“AS PEQUENAS GUERRAS”:
CIPIÃO EMILIANO E A QUEDA DE NUMÂNCIA
Publius Cornelius Cipio Aemilianus
Africanus Numantinus (185/4-129 a.C.)
É tolice correr perigo por pequenos resultados. Deve ser considerado um general imprudente aquele que lutar sem haver motivo, enquanto um bom comandante apenas se arrisca em caso de necessidade.[1]
As guerras travadas contra as grandes potências helênicas foram importantes, intensamente dramáticas e deveras lucrativas para os vitoriosos, mas também foram eventos comparativamente raros. Por todo o século II a.C., o foco do esforço de guerra de Roma era dirigido a campanhas contra os povos tribais da Hispânia, do norte da Itália e do sul da Gália, bem como, em menor grau, da Ilíria e da Trácia. Essas campanhas foram movidas contra povos com nomes obscuros – ao menos para os gregos e romanos –, cujos exércitos eram formados por guerreiros corajosos, porém, quase sempre, indisciplinados e mal armados. Politicamente, eram divididos em muitas tribos, as quais, por sua vez, eram divididas entre os seguidores dos vários chefes. A derrota de uma tribo ou clã não significava necessariamente que seus vizinhos capitulariam, ao contrário da única e decisiva batalha que terminou as guerras com a Macedônia e os Selêucidas. Portanto, o modo de fazer guerra nessas províncias tendia a consistir em diversas campanhas individuais para derrotar cada comunidade ou líder por vez.
Uma vitória sobre os arevacos ou os boios não conferia o mesmo prestígio que um triunfo sobre reinos famosos como a Macedônia, tampouco tendia a enriquecer um exército e seu comandante. As frequentes guerras nas províncias espanholas e gaulesas implicavam que as vitórias obtidas em tais teatros de operações eram comuns. Os senadores, ansiosos por tirar o máximo proveito desse sucesso, gostavam de afirmar que era a primeira vez que um povo em particular tinha sido combatido por um exército romano, além de vangloriarem-se das estatísticas de sempre – homens mortos e capturados, cidades e aldeias invadidas. Preocupado com o fato de que triunfos estavam ocorrendo com muita frequência e facilidade, o Senado decidiu que um mínimo de cinco mil inimigos precisava ser morto em batalha para que o magistrado pudesse receber essa honra. Os detalhes da medida são obscuros, embora, provavelmente tenha ocorrido durante algum período do século II a.C. e é impossível saber com que rigor foi implementado.
Tais restrições não devem nos levar à conclusão de que todas as campanhas romanas contra oponentes tribais eram vitórias fáceis ou garantidas. Algumas foram. Contudo, a maioria consistia em operações difíceis contra um inimigo corajoso, frequentemente numeroso e acostumado a explorar a força natural do relevo da sua terra natal. As batalhas contra os gauleses, os lígures e os diversos povos espanhóis eram, muitas vezes, sangrentas e difíceis, sendo que o sucesso romano nem sempre era inevitável. Muitos generais sofreram pesadas derrotas nas mãos dessas tribos. Os gauleses saquearam Roma em 390 a.C. e a ameaçaram de novo em 225 a.C., até que, com mais sorte do que planejamento, os dois cônsules daquele ano conseguiram atacar o exército inimigo, um de cada lado, em Télamon. Em 216, a terrível catástrofe de Canas obscureceu em parte um desastre no vale do Pó, em que as tribos emboscaram e dizimaram um exército de duas legiões e duas alae. Entre os mortos estavam o comandante romano, o pretor Lúcio Postúmio Albino, homem muito experiente que já fora cônsul duas vezes e acabava de ser eleito, na sua ausência, para um terceiro mandato no ano seguinte. Foi, talvez, a derrota de Roma mais espetacular nessa região, apesar de não ter sido a única. Reveses na península Ibérica tendiam a ser em menor escala, mas eram mais frequentes[2].
Um exército romano bem treinado, abastecido e comandado com competência podia, sob muitas circunstâncias, vencer oponentes tribais. No início do século II a.C., essas condições eram, quase sempre, a regra, uma vez que todos os escalões do exército eram compostos predominantemente de veteranos da guerra contra Aníbal. Naquele tempo, as legiões nas fronteiras do norte da Itália e nas províncias espanholas demonstravam os mesmos níveis elevados de disciplina, confiança e flexibilidade tática com que haviam esmagado os exércitos profissionais das potências helênicas. Muitas vezes, contavam com os mesmos homens, já que a maioria dos oficiais e soldados que combateram em Cinoscéfalos e em Magnésia já tinham servido em algumas das províncias ocidentais. Emílio Paulo, por exemplo, comandara exércitos na Hispânia e na Ligúria, antes de assumir o comando na campanha de Pidna. Catão, o homem que posteriormente liderou a coluna que derrotou o flanco inimigo nas Termópilas, em 191 a.C., e cujo filho destacou-se em Pidna, tinha sido enviado à Hispânia Citerior como cônsul em 195. Após um período de treinamento e de operações de pequena escala, com o objetivo de dar experiência prática às tropas e aumentar sua confiança, havia travado uma batalha encarniçada com o principal exército ibérico nas proximidades da cidade de Emporion. Uma marcha noturna não detectada pelos espanhóis colocou o exército romano numa posição com o inimigo entre ele e seu próprio acampamento, pois Catão havia determinado que seus homens não deviam ter outra alternativa de sobrevivência a não ser a vitória.
