos mais fragmentada e permeada por diversos interesses privados, tanto econômicos quanto políticos.

Cuidei de analisar a contribuição de Faoro tomando por base a primeira edição de seu livro, porque nela os fundamentos interpretativos do patrimonialismo aparecem despidos de pormenores históricos. Na segunda edição, revista e ampliada, de 1975, o autor estende suas observações e abrange o conjunto do período getulista. Esta edição se publica em pleno regime autoritário-militar, quando Faoro exercia grande influência crítica, propugnando pela democracia. Apesar das modificações introduzidas, como Faoro mesmo escreve, o fundamental para ele é que o patrimonialismo resistiu seis séculos, desde d. João i de Portugal até Getúlio Vargas. Foi uma estrutura político-social que “resistiu a todas as transformações fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessia do oceano largo”. É certo, acrescento eu, mas variando em sua forma e, sobretudo, no modo como o estamento se relacionou com os outros agentes econômicos e sociais.

Apesar deste reparo, será que o fecho da primeira edição do livro, quando Faoro lança a hipótese de persistência do patrimonialismo mesmo depois do fortalecimento da sociedade civil e das práticas representativas, não continuaria a ter cabida na Nova República? Isso a despeito da estabilização econômica, da modernização estatal e, principalmente, do intenso processo de inclusão social dos últimos vinte anos? É cedo para responder; convém, contudo, manter a hipótese, reafirmando-se que as persistências patrimonialistas se enroscam em outras realidades históricas e às vezes antes mascaram a existência destas do que as explicam.

Estudos mais recentes, como os de Philippe Schmitter, mostram que existem vários tipos de liame corporativo que, se não se opõem ao patrimonialismo, são distintos do corporativismo tradicional ligado apenas ao Estado, tal como ocorria com o patrimonialismo descrito por seu grande teórico e propagador, Mihail Manoïlescu. Talvez os “ditadores sociais” possam ser substituídos por presidentes eleitos e os liames corporativos não se limitem aos estamentos estatais, senão que entrosem setores da sociedade civil, como sindicatos e blocos de empresas, no condomínio patrimonial de poder (funcionando como “anéis burocráticos”). Conforme se venha a dar o entrosamento entre sociedade civil e Estado, a crítica de Faoro à falta de garantias do Estado patrimonial aos direitos subjetivos dos trabalhadores e dos pobres em geral perde força como argumento para mostrar os males causados pelo patrimonialismo à racionalidade das decisões. Talvez a capacidade do Estado patrimonial de assegurar tais direitos explique a adesão continuada de camadas diversas da sociedade, incluindo as desprivilegiadas, às formas contemporâneas de patrimonialismo, que mais do que “formas de dominação” são traços persistentes de antigas formas patrimonialistas combinadas às novas, podendo ser estas até mesmo de fundamento capitalista-burguês, ou, como se diz agora, empresarial.

Faoro não foi o primeiro autor a usar as ferramentas weberianas para interpretar o Brasil. Usou-as, contudo, com maior alcance e rigor do que seus antecessores, maior mesmo do que os de Sérgio Buarque de Holanda em seu também admirável Raí­zes do Brasil.** Mais ainda, se era comum partir da análise das famílias, do patriarcado, para mostrar a confusão entre público e privado na cultura e nas práticas políticas brasileiras, tal como fizeram Gilberto Freyre, Oliveira Vianna e Sérgio Buarque, devemos pioneiramente a Faoro a caracterização mais rigorosa do patrimonialismo, como algo distinto do patriarcalismo. E não devemos esquecer que suas análises do processo histórico não são reducionistas, embora a interpretação global seja monotônica. O livro não lida apenas com conceitos: faz análises pormenorizadas de cada conjuntura histórica, dando vida aos personagens e atores sociais, principalmente no texto da edição revista e ampliada de 1975. Se reparos há a fazer, e os há, um é o de que por vezes o autor se esquece da riqueza com que analisou os processos históricos para subsumir quase tudo na síntese à ação dos estamentos e à verticalidade da dominação patrimonial.

Em outro plano os sociólogos da “escola paulista” — Florestan Fernandes à frente — tiveram que enfrentar dificuldades semelhantes ao analisar as relações entre senhores e escravos (castas) sem esquecer-se de suas relações com os mercados, nacional e internacional, e, portanto, da presença das classes sociais. É este o maior desafio teórico dos que se aventuram a estudar as consequências da expansão capitalista pelo mundo afora, quando este sistema-motor se enrosca com as forças que a história vai criando independentemente dele, senão que algumas vezes movidas por ele, e tenta subordiná-las. Raymundo Faoro conseguiu nas análises não se enrolar nos sargaços por onde caminha o capitalismo produzindo progressos, injustiças, violências e também individua­lização, regras mais consentidas e, eventualmente, bem-estar.

Se no final da obra Raymundo Faoro dá um peso maior do que eu daria à força do estamento burocrático, civil e militar, e parece crer mais em sua persistência do que na dinâmica transformadora das classes, talvez hoje, reconhecendo que o patrimonialismo ainda pesa em nossa cultura e em nossas práticas políticas, pudesse dar ênfase a que a sociedade civil e as forças de mercado têm tido influência crescente. Eu não digo isso imaginando que, como consequência, se fortalecerá a ideologia liberal. Contemporaneamente o “estamento”, no caso mais civil do que militar, está cada vez mais presente. A amálgama entre partidos governantes e máquina pública dispõe de instrumentos de controle para cooptar tanto o setor empresarial (via crédito e concessões de vantagens várias) como os trabalhadores e as massas despossuídas (via benesses sindicais e transferências diretas de renda).

Não obstante, a forma global que o capitalismo assumiu e o peso das grandes empresas, ao lado da preservação de valores de individualismo e liberdade na sociedade, que a mídia independente amplifica, fazem o contraponto às tendências patrimonialistas. Ao mesmo tempo, graças às novas tecnologias de comunicação e à formação de redes sociais, quem sabe (de novo o talvez...) as lutas em prol dos consumidores, a consciência crescente de que há que se estar “conectado” e, portanto, menos centrado apenas no individualismo, possam ser sementes de novas formas de sociabilidade e de atuação. Talvez surjam tendências que não joguem na lata de lixo da História o que de positivo foi gerado pelo liberalismo político — a representação, o amor à lei e às liberdades —, mas criem um novo humanismo. Humanismo democrático que abomine as ditaduras e os patrimonialismos fantasiados de progressismo, e que tampouco se limite ao saudosismo do self government nem acredite que a regulação do Estado só se possa dar no âmbito do patrimonialismo, com imposições de cima a baixo.

 

 

 

 


* Texto inédito, escrito em março de 2013.

** Agradeço a Tarcísio Costa por ter chamado minha atenção para este ponto, assim como agradeço a ele e a Boris Fausto as críticas que fizeram à primeira versão deste artigo. Na revisão, se não pude atender completamente a suas observações, espero haver tornado o texto mais equilibrado.