UM ANÍBAL ROMANO:
CIPIÃO AFRICANO
Publius Cornelius Scipio Africanus
(c. 236-184 a.C.)
Minha mãe deu à luz um general (imperator), não um guerreiro (bellator)[1].
Um dos aspectos mais surpreendentes da Segunda Guerra Púnica foi o desejo do Senado romano de enviar exércitos para combater simultaneamente em diversos teatros bélicos e a persistência com a qual essas campanhas foram executadas, mesmo quando Aníbal marchou sobre a Itália e havia dúvidas quanto a como resolver o problema da guerra. Com o tempo, os esforços de Fábio, Marcelo e outros impediram a vitória dos cartagineses, porém a soma das suas realizações ainda era essencialmente no sentido de evitar que Roma perdesse o conflito. Campanhas na Hispânia, Sicília e Macedônia impediram que reforços e suprimentos chegassem ao exército de Aníbal, apoiando, dessa forma, o esforço de guerra dos romanos. Mesmo assim, no final, esses dramas se mostraram decisivos para as vitórias de Roma na Hispânia e na Sicília, as quais tornaram possível a invasão da África, que, por sua vez, forçou o retorno de Aníbal e, em última instância levou à capitulação de Cartago.
O peso de fazer guerra em tantos fronts separados era sustentado pelos grandes recursos da república romana, embora tais recursos fossem utilizados quase a ponto de extenuá-los. A sociedade romana era concebida em torno da guerra de um modo que a cartaginesa não era, mas isso não nos leva a entender a ampla visão estratégica e a séria determinação com as quais o Senado encarava o conflito. Os senadores também adotaram uma abordagem pragmática com relação à convenção política, permitindo que múltiplos termos consulares fossem assumidos por veteranos como Marcelo e Fábio. Em 210 a.C., eles concederam imperium proconsular e comando da guerra na Hispânia a Públio Cornélio Cipião, então com 27 anos de idade. Uma posição de tanta responsabilidade jamais fora concedida a um homem tão jovem. Contudo, a escolha logo se provou extremamente positiva. Foi Cipião que expulsou os cartagineses da Hispânia e, em seguida, levou o exército à África, onde conquistou uma vitória atrás da outra, derrotando finalmente o próprio Aníbal, em Zama, em 202 a.C.
É fácil subestimar quão surpreendente foi a mudança que as campanhas de Cipião promoveram no destino da guerra. Em 211 a.C., os exércitos romanos na Hispânia, que até então haviam tido sucesso contínuo, foram quase aniquilados. Uma pequena força remanescente conseguiu assegurar um modesto trecho de terra ao norte do rio Ebro, repelindo as tentativas dos cartagineses de expulsá-la. Cipião trouxe reforços despretensiosos, somando uma força total pouco maior que a de um exército consular, e enfrentou três exércitos púnicos, cada qual de tamanho semelhante ao seu. Mesmo assim, no espaço de quatro temporadas de campanhas, conseguiu expulsar os cartagineses da península. Mais tarde, na África, ludibriou grandes exércitos púnicos e obteve vantagens diante deles por meio de manobras, demonstrando a mesma superioridade sobre o inimigo que Aníbal demonstrara sobre os comandantes romanos que o enfrentaram na Itália. Ele adotou o nome Africano, como lembrança permanente de ter sido o homem que pôs fim à guerra com Cartago.
A Segunda Guerra Púnica dominou a vida de Cipião. Ele tinha 17 anos de idade quando o conflito começou e tomou parte na primeira ação da campanha italiana em Ticino. Mais tarde esteve provavelmente em Trébia, talvez em Trasimeno e com certeza em Canas. Como todos os aristocratas da sua geração, enfrentou mais períodos de árduo serviço militar do que quaisquer romanos antes ou depois do seu tempo. Se não fossem mortos ou ficassem incapacitados devido a feridas ou doenças, esses homens conquistariam, com pouca idade, uma experiência militar muito superior àquela que a maioria dos senadores obtivera em toda a sua vida. Quase todos tornaram-se oficiais capazes e muitos provaram ser excepcionalmente dotados. Cipião destacou-se até entre seus pares. Na época que a guerra terminou, ele tinha apenas seus 35 anos de idade e já passara a maior parte da vida em campanha, comandando um exército durante oito anos e combatendo e vencendo cinco grandes batalhas, bem como incontáveis cercos e escaramuças menores. O catálogo das suas realizações diminuía os feitos de qualquer outro senador, porém, embora ele ainda detivesse o comando em 205, era tecnicamente jovem demais para ser cônsul. A república, que estava muito contente com seus serviços durante a Segunda Guerra Púnica, esforçava-se por encontrar uma posição adequada para ele, uma vez que seu sistema político deveria evitar que qualquer indivíduo amealhasse muito poder ou influência. Em circunstâncias normais ele poderia esperar ter trinta anos ou mais de vida pública ativa, mas o mundo do início do século II a.C. não apresentava oportunidades para igualar, quanto mais superar, seus sucessos iniciais. No final, ele foi forçado a sair da política e a enfrentar uma amarga aposentadoria, morrendo desapontado e relativamente jovem.
Sensível, inteligente e carismático, Cipião tinha a confiança sem limites de um patrício que sabia desde a infância que estava destinado a exercer papel proeminente na vida pública de Roma. Algumas das histórias sobre o início da sua vida têm muito em comum com as contadas sobre os príncipes e reis helênicos. Mais tarde, um mito idêntico a uma lenda associada a Alexandre, o Grande inferia ancestralidade divina para ele, pois afirmava que sua mãe tinha sido vista no leito com uma grande cobra. Cipião era certamente um homem religioso, que, na juventude, desenvolvera o hábito de sentar-se em solitário silêncio no templo de Júpiter, no Capitólio, antes do amanhecer[2].
Mais tarde, afirmaria abertamente que seus planos eram, às vezes, guiados por sonhos enviados pelos deuses. Segundo argumentava Pólibio, grego racional que achava que os romanos inclinavam-se à superstição excessiva, Cipião não acreditava, de fato, nas suas afirmações, mas compreendia que os menos sofisticados eram imediatamente influenciados por abordagens como essa. O historiador viveu na casa do neto adotivo de Africano, Cipião Emiliano, e, dessa forma, tinha acesso às tradições e histórias da família. Ele também conheceu o velho Lélio, que fora amigo próximo do Africano. No entanto, não é fácil saber se compreendeu corretamente o general ou atribuiu-lhe as atitudes da sua própria época por engano, sendo estas mais cínicas do que as das gerações anteriores. Cipião sem dúvida tinha um gênio para gestos teatrais, por isso suas razões verdadeiras podem bem ter sidos complexas, e não simplesmente manipuladoras ou totalmente sinceras[3].
O pai de Cipião, também chamado Públio, foi cônsul em 218, e, como muitos filhos, o rapaz acompanhou seu pai em campanhas como companheiro de tenda, ou contubernalis. A prática era vista como uma boa maneira de os jovens aristocratas conseguirem experiência militar. A maior parte do exército do cônsul foi para a Hispânia sob o comando do seu irmão mais velho, Cneu (colega de Marcelo como cônsul, em 222), mas Cipião retornou à Itália com o pai quando este descobriu que Aníbal deslocava seu exército com a intenção de cruzar os Alpes. Em novembro de 218, o cônsul levou sua cavalaria e a infantaria ligeira (velites), cruzando o rio Ticino para localizar a posição do inimigo e descobrir seu tamanho e intenções. Tendo encontrado uma força numericamente superior e mais bem treinada, com a cavalaria liderada pelo próprio Aníbal, os romanos foram dispersados. O cônsul foi ferido e, de acordo com o mito familiar, sobreviveu apenas por causa da intervenção de seu filho. De acordo com Políbio, o jovem Públio recebera o comando de uma tropa de cavalaria e estava estacionado à retaguarda fora de perigo. Vendo o pai isolado com apenas alguns guardas e ameaçado por vários cavaleiros inimigos, Cipião conclamou seus homens ao resgaste. Recusaram-se a ir e foi apenas depois de ele ter esporeado seu cavalo num ataque solitário que se envergonharam e o seguiram. Plínio, o Velho, escrevendo no século I d.C., afirmou que o cônsul ofereceu a seu filho a corona civica, porém Cipião não a aceitou. Entretanto, Lívio menciona outra versão da história, registrada na história perdida de Célio: a de que, de fato, quem salvou o cônsul foi um escravo lígure, embora ele diga que a maioria das autoridades atribui o feito a Cipião[4].
