CAPÍTULO 5

“UMA PESSOA DEVOTADA
À GUERRA”: CAIO MÁRIO

Caius Marius (157-86 a.C.)

E não há nada que um soldado romano aprecie mais do que a visão de seu oficial comandante comendo o mesmo pão que ele, ou dormindo sobre um simples colchão de palha, ou dando uma mão para cavar uma vala ou erguer uma paliçada. O que eles admiram num líder é o desejo de compartilhar o perigo e as dificuldades, mais que a capacidade de conquistar honra e riquezas para si próprios, e tanto mais gostam dos oficiais que estão preparados para fazer esforços ao seu lado do que dos outros que facilitam as coisas para eles.[1]

Os comandantes romanos eram aristocratas, e isso é especialmente verdadeiro no caso dos generais que discutimos até agora. Fábio Máximo, Cipião Africano, Emílio Paulo e Cipião Emiliano pertenciam todos a famílias patrícias – os dois últimos por nascimento e adoção – e eram, portanto, membros da mais antiga elite governante de Roma. Por volta do século III a.C., os patrícios tinham perdido o monopólio dos cargos mais elevados e muitas famílias plebeias haviam aberto caminho até esse pequeno grupo privilegiado que, geração após geração, dominava as maiores magistraturas da república. Algumas linhagens patrícias tinham se extinguido ou se tornado obscuras, enquanto outras, como os Júlios, continuavam a ter sucesso modesto, ainda que permanecessem nas franjas do verdadeiro poder. Quatro clãs patrícios, os Emílios, os Fábios, os Cornélios e os Cláudios, continuavam a ser consistentemente poderosos e forneciam um porcentual desproporcionalmente elevado de cônsules. As maiores famílias plebeias rivalizavam com elas em termos de riqueza e influência, compartilhando uma ideologia comum. Qualquer líder bem-sucedido devia ser confiante, mas a autoconfiança e a recusa de Fábio Máximo, Paulo e Cipião – e, em um grau menor, de Marcelo – em ouvir críticas devia-se muito ao fato de terem nascimento nobre e perspectiva patrícia. Desde o início da juventude, cada homem sabia que era seu direito e seu dever servir a república em posição de distinção, conquistando fama, honras e riquezas no processo. Um jovem nascido em uma das famílias senatoriais dominantes teria quase com certeza uma carreira política de razoável sucesso, independentemente de sua capacidade pessoal. Todos os homens que estudamos possuíam talento militar extraordinário e, pelo menos, alguma habilidade política. Isso, combinado com origem familiar, suficiente sorte e oportunidades apresentadas uma crise real ou uma ameaça a Roma, deu a cada um desses homens uma série excepcionalmente distinta de magistraturas e comandos de campo.

Apesar do domínio dos nobiles, em cada geração havia sempre alguns “homens novos” que conseguiam chegar a ser cônsules. Tal feito nunca era fácil, embora, talvez, não tão difícil como os “homens novos” bem-sucedidos tendiam a afirmar, mas sempre possível. Quando Caio Mário foi eleito cônsul para o ano de 107 a.C., pouco havia que o distinguisse de outros novus homo. Alguns episódios da sua carreira ainda são controversos; entretanto, isso também é verdadeiro no caso de muitos outros senadores, e foi apenas nessa altura que Mário começou a abalar muitas convenções. O seu consulado foi o primeiro de sete que veio a ocupar, muito mais do que qualquer outro senador havia assumido antes. Não era apenas o número que não tinha precedentes, mas a natureza, pois cinco termos foram assumidos consecutivamente entre os anos de 104 e 100, enquanto o sétimo ele conquistou, da mesma forma que tomou Roma, com forças armadas, em 86 a.C. Mário foi uma das principais figuras da guerra civil que eclodiu em 88, a primeira de um longo ciclo de conflitos internos, os quais viriam a destruir o sistema republicano de governo. A política e a sociedade romanas mudaram profundamente no final do século I a.C. O mesmo ocorreu com a natureza fundamental do exército romano, que evoluiu da milícia tradicional composta por membros das classes proprietárias para uma força semiprofissional recrutada basicamente entre os extratos mais pobres da sociedade. A carreira de Mário e a desordem da época foram um sintoma dessas mudanças.

O INÍCIO DA VIDA E A QUESTÃO NÚMIDA

Plutarco afirma que os pais de Mário trabalhavam sua pequena fazenda próxima à vila de Ceraetae, nos arredores da cidade de Arpino[2], com suas próprias mãos. Histórias da pobreza dos “homens novos” eram comuns, somadas ao drama do seu sucesso político subsequente, mas devem ser consideradas com certo ceticismo. Apenas os equestres podiam disputar eleições para qualquer magistratura importante em Roma, e pertencer a tal ordem exigia uma propriedade muito substancial. Os membros das famílias senatoriais começavam suas vidas como equestres, até que o sucesso político levasse os censores a listá-los para o Senado; embora formassem a pequena minoria da ordem, a maioria preferia não participar da vida política. Evidentemente, os senadores consideravam os equestres comuns como seus inferiores. Contudo, esse esnobismo não deve impedir-nos de perceber que estas eram pessoas de riqueza e posição social considerável, próxima do topo da sociedade romana, quando não no pináculo. A família de Mário era, sem dúvida, parte da aristocracia local de Arpino, com notável influência e poder na cidade, apesar de ser rústica e obscura aos nobiles. Sua educação pode ter sido um tanto conservadora para os padrões da época pois, como afirma Plutarco, ele não tinha muito conhecimento da literatura e da cultura gregas e raramente, senão nunca, usava essa língua. Não obstante, em muitos aspectos Mário, como todos os outros “homens novos”, pouco diferia dos filhos dos senadores em suas atitudes e ambições[3].