Os ibéricos entraram em formação de modo atabalhoado, pois a batalha começou na hora e da maneira escolhida pelo comandante romano. Durante toda a luta, Catão empregou suas reservas de forma cuidadosa, enviando duas coortes – provavelmente de extraordinarii – para atacar a retaguarda do inimigo, quebrando o equilíbrio das principais linhas de combate ao aumentar o peso de unidades descansadas no ataque romano. Finalmente, enviou a Segunda Legião, que até aquele ponto não tinha entrado na batalha, para invadir o acampamento espanhol. O comandante romano também estava pronto para intervir pessoalmente na ação, indo de encontro aos seus soldados para controlá-los, quando as retiradas de algumas unidades da cavalaria provocaram pânico à sua direita. Ele agarrou e deteve pessoalmente alguns soldados enquanto fugiam. Mais tarde, liderou a Segunda Legião no seu avanço, certificando-se de que os homens se moviam em ordem correta, e não deixou que seu entusiasmo saísse de controle. Catão cavalgava ao longo de toda a linha, golpeando com uma lança de caça qualquer legionário que quebrasse a formação e ordenando ao centurião ou tribuno mais próximo que marcasse o homem para ser punido posteriormente[3].
No primeiro quarto do século II a.C., a resistência das tribos da Gália Cisalpina foi quebrada de modo permanente. Ao sul do Pó, os boios perderam grande parte da sua terra para os colonos romanos e foram virtualmente destruídos enquanto unidade política. Mais ao norte, povos como os cenómanos e os insubres deram-se melhor e, com o tempo, seus aristocratas receberam a cidadania romana e foram absorvidos pelo seu sistema. Os lígures eram um povo montanhês com organização social frouxa e poucos líderes reconhecidos fora de suas aldeias. Basicamente pastores, seus rebanhos ficavam vulneráveis no começo da primavera, antes de saírem dos pastos de inverno e irem a áreas mais elevadas e dispersas. Embora realizar campanhas em um relevo difícil como esse fosse sempre arriscado, a derrota de uma aldeia raramente contribuía para que outras aldeias parassem de atacar as colônias romanas e comunidades aliadas. A luta continuou até meados daquele século, e só depois de obrigar a população a mudar-se para colônias no sul da Itália que os lígures foram pacificados. Na Hispânia, as campanhas foram quase constantes até que, em 177, o cônsul Tibério Semprônio Graco empregou uma mistura de força militar e diplomacia hábil para estabelecer uma paz que duraria mais de vinte anos[4].
Na época em que a colônia de Graco se dividiu, na década de 150, o exército romano tinha declinado. A geração da Segunda Guerra Púnica estava ou morta, ou velha demais para servir, e grande parte da experiência que acumulara estava esquecida. A impermanência do sistema de milícia tornou difícil preservar o conhecimento em qualquer forma institucional, e o problema foi exacerbado pela infrequência comparativa das guerras no segundo quarto do século. Por volta de 157 a.C., o Senado estava especialmente ansioso por enviar uma expedição à Dalmácia, pois temia-se que as pazes prolongadas tornariam os homens da Itália efeminados[5]. A inexperiência era composta pela complacência, uma vez que muitos foram persuadidos de que as inúmeras vitórias de Roma tinham acontecido de maneira inevitável, não como resultado de preparo e treinamento cuidadosos. O desempenho dos exércitos romanos no campo de batalha, durante todo o restante do século, foi sempre sombrio. Numa época em que muito poucos comandantes obtinham bom desempenho, a habilidade considerável de Cipião Emiliano destacou-se ainda mais.
A adoção de um herdeiro ou de herdeiros para preservar o nome da família era comum entre a aristocracia senatorial, e um filho adotivo não era considerado diferente de um biológico. O fato de que virava em todos os sentidos legais e emocionais um membro da nova família não excluía a forte ligação com sua família de sangue. Apesar de ter sido adotado quando muito pequeno pelo filho de Africano, Cipião Emiliano passou a maior parte dos primeiros anos de vida na casa de Emílio Paulo e, como vimos, serviu com ele na Macedônia, desfilando com o general em seu triunfo. Segundo filho, Cipião não mostrou sinais particulares de um futuro excepcional quando era jovem, e, como seu pai, era cauteloso e um tanto reservado. Diferentemente da maioria dos jovens que iniciavam a carreira pública, ele não praticou oratória forense e não buscou construir nome como advogado; em vez disso, preferiu os esportes e o treinamento militar, preparando-se para combater pela república na guerra. Em Pidna, ele lutou, embora com entusiasmo demais, e durante os meses pós-vitória que passou na Grécia descobriu que era amante da caça, pois, juntamente com seu irmão mais velho e seus amigos, participou de muitas expedições nas vastas propriedades de Perseu. Paulo deixou que seus filhos pegassem muito pouco dos tesouros do rei, mas lhes permitiu servir-se à vontade de sua grande biblioteca. A literatura e a cultura gregas teriam papel destacado na vida de Cipião. Esse interesse foi estimulado pela longa amizade com Políbio, que foi para Roma como hóspede depois da guerra.
