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Hobbes
* : o medo e a esperança

Renato Janine Ribeiro

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O mais difícil de se entender no pensamento de Thomas Hobbes — melhor dizendo, a chave para entender o seu pensamento — é o que ele diz do estado de natureza. Sabemos que Hobbes é um contratualista, quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o XVIII (basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está num contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização — que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política. No século XIX e mesmo no XX, quando se firmaram as concepções modernas da história e da ciência social, os contratualistas foram muito contestados. Ao iniciar uma interpretação sociológica do direito, na metade do século XIX, Sir Henry Maine — por exemplo — criticou-os asperamente: seria impossível (dizia) selvagens que nunca tiveram contato social dominarem a tal ponto a linguagem, conhecerem uma noção jurídica tão abstrata quanto a de contrato, para que pudessem se reunir nas clareiras das florestas e fazerem um pacto social. Na verdade (continuava), o contrato só é possível quando há noções que nascem de uma longa experiência da vida em sociedade.

A guerra se generaliza

Começamos por essa crítica porque espontaneamente, quando um homem do século XX lê os contratualistas, ele sente a mesma estranheza que Maine. E por isso é preciso ver que erro Maine cometeu. Raro, ou nenhum, contratualista pensou que selvagens isolados se juntam numa clareira para fazer um simulacro de constituinte. Voltaremos a isso depois (ao ver o que é ciência política para Hobbes). Por ora, só isso: o homem natural de Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade. Melhor dizendo, a natureza do homem não muda conforme o tempo, ou a história, ou a vida social. Para Hobbes, como para a maior parte dos autores de antes do século XVIII, não existe a história entendida como transformando os homens. Estes não mudam. É por isso que Hobbes, e outros, citam os gregos e romanos quando querem conhecer ou exemplificar algo sobre o homem, mesmo de seu tempo.

Como o homem é, naturalmente?

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.

Quanto às faculdades do espírito (pondo de lado as artes que dependem das palavras, e especialmente aquela capacidade para proceder de acordo com regras gerais e infalíveis a que se chama ciência; a qual muito poucos têm, e apenas numas poucas coisas, pois não é uma faculdade nativa, nascida conosco, e não pode ser conseguida — como a prudência — ao mesmo tempo que se está procurando alguma outra coisa), encontro entre os homens uma igualdade ainda maior do que a igualdade de força. Porque a prudência nada mais é do que experiência, que um tempo igual igualmente oferece a todos os homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam. O que talvez possa tornar inaceitável essa igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase todos os homens supõem possuir em maior grau do que o vulgo; quer dizer, em maior grau do que todos menos eles próprios, e alguns outros que, ou devido à fama ou devido a concordarem com eles, merecem sua aprovação. Pois a natureza dos homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência, maior eloqüência ou maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios; porque veem sua própria sabedoria bem de perto, e a dos outros homens à distância. Mas isto prova que os homens são iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais. Pois geralmente não há sinal mais claro de uma distribuição equitativa de alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com a parte que lhes coube.

(Leviatã, cap. XIII, p. 74.)

Nesse texto célebre — e o que causou maior irritação contra Hobbes — ele não afirma que os homens são absolutamente iguais, mas que são "tão iguais que...": iguais o bastante para que nenhum possa triunfar de maneira total sobre outro. Todo homem é opaco aos olhos de seu semelhante — eu não sei o que o outro deseja, e por isso tenho que fazer uma suposição de qual será a sua atitude mais prudente, mais razoável. Como ele também não sabe o que quero, também é forçado a supor o que farei. Dessas suposições recíprocas, decorre que geralmente o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um ataque possível: assim a guerra se generaliza entre os homens. Por isso, se não há um Estado controlando e reprimindo, fazer a guerra contra os outros é a atitude mais racional que eu posso adotar (é preciso enfatizar esse ponto, para ninguém pensar que o "homem lobo do homem", em guerra contra todos, é um anormal; suas ações e cálculos são os únicos racionais, no estado de natureza).

[Da] igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. E disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros.

E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo. E isto não é mais do que sua própria conservação exige, conforme é geralmente admitido. Também por causa de alguns que, comprazendo-se em contemplar seu próprio poder nos atos de conquista, levam estes atos mais longe do que sua segurança exige, se outros que, do contrário, se contentariam em manter-se tranquilamente dentro de modestos limites, não aumentarem seu poder por meio de invasões, eles serão incapazes de subsistir durante muito tempo, se se limitarem apenas a uma atitude de defesa. Consequentemente esse aumento do domínio sobre os homens, sendo necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos admitido.

Por outro lado, os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que a tal se atreva (o que, entre os que não têm um poder comum capaz de os submeter a todos, vai suficientemente longe para levá-los a destruir-se uns aos outros), por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor, causando-lhes dano, e dos outros também, através do exemplo.

De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.

A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.

Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. Portanto a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra, do mesmo modo que quanto à natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz.

(Ibidem, cap. XIII, p. 74-6.)

Hobbes tem perfeita consciência de que essa definição há de chocar seus leitores, que se prendem à definição aristotélica do homem como zoon politikon, animal social. Para Aristóteles, o homem naturalmente vive em sociedade, e só desenvolve todas as suas potencialidades dentro do Estado. Esta é a convicção da maioria das pessoas, que preferem fechar os olhos à tensão que há na convivência com os demais homens, e conceber a relação social como harmônica. Por isso Hobbes acrescenta um apelo à experiência pessoal:

Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo quando está em casa tranca seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita. Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade com seus atos como eu o faço com minhas palavras? Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza humana. Os desejos e outras paixões do homem não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o são as ações que derivam dessas paixões, até ao momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba; o que será impossível até ao momento em que sejam feitas as leis; e nenhuma lei pode ser feita antes de se ter determinado qual a pessoa que deverá fazê-la.

(Ibidem, cap. XIII, p. 76.)

O que Hobbes pede é um exame de consciência: "conhece-te a ti mesmo". Estamos carregados de preconceitos, acha Hobbes, que vêm basicamente de Aristóteles e da filosofia escolástica medieval. Mas o mito de que o homem é sociável por natureza nos impede de identificar onde está o conflito, e de contê-lo. A política só será uma ciência se soubermos como o homem é de fato, e não na ilusão; e só com a ciência política será possível construirmos Estados que se sustentem, em vez de tornarem permanente a guerra civil.