Quando o cônsul recuperou-se do seu ferimento, foi, na qualidade de procônsul, unir-se ao seu irmão Cneu na Hispânia. Seu filho permaneceu na Itália e, em 216, virou tribuno militar da Segunda Legião, uma das oito unidades sob o comando conjunto dos cônsules daquele ano, Lúcio Emiliano Paulo e Caio Terêncio Varro. Cipião estava casado – ou iria casar-se em breve, a cronologia é incerta – com a filha de Paulo, Emília, de forma que esse foi outro exemplo de uma prática comum, a partir da qual os jovens aristocratas conquistavam experiência militar num exército comandado por um parente. Não obstante, uma expressiva proporção da aristocracia romana voluntariou-se para servir naquele ano, unindo-se ao grande exército que deveria confrontar e derrotar o inimigo que tinha humilhado a república. O resultado não foi conforme os romanos esperavam, pois o exército de Aníbal, em menor número, cercou e quase aniquilou a grande força romana em Canas. Os óbitos foram assustadores e especialmente altos entre as famílias senatoriais. Paulo morreu, bem como mais de oitenta senadores, entre eles Minúcio Rufo, Magister Equitum de Fábio, e mais da metade dos tribunos militares. Cipião sobreviveu e foi um dos quatro tribunos que se viu com o amplo corpo de fugitivos na cidade próxima, Canúsio.
Apesar de um dos outros tribunos ser o filho de Fábio Máximo, que seria eleito cônsul em 213, o comando foi dado aos dois homens mais jovens, Cipião e Apiano Cláudio. O último tinha sido edil pouco antes, mas foi sua confiança e força de caráter, mais do que a experiência, que fez os outros seguirem sua liderança. A escala do holocausto gerou pânico em muitos dos sobreviventes. Um grupo de jovens nobres, inclusive os filhos de magistrados distintos, falavam abertamente em abandonar sua república condenada e fugir para o exterior. Cipião foi com alguns poucos soldados ao alojamento – provavelmente uma casa na cidade – do seu líder Quinto Cecílio Metelo, onde os desertores realizavam, de forma tipicamente romana, um conselho (consilium) para discutir o que fazer. Invadindo o local, o tribuno de 20 anos de idade, espada na mão, fez um juramento solene a Júpiter Ótimo Máximo, invocando uma maldição sobre ele e sua família caso quebrasse a promessa. O juramento declarava que ele nunca desertaria a república nem permitiria que qualquer outro o fizesse, e que mataria os desertores se fosse necessário. Ele obrigou que cada um dos presentes fizesse os mesmos votos. Nos dias que se seguiram, mais fugitivos do exército chegaram à cidade, de modo que, quando o cônsul sobrevivente chegou para assumir a força, mais de dez mil homens já se reuniam ali. Era um pequeno número de remanescentes dos 86 mil homens que marcharam para a batalha na manhã de 2 de agosto, mas era um começo[5].
Na sequência de Canas, Cipião personificara a virtus esperada de um aristocrata romano, especialmente um membro de uma família distinta, ao enfrentar uma adversidade. Seu comportamento destacou-se ainda mais diante do fato de membros da sua própria classe terem começado a fraquejar. Os romanos aceitavam que, por vezes, sofreriam derrotas, porém recusavam-se a acreditar que esse seria o resultado final. Todos os cidadãos, principalmente os nascidos na classe alta, deveriam lutar com bravura, mas, desde que fizessem isso, não havia vergonha na derrota. Não se esperava que um líder derrotado morresse combatendo nem cometesse suicídio, a não ser que não tivesse outra alternativa. Em vez disso, ele deveria começar a reconstituir a força do exército, recuperando o maior número possível de homens do caos de uma batalha perdida e preparando-se para o encontro com o inimigo, pois sempre haveria uma próxima vez, e finalmente Roma venceria. Tal era o espírito que unia Fábio e Marcelo, apesar de suas abordagens radicalmente diferentes ao enfrentar Aníbal, porque ambos nunca questionaram se Roma deveria continuar lutando ou se venceria no final do conflito. O conceito de virtus implicava que quaisquer dificuldades, mesmo as mais aterrorizantes, deveriam ser enfrentadas e que a guerra deveria continuar até a obtenção da vitória. Quando Varro, o cônsul acusado do desastre de Canas, voltou a Roma, foi formalmente saudado pelo Senado, com os agradecimentos por “não ter deixado a república em desespero”[6].
Em 213, Cipião foi eleito ao cargo de Curule Aedile, mas pouco mais se conhece sobre sua carreira depois de 216. É provável que tenha continuado no serviço militar, devido ao alto nível de mobilização naqueles anos. Contudo, não foi até ser nomeado para o comando espanhol, em 210, que outras fontes voltaram a descrever sua atividade. No ano anterior, seu tio e seu pai foram mortos, quando a deserção dos aliados celtiberos deixou os exércitos romanos na Hispânia perigosamente expostos e em número muito inferior ao do inimigo. Alguns remanescentes do exército permaneceram sob o comando de um oficial equestre, chamado Lúcio Márcio, e conseguiram controlar uma área no nordeste da Hispânia, porém a maior parte dos aliados de Roma desertou em favor do inimigo. O Senado enviou Caio Cláudio Nero para assumir o comando, e, ao que parece, ele venceu algumas pequenas ações, antes de voltar à Itália no ano seguinte. Ao que parece, houve considerável incerteza com relação à escolha de seu sucessor. Muitos dos comandantes romanos mais ambiciosos e destacados – e não devemos esquecer que, com os óbitos da guerra, havia poucos homens de destaque e prontos para o serviço – não tinham entusiasmo para aceitar um posto na Hispânia. A situação peninsular era ruim e os recursos disponíveis para a região, modestos. De 218 a 211, Cneu e Públio Cipião reclamaram repetidas vezes ao Senado que não recebiam nem homens nem fundos suficientes para derrotar o inimigo. Incapaz de chegar ao consenso sobre o comandante adequado, Lívio afirmou que o Senado recorreu à decisão de resolver o impasse por meio de eleição e, assim, foi reunida a Comitia Centuriata. No primeiro momento, nenhum candidato surgiu; então Cipião anunciou, de repente, seu desejo de concorrer, sendo eleito por unanimidade. Entretanto, sua juventude – ele tinha por volta de 25 anos – e sua inexperiência fizeram que muitos cidadãos questionassem se não teriam agido de forma precipitada. Só depois de Cipião fazer seu discurso tiveram certeza de que a escolha fora acertada. A narrativa de Lívio é muito estranha, pois não há evidência de que os romanos tivessem jamais agido de maneira semelhante, de modo que diversos estudiosos rejeitam tal versão dos eventos. Uma hipótese é que o Senado já tivesse decidido escolher Cipião e, em seguida, realizara uma eleição pública para garantir legitimidade oficial para o que era considerado uma atitude pouquíssimo ortodoxa. Sejam quais forem os detalhes, Públio Cornélio Cipião foi enviado como procônsul para comandar o exército na Hispânia[7].
Cipião aportou em Emporion – colônia grega na Hispânia, aliada dos romanos desde antes da guerra – com cerca de dez mil homens como reforço, o que elevou o total do contingente romano na província a 28 mil homens de infantaria e três mil de cavalaria. Havia três exércitos de campo cartagineses na península, cada qual com força igual ou superior, comandados respectivamente pelos irmãos de Aníbal, Asdrúbal e Mago, e pelo filho de Asdrúbal, Gisgo. Contudo, o jovem comandante romano estava extremamente confiante. Antes de deixar Roma, ele havia concluído que o desastre de 211 não se devera ao brilhantismo dos cartagineses. Seu pai e seu tio haviam recrutado vinte mil celtiberos para a campanha final. Otimistas por conta desse grande aumento das suas forças, dividiram o exército em dois e agiram de forma independente. Quando os celtiberos mostraram que não eram confiáveis e desertaram em massa, cada um dos irmãos foi atacado separadamente e ambos foram esmagados pelo enorme número de inimigos. Cipião estava determinado a não repetir o mesmo erro e foi à Hispânia com o objetivo de agir com agressividade, em lugar de simplesmente ficar na defensiva e manter-se na pequena região ainda controlada por Roma[8].