Com o tempo, Cipião e seu círculo de amigos, que incluía Lélio, filho do velho confederado de Africano, seriam vistos como representantes do melhor tipo de filo-helenismo. Eram verdadeiros romanos, possuíam a virtus tradicional esperada de um membro de família senatorial, mas, somada a essa sofisticação, tinham a sabedoria derivada do conhecimento da cultura grega. Cícero apresentaria sua discussão filosófica da natureza do Estado romano, De re publica, como um debate imaginário entre Cipião, Lélio e seus associados, em 129 a.C. Cipião era um homem racional, educado tanto nas tradições gregas como nas romanas e interessado em filosofia, e nenhuma das histórias sobre ele contêm quaisquer elementos do misticismo associado ao Africano[6].
A série de conflitos que acabaria com a destruição de Numância por Cipião Emiliano começou em 153 a.C. Uma tribo celtibera, os belos (bellii), determinara aumentar sua maior cidade, Segeda, expandindo suas muralhas e incorporando, quisesse-o ou não, a população das comunidades vizinhas. Relutante em permitir o surgimento de uma fortaleza tão grande e bem localizada, capaz de atacar a Hispânia Citerior, o Senado despachou o cônsul Quinto Fúlvio Nobilior com um forte exército consular de cerca de trinta mil homens contra a tribo. As fortificações de Segeda ainda não haviam sido completadas quando a força romana começou seu avanço, de forma que os belos abandonaram o trabalho e fugiram ao território dos vizinhos arevacos, cuja principal cidade era Numância. Unindo-se a outras tribos celtiberas sob um comandante eleito, o exército combinado emboscou Nobilior e infligiu pesadas perdas à coluna romana antes de repeli-la. O cônsul moveu o exército para atacar Numância, mas a ação terminou em desastre quando um dos elefantes de guerra romanos foi atingido na cabeça por uma pedra e entrou em pânico; logo, todos os dez elefantes dispararam em direção à retaguarda, pisoteando os soldados em seu caminho. Os celtiberos exploraram a desordem para contra-atacar e no fim derrotaram os romanos. Em 152, Nobilior foi substituído por Marco Cláudio Marcelo, neto do “Espada de Roma”, que, à época, assumia seu terceiro mandato como cônsul. O comandante, mais experiente, capturou algumas cidades menores e, ao propor a seus habitantes termos favoráveis, estimulou os arevacos e os belos a fazerem a paz. Como Flamínio em 168, Marcelo estava ansioso por obter o crédito de encerrar a guerra antes do término do seu mandato, e o Senado enviou um homem para sucedê-lo. Assim, ele encorajou os embaixadores celtiberos em sua crença de que o Senado lhes proporia os mesmos termos oferecidos por Graco décadas antes[7].
Embora delegações das tribos tivessem ido a Roma e ainda houvesse incerteza quanto ao fim ou não da guerra, o Senado decidiu que Lúcio Licínio Lúculo, um dos novos cônsules de 151, deveria, de qualquer modo, ir à Hispânia Citerior com um novo exército. Recrutar homens foi inesperadamente difícil, pois, pela primeira vez, cidadãos romanos de todas as classes estavam relutantes em servir nas legiões. Rumores da ferocidade dos celtiberos foram estimulados por Nobilior e seus oficiais quando voltaram a Roma, e a guerra parecia ser árdua e trazer parcas recompensas. Poucos homens apareceram no dia marcado para o recrutamento, e houve reclamações de que, nos anos recentes, esse trabalho fora passado a uma pequena porção da população, pois os novos comandantes tendiam a preferir homens experientes. Assim, o recrutamento aconteceu por sorteio. Poucos senadores jovens haviam se candidatado para a eleição ou a nomeação ao cargo de tribuno, uma posição normalmente vista como boa oportunidade de ganhar reputação por coragem e habilidade. Lúculo também parece ter tido problemas para encontrar homens que servissem como seus subordinados diretos, ou legati (representantes). Acredita-se que vários jovens senadores fingissem estar doentes para desculpar a covardia. De acordo com Políbio, a situação se resolveu apenas quando Cipião Emiliano, então com 33 anos de idade, fez um anúncio público declarando seu desejo de servir em qualquer posto a que os outros não quisessem se voluntariar. O historiador provavelmente exagerou a influência de seu patrono, não obstante o incidente sem dúvida ter lhe valido algum grau de popularidade. Não era algum se Cipião ia à Hispânia como legado ou tribuno, mas o último parece o mais provável[8].
A campanha espanhola de Lúculo foi envolta em controvérsia. Quando chegou à sua província, um tratado de paz havia sido concluído com os arevacos. A maioria dos magistrados estava ansiosa por conquistar a glória antes da expiração de seus mandatos, mas Lúculo tinha fortes razões para desejar uma guerra bem-sucedida e lucrativa para pagar suas grandes dívidas. Desse modo, levou seu exército a atacar outra tribo celtibera do norte, os vacaei, tomando diversas cidades sob o pretexto de que estavam suprindo alimentos aos arevacos. Independente de a campanha ser justificada do ponto de vista estratégico ou não, o desempenho do exército foi medíocre, e as ações de Lúculo provocaram reações negativas em Roma. Em Cauca, ele aceitou suspender o ataque à cidade, porém, quando já estava com grande número de soldados dentro das muralhas, ordenou o massacre de toda a população masculina adulta. Em geral, os romanos aceitavam a necessidade de selvageria quando ela tinha um propósito útil, no entanto desaprovavam qualquer ato contrário à reputação de Roma de boa-fé (Fides) nas suas relações com outros Estados.