[...] há um ditado que ultimamente tem sido muito usado: que a sabedoria não se adquire pela leitura dos livros, mas do homem. Em consequência do que aquelas pessoas, que regra geral são incapazes de apresentar outras provas de sua sabedoria, comprazem-se em mostrar o que pensam ter lido nos homens, através de impiedosas censuras que fazem umas às outras, por trás das costas. Mas há um outro ditado que ultimamente não tem sido compreendido, graças ao qual os homens poderiam realmente aprender a ler-se uns aos outros, se se dessem ao trabalho de fazê-lo: isto é, Nosce te ipsum,"Lê-te a ti mesmo". O que não pretendia ter sentido, atualmente habitual, de pôr cobro à bárbara conduta dos detentores do poder para com seus inferiores, ou de levar homens de baixa estirpe a um comportamento insolente para com seus superiores. Pretendia ensinar-nos que, a partir da semelhança entre os pensamentos e paixões dos diferentes homens, quem quer que olhe para dentro de si mesmo, e examine o que faz quando pensa, opina, raciocina, espera, receia etc., e por que motivos o faz, poderá por esse meio ler e conhecer quais são os pensamentos e paixões de todos os outros homens, em circunstâncias idênticas. Refiro-me à semelhança das paixões, que são as mesmas em todos os homens, desejo, medo, esperança etc., e não à semelhança dos objetos das paixões, que são as coisas desejadas, temidas, esperadas etc. Quanto a estas últimas, a constituição individual e a educação de cada um são tão variáveis, e são tão fáceis de ocultar a nosso conhecimento, que os caracteres do coração humano, emaranhados e confusos como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações. E, embora por vezes descubramos os desígnios dos homens através de suas ações, tentar fazê-lo sem compará-las com as nossas, distinguindo todas as circunstâncias capazes de alterar o caso, é o mesmo que decifrar sem ter uma chave, e deixar-se o mais das vezes enganar, quer por excesso de confiança ou por excesso de desconfiança, conforme aquele que lê seja um bom ou um mau homem.

Mas mesmo que um homem seja capaz de ler perfeitamente um outro através de suas ações, isso servir-lhe-á apenas com seus conhecidos, que são muito poucos. Aquele que vai governar uma nação inteira deve ler, em si mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano. O que é coisa difícil, mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer ciência, mas ainda assim, depois de eu ter exposto claramente e de maneira ordenada minha própria leitura, o trabalho que a outros caberá será apenas verificar se não encontram o mesmo em si próprios. Pois esta espécie de doutrina não admite outra demonstração.

(Introdução, Ibidem, p. 6.)

Dessa perspectiva algo cética, sem ilusões, Hobbes deduz que no estado de natureza todo homem tem direito a tudo:

O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.

(Ibidem, cap. XIV, p. 78.)

Como pôr termo a esse conflito?

Para Hobbes, o homem é o indivíduo. Mas atenção, antes de falarmos em individualismo burguês. O indivíduo hobbesiano não almeja tanto os bens (como erradamente pensa o comentador Macpherson), mas a honra. Entre as causas da violência, uma das principais reside na busca da glória, quando os homens se batem "por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome". (Ibidem, cap. XIII, p. 75.) A honra é o valor atribuído a alguém em função das aparências externas.

O homem hobbesiano não é então um homo oeconomicus, porque seu maior interesse não está em produzir riquezas, nem mesmo em pilhá-las. O mais importante para ele é ter os sinais de honra, entre os quais se inclui a própria riqueza (mais como meio, do que como fim em si). Quer dizer que o homem vive basicamente de imaginação. Ele imagina ter um poder, imagina ser respeitado — ou ofendido — pelos semelhantes, imagina o que o outro vai fazer. Da imaginação — e neste ponto Hobbes concorda com muitos pensadores do século XVII e XVIII — decorrem perigos, porque o homem se põe a fantasiar o que é irreal. O estado de natureza é uma condição de guerra, porque cada um se imagina (com razão ou sem) poderoso, perseguido, traído.

Como pôr termo a esse conflito? Há uma base jurídica para isso; depois do direito de natureza, que já vimos, Hobbes define o que é a lei de natureza:

Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la. Porque embora os que têm tratado deste assunto costumem confundir jus e lex, o direito e a lei, é necessário distingui-los um do outro. Pois o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas. De modo que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade, as quais são incompatíveis quando se referem à mesma matéria.

E dado que a condição do homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Portanto, enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. Consequentemente é um preceito ou regra geral da razão, Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos.

Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira todos os homens se encontrarão numa condição de guerra. Mas se os outros homens não renunciarem a seu direito, assim como ele próprio, nesse caso não há razão para que alguém se prive do seu, pois isso equivaleria a oferecer-se como presa (coisa a que ninguém é obrigado), e não a dispor-se para a paz. É esta a lei do Evangelho: Faz aos outros o que queres que te façam a ti. E esta é a lei de todos os homens: Quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris.

Renunciar ao direito a alguma coisa é o mesmo que privar-se da liberdade de negar ao outro o benefício de seu próprio direito à mesma coisa. Pois quem abandona ou renuncia a seu direito não dá a qualquer outro homem um direito que este já não tivesse antes, porque não há nada a que um homem não tenha direito por natureza; mas apenas se afasta do caminho do outro, para que ele possa gozar de seu direito original, sem que haja obstáculos da sua parte, mas não sem que haja obstáculos da parte dos outros. De modo que a consequência que redunda para um homem da desistência de outro a seu direito é simplesmente uma diminuição equivalente dos impedimentos ao uso de seu próprio direito original.

(Ibidem cap. XIV, p. 78-9.)

Mas não basta o fundamento jurídico. É preciso que exista um Estado dotado da espada, armado, para forçar os homens ao respeito. Desta maneira, aliás, a imaginação será regulada melhor, porque cada um receberá o que o soberano determinar.

Porque as leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros. Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-se e espoliar-se uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão longe de ser considerada contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação conseguida maior era a honra adquirida.

(Ibidem, cap. XVII, p. 103.)