Políbio leu e mencionou uma carta escrita por Cipião ao rei Filipe V da Macedônia, na qual explicava como planejou sua primeira operação na Hispânia. Em 210 a.C., Roma estava em guerra com a Macedônia, um conflito que terminou em 205, mas recomeçou quase que imediatamente após o final da Segunda Guerra Púnica, de modo que a correspondência deve datar do começo do século seguinte. Pode ter sido escrita em 190 a.C., quando Cipião acompanhou seu irmão numa campanha à Ásia Menor, ocasião em que seu exército recebeu ajuda e apoio de Filipe V, derrotado em 197 e naquele momento, aliado de Roma. É mais do que provável, então, que essa fonte tenha sido escrita vinte anos depois dos eventos que descreve e, possivelmente, reflita uma visão em retrospectiva, por isso deve ser tratada com a mesma cautela que as recordações de comandantes mais recentes. Mesmo assim, é a primeira vez que temos uma indicação do pensamento de um general romano ao planejar uma campanha[9].
Na Hispânia, Cipião começou a reunir mais informação sobre a força e a disposição do inimigo. Os relatos foram encorajadores. Os três exércitos púnicos haviam se separado e estavam operando a certa distância uns dos outros. Asdrúbal Gisgo estava na Lusitânia (equivalente ao moderno Portugal), próximo da foz do rio Tejo. Asdrúbal Barca fazia o cerco à cidade de Carpetâni, na Hispânia Central, enquanto seu irmão Mago estava, provavelmente, estacionado no extremo sudoeste da península, apesar de uma aparente contradição no texto de Políbio dificultar sua localização precisa[10]. Agora que a capacidade romana para uma ação ofensiva na Hispânia parecia virtualmente destruída, não havia motivo para os cartagineses manterem suas forças concentradas, o que aumentava demais o problema de abastecer as tropas. Seu deslocamento foi provocado pela fricção entre os três generais e também pela crescente necessidade de suprimir rebeliões entre as tribos aliadas ou submetidas a Cartago. O domínio púnico parece ter se tornado mais rígido quando o temor de deserções para Roma foi removido. Havia pouco desejo entre as tribos de permanecer ao lado de Cartago; mesmo assim, naquele momento continuavam a respeitar o poder militar púnico. Quando a sorte de Roma começou a mudar, muitos tentaram aliar-se a Roma, fornecendo a Cipião valiosos contingentes de tropas, embora ele tenha permanecido fiel à resolução inicial de não confiar demasiadamente nos aliados.
Cipião decidira lançar uma ofensiva, e um dos exércitos púnicos oferecia um alvo óbvio para esse intento. Seu próprio exército era poderoso o bastante para enfrentar e derrotar qualquer uma das forças, desde que fosse capaz de combater em circunstâncias razoavelmente favoráveis. No entanto, para garantir isso, era preciso manobrar com cautela e provavelmente ganhar tempo. As batalhas formais desse período raramente ocorriam antes de dias ou semanas de preparação, depois de os exércitos terem se aproximado. Quando um dos lados ocupava uma posição forte e recusava-se a deixá-la, poucos comandantes arriscavam um ataque. Mesmo Aníbal, apesar do seu gênio, não foi capaz de ludibriar Fábio Máximo e obrigá-lo a combater, e tampouco quis lutar no terreno escolhido pelos romanos. Entretanto, por mais amargas que as disputas entre os generais cartagineses possam ter sido, muito certamente não esperaram de maneira passiva que Cipião derrotasse cada um deles. Portanto, logo que a presença romana foi descoberta, mensageiros foram despachados para buscar ajuda. Se Cipião não conseguisse lutar e vencer essa batalha em até duas semanas depois de se aproximar do inimigo – e a expectativa de receber reforços iria, sem dúvida, impedir que os cartagineses se arriscassem a uma batalha –, então ele ficaria em séria desvantagem numérica, podendo enfrentar desastre semelhante àqueles que esmagaram seu pai e tio.
Assim, em vez de buscar uma batalha decisiva contra um exército púnico separado dos demais, Cipião decidiu atacar a base inimiga de maior importância na Hispânia, a cidade de Nova Cartago (a moderna Cartagena). Fundada pelo pai de Aníbal, Amílcar, como sede do governo da Província Púnica da Hispânia e local onde começou a épica marcha à Itália, em 218, Nova Cartago era um símbolo marcante do orgulho púnico – e especialmente barsida. Quase todas as colônias cartaginesas tinham um porto, mas o de Nova Cartago era maior e com melhor infraestrutura do que qualquer outro na Hispânia. Além dos registros e tesouros do governo provinciano, a cidade abrigava hóspedes (prisioneiros) das famílias nobres de muitas comunidades espanholas. Havia também reservas consideráveis de alimentos e equipamento militar, bem como fábricas e mão de obra especializada para produzir armamentos. Por isso, Nova Cartago era um alvo atraente, cuja captura abalaria o moral do inimigo e enfraqueceria sua capacidade de fazer guerra, ao mesmo tempo em que aumentaria a dos romanos.
Cada um dos exércitos cartagineses estava a pelo menos dez dias de marcha da cidade, e sua guarnição de soldados treinados era relativamente pequena. Mesmo assim, Nova Cartago era uma cidade fortificada, protegida de um lado pelo mar e do outro por um lago salgado, de modo que poderia ser atacada apenas por terra através de um estreito istmo. Nesse período, locais fortificados dificilmente caíam num ataque direto. Os cercos tendiam a ser mais bem-sucedidos, embora seu sucesso fosse incerto, mas tal operação demoraria meses, e Cipião tinha, na melhor das hipóteses, poucas semanas antes da chegada de um ou mais exércitos. Resultados mais rápidos eram obtidos por meio de traição, porém não havia perspectiva de que isso pudesse ocorrer. Cipião, entretanto, recebeu uma informação que se mostraria vital. Ele havia procurado pescadores e marinheiros da cidade aliada de Tarraco (Tarragona), homens que navegavam regularmente ao longo da costa até Nova Cartago. Isso é uma indicação do cuidado com que o general romano preparou sua campanha. Os homens lhe disseram que o lago ao norte da cidade poderia ser atravessado em determinado local e que o nível da água caía ainda mais à noite. O que os pescadores não lhe disseram foi como seus homens poderiam abrir caminho lutando na muralha norte da cidade, quando tivessem atravessado o lago.
Cipião passou o inverno visitando suas tropas, supervisionando seu treinamento e indo até as poucas cidades aliadas a Roma, e resolveu atacar a cidade, mas ainda confiava apenas no seu amigo próximo e subordinado de maior graduação, Lélio. Ele elogiava abertamente suas tropas, desdenhava das realizações cartaginesas nas duas últimas campanhas e falava em conseguir uma oportunidade para uma ação ousada contra o inimigo na primavera. Tomou cuidado particular ao louvar e honrar Lúcio Márcio, o cavaleiro que, por conta da força de sua personalidade, comandara os sobreviventes dos exércitos romanos depois do desastre de 211, mas que havia irritado o Senado ao referir-se a si mesmo como “propretor” em suas cartas. No começo da temporada de campanhas, ele concentrou suas forças perto da foz do Ebro. Apenas três mil soldados a pé e quinhentos a cavalo foram deixados para defender a área que ainda era leal a Roma. A força principal de 25 mil homens da infantaria e 2,5 mil soldados da cavalaria cruzou o rio sob o comando direto de Cipião. Uma esquadra de 35 galeras de guerra, muitas das quais com tripulação menor que a necessária, navegaram sob Lélio para encontrar-se com o exército em Nova Cartago[11].
Os detalhes da primeira fase da operação são um pouco obscuros. Políbio nos diz que Cipião chegou às vizinhanças de Nova Cartago no sétimo dia de uma marcha rápida. O texto infere – apesar de, ao contrário de Lívio, não afirmar isto explicitamente – que a marcha teve início no Ebro. Em algum lugar do texto, ele nos informa que a distância de Nova Cartago ao Ebro era de 2,6 mil estádios, ou quinhentos quilômetros, o que implica uma velocidade média de 72 quilômetros por dia. Esse movimento é marcantemente veloz, em especial para um exército com bagagem, e pode ser que o número esteja errado ou descreva apenas a última fase do acercamento a partir de um local mais próximo. Contudo, a marcha foi provavelmente rápida para os padrões da época e correu sem maiores percalços, com o exército e a frota reunindo-se do lado de fora da fortaleza conforme planejado. Não se sabe quando Cipião revelou seu objetivo aos seus oficiais superiores[12].
