Sumário: 24.1. Dispositivo legal – 24.2. Natureza jurídica – 24.3. Conceito – 24.4. Fundamento – 24.5. Dever legal – 24.6. Destinatários da excludente – 24.7. Limites da excludente – 24.8. Estrito cumprimento de dever legal e crimes culposos – 24.9. Comunicabilidade da excludente da ilicitude – 24.10. Questões.
Dispõe o art. 23, III, 1.ª parte, do Código Penal: “Não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento de dever legal”.
Cuida-se de causa de exclusão da ilicitude, o que se extrai tanto pela rubrica marginal do art. 23 do Código Penal (“exclusão de ilicitude”), como também pela redação do dispositivo legal (“não há crime”).
Ao contrário do que fez em relação ao estado de necessidade e à legítima defesa, o Código Penal não apresentou o conceito de estrito cumprimento de dever legal, nem seus elementos característicos.
Pode-se defini-lo, contudo, como a causa de exclusão da ilicitude que consiste na prática de um fato típico, em razão de cumprir o agente uma obrigação imposta por lei, de natureza penal ou não.
Seria despropositado a lei impor a determinadas pessoas a prática de um ato, e, ao mesmo tempo, sujeitá-la em face de seu cumprimento a uma sanção penal, em razão de consistir o seu mandamento em um fato descrito em lei como crime ou contravenção penal. Se no Brasil, por exemplo, fosse rotineira a aplicação da pena de morte, não poderia ser o executor responsabilizado pelos homicídios eventualmente praticados.
Com efeito, na eximente em apreço a lei não determina apenas a faculdade, a escolha do agente em obedecer ou não a regra por ela estabelecida. Há, em verdade, o dever legal de agir. É o caso, por exemplo, do cumprimento de mandado de busca domiciliar em que o morador ou quem o represente desobedeça à ordem de ingresso na residência, autorizando o arrombamento da porta e a entrada forçada (CPP, art. 245, § 2.º). Em decorrência do estrito cumprimento do dever legal, o funcionário público responsável pelo cumprimento da ordem judicial não responde pelo crime de dano, e sequer pela violação de domicílio.
O Superior Tribunal de Justiça nos fornece outro exemplo na seara dos crimes contra a honra:
A manifestação considerada ofensiva, feita com o propósito de informar possíveis irregularidades, sem a intenção de ofender, descaracteriza o tipo subjetivo nos crimes contra a honra, sobretudo quando o ofensor está agindo no estrito cumprimento de dever legal.1
O dever legal engloba qualquer obrigação direta ou indiretamente resultante de lei, em sentido genérico, isto é, preceito obrigatório e derivado da autoridade pública competente para emiti-lo. Compreende, assim, decretos, regulamentos, e, também, decisões judiciais, as quais se limitam a aplicar a letra da lei ao caso concreto submetido ao exame do Poder Judiciário.
O dever legal pode também originar-se de atos administrativos, desde que de caráter geral, pois, se tiverem caráter específico, o agente não estará agindo sob o manto da excludente do estrito cumprimento de dever legal, mas sim protegido pela obediência hierárquica (causa de exclusão da culpabilidade), se presentes os requisitos exigidos pelo art. 22 do Código Penal.
Destarte, o cumprimento de dever social, moral ou religioso, ainda que estrito, não autoriza a aplicação dessa excludente da ilicitude. Exemplo: comete crime de violação de domicílio o padre ou pastor que, a pretexto de espantar os maus espíritos que lá se encontram, ingressa sem permissão na residência de alguém.
Para Julio Fabbrini Mirabete, a excludente pressupõe no executor um funcionário público ou agente público que age por ordem da lei, não se excluindo o particular que exerça função pública (jurado, perito, mesário da Justiça Eleitoral etc.).2
Prevalece, contudo, o entendimento de que o estrito cumprimento de dever legal como causa de exclusão da ilicitude também se estende ao particular, quando atua no cumprimento de um dever imposto por lei. Nesse sentido, não há crime de falso testemunho na conduta do advogado que se recusa a depor sobre fatos que tomou conhecimento no exercício da sua função, acobertados pelo sigilo profissional (Lei 8.906/1994 – Estatuto da OAB, arts. 2.º, § 3.º, e 7.º, XIX).
O cumprimento deve ser estritamente dentro da lei, ou seja, deve obedecer à risca os limites a que está subordinado. De fato, todo direito apresenta duas características fundamentais: é limitado e disciplinado em sua execução.