Mas o poder de Estado tem que ser pleno. O Estado medieval não conhecia poder absoluto, nem soberania — os poderes do rei eram contrabalançados pelos da nobreza, das cidades, dos Parlamentos. Jean Bodin, no século XVI, é o primeiro teórico a afirmar que no Estado deve haver um poder soberano, isto é, um foco de autoridade que possa resolver todas as pendências e arbitrar qualquer decisão. Hobbes desenvolve essa idéia, e monta um Estado que é condição para existir a própria sociedade. A sociedade nasce com o Estado.

A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.

Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos.

(Ibidem, cap. XVII, p. 105-6.)

Na tradição contratualista, às vezes se distingue o contrato de associação (pelo qual se forma a sociedade) do contrato de submissão (que institui um poder político, um governo, e é firmado entre "a sociedade" e " o príncipe"). A novidade de Hobbes está em fundir os dois num só. Não existe primeiro a sociedade, e depois o poder ("o Estado"). Porque, se há governo, é justamente para que os homens possam conviver em paz: sem governo, já vimos, nós nos matamos uns aos outros. Por isso, o poder do governante tem que ser ilimitado. Pois, se ele sofrer alguma limitação, se o governante tiver de respeitar tal ou qual obrigação (por exemplo, tiver que ser justo) — então quem irá julgar se ele está sendo ou não justo? Quem julgar terá também o poder de julgar se o príncipe continua príncipe ou não — e portanto será, ele que julga, a autoridade suprema. Não há alternativa: ou o poder é absoluto, ou continuamos na condição de guerra, entre poderes que se enfrentam.

Para montar o poder absoluto, Hobbes concebe um contrato diferente, sui generis. Observemos que o soberano não assina o contrato — este é firmado apenas pelos que vão se tornar súditos, não pelo beneficiário. Por uma razão simples: no momento do contrato não existe ainda soberano, que só surge devido ao contrato. Disso resulta que ele se conserva fora dos compromissos, e isento de qualquer obrigação.

Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembleia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembleia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens.

É desta instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido.

Em primeiro lugar, na medida em que pactuam, deve entender-se que não se encontram obrigados por um pacto anterior a qualquer coisa que contradiga o atual. Consequentemente, aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto no sentido de obedecer a outrem, seja no que for, sem sua licença. Portanto, aqueles que estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à monarquia, voltando à confusão de uma multidão desunida, nem transferir sua pessoa daquele que dela é portador para outro homem, ou outra assembléia de homens. Pois são obrigados, cada homem perante cada homem, a reconhecer e a ser considerados autores de tudo quanto aquele que já é seu soberano fizer e considerar bom fazer. Assim, a dissensão de alguém levaria todos os restantes a romper o pacto feito com esse alguém, o que constitui injustiça. Por outro lado, cada homem conferiu a soberania àquele que é portador de sua pessoa, portanto se o depuserem estarão tirando-lhe o que é seu, o que também constitui injustiça. Além do mais, se aquele que tentar depor seu soberano for morto, ou por ele castigado devido a essa tentativa, será o autor de seu próprio castigo, dado que por instituição é autor de tudo quanto seu soberano fizer. E, dado que constitui injustiça alguém fazer coisa devido à qual possa ser castigado por sua própria autoridade, também a esse título ele estará sendo injusto. E quando alguns homens, desobedecendo a seu soberano, pretendem ter celebrado um novo pacto, não com homens, mas com Deus, também isto é injusto, pois não há pacto com Deus a não ser através da mediação de alguém que represente a pessoa de Deus, e ninguém o faz a não ser o lugar-tenente de Deus, o detentor da soberania abaixo de Deus. E esta pretensão de um pacto com Deus é uma mentira tão evidente, mesmo perante a própria consciência de quem tal pretende, que não constitui apenas um ato injusto, mas também um ato próprio de um caráter vil e inumano.

Em segundo lugar, dado que o direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do pacto da parte do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da sujeição, sob qualquer pretexto de infração. É evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente qualquer pacto com seus súditos, porque teria ou que celebrá-lo com toda a multidão, na qualidade de parte do pacto, ou que celebrar diversos pactos, um com cada um deles. Com o todo, na qualidade de parte, é impossível, porque nesse momento eles ainda não constituem uma pessoa. E se fizer tantos pactos quantos forem os homens, depois de ele receber a soberania esses pactos serão nulos, pois qualquer ato que possa ser apresentado por um deles como rompimento do pacto será um ato praticado tanto por ele mesmo como por todos os outros, porque será um ato praticado na pessoa e pelo direito de cada um deles em particular. Além disso, se algum ou mais de um deles pretender que houve infração do pacto feito pelo soberano quando de sua instituição, e outros ou um só de seus súditos, ou mesmo apenas ele próprio, pretender que não houve tal infração, não haverá nesse caso qualquer juiz capaz de decidir a controvérsia. Volta portanto a ser a força a decidir, e cada um recupera o direito de se defender por seus próprios meios, contrariamente à intenção que o levara àquela instituição. Portanto é inútil pretender conferir a soberania através de um pacto anterior. A opinião segundo a qual o monarca recebe de um pacto seu poder, quer dizer, sob certas condições, deriva de não se compreender esta simples verdade: que os pactos, não passando de palavras e vento, não têm qualquer força para obrigar, dominar, constranger ou proteger ninguém, a não ser a que deriva da espada pública. Ou seja, das mãos livres e sem peias daquele homem, ou assembleia de homens, que detém a soberania, cujas ações são garantidas por todos, e realizadas pela força de todos os que nele se encontram uni dos. Quando se confere a soberania a uma assembleia de homens, ninguém deve imaginar que um tal pacto faça parte da instituição. Pois ninguém é suficientemente tolo para dizer, por exemplo, que o povo de Roma fez um pacto com os romanos para deter a soberania sob tais e tais condições, as quais, quando não cumpridas, dariam aos romanos o direito de depor o povo de Roma. O fato de os homens não verem a razão para que se passe o mesmo numa monarquia e num governo popular deriva da ambição de alguns, que veem com mais simpatia o governo de uma assembleia, da qual podem ter a esperança de vir a participar, do que o de uma monarquia, da qual é impossível esperarem desfrutar.