Para dificultar ainda mais a situação, atrocidade semelhante foi realizada pelo pretor Sérvio Sulpício Galba na Hispânia Ulterior, mais ou menos na mesma época. Muitos lusitanos e suas famílias haviam se rendido a Galba, depois de ele ter prometido que lhes daria terras onde viver – prática que se mostrara muito bem-sucedida na Ligúria. Em lugar disso, Galba dividiu os homens em três grupos, desarmou-os e ordenou a seus soldados que os chacinassem. A nova brutalidade dos romanos em guerra na Hispânia pode, talvez, ser vista como o sinal de uma geração de comandantes mais duros, determinados a fornecer solução permanente aos problemas militares colocados por tribos guerreiras. É mais provável que fosse resultado de desespero, uma vez que a qualidade declinante dos exércitos romanos tornava mais difícil, especialmente para comandantes inexperientes, obter uma vitória categórica. Apesar da reação negativa produzida pelo comportamento de Lúculo e Galba, nenhum deles foi punido ao voltar a Roma. Embora tenham sido julgados, Galba assegurou sua absolvição por meio de uma mistura de generosas propinas e exibicionismo emocional, levando seus filhos chorosos ao tribunal para provocar pena nos jurados[9].
Pouco se sabe sobre o papel de Cipião Emiliano na campanha. Quando os romanos avançaram sobre a cidade de Intercatia, um guerreiro celtibero grande e usando uma armadura esplêndida cavalgou repetidamente entre os dois exércitos, desafiando qualquer romano para um combate singular. Cipião foi até ele, exibindo o mesmo espírito impetuoso que havia demonstrado em Pidna. O campeão inimigo feriu seu cavalo e ele foi jogado ao chão, mas ergueu-se, continuou a lutar e no final venceu. Mais tarde, atuou como fiador da boa vontade romana, quando os aldeões aceitavam render-se, contudo relutavam em confiar em Lúculo[10].
Em 149 a.C., os romanos deliberadamente provocaram uma guerra contra Cartago com a intenção de destruir a cidade, que agora começava, de novo, a prosperar. Apesar da premeditação cínica, eles se mostraram despreparados para travar a guerra. A força expedicionária enviada para a África era mal comandada e mal treinada, de modo que o conflito se iniciou com diversas falhas e mostras de incompetência. Cipião estava servindo como tribuno na Quarta Legião[11] e repetidamente demonstrou a liderança, habilidade e coragem que tanto faltavam ao restante do exército. Suas tropas eram mantidas sob rígido controle e, em diversas ocasiões, ele conseguiu evitar que operações improvisadas acabassem em total desastre.
Sua reputação, combinada com o forte sentimento entre o eleitorado de que era apropriado enviar um neto de Cipião Africano para derrotar Cartago, resultou na sua eleição como cônsul em 147. O fato de Emiliano estar com 36 ou 37 anos de idade, bem abaixo da idade mínima legal para assumir o cargo, foi outra semelhança com seu ilustre ancestral e fortaleceu o sentimento de que aquela era a coisa certa a ser feita. Cipião estava originalmente concorrendo ao cargo de edil, mas foi escolhido como cônsul pela Comitia Centuriata. Após enfrentar alguma oposição, a Lex Villia Annalis, lei que estipulava a idade mínima para cada magistratura foi anulada, voltando a valer no início do ano seguinte. A intervenção de um dos tribunos da plebe garantiu que Cipião, em vez do outro cônsul, recebesse a África como província.
A eleição de Emiliano e sua nomeação para o comando africano foram certamente irregulares, embora bem menos do que a carreira de seu ancestral por adoção durante a Segunda Guerra Púnica. Nos dois casos, a escolha mostrou-se feliz para a república. Uma vez na África, Cipião Emiliano tentou restaurar a disciplina e o moral do exército, garantindo que dali em diante as tropas seriam abastecidas de modo adequado, algo que nenhum dos seus predecessores havia feito. As operações do exército foram marcadas pela mesma preparação cuidadosa, supervisão próxima e ousadia controlada que ele demonstrara em funções mais subalternas. Primeiro, as forças cartaginesas fora da cidade foram derrotadas ou persuadidas a abandonar o campo de batalha, e, em seguida, ele ordenou uma série de ataques a Cartago. Depois de consideráveis feitos de engenharia e de duro combate nas estreitas ruas da urbe, Cartago foi capturada. Seus habitantes foram retirados e a cidade foi arrasada. Cipião chorou e citou uma passagem da Ilíada que previa a destruição de Troia. De acordo com Políbio, ele se perguntou se o mesmo destino iria um dia cair sobre sua terra natal. Apesar desses pensamentos melancólicos, voltou a Roma para celebrar um triunfo, o qual, como o do seu pai décadas antes, foi mais luxuoso do que os anteriores.