Nova Cartago ficava numa área limitada ao norte pelo lago e pela baía que formava seu porto natural ao sul; um canal ligava os dois. A cidade era cercada por uma muralha de quatro quilômetros de circunferência – um detalhe que Políbio afirma ter confirmado pessoalmente quando visitou o local – e incluía cinco colinas, uma das quais possuía uma cidadela no cume. O comandante da guarnição, outro Mago, tinha mil soldados regulares apoiados por um grupo de homens da cidade, cerca de dois mil deles razoavelmente bem equipados e confiantes. Cipião acampou no terreno elevado no final do fino trecho de terra que levava ao portão principal. Ordenou a construção de um baluarte de terra, com uma trincheira na frente que ia de um lado do istmo ao outro, à retaguarda do seu acampamento, porém deixou deliberadamente sem fortificação a parte frontal mais próxima da cidade. Era uma expressão de confiança, mas não um grande risco, uma vez que o terreno elevado conferia aos seus homens clara vantagem. Cipião preparou o ataque, falando à tropa sobre a importância da cidade e prometendo grandes recompensas aos mais valentes, inclusive a coroa mural (Corona Muralis), que seria conferida ao primeiro homem que galgasse a muralha. Também proclamou que Netuno, o deus do mar, aparecera para ele em sonho e prometera que, quando fosse o momento certo, viria em sua ajuda. Políbio, uma vez mais, viu nisso uma armação cínica[13].
O ataque começou na terceira hora do dia seguinte. Vinha de duas direções: dos navios de Lélio, que remaram através da enseada e atacaram a partir do mar, e de dois mil soldados apoiados por auxiliares portando escadas, que atacaram a partir do seu acampamento. Mago dividira seus soldados regulares entre a cidadela e outra colina, a qual tinha um templo dedicado ao deus da cura, Asclépio, no cume, cuja face voltava-se à enseada. Os melhores homens foram colocados de prontidão para atacar a partir do portão principal, enquanto o restante foi distribuído ao redor das muralhas, armados com flechas, dardos e outros projéteis para defender-se do inimigo. Quase imediatamente depois de Cipião ter dado o toque de trombeta ordenando que a tropa de assalto atacasse, Mago ordenou que os civis armados saíssem pelo portão principal, esperando quebrar o ímpeto do ataque romano antes de este chegar à muralha da cidade.
Uma característica surpreendente de muitos cercos na Antiguidade era a vontade que tinha o defensor de deixar a segurança das suas fortificações e combater em espaço aberto. Era uma expressão de confiança com a intenção de intimidar o atacante, a qual servia ao propósito prático de atrasar o verdadeiro ataque. Em uma linha frontal estreita como essa, era difícil para os romanos fazer com que sua grande força combatesse de imediato, e não havia certeza de que os cartagineses pudessem ser flanqueados. No confronto inicial, dois mil defensores enfrentaram um número semelhante de romanos. De forma provavelmente deliberada, já que esperava infligir pesadas baixas aos defensores mais ousados, Cipião manteve seus homens próximos ao acampamento, de modo que as linhas dos combatentes encontravam-se a cerca de 500 metros das muralhas da cidade.
Os cartagineses podem não ter sido soldados treinados, mas demonstraram entusiasmo considerável e, num primeiro momento, o combate parecia equilibrado. Além do clamor da luta, ouviam-se os gritos dos defensores nas muralhas estimulando os soldados e também dos guerreiros romanos que ainda não haviam entrado na luta. Entretanto, Cipião colocou o núcleo do seu exército em formação e o deixou esperando de prontidão a curta distância da linha de combate, enviando gradualmente tropas descansadas para lutar. Mago tinha poucas reservas para auxiliar seus homens, e elas tinham de sair da cidade por um único portão e vencer uma distância maior para entrar em combate. Os cartagineses começaram a ser repelidos e a pressão aumentou, até que cederam e começaram a fugir. A imensa maioria dos óbitos nas batalhas do mundo antigo era infligida nesse momento, quando um dos lados fugia do contato próximo e era perseguido pelo inimigo exultante e vingativo. A luta que havia começado tão bem terminou em caos, enquanto a horda de fugitivos corria para a salvação apresentada pelo único portão. O pânico alastrou-se, atingindo muitos dos que observavam do alto das muralhas, e, por um instante, pareceu que os romanos poderiam invadir a cidade juntamente com os fugitivos.
Cipião supervisionava a batalha de uma posição elevada, à frente do seu acampamento. Vendo a confusão dos defensores, enviou homens e grupos com escadas para escalar a muralha. O general acompanhou seus comandados, mas não era nenhum Marcelo para atacar, de espada na mão, à frente de suas tropas. Políbio nos conta que:
Cipião tomou parte na batalha, mas manteve-se sem segurança tanto quanto possível, pois tinha com ele três homens portando grandes escudos, os quais os manobravam de forma a cobrir a superfície exposta à muralha, protegendo-o desse modo. Ao passar pelos lados da sua linha de combate em terreno elevado, ele contribuiu enormemente para o sucesso que tiveram aquele dia, uma vez que podia tanto ver o que estava acontecendo como ser visto por todos os seus homens, o que inspirou os combatentes e elevou seu espírito.[14]
Ao permanecer próximo ao combate sem se envolver diretamente, Cipião assumiu os dois papéis que caracterizariam o estilo romano de comando por muitos séculos. Enquanto general, prestava atenção nos grandes e pequenos detalhes da batalha, intervindo até em decisões táticas menores quando necessário, mas sempre mantendo o foco no cenário maior do combate. Enquanto líder, e um líder que tinha prometido grandes recompensas aos mais ousados, agia como testemunha do comportamento dos seus homens. Segundo enfatizou Políbio, ele recompensou generosamente aqueles que executaram atos de coragem notáveis e puniu os que agiram de modo covarde, fatores importantes usados para estimular o espírito de combate e agressividade do exército romano. Os soldados de Roma lutavam melhor quando acreditavam que seu comportamento estava sendo observado por seus comandantes. No século I a.C., o historiador Salústio louvava o espírito guerreiro das gerações passadas, afirmando que “a maior competição para a glória era entre eles mesmos; cada homem esforçava-se por ser o primeiro a matar um inimigo, a escalar a muralha inimiga e, mais do que tudo, por ser visto realizando tal feito”[15]. Esse desejo de ter uma plateia para assistir e elogiar os feitos de coragem era sobrevivente do antigo ethos heroico familiar aos guerreiros de Homero. Era o espírito que tinha inspirado a conduta de Marcelo e de muitos generais romanos antes dele, mas que Cipião deliberadamente evitou. Conforme disse Políbio, ele já provara sua coragem em Ticino e Canas e tinha decidido corretamente que havia coisas mais importantes para um general realizar. Assim, concentrou-se em dirigir a batalha, fazendo isso perto da refrega, porque desse modo tinha melhores oportunidades de julgar como as coisas se desenrolavam, ao mesmo tempo em que minimizava o risco para si próprio.
Não era uma tarefa fácil tomar e defender uma muralha. No caos inicial que se seguiu à fuga da força civil cartaginesa, os romanos conseguiram chegar ao pé da muralha e colocar suas escadas, porém a muralha era a parte mais alta e mais forte das defesas da cidade, e além disso ainda restavam alguns defensores. Algumas escadas quebraram sob o peso dos soldados que as escalavam, enquanto outras foram empurradas ao chão pelos cartagineses. É possível que outras não fossem altas o bastante, uma vez que era sempre extremamente difícil para os atacantes calcular a altura necessária antes de um ataque. Em Siracusa, os homens de Marcelo aproveitaram um período de negociações para contar o número de pedras que se erguiam em uma das seções da muralha da cidade. Multiplicando o resultado pelo tamanho estimado de uma única pedra, eles calcularam corretamente a altura e construíram suas escadas de acordo com a medida[16].
Uma barragem de projéteis saudou os soldados que tentavam escalar a muralha, bem como os homens da esquadra que atacavam do mar. Pouco tempo depois, muitos dos defensores que haviam fugido em pânico foram reunidos e colocados de volta com seus camaradas na muralha. Cada tentativa dos romanos de invadir a cidade era repelida, e o número de óbitos só aumentava. Depois de algum tempo, Cipião decidiu que seus homens estavam muito desgastados para continuar e cancelou os ataques, retirando os soldados para o acampamento, onde descansaram e reagruparam-se. Mago e seus defensores ficaram aliviados, acreditando que tinham rechaçado o ataque principal do inimigo, porém mais tarde naquele dia viram, desanimados, que os romanos retomavam a investida. Escadas novas foram trazidas em maior quantidade, e os legionários atacaram com entusiasmo redobrado. Mesmo assim, apesar de os defensores já estarem com poucos projéteis para arremessar contra os romanos, os homens de Cipião ainda não foram capazes de tomar a muralha.