Em terceiro lugar, se a maioria, por voto de consentimento, escolher um soberano, os que tiverem discordado devem passar a consentir juntamente com os restantes. Ou seja, devem aceitar reconhecer todos os atos que ele venha a praticar, ou então serem justamente destruídos pelos restantes. Aquele que voluntariamente ingressou na congregação dos que constituíam a assembleia declarou suficientemente com esse ato sua vontade (e portanto tacitamente fez um pacto) de se conformar ao que a maioria decidir. Portanto, se depois recusar aceitá-la, ou protestar contra qualquer de seus decretos, age contrariamente ao pacto, isto é, age injustamente. E quer faça parte da congregação, quer não faça, e quer seu consentimento seja pedido, quer não seja, ou terá que submeter-se a seus decretos ou será deixado na condição de guerra em que antes se encontrava, e na qual pode, sem injustiça, ser destruído por qualquer um.

Em quarto lugar, dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Pois quem faz alguma coisa em virtude da autoridade de um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de cuja autoridade está agindo. Por esta instituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer, por consequência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio; e não pode acusar-se a si próprio de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível. É certo que os detentores do poder soberano podem cometer iniquidades, mas não podem cometer injustiça nem injúria em sentido próprio.

Em quinto lugar, e em consequência do que foi dito por último, aquele que detém o poder soberano não pode justamente ser morto, nem de qualquer outra maneira pode ser punido por seus súditos. Dado que cada súdito é autor dos atos de seu soberano, cada um estaria castigando outrem pelos atos cometidos por si mesmo

(Ibidem, cap. XVIII, p. 107 9 )

Igualdade e liberdade

Nesse Estado, em que o poder é absoluto — perguntará o leitor —, que papel caberão à liberdade e à igualdade, estes grandes valores que aprendemos a respeitar? Ora, o que Hobbes faz é justamente desmontar o valor retórico que atribuímos a palavras capazes de gerar tanto entusiasmo — e, dirá ele, tanta ambição, descontentamento e guerra. A igualdade, já vimos, é o fator que leva à guerra de todos. Dizendo que os homens são iguais, Hobbes não faz uma proclamação revolucionária contra o Antigo Regime (como fará a Revolução Francesa: "Todos os homens nascem livres e iguais..."), simplesmente afirma que dois ou mais homens podem querer a mesma coisa, e por isso todos vivemos em tensa competição. E a liberdade? Hobbes vai defini-la de modo que também deixa de ser um valor.

Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque de tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de um certo espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além. E o mesmo se passa com todas as criaturas vivas, quando se encontram presas ou limitadas por paredes ou cadeiras; e também das águas, quando são contidas por diques ou canais, e se assim não fosse se espalhariam por um espaço maior, costumamos dizer que não têm a liberdade de se mover da maneira que fariam se não fossem esses impedimentos externos. Mas quando o que impede o movimento faz parte da constituição da própria coisa não costumamos dizer que ela não tem liberdade, mas que lhe falta o poder de se mover; como quando uma pedra está parada, ou um homem se encontra amarrado ao leito pela doença.

Conformemente a este significado próprio e geralmente aceite da palavra, um homem livre é aquele que, naquelas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer.

(Ibidem, cap. XXI, p. 130.)

Este capítulo, o XXI, é um dos mais importantes e menos lidos do Leviatã. Hobbes começa reduzindo a liberdade a uma determinação física, aplicável a qualquer corpo. Com isso ele praticamente elimina o valor (a seu ver retórico) da liberdade como um clamor popular, como um princípio pelo qual homens lutam e morrem.

[...] é coisa fácil os homens se deixarem iludir pelo especioso nome de liberdade e, por falta de capacidade de distinguir, tomarem por herança pessoal e direito inato seu aquilo que é apenas direito do Estado. E quando o mesmo erro é confirmado pela autoridade de autores reputados por seus escritos sobre o assunto, não é de admirar que ele provoque sedições e mudanças de governo. Nestas partes ocidentais do mundo, costumamos receber nossas opiniões relativas à instituição e aos direitos do Estado, de Aristóteles, Cícero e outros autores, gregos e romanos, que viviam em Estados populares, e em vez de fazerem derivar esses direitos dos princípios da natureza os transcreviam para seus livros a partir da prática de seus próprios Estados, que eram populares. Tal como os gramáticos descrevem as regras da linguagem a partir da prática do tempo, ou as regras da poesia a partir dos poemas de Homero e Virgílio. E como aos atenienses se ensinava (para neles impedir o desejo de mudar de governo) que eram homens livres, e que todos os que viviam em monarquia eram escravos, Aristóteles escreveu em sua Política (livro 6, cap. 2): Na democracia deve supor-se a liberdade; porque é geralmente reconhecido que ninguém é livre em qualquer outra forma de governo. Tal como Aristóteles, também Cícero e outros autores baseavam sua doutrina civil nas opiniões dos romanos, que eram ensinados a odiar a monarquia, primeiro por aqueles que depuseram o soberano e passaram a partilhar entre si a soberania de Roma, e depois por seus sucessores. Através da leitura desses autores gregos e latinos, os homens passaram desde a infância a adquirir o hábito (sob uma falsa aparência de liberdade) de fomentar tumultos e de exercer um licencioso controle sobre os atos de seus soberanos. E por sua vez o de controlar esses controladores, com uma imensa efusão de sangue. E creio que em verdade posso afirmar que jamais uma coisa foi paga tão caro como estas partes ocidentais pagaram o aprendizado das línguas grega e latina.

(Ibidem, cap. XXI, p. 132.)

Resta, porém, uma liberdade ao homem. Quando o indivíduo firmou o contrato social, renunciou ao seu direito de natureza, isto é, ao fundamento jurídico da guerra de todos. É que, neste direito, o meio (fazer o que julgasse mais conveniente) contradizia o fim (preservar a própria vida). O homem percebeu que, como todos tinham esse direito tanto quanto ele, o resultado só podia ser a guerra — " e a vida do homem [era] solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta " . (Ibidem, cap. XIII, p. 76.) Mas, dando poderes ao soberano, a fim de instaurar a paz, o homem só abriu mão de seu direito para proteger a sua própria vida. Se esse f im não for atendido pelo soberano, o súdito não lhe deve mais obediência — não porque o soberano violou algum compromisso (isso é impossível, pois o soberano não prometeu nada), mas simplesmente porque desapareceu a razão que levava o súdito a obedecer. Esta é a "verdadeira liberdade do súdito".