Mário começou seu serviço militar na guerra contra os celtiberos e possivelmente serviu na Hispânia por muitos anos antes da chegada de Cipião Emiliano. Ele aceitou de pronto a rígida disciplina imposta pelo novo comandante. Uma história relata a boa impressão que causou durante uma das frequentes inspeções que Cipião fazia nas armas, equipamentos e bagagem do exército. Em outra ocasião, conta-se que travou e venceu um combate singular enquanto o cônsul observava os comandados, feito que lhe garantiu condecorações e outros favores. Mário tinha 23 anos nessa época e era, provavelmente, um tribuno, assim como Cipião quando conquistou fama em um encontro semelhante. Tais demonstrações de bravata não eram consideradas impróprias para oficiais dessa patente, mesmo quando os comandantes e a maioria dos oficiais de alta patente não assumiam mais esses riscos[4].

Era comum que jovens ambiciosos que não haviam herdado sua reputação, riqueza e influência fossem apoiados na carreira por famílias poderosas. Mário e seus pais eram clientes dos Cecílios Metelos, nobiles plebeus bem-sucedidos. Em 119, Lúcio Cecílio Metelo Delmático foi eleito cônsul e parece ter ajudado Mário na sua vitoriosa campanha para ser eleito tribuno da plebe. Foi nesse cargo que os Gracos promoveram seus programas de reforma, porém, um homem com a origem obscura de Mário não poderia imitar projetos como esses. Ele propôs projetos de lei menores, um dos quais alterava o procedimento eleitoral, e o colocou em conflito direto com seu patrono, um incidente que deu ao tribuno a reputação de independência e coragem. Mesmo assim, poucos teriam previsto sua fama futura, pois ele não venceu a eleição para o cargo de edil e foi eleito com pequeníssima margem para o posto de pretor em 115. Acusado de subornar o eleitorado, Mário foi absolvido por pouco. Enviado como governador para a Hispânia Ulterior, executou algumas operações menores a fim de suprimir o banditismo, mas não teve oportunidade de conquistar fama ou riqueza. Nessa época, casou-se com uma moça da família dos Júlios Césares, uma antiga estirpe patrícia não mais proeminente que conseguiu produzir apenas um único cônsul em todo o século II a.C. Era um bom casamento, porém não garantia avanço político significativo. É mais do que provável que Mário tenha buscado, sem sucesso, eleger-se cônsul em uma ou mais ocasiões nos anos seguintes. Talvez tenha parecido que sua carreira não iria decolar, até que uma crise militar na Numídia lhe ofereceu a chance de atrair a atenção pública[5].

A invasão da África por Cipião em 204 a.C. fora em grande parte promovida pela deserção, para o lado dos romanos, do príncipe da Numídia, Massinissa, que depois foi entronado num reino ainda maior como recompensa pelo seu apoio. Após a Segunda Guerra Púnica, a Numídia mostrou-se útil a Roma, quando o poder cartaginês se renovou. Tanto Massinissa, que havia morrido no início da Terceira Guerra Púnica, como seu filho, Micipsa, forneceram grãos, tropas e elefantes sempre que os romanos solicitaram. O sobrinho de Micipsa, Jugurta, levou um contingente de elefantes e soldados de infantaria para auxiliar Cipião Emiliano na campanha de Numância, onde ganhou reputação pela sua capacidade e coragem. Em 118, o rei morreu, deixando o governo do seu reino para Jugurta, a quem tinha adotado, e a seus filhos legítimos, Aderbal e Hiempsal. O último foi rapidamente assassinado por ordem de seu primo. Aderbal fugiu para Roma, e o Senado decretou que o reino devia ser dividido igualmente entre os dois rivais. Contudo, o trato foi logo quebrado por Jugurta. Disputas dinásticas dessa natureza eram comuns entre as casas reais númidas e mouriscas, e foi justamente uma disputa como essa que levou Massinissa a buscar a ajuda de Cipião. No entanto, em 112, Aderbal foi cercado em Cirta, cuja população incluía grande número de mercadores romanos e italianos. Estes formaram a principal força da defesa e, depois da capitulação da cidade, foram massacrados pelos homens de Jugurta.