O dia já findava e a maré na lagoa começava a baixar. Cipião tinha preparado uma unidade de quinhentos homens descansados, escolhidos a dedo para cruzar a lagoa a pé e atacar a muralha a partir de uma nova direção. Ele foi com os soldados até a beira da lagoa e os encorajou a entrar na água, mas, fiel à sua resolução de dirigir a batalha e não se envolver diretamente, não liderou o ataque. Guias, presumivelmente pescadores de Tarraco, mostraram o caminho através do lago. Chegaram à muralha sem dificuldade e descobriram que ela não estava protegida e tampouco era alta demais, uma vez que um ataque daquela direção era considerado difícil de ocorrer e todos os defensores haviam sido colocados do lado oposto da muralha, onde estava acontecendo a luta. Posicionando suas escadas contra a parede de pedra, eles subiram e marcharam ao longo do caminho que acompanhava o topo do muro rumo ao portão principal. Os poucos defensores que encontraram foram mortos facilmente ou repelidos, pois o longo escudo e a curta espada dos legionários romanos eram especialmente adequados ao combate num espaço confinado como aquele.
Alguns homens da força de ataque principal tinham visto seus camaradas correndo através de um lago aparentemente profundo e, testemunhando aquele milagre aparente, lembraram-se da afirmação de Cipião de que Netuno os iria ajudar. Com entusiasmo renovado, também eles correram para as muralhas. Um grupo ergueu seus escudos sobre a cabeça para formar um testudo e avançou para o portão, com os homens da primeira fila portando machados para abrir espaço entre as tábuas. Ao mesmo tempo, os quinhentos atacantes caíram por trás dos defensores daquela posição. O pânico alastrou-se quase que imediatamente, e a defesa ruiu. Os romanos atacaram o portão dos dois lados com seus machados até destruírem-no por completo, enquanto um número cada vez maior de soldados subia as escadas para invadir a cidade. Talvez devido à perda geral de entusiasmo por parte dos cartagineses, ou possivelmente por conta apenas de seus esforços, no mesmo momento os marinheiros de Lélio escalaram as muralhas próximas à enseada.
Os romanos ultrapassaram o principal circuito de defesa, mas isso não implicava a vitória. Os soldados regulares de Mago não pareciam ter participado da defesa e continuavam controlando a cidadela. As cidades antigas tendiam a ser superpovoadas, com ruas estreitas passando através de um labirinto de prédios. Uma vez dentro, era muito difícil para os comandantes de um exército invasor controlar seus homens ou responder a novas ameaças. Se um defensor fosse capaz de reunir homens suficientes ou possuísse reservas, então era bem possível que os atacantes fossem repelidos. Cipião entrou na cidade através do portão principal, quase ao mesmo tempo em que foi arrombado e conquistado. De fora da cidade, ele não podia ver o que estava acontecendo nem fazer coisa alguma que influenciasse o curso dos eventos. A maior parte do exército espalhou-se pelas ruas estreitas, com ordens de matar todos os que encontrasse, porém não começou a saqueá-las antes de receber um sinal para tanto. Políbio nos conta que essa era a prática normal dos romanos e suspeitava que fosse usada para aterrorizar, “de forma que, quando as cidades são tomadas pelos romanos, podem-se ver não apenas os cadáveres de seres humanos, mas cães cortados ao meio e patas desmembradas de animais, e tais cenas causam grande impacto nas pessoas do local”[17]. O saque promovido pelos romanos em uma cidade qualquer era extremamente brutal, e as raízes desse costume datam, provavelmente, das primeiras guerras predatórias do período arcaico. O massacre tinha a intenção de não dar qualquer possibilidade aos defensores de reunirem-se novamente e voltar ao combate. O saque era restrito e regulado, de modo que todo o exército romano se beneficiasse por igual, e essa garantia ajudava a evitar que as várias seções da força de ataque se desviassem da missão da qual foram incumbidas.
Enquanto grande parte do exército se dispersou espalhando o medo e massacrando todos na cidade, Cipião manteve um grupo de homens descansados em formação e sob seu controle rigoroso. Depois de passar pelo portão de entrada, seguiram a rua principal até o mercado. Desse ponto, despachou um destacamento para atacar uma das colinas que ainda estava sendo defendida e liderou a força maior de mil homens contra os mercenários cartagineses que detinham a cidadela. Após breve resistência, Mago rendeu-se. Uma vez dominada a cidadela e derrotada a resistência, Cipião ordenou que a trombeta fosse tocada dando a ordem de encerrar o massacre e iniciar o saque. Cada manípula deveria saquear uma área sistematicamente e todo o espólio deveria ser levado ao mercado. Esse processo era supervisionado pelos tribunos. Cipião e seus mil soldados ocuparam a cidadela durante toda a noite, enquanto outras tropas permaneciam de guarda no acampamento. Quando o butim terminou de ser leiloado – em grande parte aos mercadores romanos, que costumavam acompanhar os exércitos de campo de sua cidade, mas também possivelmente a alguns nativos –, os lucros foram distribuídos a todo o exército, cada homem recebendo o quinhão proporcional à sua patente. Talvez até mais importante que essa recompensa fosse o desfile no qual aqueles que se destacaram na ação eram condecorados e publicamente louvados pelo comandante. A certa altura, uma disputa entre a armada e as legiões sobre quem tinha escalado primeiro as muralhas da cidade quase resultou em violência, até que Cipião declarou que os rivais Sexto Dígito, da Marinha, e o centurião Quinto Trebélio, da Quarta Legião, escalaram as muralhas ao mesmo tempo e deu a cada um a Corona Muralis[18].
A captura da cidade foi uma realização notável, em especial por ser a primeira operação de um comandante novo e sem experiência em liderar uma força daquele tamanho. Sua ousadia era caracteristicamente romana, mas o planejamento e a preparação cuidadosos, que determinaram o rápido avanço em território inimigo, eram sinais de grande sofisticação militar, maiores do que as campanhas iniciais. Há debates entre estudiosos sobre a natureza exata do fenômeno natural que permitiu que seus homens atravessassem a lagoa, em parte porque nossas fontes são um tanto contraditórias. A principal controvérsia diz respeito a se o fenômeno era de ocorrência diária ou o resultado ocasional do vento soprando de uma certa direção. Se fosse este o caso, supõe-se que Cipião estava contando com a sorte. Se, porém, fosse uma ocorrência regular e previsível, conforme acreditava nossa fonte mais confiável, Políbio, então alguns historiadores questionam o motivo de os romanos não terem atacado daquela direção ao mesmo tempo em que lançaram o primeiro ataque. Essa perspectiva não leva em consideração a dificuldade de capturar uma linha de fortificações escalando-as. Embora as muralhas que davam para a lagoa fossem mais baixas, é improvável que o ataque tivesse êxito se a posição fosse defendida mesmo por um pequeno contingente. Os ataques dos romanos visavam desviar a atenção dos cartagineses daquele ponto vulnerável e, portanto, deviam ser realizados com força total, apesar do alto custo em termos de vidas. Havia sempre a pequena possibilidade de conseguirem seu intento por si próprios, como o ataque da esquadra pode ter feito. Ainda mais importante, Cipião apostou nessa possibilidade e em distrair Mago, de forma que o ataque a partir do lago tivesse chance de ser bem-sucedido.
Agora, a captura de Nova Cartago mudava completamente o equilíbrio do poder na Hispânia. Em termos práticos, Cipião conquistou recursos militares consideráveis, que iam de artilharia a dezoito navios de guerra para sua esquadra e suas tripulações constituídas de escravos, aos quais prometeu a libertação se servissem com fidelidade. A maior parte da população foi libertada, mas dois mil artesãos foram declarados escravos públicos e obrigados a fabricar armas e equipamentos para o exército romano. A estes também foi prometida a liberdade após a obtenção da vitória. Cerca de trezentos reféns de famílias nobres da Hispânia também caíram nas mãos dos romanos. As histórias do tratamento honroso que Cipião dedicou a essas pessoas, especialmente às mulheres, ecoam os relatos sobre a captura de mulheres nobres persas por Alexandre, o Grande. Elas foram colocadas sob sua proteção pessoal e, a despeito da reputação de mulherengo do jovem romano, nenhuma foi molestada de maneira alguma. Uma história conta que os legionários encontraram uma moça especialmente bela e a levaram ao seu comandante, mas que, depois de agradecer, ele recusou-se a tirar vantagem da situação e a enviou de volta aos seus pais. Lívio conta uma versão ainda mais romântica, na qual a moça foi devolvida ao seu noivo e Cipião assegurou em pessoa ao jovem aristocrata que a sua virtude permanecia intacta. A devolução dos reféns às suas famílias iniciou negociações diplomáticas que vieram a aumentar o número de tribos aliadas a Roma[19].