Passando agora concretamente à verdadeira liberdade dos súditos, ou seja, quais são as coisas que, embora ordenadas pelo soberano, não obstante eles podem sem injustiça recusar-se a fazer, é preciso examinar quais são os direitos que transferimos no momento em que criamos um Estado. Ou então, o que é a mesma coisa, qual a liberdade que a nós mesmos negamos, ao reconhecer todas as ações (sem exceção) do homem ou assembleia de quem fazemos nosso soberano. Porque de nosso ato de submissão fazem parte tanto nossa obrigação quanto nossa liberdade, as quais portanto devem ser inferidas por argumentos daí tirados, pois ninguém tem qualquer obrigação que não derive de algum de seus próprios atos, visto que todos os homens são, por natureza, igualmente livres. Dado que tais argumentos terão que ser tirados ou das palavras expressas, eu autorizo todas as suas ações, ou da intenção daquele que se submete a seu poder (intenção que deve ser entendida como o fim devido ao qual assim se submeteu), a obrigação e a liberdade do súdito deve ser derivada, ou daquelas palavras (ou outras equivalentes), ou do fim da instituição da soberania, a saber: a paz dos súditos entre si, e sua defesa contra um inimigo comum.

Portanto, em primeiro lugar, dado que a soberania por instituição assenta num pacto entre cada um e todos os outros, e a soberania por aquisição em pactos entre o vencido e o vencedor, ou entre o filho e o pai, torna-se evidente que todo súdito tem liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto. Já no capítulo 14 mostrei que os pactos no sentido de cada um abster-se de defender seu próprio corpo são nulos. Portanto:

Se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou que se abstenha de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer.

Se alguém for interrogado pelo soberano ou por sua autoridade, relativamente a um crime que cometeu, não é obrigado (a não ser que receba garantia de perdão) a confessá-lo, porque ninguém (conforme mostrei no mesmo capítulo) pode ser obrigado por um pacto a recusar-se a si próprio.

Por outro lado, o consentimento de um súdito ao poder soberano está contido nas palavras eu autorizo, ou assumo como minhas, todas as suas ações, nas quais não há qualquer espécie de restrição a sua antiga liberdade natural. Porque ao permitir-lhe que me mate não fico obrigado a matar-me quando ele mo ordena. Uma coisa é dizer mata-me, ou a meu companheiro, se te aprouver, e outra coisa é dizer matar-me-ei, ou a meu companheiro. Segue-se portanto que:

Ninguém fica obrigado pelas próprias palavras a matar-se a si mesmo ou a outrem. Por consequência, que a obrigação que às vezes se pode ter, por ordem do soberano, de executar qualquer missão perigosa ou desonrosa, não depende das palavras de nossa submissão, mas da intenção, a qual deve ser entendida como seu fim. Portanto, quando nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi criada a soberania, não há liberdade de recusar; mas caso contrário há essa liberdade.

Por esta razão, um soldado a quem se ordene combater o inimigo, embora seu soberano tenha suficiente direito de puni-lo com a morte em caso de recusa, pode não obstante em muitos casos recusar, sem injustiça, como quando se faz substituir por um soldado suficiente em seu lugar, caso este em que não está desertando do serviço do Estado. E deve também dar-se lugar ao temor natural, não só o das mulheres (das quais não se espera o cumprimento de tão perigoso dever), mas também o dos homens de coragem feminina. Quando dois exércitos combatem há sempre os que fogem, de um dos lados, ou de ambos; mas quando não o fazem por traição, e sim por medo, não se considera que o fazem injustamente, mas desonrosamente. Pela mesma razão, evitar o combate não é injustiça, é cobardia. Mas aquele que se alista como soldado, ou toma dinheiro público emprestado, perde a desculpa de uma natureza timorata, e fica obrigado não apenas a ir para o combate, mas também a dele não fugir sem licença de seu comandante. E quando a defesa do Estado exige o concurso simultâneo de todos os que são capazes de pegar em armas, todos têm essa obrigação, porque de outro modo teria sido em vão a instituição do Estado, ao qual não têm o propósito ou a coragem de defender.

Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do Estado, em defesa de outrem, seja culpado ou inocente. Porque essa liberdade priva a soberania dos meios para proteger-nos, sendo portanto destrutiva da própria essência do Estado. Mas caso um grande número de homens em conjunto tenha já resistido injustamente ao poder soberano, ou tenha cometido algum crime capital, pelo qual cada um deles pode esperar a morte, terão eles ou não a liberdade de se unirem e se ajudarem e defenderem uns aos outros? Certamente que a têm: porque se limitam a defender suas vidas, o que tanto o culpado como o inocente podem fazer. Sem dúvida, havia injustiça na primeira falta a seu dever; mas o ato de pegar em armas subsequente a essa primeira falta, embora seja para manter o que fizeram, não constitui um novo ato injusto. E se for apenas para defender suas pessoas de modo algum será injusto. Mas a oferta de perdão tira àqueles a quem é feita o pretexto da defesa própria, e torna ilegítima sua insistência em ajudar ou defender os restantes.

Quanto às outras liberdades, dependem do silêncio da lei. Nos casos em que o soberano não tenha estabelecido uma regra, o súdito tem a liberdade de fazer ou de omitir, conformemente a sua discrição. Portanto essa liberdade em alguns lugares é maior e noutros menor, e em algumas épocas maior e noutras menor, conforme os que detêm a soberania consideram mais conveniente. Por exemplo, houve um tempo na Inglaterra em que um homem podia entrar em suas próprias terras, desapossando pela força quem ilegitimamente delas se houvesse apossado. Mas posteriormente essa liberdade de entrada à força foi abolida por um estatuto que o rei promulgou no Parlamento. E em alguns lugares do mundo os homens têm a liberdade de possuir muitas esposas, sendo que em outros lugares tal liberdade não é permitida.

(Ibidem, cap. XXI, p. 132-4.)