Antes do final da Terceira Guerra Púnica, um conflito grave ocorreu na Hispânia Ulterior. Um dos poucos sobreviventes do massacre de Galba era um certo Viriato. Ele reuniu um bando de guerreiros e, por volta de 147, estava forte o bastante para emboscar o exército do pretor Caio Vetílio. Os romanos sofreram várias perdas – quatro mil homens, de acordo com Apiano –, e o próprio Vetílio foi capturado e imediatamente morto por um guerreiro que não o reconheceu, duvidando de que um prisioneiro idoso e gordo como ele pudesse valer alguma coisa. O poder de Viriato cresceu rapidamente depois dessa vitória, pois mais e mais comunidades resolveram que era melhor pagar tributos a ele do que serem atacadas por seus guerreiros. Em 145, o irmão mais velho de Cipião, Fábio Máximo Emiliano, foi eleito cônsul e promoveu uma campanha contra o líder lusitano. Ele tinha um exército recém-recrutado sob seu comando, e sua relutância em realizar uma operação complexa ou audaciosa com tais tropas fez que obtivesse poucas vitórias menores durante o ano em que ocupou o consulado. Em 142, seu irmão por adoção, Fábio Máximo Serviliano, foi mais bem-sucedido, tomando diversas fortalezas leais a Viriato. Seus métodos eram brutais, mas eficientes, até que foi derrotado em uma grande batalha e ofereceu ao líder rebelde um acordo de paz extremamente generoso, pelo qual ele se tornaria “Amigo do Povo Romano”. Em 140, seu irmão biológico Quinto Servílio Cipião foi eleito cônsul e enviado para substitui-lo na Hispânia Ulterior. Cipião logo quebrou o tratado, mas os romanos só conseguiram a vitória depois de subornar alguns dos principais chefes de Viriato para assassiná-lo enquanto dormia[12].
O sucesso de Viriato encorajou os arevacos a retomar sua guerra contra Roma em 143. O primeiro exército enviado contra eles era comandado pelo cônsul Quinto Cecílio Metelo. Ele atacou de repente, penetrando no território das tribos antes da colheita. A maioria dos arevacos rendeu-se e, após pagar um tributo considerável, eles recuperaram mais uma vez sua condição de aliados. Apenas Numância e outras poucas cidades muradas continuaram a resistir na época em que Metelo foi substituído por Quinto Pompeu Aulo, um “novo homem” ansioso por conquistar a glória. À sua disposição, havia um forte exército consular composto por uma infantaria de cerca de trinta mil homens e uma cavalaria com aproximadamente dois mil cavaleiros, a maioria dos quais estava agora no sexto ano de serviço contínuo e eram, portanto, experientes pelos padrões daquelas décadas. Pompeu obteve algumas pequenas vitórias, mas sofreu mais derrotas. Resolveu manter o bloqueio a Numância durante o inverno, apesar de suas tropas experientes terem sidos dispensadas e substituídas por novos recrutas. Desacostumados às campanhas, os legionários recém-chegados sofreram muito no rigoroso inverno espanhol. Contudo, o bloqueio pressionou ou habitantes de Numância, que aceitaram a oferta de paz de Pompeu. Apiano afirma que desejava tanto receber o crédito pelo fim da guerra que, secretamente, prometeu aos celtiberos termos muito favoráveis. Em Roma houve amargas recriminações e o Senado rejeitou o novo acordo, assim, em 137, o cônsul Caio Hostílio Mancino foi enviado contra Numância.
A campanha foi um longo catálogo de desastres. Depois de perder diversas escaramuças nos arredores de Numância, o cônsul entrou em pânico ao ouvir um rumor de que as tribos vizinhas planejavam unir-se aos numantinos. Uma confusa retirada noturna levou a coluna romana ao local de um dos acampamentos de Nobilior, usado na campanha de 153. Os romanos foram cercados por guerreiros celtiberos, que bloquearam todas as rotas de fuga. Mancino rendeu-se e os detalhes da trégua foram negociados pelo seu questor Tíberio Semprônio Graco, filho do homem que levara a paz à Hispânia décadas antes. Os termos eram humilhantes, pois, apesar de o exército receber permissão para partir, os soldados foram obrigados a deixar toda a sua bagagem para trás. O tratado salvou mais de vinte mil vidas, mas não era o modo como uma guerra romana deveria terminar. Os comandantes de exércitos que saíam derrotados, mas se recusavam teimosamente a admitir a derrota, eram quase sempre elogiados. Já um comandante que admitia haver sido vencido e ter negociado com o inimigo nessa posição inferior era tratado com desprezo. Ao receber um relatório da campanha, o Senado imediatamente rejeitou os termos do tratado de paz. Mancino foi responsabilizado e levado de volta a Numância. Lá, nu e amarrado, foi deixado do lado de fora das muralhas para que os celtiberos fizessem dele o que bem entendessem. No entanto, não o quiseram, e Mancino teve permissão de voltar a Roma, onde encomendou uma estátua de si próprio nu e acorrentado, a qual exibia com orgulho em sua casa como uma lembrança da sua vontade de se sacrificar pelo bem da república. Ele nunca mais recebeu o comando de um exército. Seu sucessor não foi melhor, fracassando na tomada de Pallantia, depois de um longo cerco e de ter sido forçado a se retirar em desordem e com muito esforço[13].
Em 134, Cipião Emiliano foi eleito para um segundo mandato como cônsul e recebeu a província da Hispânia Citerior. Uma década havia se passado desde que ele recebera a magistratura, e Cipião tinha agora idade bastante para ser eleito sem a necessidade de se suspender a lei, porém uma legislação recente proibia a eleição para um segundo mandato de cônsul. Entretanto, parece certo que os recentes desastres na Hispânia criaram um forte sentimento de que o comandante mais distinto de Roma deveria ser enviado de novo contra os celtiberos, e, uma vez mais, a lei foi suspensa em seu proveito. Cipião não convocou um novo exército para a campanha, pegando apenas um contingente de quatro mil voluntários para reforçar as tropas que já estavam na província. Entre esses homens, havia quinhentos dos seus clientes, uma unidade conhecida como o “esquadrão de amigos”. Em um nível mais alto, também havia um forte elemento familiar nessa campanha. Fábio Máximo Emiliano acompanhou o cônsul como seu primeiro-legado, e seu filho, Fábio Máximo Buteo, recebeu a tarefa de organizar e transportar os voluntários à província, depois de seus dois irmãos terem ido às pressas para a Hispânia. É provável que Políbio tenha ido com eles, embora não seja certo se escreveu ou não um relato dessa campanha, que estaria nas seções perdidas da sua História. O tribuno Públio Rutílio Rufo certamente produziu uma narrativa detalhada das operações do exército, que foi usada por Apiano, mas não sobreviveu. Todas as fontes da Guerra Numantina parecem ter sido muito favoráveis a Cipião, o que reflete sua habilidade de autopromoção[14].