Roma ficou ultrajada com a notícia. A maior parte da fúria deve ter vindo de membros da classe equestre, chefes das grandes empresas mercadoras que tinham interesses na região e agentes entre os mortos, porém parece ter havido ira generalizada em todos os setores da população. O sentimento foi inflamado ainda mais pelo tribuno Caio Mêmio – muito possivelmente o mesmo homem que provocara o desdém de Emiliano em Numância –, até o Senado decidir enviar o cônsul Lúcio Calpúrnio Béstia com um exército ao norte da África. Jugurta foi persuadido a ir a Roma, onde se satisfez com o escandaloso e muito difundido suborno dos senadores influentes e até arranjou o assassinato de outro membro da sua família que estava exilado na cidade. Quando deixou Roma, aparentemente declarou que era: “Uma cidade à venda e que devia perecer se encontrasse um comprador”. A fúria popular dobrou, grande parte dela dirigida à incompetência e à corrupção do Senado.

A situação piorou ainda mais em 110, quando o sucessor de Béstia, Espúrio Postúmio Albino, liderou um ataque débil contra Jugurta antes de levar seu exército mal disciplinado ao seu quartel de inverno, deixando seu irmão, Aulo, no comando. A política em Roma, onde dois tribunos que desejavam prolongar o mandato suspenderam todas as eleições magisteriais, fez Aulo Postúmio Albino ficar no comando por muito mais tempo do que era esperado. Resolvido a tirar o máximo proveito disso, ele atacou a fortaleza de Suthul, onde estava o maior tesouro de Jugurta. O rei númida simulou desejo de negociar de novo e secretamente começou a subornar os centuriões e outros oficiais do exército romano. Então lançou um ataque noturno repentino contra o acampamento de Postúmio. Isso provocou pânico e fugas, pois muitos legionários, uma coorte inteira da infantaria liguriana e duas turmae da cavalaria trácia desertaram, enquanto o centurião sênior (primus pilus) da Terceira Legião deixou o inimigo entrar pela parte da fortificação que deveria defender. A resistência foi débil e breve. Um grupo de soldados fugiu do acampamento em direção a uma colina próxima, deixando os númidas a saquear suas barracas.

No dia seguinte, Jugurta aceitou a rendição de Aulo e de seus homens e ofereceu fazer um tratado terminando a guerra. Em troca de reconhecê-lo como legítimo rei da Numídia, ele permitiria aos romanos partirem livremente, depois de submeterem-se à humilhação simbólica de marchar sob um jugo de lanças. As origens exatas desse ritual arcaico são desconhecidas, mas ele implicava claramente a perda do status de guerreiro. Também não é certo que fosse praticado em grande escala fora da Itália, ou escolhido, em certas ocasiões, pelos inimigos de Roma, exatamente porque conheciam o seu significado para os romanos. Assim como em Numância, o tratado foi imediatamente repudiado pelo Senado. Isso pouco contribuiu para acalmar os protestos públicos contra a incompetência e a corrupção que tinham provocado tal desastre[6].

Em 109, o cônsul Quinto Cecílio Metelo, irmão mais novo de Deumático, foi enviado para assumir o comando da guerra contra Jugurta, levando tropas para substituir as legiões que já estavam na África em lugar de arregimentar uma força completamente nova. O racha entre Mário e os Metelos não havia sido, evidentemente, irreparável, pois ele e Públio Rutílio Rufo acompanharam Quinto como seus legados seniores. Com dois veteranos de Numância em seu quadro de oficiais, não é de surpreender que muitos dos métodos de Cipião Emiliano fossem logo empregados para colocar as legiões em forma. As tropas de Albino tinham passado os últimos meses num ócio mal disciplinado, não se importando em fortificar o seu acampamento de modo adequado e mudando o local apenas quando forçadas pela falta de forragem ou porque o mau cheiro dos seus próprios excrementos tornara-se insuportável. Os soldados e os escravos do acampamento saqueavam e pilhavam à vontade. Metelo impôs uma série de regras muito parecidas com as de Emiliano. Os mercadores e outros parasitas desnecessários foram expulsos, e os soldados foram proibidos de comprar alimentos – muitos tinham se acostumado a vender sua ração de grãos para comprar pão branco já assado, em vez de comer os pães de farinha integral que eles próprios deveriam preparar. Os soldados comuns foram impedidos de manter seus escravos ou animais de carga. Dali em diante, o exército levantava acampamento todos os dias e marchava a uma nova posição, onde construía um novo acampamento como se estivesse em território hostil. Assim como Cipião fizera, Metelo e seus legados deram o exemplo na marcha, movendo-se através das colunas para garantir que as unidades e os indivíduos mantivessem suas posições e estivessem sempre equipados e de prontidão[7].

Quando Metelo considerou que seu exército estava pronto, atacou Jugurta. De início o rei evitou a batalha, então os romanos voltaram a atenção para as suas cidades, capturando diversas pequenas fortalezas e a capital, Cirta. Tais perdas abalaram seriamente o prestígio de Jugurta, levando-o a atacar o exército romano enquanto este marchava através de um campo aberto perto do rio Mutul. Numa luta confusa, durante a qual o rápido inimigo rompeu as colunas em diversas seções, os númidas foram repelidos com grandes perdas, tendo a maioria dos seus elefantes de guerra sido mortos ou capturados. Os romanos também sofreram pesadas baixas assim Metelo deixou o exército descansar durante um tempo, permitindo que os homens se recuperassem e cuidassem dos feridos. Foram realizados desfiles para condecorar todos aqueles que se destacaram no combate recente. Após quatro dias, eles começaram de novo a assolar as áreas férteis da Numídia e a ameaçar suas cidades e fortalezas. Nunca era fácil invadir cidades fortificadas, e Metelo foi forçado a retirar-se de Zama depois de um cerco que envolvera lutas muito pesadas. Houve uma tentativa de lidar com Jugurta da mesma forma como os romanos derrotaram Viriato, subornando alguns de seus líderes para assassiná-lo, mas dessa vez o plano foi descoberto e fracassou.