Este ponto é delicado, e devemos insistir nele. O soberano não perde a soberania se não atende aos caprichos de cada súdito. Mas, se deixa de proteger a vida de determinado indivíduo, este indivíduo (e só ele) não lhe deve mais sujeição. Os outros não podem aliar-se ao desprotegido, porque o governante continua a protegê-los. E pouco importa se o soberano fere o (ex-)súdito tendo ou não razão (afinal, repetimos, ninguém pode julgar o soberano). O que desfaz a sujeição política é que o governante não confia mais no súdito, e prendendoo com ferros libertao das obrigações jurídicas que assumiu para com ele (em inglês bond significa tanto grilhão quanto obrigação). O soberano não está atado pelas leis humanas de justiça, por isso, de seu ponto de vista, não há diferença em ele castigar um culpado ou agredir um inocente. Já o súdito, se é súdito, é porque prometeu obedecer a fim de não morrer na guerra generalizada; por isso, de seu ponto de vista, tanto faz a sua vida ser ameaçada por um soberano impiedoso e iníquo, quanto por um governante que o julgou concedendo-lhe a mais ampla defesa. O que temos, em todos os casos, é o mesmo esquema: um governante que fere e, por isso, um súdito que recupera sua liberdade natural.

O Estado, o medo e a propriedade

Este esquema mostra que, no Estado absoluto de Hobbes, o indivíduo conserva um direito à vida talvez sem paralelo em nenhuma outra teoria política moderna. Só para compararmos com Locke (caps. 2 e 4 do Segundo tratado do governo): o indivíduo que comete crime grave perde o direito de viver e reduz-se a fera, que por todos deve ser destruída.

Mas esse Estado hobbesiano continua marcado pelo medo. Veja-se a capa da primeira edição do Leviatã (1651), que mostra um príncipe, cuja armadura é feita de escamas que são os seus súditos, brandindo ameaçadora espada. Ou veja-se o próprio nome, "Leviatã", que é de um monstro bíblico, que aparece no Livro de Jó. Hobbes diz: o soberano governa pelo temor (awe) que inflige a seus súditos. Porque, sem medo, ninguém abriria mão de toda a liberdade que tem naturalmente; se não temesse a morte violenta, que homem renunciaria ao direito que possui, por natureza, a todos os bens e corpos?

Devemos, porém, matizar o medo que há no Estado hobbesiano. Primeiro, o Leviatã não aterroriza. Terror existe no estado de natureza, quando vivo no pavor de que meu suposto amigo me mate. Já o poder soberano apenas mantém temerosos os súditos, que agora conhecem as linhas gerais do que devem seguir para não incorrer na ira do governante. Segundo, o indivíduo bem-comportado dificilmente terá problemas com o soberano.

Mas poderia aqui objetar-se que a condição de súdito é muito miserável, pois se encontra sujeita aos apetites e paixões irregulares daquele ou daqueles que detêm em suas mãos poder tão ilimitado. Geralmente os que vivem sob um monarca pensam que isso é culpa da monarquia, e os que vivem sob o governo de uma democracia, ou de outra assembleia soberana, atribuem todos os inconvenientes a essa forma de governo. Ora, o poder é sempre o mesmo, sob todas as formas, se estas forem suficientemente perfeitas para proteger os súditos. E isto sem levar em conta que a condição do homem nunca pode deixar de ter uma ou outra incomodidade, e que a maior que é possível cair sobre o povo em geral, em qualquer forma de governo, é de pouca monta quando comparada com as misérias e horríveis calamidades que acompanham a guerra civil, ou aquela condição dissoluta de homens sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas mãos, impedindo a rapina e a vingança. E também sem levar em conta que o que mais impulsiona os soberanos governantes não é qualquer prazer ou vantagem que esperem recolher do prejuízo ou debilitamento causado a seus súditos, em cujo vigor consiste sua própria força e glória, e sim a obstinação daqueles que, contribuindo de má vontade para sua própria defesa, tornam necessário que seus governantes deles arranquem tudo o que podem em tempo de paz, a fim de obterem os meios para resistir ou vencer a seus inimigos, em qualquer emergência ou súbita necessidade. Porque todos os homens são dotados por natureza de grandes lentes de aumento (ou seja, as paixões e o amor de si), através das quais todo pequeno pagamento aparece como um imenso fardo; mas são destituídos daquelas lentes prospectivas (a saber, a ciência moral e civil) que permitem ver de longe as misérias que os ameaçam, e que sem tais pagamentos não podem ser evitadas.

(Ibidem, cap. XVIII, p. 112-3.)

E, terceiro, o Estado não se limita a deter a morte violenta. Não é produto apenas do medo à morte — se entramos no Estado é também com uma esperança (em filosofia, o medo e a esperança são um velho par) de ter vida melhor e mais confortável.

O conforto, em grande parte, deve-se à propriedade. A sociedade burguesa, que no tempo de Hobbes já luta para se afirmar, estabelece a autonomia do proprietário para fazer com seu bem o que bem entenda. Na Idade Média, a propriedade era um direito limitado, porque havia inúmeros costumes e obrigações que a controlavam. Por exemplo, o senhor de terras não podia impedir o pobre de colher espigas, ou frutas, na proporção necessária para saciar a fome. Se havia um servo ligado à gleba, nem este podia deixá-la, nem o senhor podia expulsá-lo para dar outro uso à terra. Mas, nos tempos modernos, o proprietário adquire o direito não só ao uso do bem e a seus frutos (que somam-se na palavra usufruto), como também ao abuso: isto é, o direito de alienar o bem, de destruí-lo, vendê-lo ou dá-lo. Hobbes reconhece o fim das velhas limitações feudais à propriedade — e nisso ele está de acordo com as classes burguesas, empenhadas em acabar com os direitos das classes populares à terra comunal ou privada — mas, ao mesmo tempo, estabelece um limite muito forte à pretensão burguesa de autonomia: todas as terras e bens estão controlados pelo soberano.