Ao chegar à província, Cipião encontrou o exército desmoralizado e indisciplinado. Uma de suas primeiras atitudes foi ordenar a expulsão do acampamento de uma horda de prostitutas, mercadores e adivinhos. Dali em diante, ordenou que os soldados comessem apenas suas rações simples e os proibiu de suplementá-las com iguarias compradas localmente. Nenhum exército romano em nenhum período podia funcionar sem um número significativo de escravos (lixae), que realizavam tarefas como alimentar os animais, buscar água e supervisionar o comboio de bagagens, mas Cipião reduziu seu número ao mínimo possível. A imensa maioria dos escravos pessoais, cujo único trabalho era cozinhar e ajudar seu mestre a vestir-se, foram retirados do acampamento. Os oficiais, em particular, tendiam a levar grande parte de sua criadagem à campanha, a fim de assegurar certo grau de conforto; no entanto, se isso não fosse contido, as bocas extras para alimentar e a bagagem pessoal não essencial comprometiam seriamente um exército em campanha. Cipião retirou do comboio todas as cargas desnecessárias, cortou o número de animais de carga e principalmente de carroças, que tinham permissão de marchar com a coluna e vender seu carregamento. No acampamento, uma rotina fixa foi introduzida e mantida com rigor. O general permitiu pouquíssimas exceções às suas novas regras e estabeleceu um forte comando pessoal. Quando proibiu que soldados de todas as patentes dormissem em camas de campanha – talvez em parte para reduzir a quantidade de equipamento transportada no comboio –, Cipião foi o primeiro a dormir em um simples colchão de palha. De modo deliberado, ele se fez inacessível aos requerentes, buscando obediência em lugar de amizade. De acordo com Apiano:
Ele sempre dizia que aqueles generais severos e rigorosos na observância da lei eram benéficos aos seus homens, enquanto aqueles que eram amistosos e generosos eram úteis apenas ao inimigo. Os soldados dos últimos [...] são alegres, mas insubordinados, enquanto os dos primeiros, embora desanimados, são obedientes e estão sempre preparados para enfrentar emergências.[15]
Suas inspeções eram frequentes, minuciosas e críticas. Nessas ocasiões, ele quebrava qualquer objeto que considerasse luxuoso demais para o serviço do exército. Um soldado que tinha um escudo especialmente bem decorado provocou um comentário cáustico. Segundo disse Cipião, não era de estranhar que o combatente devotasse tanta atenção ao escudo, uma vez que, evidentemente, “colocava mais confiança nele do que em sua espada”. A patente não implicava defesa contra os comentários mordazes e as denúncias públicas. O tribuno Caio Mêmio foi particularmente criticado. A certa altura, Cipião anunciou que pelo menos Mêmio “seria inútil para ele por pouco tempo, mas continuaria inútil para sua própria pessoa e a república”[16].
A par dessas medidas disciplinares, Cipião submeteu o exército a um intenso período de treinamento, o qual era tão realista quanto possível. Muito tempo foi gasto em marchas, as tropas levando rações para muitos dias em formação de três colunas paralelas, que podiam, com facilidade, entrar em ordem de batalha. O comboio de bagagem era mantido entre as colunas, de maneira a ficar protegido sob ataque. A ênfase era sempre na disciplina de marcha, e tanto as unidades como os indivíduos eram proibidos de sair de seus lugares designados. Em campanhas passadas, muitos de seus soldados tinham levado mulas e burros para cavalgar, mas Cipião proibiu essa prática e exigiu que todos os soldados da infantaria marchassem. Uma vez mais ele deu o exemplo pessoal, marchando com seus oficiais e comendo a mesma ração que os soldados, movendo-se através das tropas para observar cada seção. Atenção particular era dada aos homens que tinham dificuldade em acompanhar a marcha, e os soldados da cavalaria recebiam ordens de desmontar e permitir que os cansados cavalgassem até se recuperarem. Cipião também tentou cuidar dos animais de carga do exército e, quando descobria qualquer tropa de mulas que estava sobrecarregada, obrigava os infantes a levar parte do peso. No final de cada dia de marcha, o exército erguia um acampamento temporário, como se estivesse em território inimigo. O procedimento era sempre o mesmo. As unidades que haviam formado a vanguarda durante aquele dia colocavam-se ao redor do local escolhido, permanecendo em formação e armadas para atuar como força de cobertura. Todas as outras partes do exército tinham tarefas designadas, marcando o acampamento com suas linhas de tendas e ruas ou escavando a vala e construindo o baluarte de proteção. Havia muitas semelhanças entre o programa de Cipião e as ordens de seu pai durante a Terceira Guerra Macedônica. Ambos refletiam as melhores práticas aprendidas durante muitas campanhas pelo exército de milícia[17]. Cipião aumentou suas tropas romanas e italianas com fortes contingentes de aliados locais. De acordo com Apiano, o número de soldados sob seu comando passou a ser, com os reforços, de cerca de sessenta mil homens. Quando que os soldados estavam prontos, o cônsul avançou em direção a Numância, o exército movendo-se com a mesma disciplina e cuidado que ele exigira durante o treinamento. Em vez de atacar diretamente a fortaleza celtibera, deu a volta por ela e assolou os campos dos vizinhos váceos, cortando a fonte de suprimentos dos numantinos. Era uma região na qual ele tinha servido sob Lúculo e, como compensação pela atrocidade cometida por aquele general, Cipião fez uma proclamação oficial permitindo que qualquer dos habitantes sobreviventes de Cauca retornasse e reconstruísse sua comunidade.