Fora dos limites traçados pela lei, surge o excesso ou o abuso de autoridade. O fato torna-se ilícito, e, além de livrar do cumprimento aquele a quem se dirigia a ordem, abre-lhe ainda espaço para a utilização da legítima defesa.
A excludente é incompatível com os crimes culposos, pois a lei não obriga ninguém, funcionário público ou não, a agir com imprudência, negligência ou imperícia.
A situação, geralmente, é resolvida pelo estado de necessidade. Exemplo: o bombeiro que dirige a viatura em excesso de velocidade para salvar uma pessoa queimada em incêndio, e em razão disso atropela alguém, matando-o, não responde pelo homicídio culposo na direção de veículo automotor, em face da exclusão do crime pelo estado de necessidade de terceiro.
Em caso de concurso de pessoas, o estrito cumprimento de dever legal configurado em relação a um dos agentes estende-se aos demais envolvidos no fato típico, sejam eles coautores ou partícipes.
É evidente que um fato típico não pode ser lícito para um dos agentes, e simultaneamente ilícito para os demais. Exemplo: o policial militar, auxiliado por um particular, arromba a porta de uma residência durante o cumprimento de mandado de busca e apreensão. Inexistem crimes de dano e de violação de domicílio para ambos os sujeitos (policial militar e particular).
1. (MAGISTRATURA/PI – CESPE – 2011) Assinale a opção correta a respeito da ilicitude e das suas causas de exclusão.
(A) Considere que Antônio seja agredido por Lucas, de forma injustificável, embora lhe fosse igualmente possível fugir ou permanecer e defender-se. Nessa situação, como o direito é instrumento de salvaguarda da paz social, caso Antônio enfrentasse e ferisse gravemente Lucas, ele deveria ser acusado de agir com excesso doloso.
(B) Se a excludente do estrito cumprimento do dever legal for reconhecida em relação a um agente, necessariamente será reconhecida em relação aos demais coautores, ou partícipes do fato, que tenham conhecimento da situação justificadora.
(C) Considere que, para proteger sua propriedade, Abel tenha instalado uma cerca elétrica oculta no muro de sua residência e que duas crianças tenham sido eletrocutadas ao tentar pulá-la. Nesse caso, caracteriza-se exercício regular do direito de forma excessiva, devendo Abel responder por homicídio culposo.
(D) Em relação ao estado de necessidade, adota-se no CP a teoria diferenciadora, segundo a qual a excludente de ilicitude poderá ser reconhecida como justificativa para a prática do fato típico, quando o bem jurídico sacrificado for de valor menor ou igual ao do bem ameaçado.
(E) No que se refere ao terceiro que sofre a ofensa, o estado de necessidade classifica-se em agressivo, quando a ação é dirigida contra o provocador dos fatos, e defensivo, quando o agente destrói bem de terceiro inocente.
2. (43.º Promotor de Justiça – MP/MG) A respeito das causas legais de exclusão da ilicitude, marque a alternativa INCORRETA.
(A) A chamada legítima defesa recíproca não é admissível na modalidade autêntica ou real.
(B) Admite-se estrito cumprimento de dever legal nos crimes culposos.
(C) Ocorre exercício regular de direito quando alguém atua exercendo um direito que lhe é outorgado por um ramo da Ciência Jurídica.
(D) Pode ocorrer estado de necessidade recíproco nas modalidades real e putativo.
(E) Segundo o Código Penal, o agente responderá, em qualquer das causas de justificação, por excesso doloso ou culposo.
3. (Delegado de Polícia MG – 2007) Com relação às causas excludentes de ilicitude, é CORRETO afirmar que:
(A) Não existem causas supralegais de exclusão da ilicitude, uma vez que o art. 23 do Código Penal pode ser entendido como numerus clausus.
(B) Não se reconhece como hipótese de legítima defesa a circunstância de dois inimigos que, supondo que um vai agredir o outro, sacam suas armas e atiram pensando que estão se defendendo.
(C) São requisitos para configuração do estado de necessidade a existência de situação de perigo atual que ameace direito próprio ou alheio, causado ou não voluntariamente pelo agente que não tem dever legal de afastá-lo.
(D) Trata-se de estrito cumprimento de dever legal a realização, pelo agente, de fato típico por força do desempenho de obrigação imposta por lei.
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1 Apn 348/PA, rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Corte Especial, j. 18.05.2005.
2 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. Parte geral. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2007. v. 1, p. 185.