A distribuição dos materiais dessa nutrição é a constituição do meu, do teu e do seu. Isto é, numa palavra, da propriedade. E em todas as espécies de Estado é da competência do poder soberano. Porque onde não há Estado, conforme já se mostrou, há uma guerra perpétua de cada homem contra seu vizinho, na qual portanto cada coisa é de quem a apanha e conserva pela força, o que não é propriedade nem comunidade, mas incerteza. O que é á tal ponto evidente que até Cícero (um apaixonado defensor da liberdade), numa arenga pública, atribuiu toda propriedade às leis civis: "Se as leis civis", disse ele, "alguma vez forem abandonadas, ou negligentemente conservadas (para não dizer oprimidas), não haverá nada mais que alguém possa estar certo de receber de seus antepassados, ou deixar a seus filhos". E também: "Suprimi as leis civis, e ninguém mais saberá o que é seu e o que é dos outros". Visto portanto que a introdução da propriedade é um efeito do Estado, que nada pode fazer a não ser por intermédio da pessoa que o representa, ela só pode ser um ato do soberano, e consiste em leis que só podem ser feitas por quem tiver o poder soberano. Bem o sabiam os antigos, que chamavam Nómos (quer dizer, distribuição) ao que nós chamamos lei, e definiam a justiça como a distribuição a cada um do que é seu.

Nesta distribuição, a primeira lei diz respeito à distribuição da própria terra, da qual o soberano atribui a todos os homens uma porção, conforme o que ele, e não conforme o que qualquer súdito, ou qualquer número deles, considerar compatível com a equidade e com o bem comum. Os filhos de Israel eram um Estado no deserto, e careciam dos bens da terra, até ao momento em que se tornaram senhores da Terra Prometida, a qual foi posteriormente dividida entre eles, não conforme sua própria discrição mas conforme a discrição do sacerdote Eleazar e do general Josué. Os quais, quando já havia doze tribos, ao fazer delas treze mediante a subdivisão da tribo de José, apesar disso dividiram a terra em apenas doze porções, e não atribuíram qualquer terra à tribo de Levi, atribuindo-lhe a décima parte da totalidade dos frutos da terra, divisão que portanto era arbitrária. E embora quando um povo toma posse de um território por meio da guerra nem sempre ele extermine os antigos habitantes (como fizeram os judeus), deixando suas terras a muitos, ou à maior parte, ou a todos, é apesar disso evidente que posteriormente essas terras passam a ser patrimônio do vencedor, como aconteceu com o povo da Inglaterra, que recebeu todas as suas terras de Guilherme, o Conquistador.

De onde podemos concluir que a propriedade que um súdito tem em suas terras consiste no direito de excluir todos os outros súditos do uso dessas terras, mas não de excluir o soberano, quer este seja uma assembleia ou um monarca. Dado que o soberano quer dizer o Estado (cuja pessoa ele representa), se entende que nada faz que não seja em vista da paz e segurança comuns, essa distribuição das terras deve ser entendida como realizada em vista do mesmo. Em consequência, qualquer distribuição que se faça em prejuízo dessa paz e dessa segurança é contrária à vontade de todos os súditos, que confiaram a paz e a segurança de suas vidas à discrição e consciência do soberano, e assim essa distribuição deve, pela vontade de cada um deles, ser considerada nula. É certo que um monarca soberano, ou a maioria de uma assembleia soberana, pode ordenar a realização de muitas coisas seguindo os ditames de suas paixões e contrariamente a sua consciência, e isso constitui uma quebra da confiança e da lei da natureza. Mas isto não é suficiente para autorizar qualquer súdito a pegar em armas contra seu soberano, ou mesmo a acusá-lo de injustiça, ou a de qualquer modo falar mal dele. Porque os súditos autorizaram todas as suas ações, e ao atribuírem-lhe o poder soberano fizeram-nas suas. Mas em que casos as ordens do soberano são contrárias à equidade e à lei de natureza é coisa que será examinada adiante, em outro lugar.

Na distribuição das terras, o próprio Estado pode ter uma porção, possuindo e melhorando a mesma através de seu representante. E essa porção pode ser de molde a tornar-se suficiente para sustentar todas as despesas necessárias para a paz e defesa comuns. O que seria muito verdadeiro se fosse possível conceber qualquer representante que estivesse livre das paixões e enfermidades humanas. Mas sendo a natureza humana o que é, a atribuição de terras públicas ou de uma renda determinada para o Estado seria inútil, e faria tender para a dissolução do governo e a condição de simples natureza e guerra, sempre que ocorresse o poder soberano cair nas mãos de um monarca, ou de uma assembleia, que ou fosse excessivamente negligente em questões de dinheiro, ou suficientemente ousada para arriscar o patrimônio público numa guerra longa e dispendiosa. Os Estados não podem suportar uma dieta, pois não sendo suas despesas limitadas por seu próprio apetite, e sim por acidentes externos e pelos apetites de seus vizinhos, a riqueza pública não pode ser limitada por outros limites senão os que forem exigidos por cada ocasião. Embora na Inglaterra o Conquistador tenha reservado algumas terras para seu próprio uso (além de florestas e coutadas, tanto para sua recreação como para a preservação dos bosques), e tenha também reservado diversos serviços nas terras que deu a seus súditos, parece apesar disso que elas não foram reservadas para sua manutenção em sua capacidade pública, mas em sua capacidade natural, pois tanto ele quanto seus sucessores lançaram impostos arbitrários sobre as terras de todos os seus súditos, sempre que tal consideraram necessário. E mesmo que essas terras e serviços públicos tivessem sido estabelecidos como suficiente manutenção do Estado, tal teria sido contrário à finalidade da instituição, pois eram insuficientes (conforme ficou claro, dados esses impostos subsequentes), e além disso estavam sujeitos a alienação e diminuição (conforme foi tornado claro pela posterior pequena renda da coroa). Portanto é inútil atribuir uma porção ao Estado, que pode vendê-la ou dá-la, e efetivamente a vende e a dá quando tal é feito por seu representante.

Compete ao soberano a distribuição das terras do país, assim como a decisão sobre em que lugares, e com que mercadorias, os súditos estão autorizados a manter tráfico com o estrangeiro. Porque se às pessoas privadas competisse usar nesses assuntos de sua própria discrição, algumas delas seriam levadas pela ânsia do lucro, tanto a fornecer ao inimigo os meios para prejudicar o Estado, quanto a prejudicá-lo elas mesmas, importando aquelas coisas que, ao mesmo tempo que agradam aos apetites dos homens, apesar disso são para eles nocivas, ou pelo menos inúteis. Compete portanto ao Estado (quer dizer, apenas ao soberano) aprovar ou desaprovar tanto os lugares como os objetos do tráfico exterior.