É difícil ver o que mais Metelo poderia ter feito com os recursos à sua disposição, mas o descontentamento em Roma quanto ao tempo que estava levando para uma vingança contra Jugurta só aumentava. Em 108 a.C., Mário pediu permissão para voltar a Roma e anunciar sua candidatura ao consulado. Salústio nos diz que ele foi encorajado nas suas ambições por um vidente de Útica, que lhe profetizara uma carreira muito distinta. Ao que parece, Mário teve por toda a vida uma forte percepção sobre seu próprio destino e buscava estímulo em profecias. A resposta do general foi desdenhosa, sugerindo que Mário deveria esperar até candidatar-se juntamente com o filho de Metelo, um rapaz de apenas vinte e poucos anos que, naquele momento, servia entre os oficiais de seu pai. Mário continuou a servir como legado, mas, a partir daquele momento, não perdeu oportunidade de desmerecer seu comandante. Tanto no exército como quando encontrava alguns dos muitos mercadores e negociantes romanos na província da África, acusava Metelo de prolongar a guerra sem necessidade a fim de conquistar mais glória e saques. Várias cartas eram enviadas por esses homens aos seus contatos em Roma, criticando o comandante e elogiando demasiadamente seu legado.

Uma chance extra para atacar seu antigo patrono surgiu quando uma guarnição da cidade de Vaga foi massacrada por uma rebelião repentina da população, que tinha decidido desertar para o lado de Jugurta, e apenas o comandante, um certo Tito Turpílio Silano, foi poupado. A cidade foi recapturada com rapidez, mas Mário fez parte do tribunal instalado para investigar a conduta de Silano e recomendou sua execução, a qual foi aceita, apesar de ele também ser cliente dos Metelos. Finalmente, Metelo cedeu e permitiu que seu legado desleal e problemático retornasse a Roma.

A campanha eleitoral de Mário foi rápida e muito bem-sucedida. Embora nossas fontes sejam inclinadas a atribuir seu maior apoio às seções mais pobres da sociedade, temos de lembrar que o sistema eleitoral de Roma oferecia uma influência desproporcional aos cidadãos mais ricos, e muitos equestres favoreceram sua candidatura. Assim fez um grande número de senadores, mas outros membros da Casa ficaram irados com os discursos destemperados do novo cônsul atacando os nobiles. Soldado experiente, Mário contrastava com os aristocratas frouxos que tentavam aprender nos livros como era a guerra.

Agora, comparem-me, meus concidadãos, um homem novo, com esses nobres arrogantes. O que eles sabem é apenas o que ouviram ou leram. Eu vi com meus próprios olhos ou fiz com minhas próprias mãos – o que eles aprenderam nos livros eu fiz de verdade durante meu serviço militar. Pensem e concluam vocês mesmos se as palavras são mais valiosas do que os feitos. Eles desprezam minha origem humilde – e eu desprezo sua inutilidade. Eu sou reprovado pela casualidade do nascimento – eles, pela conduta infame. Pessoalmente acredito que todos os homens têm a mesma natureza e que os mais valentes são os mais bem-nascidos. E, se agora os pais de Albino e Béstia pudessem escolher se preferiam ter a mim ou a esses homens como filho, o que vocês acham que eles responderiam, senão que desejariam ter o melhor filho?

Se eles [os nobiles] me desprezam, então que desprezem seus próprios ancestrais cuja nobreza começou com a coragem, como a minha...[8]

Essas palavras são de Salústio, pois era convencional para um historiador grego ou romano inventar discursos apropriados aos eventos e personagens que descreviam, entretanto podem bem ser um reflexo genuíno do tom e da atitude de Mário em 107. Contudo, apesar de ele irritar os nobiles com críticas assim, seus discursos agradavam às massas. Mário já tinha resolvido que desejava substituir Metelo no comando africano e prometeu publicamente que colocaria um fim à guerra. Normalmente, o Senado decidia quais províncias seriam alocadas aos novos magistrados e quais comandos dos governadores deveriam ser prorrogados, mas um tribuno propôs um projeto de lei à Assembleia Popular (Concilium Plebis) que dava a Mário o comando da guerra contra Jugurta. Metelo recusou-se a passar o comando, deixando que Rutílio Rufo entregasse a liderança do exército ao cônsul.