Nova Cartago deu a Cipião uma base no sul da Hispânia e lhe proporcionou mais recursos do que teria recebido da Itália. O esforço de guerra na península foi, dali em diante, autossustentado. Embora o número das suas tropas romanas e italianas permanecesse em essência o mesmo, estavam bem uniformizadas, equipadas, alimentadas e, como o comandante lhes impôs um treinamento rigoroso nos meses subsequentes à captura de Nova Cartago, altamente disciplinadas. Apesar dos muitos soldados aliados que se juntaram à sua força, o núcleo do exército continuava a ser as duas legiões e alas, que teriam papel crítico em todos os sucessos conquistados a partir de então.
Em 208, Cipião comandou seu exército muito bem treinado contra Asdrúbal Barca. É um tanto difícil dizer, a partir das fontes que temos, se a ação resultante em Bécula foi uma batalha em escala total, mas fica claro que as tropas romanas e italianas suplantaram seus oponentes por meio de manobras. A vitória de Cipião pode ter sido marginal, e Asdrúbal logo iniciaria sua marcha para unir-se a seu irmão na Itália, porém pode ser que os romanos tenham infligido perdas consideráveis ao inimigo, tornando, assim, a expedição mais difícil de ser realizada. Asdrúbal deixou a Hispânia, retirando um dos exércitos de campo púnicos da península e alterando, desse modo, o equilíbrio de força a favor dos romanos. Ao chegar à Itália, logo descobriu que os romanos estavam muito mais bem preparados do que em 218. A nova invasão cartaginesa foi rapidamente confrontada por um número superior de tropas romanas bem treinadas e bem comandadas, e os púnicos foram totalmente derrotados em Metauro, em 207. Aníbal soube da chegada do seu irmão apenas quando cavaleiros inimigos arremessaram a cabeça decepada de Asdrúbal no seu acampamento. Enquanto esses eventos ocorriam na Itália, Cipião conquistou uma série de pequenas vitórias na Hispânia, mas sua ofensiva principal fracassou em atrair Asdrúbal Gisgo a uma batalha campal[20].
Por volta de 206, Asdrúbal havia ficado muito mais confiante. Juntando forças com Mago Barca, reuniu um exército de campo com uma infantaria de setenta mil homens (apesar de Lívio estimar esse número em apenas cinquenta mil), de 4 mil a 4,5 mil cavaleiros, que contavam com os soberbos cavalos númidas comandados pelo príncipe Massinissa, e 32 elefantes. Essa força representava o núcleo dos mercenários na Hispânia, apoiado por muitos contingentes menos disciplinados e treinados, fornecidos pelos aliados e súditos de Cartago. Havia pouco tempo para os comandantes púnicos integrarem os elementos de modo a formar um todo coeso, por isso a grande força manobrava de maneira desordenada, apesar de seu enorme tamanho ser impressionante. Cipião era capaz de enfrentar tal força com 45 mil homens de infantaria e três mil de cavalaria. Ele estava, portanto, em desvantagem numérica, possivelmente por grande margem. Pior ainda: apenas cerca de metade da infantaria era formada por suas legiões e alas muito bem preparadas e confiantes, sendo que o restante consistia em aliados com os quais havia decidido não contar nunca. O exército romano, tanto quanto o cartaginês, não era uma força unida e coerente acostumada a operar em conjunto. Quando avançou para acampar próximo do inimigo, nos arredores de Ilipa – não muito distante da moderna Sevilha –, o general romano enfrentou o problema de como usar as diferentes tropas sob seu comando[21].
Enquanto a coluna romana começava a erguer seu acampamento, Mago e Massinissa comandaram o núcleo da cavalaria púnica num ataque que tinha a intenção de repelir e desmoralizar o inimigo recém-chegado. Era prática normal dos exércitos romanos colocar tropas em formação para proteger o acampamento enquanto este era montado, mas, nesse caso, Cipião tivera a precaução de postar sua cavalaria em um terreno atrás de uma colina. O súbito contra-ataque romano colocou em pânico os cavaleiros na dianteira, algum dos quais – provavelmente os númidas que cavalgavam em pelo – caíram de suas montarias. Um combate mais acirrado aconteceu com os esquadrões que apoiavam o ataque púnico, mas foram gradualmente repelidos por unidades de legionários que avançaram em socorro, vindas do acampamento. A formação cerrada da infantaria forneceu um abrigo estável, atrás do qual a cavalaria pôde descansar e se reagrupar antes de avançar novamente, tornando também muito mais difícil para a cavalaria inimiga romper suas linhas. Tal apoio deu às formações a estabilidade que não tinha. Os combates de cavalaria eram engajamentos confusos em que esquadrões atacavam, perseguiam, saíam de formação e eram, por sua vez, atacados e perseguidos. Gradualmente os cartagineses descobriram que estavam se reagrupando cada vez mais perto do seu próprio acampamento, uma vez que a infantaria romana avançava, assegurando o terreno conquistado pela sua cavalaria. No final, a pressão ficou tão forte que os cavaleiros púnicos fugiram de volta ao seu acampamento[22].
Ao que parece, essa foi a primeira de várias escaramuças travadas entre elementos dos dois exércitos nos dias anteriores à grande batalha. Tais encontros eram precursores comuns de uma luta maior, e a vitória ou a derrota nesses combates de pequena escala eram vistas como indicação da coragem relativa e da ousadia dos dois lados. Alguns dias devem ter sido tomados por essas escaramuças, antes de Asdrúbal decidir empregar todo o seu exército em uma batalha contra o inimigo. O acampamento púnico estava localizado em terreno elevado e, no final do dia, os cartagineses marcharam até o limite da planície abaixo, antes de formar sua linha. A formação era convencional, com as melhores tropas de infantaria, lanceiros líbios e, talvez, alguns cidadãos das colônias púnicas na Hispânia colocadas no centro. Asdrúbal dividiu seus espanhóis nos dois flancos e colocou a cavalaria, com os elefantes à frente, nas laterais. Cipião rapidamente respondeu ao gesto de confiança do inimigo e formou seu exército, posicionando os romanos no centro e os espanhóis em ambos os lados, com a cavalaria de frente para os seus pares inimigos. Quando as nuvens de poeira erguidas por tantos soldados em marcha começaram a baixar, os exércitos observaram-se um ao outro. Apesar de toda a confiança inicial, nenhum comandante desejava enviar seus homens à frente e forçar a batalha. Depois de algumas horas, quando o sol começou a se pôr, Asdrúbal ordenou a seus homens que retornassem ao acampamento. Observando isso, Cipião fez o mesmo.
Nos dias seguintes, tal procedimento tornou-se quase uma rotina. No final da manhã, o que denota pouco entusiasmo para realizar a batalha, Asdrúbal levava seu exército até o limite da planície. Os romanos então manobravam de forma a corresponder à movimentação do exército inimigo, com ambas as forças empregando a mesma formação do primeiro dia. Os exércitos assim permaneciam e esperavam até quase o final do dia, quando, primeiro os cartagineses e depois os romanos, retornavam aos respectivos acampamentos. Como vimos, esse procedimento era comum antes das batalhas do período, porém, em primeira instância, nenhum dos lados parecia obter vantagem significativa com tais exibições de confiança. Havia, talvez, um benefício marginal para Asdrúbal na elevação do moral de seus soldados, já que iniciava o desafio todos os dias, mas até então ele não havia realizado nada com relação a essa manobra.