Nos arredores de Pallantia, uma força da cavalaria sob o comando de Rutílio Rufo perseguiu um inimigo que se retirava, sendo ludibriada e levada a uma emboscada. Cipião comandou pessoalmente mais cavaleiros para o resgate e, ao atacar cada flanco alternadamente e retirar-se, conseguiu cobrir a saída dos homens de Rufo e escapar. De muitas maneiras, a ação lembrou seu hábil comando da cavalaria da legião quando servira como tribuno na Terceira Guerra Púnica. Em outra ocasião, descobriu que os celtiberos haviam armado uma emboscada para seu exército no local onde a rota que usavam cruzava um rio. Em vez de seguir, Cipião levou o exército em uma marcha noturna por uma rota alternativa e muito mais difícil. O treinamento compensou, pois os soldados conseguiram realizar essa árdua jornada apesar da escassez de água, o que se tornou um problema quando o quente sol de verão se ergueu no dia seguinte. O exército escapou com a perda de alguns poucos cavalos da cavalaria e animais de carga. Logo depois, a cavalaria que protegia um grupo de saque foi atacada, enquanto a força principal espoliava uma aldeia. Cipião ordenou que o trombeteiro soasse o sinal para chamar os saqueadores e, quando achou que um número suficiente de homens havia retornado, ordenou que formassem unidades de combate. Com apenas cerca de mil homens, foi em auxílio da cavalaria romana. Após um curto combate os celtiberos foram repelidos, permitindo que os romanos se retirassem[18].
Cipião havia se esforçado para privar os numantinos de auxílio e apoio de outras comunidades celtiberas. Também tinha testado o exército em operações de combate, dando aos soldados a segurança obtida com a conquista de pequenas vitórias. Agora era hora de atacar a cidade de Numância. Cipião dividiu o exército em dois e acampou as duas divisões perto da cidade, assumindo o comando de uma delas e delegando a liderança da outra a seu irmão. Logo depois que os romanos chegaram, os numantinos deixaram a proteção das suas fortificações, saindo e desafiando-os para a batalha. Não havia mais do que oito mil guerreiros encarando o exército romano, muito maior, e é provável que estivessem buscando conter sua aproximação das muralhas da cidade, conforme os homens de Mago fizeram em Nova Cartago, em vez de travar uma batalha campal. Cipião não tinha a intenção de se arriscar numa refrega, nem num ataque direto. A imensa maioria do seu exército era constituída de homens acostumados a ser derrotados pelos celtiberos. Invadir uma cidade bem defendida era sempre uma operação dificílima, e até uma pequena escaramuça poderia resultar em grande desmoralização, destruindo todos os seus esforços de reconstituir o exército. Uma das máximas de Cipião era que um comandante sábio nunca deveria correr um risco que podia ser evitado. É provável que, desde o início da campanha, tenha planejado fazer um bloqueio a Numância, visando a submetê-la. Assim, ignorando o desafio dos numantinos, ordenou que seus homens construíssem uma linha de fortificações ao redor da cidade. Vestígios do cerco de Cipião ao redor de Numância sobreviveram acima do solo e foram escavados no começo do século XX pelo arqueólogo alemão Schulten. Embora, infelizmente, trabalhos modernos no sítio não tenham sido realizados para confirmar algumas das conclusões de Schulten, há, certamente, uma correspondência próxima entre os achados e a descrição do cerco feita por Apiano. Os homens de Cipião construíram sete fortes, que foram, então, ligados por meio de uma vala e um baluarte. Este último estendia-se por cerca de dez quilômetros, sendo feito de pedra, com um metro de largura e 1,3 metro de altura, e fortificado com torres de madeira a intervalos de trinta metros. Os fortes também tinham muralhas de pedra e logo receberam grande número de edifícios de pedra internos, permitindo às tropas viver em condições razoavelmente saudáveis e confortáveis durante o longo cerco. É interessante notar que esses dois estabelecimentos temporários, bem como outros acampamentos romanos descobertos na Hispânia, tinham muralhas que aproveitavam o relevo natural da região, diferentemente do campo ideal descrito por Políbio, que deveria ser construído em uma planície perfeitamente plana. Primeiro, havia uma lacuna no circuito de Numância, onde passava o rio Durius (hoje, Douro), e os numantinos conseguiam trazer de barco homens e suprimentos para a cidade. Para impedir tal ação, Cipião ordenou que fosse construída uma torre em cada margem e, através do rio, colocou uma barragem de troncos cravados com lâminas de espadas e pontas de lança[19].