Mário não conquistou uma rápida vitória na Númidia, apesar de suas bravatas. Sua popularidade parece não ter sofrido com isso, garantindo que seu comando fosse estendido. Não obstante, a guerra durou ainda mais três anos. Sua estratégia não diferia em nada da adotada por Metelo: os romanos continuaram concentrando-se em tomar uma a uma as fortalezas de Jugurta, uma vez que não conseguiam forçá-lo a travar uma batalha decisiva. A sorte sempre favoreceu os romanos, como quando um auxiliar lígure, ao procurar caracóis comestíveis fora do acampamento, descobriu uma trilha escondida que levava a um ponto fraco nas defesas de uma fortaleza próxima do rio Mulaca. Mário, que estava a ponto de abandonar o cerco, usou essa informação para invadir o local. Mesmo assim, apesar dos repetidos sucessos, Jugurta sempre ludibriava os romanos e nunca esmorecia em sua determinação de continuar a guerra. Finalmente, Mário recorreu à traição, persuadindo o rei Boco da Mauritânia, aliado de Jugurta, a traí-lo no final de 105 a.C. A operação foi organizada e comandada pelo seu questor, Lúcio Cornélio Sula, que conseguiu obter boa parte do crédito. Contudo, Mário retornou para celebrar um triunfo em 1o de janeiro de 104 a.C., iniciando, no mesmo dia, um segundo termo como cônsul para o qual havia sido eleito na sua ausência. Isso era totalmente irregular, mas a Itália estava agora ameaçada por uma migração em massa de tribos bárbaras, as quais já tinham repelido diversos exércitos romanos, de modo que havia um forte sentimento de que o general mais popular da república deveria ser enviado para enfrentá-las[9].

“AS MULAS DE MÁRIO”

Nem Metelo nem Mário conseguiram a permissão de recrutar um novo exército para a campanha africana, e levaram apenas reforços de tropas para complementar as forças que já estavam na província. Em 107, Mário quebrou o protocolo ao aceitar voluntários de outras classes além daquelas cuja riqueza as tornava elegíveis para o serviço militar. Esses homens eram os proletarii, ou “contagem de cabeça” (capite censi), listados no censo simplesmente como números, pois não tinham propriedade significativa. No passado, os capite censi eram apenas convocados para o serviço militar em épocas de extrema necessidade, como nos dias mais sombrios da Segunda Guerra Púnica, embora fosse possível que servissem com mais frequência como remadores na armada. Tradicionalmente, o exército obtinha sua força de homens em propriedades fundiárias, sobretudo agricultores. Eles tinham importante papel na república e se esperava, portanto, que lutassem com todo o ardor para defendê-la. Contudo, no final do século II a.C., essa tarefa havia se tornado demasiadamente pesada. Salústio nos diz que os oponentes de Mário no Senado esperavam que a convocação de tropas para reforçar o exército romano na África bastaria para minar o entusiasmo popular pelo novo cônsul. Ao receber voluntários de classes outras que não as normalmente convocadas, não só evitou esse risco como trouxe recrutas ansiosos, encorajados por seus discursos e promessas de glória e de saque.

A ação de Mário em 107 a.C. é, por vezes, vista como uma grande reforma, o momento em que o exército romano efetivamente se transformou de uma milícia composta de cidadãos em uma força profissional recrutada predominantemente das classes muito pobres. Daquele momento em diante, os legionários passaram a ver o exército como uma carreira e um meio de escapar da pobreza, em vez de um dever que interrompia a vida normal. Sob o sistema tradicional, as legiões eram recompostas a cada ano, porém, com o surgimento do soldado profissional, as legiões tornaram-se permanentes, adquirindo ao longo dos anos um forte sentido de identidade e tradição. Mário contribuiu para essa tendência quando deu a cada uma das suas legiões uma águia de prata como estandarte. No passado, cada legião tinha cinco estandartes – uma águia, um touro, um cavalo, um lobo e um javali. Uma vez que o recrutamento não era mais baseado na riqueza, as antigas divisões baseadas em classe e idade deixaram de ter qualquer significado real. Os velites foram mencionados pela última vez durante a campanha de Metelo em 109, e a cavalaria composta por cidadãos romanos também parece ter desaparecido por volta da mesma época, de modo que a legião não tinha mais uma infantaria ligeira ou uma cavalaria integrais. Os nomes hastati, principis e triarii – os últimos quase sempre sob o título alternativo de pille – foram preservados nas cerimônias e na administração do exército, mas as distinções reais entre as linhas desapareceram juntamente com seu significado tático. Todos os legionários eram agora homens de infantaria pesada, equipados uniformemente com capacete, cota de malha, escutum, espada e pilum.

A centúria continuava a ser a subunidade administrativa básica da legião e, ao que parece, contavam com uma força de oitenta homens. A manípula foi substituída enquanto unidade tática mais importante pela coorte maior, que consistia em três manípulas, uma de cada das antigas linhas, e totalizava 480 homens. Havia dez coortes numa legião. Em batalha, a legião ainda se formava, com frequência, em três linhas, normalmente com quatro coortes na primeira linha e três tanto na segunda quanto na terceira. Entretanto, como todas as tropas eram equipadas de modo idêntico e as coortes, organizadas da mesma maneira, não era necessário lutar nessa formação, e havia muito mais flexibilidade tática do que na legião manipular. A legião de coortes podia, também, entrar em formação em duas ou quatro linhas, embora uma única linha de coortes fosse raramente empregada, e talvez fosse considerada fraca demais.