O esforço envolvido em colocar exércitos daquele tamanho em formação de batalha não deve ser subestimado, pois era um processo que demorava horas. A maior parte dos exércitos usava o método processional. Logo que as tropas deixavam o acampamento – ou no caso dos romanos, cujos acampamentos eram deliberadamente erguidos com espaço entre as linhas de barracas e paliçada dentro do acampamento –, marchavam em uma coluna. À frente, ia a unidade que seria colocada no extremo direito da linha de batalha. Em seguida, ia a unidade que se postaria à esquerda, e assim por diante, até que a retaguarda da coluna formasse a extremidade esquerda da linha. Uma vez estabelecido nessa ordem, o exército marchava até o ponto onde ficaria à esquerda da linha de batalha, antes de continuar à direita e prosseguir ao longo da linha de frente. Quando a unidade da frente chegasse à sua posição à extrema direita, parava e mudava da formação de marcha para a de batalha encarando o inimigo. Atrás dela, as outras unidades executavam a mesma manobra até que cada uma estivesse no seu local de destino. O método romano diferia apenas no fato de que as tropas eram formadas em três colunas, cada qual correspondendo às três linhas do triplex acies. O processo exigia a boa supervisão dos profissionais graduados, de modo a garantir que todos se posicionassem no local correto. Se houvesse alguma ameaça de ataque por parte do inimigo, a maioria dos exércitos enviava a cavalaria e as tropas ligeiras para cobrir a coluna principal enquanto ela manobrava. O método processional era lento, particularmente no caso de grandes exércitos, mas eficiente, sobretudo porque nenhum exército havia ainda desenvolvido exercícios que permitissem uma execução mais rápida. O maior problema desse sistema era a sua rigidez. O comandante tinha de decidir qual seria a formação de batalha antes de montar a coluna. Após seu estabelecimento, era praticamente impossível alterar a formação de modo significativo. Grande parte dos exércitos adotava a mesma formação de batalha, uma vez que a familiaridade de cada unidade com o lugar que ocuparia na linha facilitava todo o processo.
As táticas de Cipião em Ilipa precisam ser compreendidas no contexto desse sistema. Depois de vários dias respondendo ao desafio de Asdrúbal sem que nenhum dos dois comandantes comprometesse suas forças em batalha, Cipião resolveu forçar um encontro no dia seguinte. Emitiu ordens escritas, provavelmente nas primeiras horas da manhã, para que suas tropas se preparassem e tomassem o desjejum bem cedo. Antes do amanhecer, enviou a cavalaria e tropas ligeiras para atacar os piquetes cartaginenses. O resto de seu exército preparou-se para entrar em formação, mas Cipião, daquela vez, alterou sua disposição. Naquele dia, seus aliados espanhóis foram colocados no centro da sua linha de batalha, enquanto suas melhores tropas foram divididas entre os dois flancos, muito provavelmente com uma legião e uma ala de cada lado. Quando as tropas terminaram de se posicionar, ele avançou com mais ousadia do que nos dias anteriores e não parou até chegar à metade da planície aberta. Embora as nossas fontes não afirmem o fato explicitamente, é certo que o general romano tenha discutido a alteração com seus oficiais graduados, de modo que pudessem formar as colunas do exército de acordo com o plano. É muito provável que isso tenha ocorrido em um Consilium, o qual o comandante romano normalmente convocava antes de uma grande ação. Apesar de, por vezes, ser traduzido como “conselho de guerra”, não eram em geral fóruns de debate, mas uma reunião (como um Grupo “O” do exército britânico), na qual o plano do general era explicado. Nesse caso, Cipião deve ter também explicado as complexas manobras que engendrara para abrir a batalha.
Quando os postos avançados de Asdrúbal foram atacados pela cavalaria e por tropas ligeiras romanas, os cartagineses responderam rapidamente. Atrás desse ataque, a força romana principal ficou visível enquanto marchava para formar-se, embora seja duvidoso que àquela distância – que, a julgar pelos eventos posteriores, provavelmente era de pelo menos 1,5 quilômetro – o general púnico pudesse ver mais do que vagas massas de homens e grandes nuvens de poeira. Respondendo rapidamente ao desafio, Asdrúbal ordenou a seus homens que se armassem e se preparassem para entrar em formação. Ele pode ter sentido que a repentina mostra de confiança por parte dos romanos visasse a recuperar seu moral, após dias sem resposta aos desafios dos cartagineses. Se Asdrúbal quisesse manter a vantagem moral adquirida, teria de responder a essa manobra dos romanos, não podendo dar a Cipião a possibilidade de dizer a seus homens que o inimigo os temia e não ousava enfrentá-los. Assim, o comandante púnico não hesitou em mandar que seus exércitos entrassem em formação na mesma ordem que tinham entrado nos dias anteriores. Isso foi feito às pressas, e a maioria de seus homens não teve a oportunidade de alimentar-se. Não obstante, mesmo nesse estágio, era possível que a batalha não fosse travada e que os dois exércitos permanecessem em formação um de frente para o outro pela maior parte do dia.
A cavalaria e a infantaria ligeira púnicas saíram primeiro, confrontando seus pares romanos e engajando-se num confuso combate sem resultado claro. O exército cartaginês principal saiu do acampamento, marchando e formando uma linha no limite da planície, no pé da colina na qual estava acampado. Os homens de Cipião estavam a cerca de um quilômetro de distância, muito mais próximos do que nos dias anteriores. Àquela distância, Asdrúbal pelo menos podia ver que as legiões não estavam no local de costume, no centro, mas nos flancos, de frente para tropas mais fracas. Isso significava que suas melhores tropas de infantaria enfrentariam os aliados espanhóis dos romanos, o que pode ter proporcionado algum estímulo: se as linhas de batalha se enfrentassem, seus líbios deveriam derrotar aquelas tropas mal treinadas e ainda mais mal equipadas. Apesar de, talvez, ele ter ficado um tanto desconcertado pela mudança, não é certo o quanto isso beneficiou seu oponente. Era, agora, quase impossível para ele alterar sua formação a fim de conformar-se com a do inimigo. Se tentasse manobrar grandes contingentes, isso apenas criaria uma confusão, que o inimigo próximo e totalmente preparado exploraria, lançando um ataque imediato.
Então, seguiu-se um daqueles estratagemas tão típicos das batalhas desse período. Cipião não continuou seu avanço, e os cartagineses permaneceram estacionados no limite da planície. A cavalaria e a infantaria ligeira continuaram a enfrentar-se, mas, com os dois lados apoiados por suas linhas principais a uma distância tão curta, era relativamente fácil para os grupos sob pressão retirarem-se e entrarem de novo em formação atrás da linha mais próxima. Depois de algum tempo, todos retiraram-se pelos intervalos das unidades nas suas linhas principais e foram enviados para os flancos. Finalmente, Cipião continuou a avançar, porém deu ordens para os espanhóis no centro moverem-se mais lentamente, enquanto as laterais iniciaram uma série de manobras complexas, que, como em Bécula, demonstraram o padrão excepcionalmente elevado do seu treinamento. O próprio Cipião comandou as tropas no flanco direito, enquanto Lúcio Márcio e Marco Júnio Silano controlaram o esquerdo. Lívio afirma que Cipião enviou uma ordem a esses oficiais instruindo-os a copiar seus movimentos, mas, como uma instrução ou um sinal para iniciar as manobras deveria ser enviado, possivelmente os oficiais já sabiam de antemão o que se esperava deles.
Os homens de Cipião no flanco direito começaram, com cada manípula individual em três linhas, a marchar à direita de modo a formar, de novo, três colunas. As três manípulas que formavam a frente dessas colunas foram, então, ordenadas a manobrar à esquerda e a marchar direto contra a linha inimiga, com as unidades por trás delas seguindo-as. Os movimentos do flanco esquerdo foram os mesmos. Colunas com uma linha de frente estreita moviam-se muito mais rapidamente que as que possuíam uma frente ampla, pois, como encontravam menos obstáculos e a necessidade de parar era menor, era bem mais fácil manterem suas posições. As três colunas, portanto, abordaram o inimigo num instante, deixando os espanhóis no centro, e moveram-se mais lentamente atrás. A apenas uma distância comparativamente pequena da linha púnica, Cipião manobrou suas três colunas à direita uma vez mais (enquanto o flanco esquerdo realizava a manobra no sentido oposto) e liderou-as até entrarem em formação de batalha, suplantando o flanco inimigo.