O exército romano era organizado em divisões, cada qual com uma tarefa específica na construção das linhas do cerco. Cipião e Fábio mantinham tropas reservas prontas para ir ao auxílio de qualquer divisão sob ataque, as quais deveriam pedir ajuda erguendo uma bandeira vermelha durante o dia ou acendendo uma lanterna à noite. Uma vez completadas as linhas, estendeu-se a organização de modo que aproximadamente trinta mil homens foram divididos entre as seções da muralha. Muitas catapultas e balestas foram instaladas nas torres, enquanto fundeiros e arqueiros foram anexados a cada uma das centúrias para aumentar o seu poder de fogo[20]. Outros vinte mil homens foram colocados em posição de mover-se com facilidade para reforçar cada setor sempre que estivesse sob ataque, e os dez mil soldados restantes mantiveram-se como forças reservas a serem enviadas a qualquer lugar. Todos os sinais deviam serem repetidos por cada uma das torres, assim a ordem chegaria mais rapidamente ao comandante ou às tropas auxiliares.
A força das muralhas e a eficiência da organização de Cipião mostrou-se eficaz, uma vez que repeliu todos os ataques dos celtiberos. Um nobre celtibero chamado Retógenes, o Caráunio, conseguiu, com alguns amigos, escalar a muralha numa noite escura. Depois de matar as sentinelas, usaram uma ponte dobrável de madeira para trazer seus cavalos ao outro lado do rio e cavalgaram a outras comunidades da sua tribo, esperando persuadi-las a organizar um exército e romper o cerco. Alguns dos guerreiros mais jovens da cidade de Lutia foram simpáticos à ideia, mas os anciãos enviaram uma mensagem a Cipião, que acorreu ao local com uma força de infantaria ligeira, cercando a cidade e ameaçando saquear o lugar se os responsáveis não fossem entregues a ele imediatamente. Os celtiberos logo aceitaram suas exigências. Cipião ordenou que os quatrocentos prisioneiros tivessem suas mãos decepadas, como um tenebroso lembrete sobre o que acontecia àqueles que resistiam a Roma, e, então, voltou com rapidez a Numância.
A essa altura, os numantinos estavam fugindo desesperadamente, com poucos mantimentos, e decidiram enviar embaixadores a Cipião solicitando um acordo de paz. Sua única resposta foi exigir rendição incondicional, e, segundo Ápio, isso enraiveceu tanto os numantinos que os embaixadores foram linchados ao voltar à sua cidade. Conforme as coisas foram piorando, contou-se que houve episódios de canibalismo, porém, no final, os defensores foram obrigados a capitular. Alguns se suicidaram para evitar essa desgraça. Os restantes, emaciados e imundos, marcharam para fora da cidade e depuseram as armas. Cipião manteve cinquenta deles para marchar em seu triunfo e vendeu os outros como escravos. A cidade de Numância foi inteiramente destruída, e as ruínas hoje visíveis datam de um período posterior, quando se tornou colônia romana.
Cipião retornou a Roma para celebrar seu segundo triunfo e, apesar de este não ter o espetáculo da procissão que comemorou a destruição de Cartago, havia considerável alívio pelo fato de a guerra com os celtiberos ter finalmente terminado. Durante um tempo, Cipião foi extremamente popular; no entanto, sua ausência da política romana tornara-se cada vez mais amarga e violenta, e Cipião logo se envolveria em controvérsias. Em 133, Tibério Semprônio Graco – o homem que negociara a rendição do exército de Mancino – foi eleito tribuno da plebe e usou essa posição para promulgar uma lei, na qual exigia a ampla redistribuição de terras públicas em toda a Itália. A maioria tinha sido incorporada às grandes propriedades dos ricos. A intenção de Graco era tomar essas terras e dá-las aos cidadãos pobres, tornando-os, desse modo, elegíveis para o serviço militar e aumentando as reservas das forças de Roma. Ele enfrentou grande oposição por parte dos outros senadores, tanto por muitos serem proprietários de terras, como por temerem que, com esse ato, Graco acabasse conquistando tantos clientes (cidadãos devedores a ele e que, portanto, o apoiariam com seu voto), que seria difícil vencê-lo numa futura eleição. Temores de que almejava o poder pessoal permanente – o que a Constituição romana devia evitar – pareceram confirmar-se quando anunciou sua intenção de concorrer a um segundo mandato consecutivo como tribuno. Num tumulto aparentemente espontâneo, Graco foi linchado por um grupo de senadores liderados por seu primo Cipião Nasica (filho do homem que havia servido em Pidna).
Cipião Emiliano estava na Hispânia quando isso aconteceu, e sua atitude com relação a esse evento não é clara. A mãe de Graco era Cornélia, filha de Africano, e ele mesmo era casado com a irmã de Tibério, embora o casamento fosse sem filhos e o casal não tivesse afeição mútua. Além disso, seu associado Lélio havia proposto uma legislação semelhante durante seu consulado em 140, mas recuara diante da forte oposição, recebendo, no processo, o apelido de “o Sábio” (Sapiens). Ao retornar a Roma, ele aceitou os apelos para defender a causa dos nobres italianos, os quais reclamavam que a comissão estabelecida para fazer cumprir a Lei Agrária de Graco os tratava com demasiada severidade. Seu desejo de defender povos aliados irritou muitos dos que apoiavam Graco em Roma, especialmente aqueles que esperavam escapar da pobreza ao receber e colonizar terras públicas. Em 129, Cipião foi encontrado morto em sua casa. Logo surgiram rumores de que fora envenenado, talvez pela esposa, Semprônia, ou pela sua sogra e tia, Cornélia. A verdade nunca será conhecida[21].