Hoje, muitos estudiosos diminuem o significado da reforma de Mário na transição do exército de milícia para a formação profissional, preferindo ver esse movimento como um processo muito mais gradual. Certamente, a partir da época da Segunda Guerra Púnica, houve reduções periódicas com relação ao nível mínimo de propriedade que qualificava um cidadão para o serviço militar. Espúrio Ligustino – o porta-voz do grupo de centuriões veteranos arregimentados em 172 a.C. – tinha um trecho de terra pequeno demais para torná-lo elegível ao serviço e, repetidamente, ofereceu-se como voluntário durante os 22 anos que serviu com as legiões. É difícil saber até que ponto isso era comum antes de Mário, embora devamos lembrar que Ligustino serviu três anos como centurião, dando exemplo de oficial semiprofissional em lugar de soldado profissional. Também é difícil saber a população de cidadãos que continuavam impossibilitados de se unir ao exército, apesar da diminuição da qualificação da propriedade para o serviço militar[10].

O certo é que o papel do exército tinha mudado de forma significativa desde os primeiros dias do sistema de milícia. Quando foram empreendidas campanhas contra os vizinhos italianos de Roma, foi possível alistar-se numa legião, participar de uma campanha e ainda voltar para casa em tempo de fazer a colheita. Conforme o poder da república se expandiu, as guerras passaram a ser travadas cada vez mais longe de Roma e a durar períodos mais longos. Por volta do final do século II a.C., havia necessidade de o exército ter guarnições permanentes na Hispânia, na Gália Transalpina e na Macedônia, estando ou não em guerra. Muitos anos de serviço militar contínuo eram uma carga difícil para o proprietário de uma pequena extensão de terras, que poderia facilmente ser arruinada durante sua ausência. Ao mesmo tempo, a expansão no exterior tinha enriquecido demasiadamente a elite de Roma, que comprou grandes trechos de terra na Itália, formando grandes propriedades trabalhadas por mão de obra escrava, disponível e barata, como resultado das mesmas conquistas. O maior número de guerras fez que mais cidadãos fossem levados para longe de suas pequenas propriedades por anos a fio, levando muitos a se endividarem e a precisarem vender suas terras, as quais eram imediatamente absorvidas pelas grandes propriedades, ou latifundia. A cada vez que isso acontecia, o número de homens elegíveis para o serviço militar caía. Não possuímos estatísticas confiáveis o suficiente, nem mesmo para estimar a extensão a que declinaram as reservas de homens aptos para o serviço militar em Roma nesse período. Nossas fontes podem ter exagerado o problema, mas deixaram claro que era uma preocupação amplamente difundida entre os romanos. Esse tema estava no centro do programa de reforma de Tibério Graco de 133 a.C., quando ele tentou redistribuir terras públicas para aumentar o número de agricultores que tradicionalmente formavam o núcleo das legiões. As preocupações quanto à diminuição do número de elegíveis para o serviço militar podem ter sido aumentadas pelos pobres que se uniram ao exército romano em diversas campanhas desde meados do século. O declínio na qualidade dos soldados romanos era, no mínimo, tão sério quanto sua redução numérica.

O entusiasmo para o serviço legionário também pode ter declinado por volta do final do século II a.C., embora apenas ouçamos falar sobre isso em casos espetaculares, como o de 151 a.C., ou possamos inferi-lo pela esperança do Senado em que Mário não recebesse apoio quando começasse a recrutar soldados. Mesmo que o serviço não levasse à ruína financeira, podia ser ressentido. A convocação (dilectus) do exército era realizada inteiramente sob o controle do magistrado responsável e, às vezes, percebia-se que isso significava um peso extremo para certos indivíduos, já que todo novo exército buscava tantos soldados experientes quanto possível. O período máximo de alistamento era de dezesseis anos – uma parte substancial da vida de um homem. Em 123 a.C., Caio Graco havia renovado a antiga lei, segundo a qual ninguém com menos de 17 anos poderia ser forçado a servir o exército, o que leva a crer que, sob alguns aspectos, o procedimento apropriado era ignorado com certa frequência.

Aos cidadãos que possuíam propriedade suficiente, nunca se aboliu formalmente a obrigação de prestar serviço militar quando solicitado pelo Estado. Exércitos foram formados depois de Mário, mas não está claro até que ponto o processo empregado lembrava o tradicional dilectus. Parece improvável que qualquer atenção fosse dada às antigas classes proprietárias. No século I a.C. e por todo o resto da história de Roma, o alistamento foi sempre imensamente impopular. Mário pode não ter sido o primeiro a recrutar voluntários entre os proletarii, mas foi o primeiro a fazê-lo de maneira aberta. A partir de 107, a esmagadora maioria dos legionários era recrutada entre os pobres – sempre que possível entre os pobres que habitavam o campo, considerados material melhor que seus colegas de origem urbana. Desde então, o exército deixou de ser uma amostra dos estratos do povo romano em armas.