Asdrúbal e o exército cartaginês, segundo consta, observaram atônitos as colunas romanas vindo em sua direção. Lanças e outras armas arremessadas pela infantaria ligeira e cavalaria romanas espantaram os elefantes, alguns dos quais pisotearam as tropas púnicas na retaguarda, semeando confusão. Então, as tropas romanas e italianas atacaram os aliados espanhóis de Asdrúbal nos dois flancos. Durante algum tempo, os espanhóis conseguiram deter o ataque, mas, gradualmente, foram forçados a recuar. Os romanos, que haviam se alimentado e se preparado para a batalha com cuidado, demonstraram maior resistência, sem dúvida auxiliados pela tática comum de enviar para o combate reforços de descansados principis e triarii. Vagarosamente, começaram a repelir os espanhóis. Depois de algum tempo, a retirada transformou-se em fuga. Durante todo o confronto, não houve uma luta mais séria no centro. A presença dos contingentes alinhados de Cipião, deliberadamente postos atrás, manteve os líbios na sua posição, pois não podiam sair em auxilio dos seus flancos sem se expor ao ataque do centro do exército romano. Quando os flancos dos púnicos se romperam, o restante do exército fugiu com eles. Asdrúbal tentou, em vão, impedir a fuga. Durante um tempo, conseguiu formar uma linha na parte mais baixa do terreno elevado, em frente ao seu acampamento, enquanto os romanos pararam ao pé da colina, possivelmente um sinal de que Cipião tinha rígido controle sobre seus homens. Quando o avanço romano recomeçou, a titubeante linha púnica se rompeu e seus soldados fugiram para a segurança de seu acampamento. Nossas fontes afirmam que, não fosse por uma tempestade violenta e repentina, os romanos teriam facilmente destruído a posição inimiga. Durante a noite, os aliados de Asdrúbal começaram a desertar. Ele fugiu com as seções confiáveis do seu exército, mas a maioria foi capturada ou morta na perseguição que os romanos empreenderam. Asdrúbal escapou e combateu novamente Cipião durante a campanha africana, mas sem sucesso[23].
Ilipa terminou efetivamente com a presença cartaginesa na Hispânia, pois nos meses seguintes seus enclaves remanescentes foram conquistados com pouca dificuldade. Antes de deixar a península, Cipião teve de enfrentar um motim de suas próprias tropas e uma rebelião de antigos aliados, mas já havia voltado sua atenção para a invasão da África. Retornou a Roma e assumiu o cargo de cônsul – para o qual ainda era, tecnicamente, jovem demais –, em 205; depois de ter cumprido o mandato, assegurou para si a província da Sicília como base e conseguiu permissão para invadir o país inimigo, recebendo apoio unânime para o empreendimento. Fábio Máximo, já no fim da vida, opôs-se ao plano, em parte por conta do ciúme que tinha da popularidade do jovem comandante da Hispânia. Ao que parece, ele também temia que um fracasso na invasão da África suscitasse um reavivamento do esforço de guerra dos cartagineses, como o de 255. Houve outros problemas quando um dos subordinados de Cipião, chamado Plemínio, envolveu-se em um escândalo enquanto ocupava o cargo de governador militar da cidade de Locri. Esse oficial não só saqueou a cidade que deveria proteger, mas fez também que os tribunos sob seu comando se voltassem contra si, submetendo-os a flagelação pública. Quando Cipião interveio, demonstrou lealdade ao seu subordinado, apoiando Plemínio, que imediatamente executou os tribunos. Finalmente os locrianos conseguiram enviar representantes a Roma, o que levou o Senado a prender o oficial.
Os rivais de Cipião no Senado tentaram, àquela altura, dar o comando a outro magistrado, mas foram impedidos pela sua popularidade diante da maioria dos cidadãos romanos. A sua confiança mostrou-se bem fundamentada, pois Cipião demonstrou a mesma habilidade e competência que demonstrara na Hispânia na nova campanha. Em primeiro lugar, preparou-se minuciosamente antes de iniciar a expedição a partir da Sicília, de modo que, quando finalmente zarpou, estava à frente de um exército muito bem treinado e contando com grande apoio logístico. No norte da África, ludibriou seus oponentes, atacando com eficiência no momento crítico. Os dois primeiros exércitos enviados para detê-lo foram destruídos em seus acampamentos num ataque-surpresa à noite. Como em Nova Cartago, Cipião teve o cuidado de reunir informação sobre a força e a posição do inimigo antes de atacá-lo. Durante um período de negociações, ele havia enviado centuriões e outros oficiais disfarçados de escravos. Em um dos casos, um dos centuriões foi até surrado publicamente para validar o subterfúgio. No final, os cartaginenses foram forçados a chamar Aníbal da Itália para enfrentar o invasor. Os dois grandes generais encontraram-se em uma batalha campal em Zama, a qual não foi marcada por manobras especialmente sutis dos dois lados. Os romanos acabaram vencendo o confronto resultante, muito ajudados pela sua cavalaria numericamente superior[24].
Cipião voltou para celebrar um triunfo espetacular, assumindo o nome Africano como marca permanente da sua realização. Ele tinha apenas pouco mais de 30 anos e já havia conquistado muito mais do que a maioria dos senadores romanos em toda a vida. Embora continuasse ativo na vida pública, é difícil ver como sua carreira subsequente pode ter acrescentado mais aos feitos já realizados, que dirá superá-los. Foi eleito cônsul pela segunda vez em 194 e comandou um exército contra as tribos gaulesas do norte da Itália, mas não se engajou em lutas acirradas. Em 190, seu irmão mais novo, Lúcio, tornou-se cônsul, e quando Africano anunciou que seria seu principal subordinado, ou Legatus, recebeu o comando para confrontar o Império Selêucida, de Antíoco III. A presença de Cipião foi considerada especialmente apropriada porque Aníbal, agora exilado da sua Cartago natal, havia se refugiado na corte de Antíoco e deveria, segundo se acreditava, receber um importante comando. Assim, o cartaginês foi encarregado de comandar parte da esquadra selêucida; como Cipião estava doente, não tomou parte na batalha decisiva em Magnésia. Pode ser que a doença tenha sido inventada ou exagerada para garantir que Lúcio recebesse todo o crédito pela vitória. Também houve rumores de um acordo com Antíoco para assegurar o retorno em segurança do filho do Africano, que havia sido feito prisioneiro. Contudo, ao retornar dessa guerra, um escândalo novamente se abateu sobre Cipião e seu irmão. Ambos foram processados sob a acusação de apropriarem-se de fundos do Estado durante a campanha. A resposta de Cipião refletiu a autoconfiança com a qual ele caracterizou suas campanhas, mas também revelou sua modesta habilidade política. Durante o julgamento, rasgou os relatos de seu irmão sobre a guerra contra os selêucidas, em vez de os ler para os juízes. Em outra ocasião, o julgamento coincidiu com o aniversário da Batalha de Zama, e então Cipião repentinamente anunciou sua intenção de realizar sacrifícios e agradecer aos deuses nos templos no Capitólio. Todos, a não ser os que moviam o processo contra ele e seus atendentes, seguiram-no, porém, a despeito do entusiasmo da multidão, as acusações não foram retiradas. No final, ele deixou Roma e a política e foi viver em uma vila no campo os poucos anos que ainda lhe restavam. Foi um final marcado pelo desapontamento, já que era um homem que realizara muito no serviço à república[25].
Lívio havia lido um relato segundo o qual Cipião, enquanto membro da delegação senatorial enviada a Éfeso em 193, encontrara e conversara com Aníbal. Durante um dos seus encontros:
O Africano perguntou quem, na opinião de Aníbal, era o maior general de todos os tempos. Aníbal respondeu, “Alexandre [...] porque com uma pequena força ele derrotou exércitos enormes e porque chegou às terras mais distantes...”. Ao ser questionado sobre quem era o segundo melhor general, Aníbal disse: “Pirro. Ele foi o primeiro a ensinar a arte de montar um acampamento. Além disso, ninguém demonstrou melhor julgamento na escolha do terreno ou na disposição de suas forças. Ele também dominava a arte de trazer os homens para o seu lado...”. Quando o Africano prosseguiu, querendo saber quem ele considerava o terceiro, Aníbal, sem hesitar, escolheu a si próprio. Cipião soltou uma gargalhada e perguntou: “O que você diria, se tivesse me derrotado?”.
“Nesse caso”, replicou Aníbal, “eu certamente teria me colocado à frente de Alexandre e de Pirro – na verdade, à frente de todos os outros generais!” Essa resposta com a sua sútil elaboração púnica [...] afetou Cipião de modo profundo, porque Aníbal o havia colocado à parte daqueles comandantes, como alguém cujo valor está além da possibilidade de calcular[26].
A história bem pode ser apócrifa, mas esse julgamento certamente era merecido.