Além do mais, dado que não é suficiente para o sustento do Estado que cada indivíduo tenha a propriedade de uma porção de terra, ou de alguns poucos bens, ou a propriedade natural de alguma arte útil (e não existe arte no mundo que não seja necessária ou para a existência ou para o bem-estar de quase todos os indivíduos), é necessário que os homens distribuam o que são capazes de poupar, transferindo essa propriedade mutuamente uns aos outros, através da troca e de contratos mútuos. Compete portanto ao Estado, isto é, ao soberano, determinar de que maneira devem fazer-se entre os súditos todas as espécies de contrato (de compra, venda, troca, empréstimo, arrendamento), e mediante que palavras e sinais esses contratos devem ser considerados válidos.

(Ibidem, cap. XXIV, p. 150-3.)

Um pensador maldito

E aqui podemos entender por que Hobbes é, com Maquiavel e em certa medida Rousseau, um dos pensadores mais "malditos" da história da filosofia política — pois, no século XVII, o termo "hobbista " é quase tão ofensivo quanto "maquiavélico". Não é só porque apresenta o Estado como monstruoso, e o homem como belicoso, rompendo com a confortadora imagem aristotélica do bom governante (comparado a um pai) e do indivíduo de boa natureza. Não é só porque subordina a religião ao poder político. Mas é, também, porque nega um direito natural ou sagrado do indivíduo à sua propriedade. No seu tempo, e ainda hoje, a burguesia vai procurar fundar a propriedade privada num direito anterior e superior ao Estado: por isso ela endossará Locke, dizendo que a finalidade do poder público consiste em proteger a propriedade. Um direito aos bens que dependa do beneplácito do governante vai frontalmente contra a pretensão da burguesia a controlar, enquanto classe, o poder de Estado; e, como isso é o que vai acontecer na Inglaterra após a Revolução Gloriosa (1688), o pensamento hobbesiano não terá campo de aplicação em seu próprio país, nem em nenhum outro.

O resultado pode parecer frustrante, num pensador que escreveu as três versões de sua filosofia política enquanto o seu país vivia terrível guerra civil (De corpore político, 1640; De cive, 1642; Leviatã, 1651), e considerava que esses livros ofereciam a única base para fundar um Estado que desse, aos homens, não apenas a sobrevivência, mas a melhor condição material — paz e conforto. "A ciência política não é mais antiga que meu livro De cive", disse ele, desqualificando em especial o pensamento aristotélico, então ainda dominante.

Essa ênfase na ciência, porém, merece nossa atenção. No tempo de Hobbes, o modelo para a ciência estava nas matemáticas. Os teoremas da geometria, por exemplo, não dependem em nada da observação empírica para serem verdadeiros. Quando dependemos da experiência, estamos sempre sujeitos ao engano. Mas, se nos limitamos a deduzir propriedades de figuras ideais, não há risco de erro. E isso, antes de mais nada, porque as figuras geométricas não resultam da observação (não existe, na natureza, círculo ou triângulo perfeito...), mas são criação de nossa mente. Em suma: só podemos conhecer, adequada e cientificamente, aquilo que nós mesmos engendramos. Dessa perspectiva não pode haver ciência, por exemplo, dos corpos animais (biologia) comparável em certeza à geometria.

Assim entendemos o papel do contrato. Na matemática, podemos conhecer porque as figuras foram concebidas, feitas, por nós. Da mesma forma na ciência política: se existe Estado, é porque o homem o criou. Se houvesse sociabilidade natural, jamais poderíamos ter ciência dela, porque dependeríamos dos equívocos da observação. Mas, como só vivemos em sociedade devido ao contrato, somos nós os autores da sociedade e do Estado, e podemos conhecê-los tão bem quanto as figuras da geometria. De um só golpe, o contrato produz dois resultados importantes. Primeiro, o homem é o artífice de sua condição, de seu destino, e não Deus ou a natureza. Segundo, o homem pode conhecer tanto a sua presente condição miserável quanto os meios de alcançar a paz e a prosperidade. Esses dois efeitos, embora a via do contrato tenha sido abandonada na filosofia política posterior ao século XVIII, continuam inspirando o pensamento sobre o poder e as relações sociais.

Indicações bibliográficas

O leitor deve saber que a maior parte do que se escreveu sobre Hobbes é de muito má qualidade: trata-se geralmente de resumos de sua obra (neste caso o melhor é ir direto a ela) e/ou de considerações moralistas, escandalizadas com o fato de Hobbes negar o homem naturalmente bom, o governante justo, a propriedade como um direito natural — e também com a sua religião, na qual não existe inferno permanente nem alma necessariamente imortal.

O melhor é começar pelo Leviatã, do qual há uma boa tradução em português, de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva (Os Pensadores, Nova Cultural). A edição original mais acessível é Leviathan, editora Penguin, com útil introdução de C. B. Macpherson. Lendo a principal obra de Hobbes, é importante não deixar de lado as partes 3 e 4, para se entender a importância que tinha, na época, a crítica da religião e do poder do clero.

Os temas tratados neste capítulo estão desenvolvidos em meu doutorado, Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo, São Paulo, Brasiliense, 1984. Na mesma linha, há o ensaio de Gérard Lebrun, "Hobbes en-deçà du libéralisme", na revista Manuscrito, Unicamp, 1 (4): 37-49, 1980.

Entre os melhores títulos dedicados a Hobbes estão Leo Strauss, The political philosophy of Thomas Hobbes, University of Chicago Press (dois capítulos estão traduzidos in Quirino & Sousa, orgs. O pensamento político clássico. São Paulo, T. A. Queiroz, 1980); Maurice Oakeshott, Hobbes on civil association, Oxford, 1975; Keith Thomas, "The social origins of Hobbes's political thought", in Keith Brown, org. Hobbes studies, Oxford, 1965. O livro de Macpherson, Teoria política do individualismo possessivo, mal traduzido em português, teve muito impacto no começo dos anos 60, quando foi editado.



* Trechos extraídos de Hobbes. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo, Nova Cultural, 1988. (Coleção Os Pensadores, 1)