O exército que Mário comandou na Numídia era uma mistura desses novos soldados recrutados, principalmente entre os proletarii, e as tropas existentes, reunidas pelo método tradicional. Ao chegar à província, ele passou algum tempo integrando os dois diferentes segmentos por meio de um programa de treinamento e uma série de vitórias fáceis, ao atacar uma região fértil, porém mal defendida, da Numídia. Em todas as suas campanhas, Mário insistia em que seus soldados permanecessem em estado de prontidão, sempre seguindo os procedimentos padronizados que havia estabelecido. No entanto, não era autoritário, e a disciplina nas suas legiões não era considerada dura pelos padrões romanos. Salústio nos diz que Mário preferia controlar seus soldados mais através de “seu senso de vergonha do que por meio de punições”.

Exigia-se muito dos soldados. Como na época em que serviu como legado de Metelo, Mário continuou a dar grande importância a que o exército marchasse com o mínimo de bagagem possível. Luxos não eram permitidos e os legionários deveriam levar todo o seu equipamento nas costas, pois eram proibidos de ter escravos ou animais de carga. Mário pode ter introduzido, ou, mais provavelmente, padronizado, uma prática adotada por todos os soldados, a de suspender seu saco de campanha numa haste que levava sobre o ombro, muito possivelmente amarrado em seu pilum. Esse método permitia que a carga fosse largada no chão rapidamente. Os legionários iam tão carregados que foram apelidados de “as mulas de Mário”. O general sempre dava um forte exemplo pessoal, supervisionando de perto e compartilhando todas as atividades do exército em campanha, comendo a mesma ração que os soldados e vivendo nas mesmas condições que eles. Era seu costume inspecionar pessoalmente as sentinelas que guardavam o acampamento, não só porque não confiava nos seus oficiais subordinados para executar apropriadamente essa tarefa, mas também para que os soldados soubessem que ele não estava descansando enquanto eles trabalhavam. Mário nunca perdia a oportunidade de falar diretamente com homens de todas as patentes, fosse para criticar e punir, fosse para elogiar e recompensar. Era respeitado como um comandante duro, mas justo[11].

O exército romano na África foi desmobilizado depois da derrota de Jugurta, e, para a guerra contra os bárbaros do norte, Mário assumiu o comando das tropas arregimentadas por Rutílio Rufo durante seu consulado, em 105 a.C. Diz-se que preferiu agir assim por sentir que essas legiões estavam mais bem treinadas do que seus homens. Algumas das tropas na África tinham servido continuamente desde o começo da guerra, e os recrutas mais novos, tendo conquistado a glória e o butim que Mário lhes prometera, poderiam não estar ansiosos o suficiente para prosseguir com uma campanha árdua. Os homens de Rufo também eram, provavelmente, convocados de preferência entre os cidadãos mais pobres, e ele havia trazido treinadores de gladiadores para ensinar a seus homens o manuseio das armas. Tais técnicas, que incluíam o aprendizado da esgrima contra um poste de um metro e depois contra um oponente de verdade, tornaram-se padrão no exército durante muitos séculos. De início, o soldado usava uma espada de madeira e um escudo de vime, mais pesados do que as armas usadas em combate, o que lhe proporcionava um incremento de força. Tradicionalmente, assumia-se que qualquer cidadão qualificado para o serviço militar teria, quando jovem, aprendido com o pai a usar armas – que eram propriedade de família e, quase sempre, passadas de geração a geração. Agora, o soldado recebia equipamento do Estado, o qual também o treinava para usá-lo. Era outro sinal da mudança no sentido de profissionalizar o exército[12].

Os homens de Rufo podem ter sido mais bem treinados e disciplinados do que os do exército romano na África, sendo preparados com vista a enfrentar os cimbros e os teutões, cujas táticas diferiam marcadamente das dos númidas. Contudo, Mário comandara esses homens exatamente da mesma maneira que comandara as legiões na África. Manteve um programa de treinamento contínuo, com marchas regulares e grande ênfase na boa forma física. Como na África, os soldados deviam levar e preparar sua própria ração. Mário os guiava com rigor, recompensando as boas condutas e punindo as más com a mesma imparcialidade. Um incidente envolveu seu sobrinho Caio Luzio, que servia como oficial, possivelmente um tribuno. Esse homem tentou repetidamente seduzir um dos soldados sob seu comando, mas foi repelido todas as vezes. Quando chamou o legionário à sua barraca e o assediou, este, um certo Trebônio, sacou a espada e o matou. Julgado pelo assassínio de seu oficial superior, a história de Trebônio foi confirmada pelo testemunho de seus camaradas. Mário não só absolveu o soldado como também condecorou Trebônio com a corona civica por defender sua honra com tanta determinação. Políbio menciona que a atividade homossexual no acampamento era punida com a morte, e essa lei continuou quando o exército tornou-se profissional. Além da ampla e profunda repugnância com relação à homossexualidade por parte dos romanos e dos italianos em geral – que, embora nunca tenha sido universal, era mais severa que a atitude dos helênicos –, o principal motivo dessa restrição era o temor de que tais relacionamentos pudessem subverter a hierarquia militar, como, de fato, aconteceu nesse caso. Além do mais, perdoar o assassinato de alguém que não só era um oficial, mas também um parente, dava uma lição clara e objetiva de que a disciplina aplicava-se a todos sem exceção[13].

A AMEAÇA DO NORTE

Em 104 a.C., parecia para a maioria dos romanos que era apenas questão de tempo para que os bárbaros do norte cruzassem os Alpes e ameaçassem a Itália e Roma, de um modo que nenhum inimigo fazia desde Aníbal. Essas tribos, principalmente os cimbros e os teutões, mas também diversos outros grupos, como os ambrones e os tigurinos, não eram simples saqueadores, e sim migrantes em busca de terra para se assentar. As estimativas do seu número nas fontes antigas – Plutarco afirma que havia trezentos mil guerreiros e um número ainda maior de mulheres e crianças – são quase certamente muito exageradas, mas sem dúvida inúmeros guerreiros e suas famílias deslocavam-se de suas terras. Não viajavam numa única grande coluna – uma vez que teria sido impossível encontrar alimentos e forragem suficiente para suprir suas necessidades –, mas em muitos grupos menores, de modo que mesmo as tribos individuais se espalhavam por uma grande área. Os romanos não estavam certos de onde vinham essas tribos, a não ser de algum lugar além do Reno e talvez perto do Elba, nem se eram gálicas ou germânicas, ou por que motivo iniciaram sua migração. A causa desse movimento em massa pode ter sido simplesmente superpopulação dos territórios nativos das tribos, guerra civil, pressão de inimigos externos ou uma combinação desses três fatores. Ainda é incerto até que ponto os comentaristas gregos e romanos compreendiam os relacionamentos entre os vários povos tribais que encontravam. Os cimbros e os teutões eram muito provavelmente germânicos, embora os arqueólogos tenham, em geral, dificuldade em achar as distinções claras entre as tribos gálicas e germânicas sustentadas por nossas fontes gregas e romanas. As diferenças no estilo e nas formas dos artefatos indicam fronteiras distintas, mas, obviamente, podem não refletir as variações de língua, raça e cultura. Conforme as tribos germânicas passavam pelas terras ocupadas por povos gálicos, grande número de gauleses passavam a acompanhá-las[14].

Em 113 a.C., alguns teutões chegaram à Nórica. Apesar de o principal propósito da migração ser a busca de terras, isso não impedia que muitos grupos de guerreiros saqueassem os locais por onde passavam. A Nórica não era uma província romana, mas ficava na fronteira entre a Ilíria e os Alpes, e seu povo era aliado de Roma. O cônsul Cneu Papírio Carbão atacou os teutões com um exército. Os membros da tribo enviaram embaixadores que nada sabiam sobre alianças e que não desejavam entrar em conflito com Roma. Carbão deu uma resposta conciliadora, porém lançou um ataque-surpresa contra o acampamento dos germânicos antes do retorno dos embaixadores. Após essa traição, os guerreiros responderam com vigor, e o exército romano foi derrotado com pesadas baixas. Em seguida, os guerreiros foram em direção ao oeste, penetrando na Gália[15]. Quatro anos depois, um grupo de migrantes, que incluía os tigurinos – subdivisão dos helvécios que viviam onde hoje é a Suíça – aproximou-se da província da Gália Transalpina (a atual Provença) e derrotou um exército comandado por outro cônsul, Marco Júnio Silano. Após essa vitória, pediram ao Senado terras onde pudessem se estabelecer, contudo, quando seu apelo foi recusado, isso não resultou numa invasão, embora os tigurinos tenham saqueado a província romana.

Em 107 a.C., os tigurinos emboscaram e mataram o cônsul Lúcio Cássio Longino, bem como uma parte significativa de seu exército. Os sobreviventes renderam-se e foram obrigados a marchar sob o jugo. Tais distúrbios e ofensas ao prestígio romano influenciaram a rebelião de uma das tribos da Gália Transalpina, a qual foi rapidamente abafada por Quinto Servílio Cipião. Como parte dessa operação, Cipião saqueou o templo dos tectossages, em Tolosa (Toulouse), onde quantias consideráveis – algumas fontes falam em mais de cem mil libras de ouro e prata – tinham sido jogadas no lago sagrado. Um escândalo surgiu quando esse imenso tesouro desapareceu ao ser levado para a Itália. Em 105, Cipião, então procônsul, uniu-se ao cônsul Cneu Malio Máximo, pois os cimbros e os teutões tinham voltado a ameaçar a fronteira do Reno. Juntos, quando encontraram os invasores em Aráusio (Orange), controlaram uma das maiores forças arregimentadas por Roma. A rivalidade entre os comandantes contribuiu para o desastre que se seguiu, onde os óbitos rivalizaram aqueles de Canas[16].

Cinco exércitos consulares foram derrotados pelos bárbaros do norte, e parecia não haver nada que os impedisse de entrar na Itália e saquear Roma, como os gauleses haviam feito séculos antes. A série de derrotas foi pior do que tudo o que os romanos tinham sofrido nos cem anos anteriores. Pela última vez na sua história, os nervosos romanos realizaram um sacrifício humano, queimando vivos um casal de gauleses e outro de gregos no Forum Boarium, como fizeram após Canas. Depois da conduta vergonhosa de Béstia e de Albino na Numídia, os eventos no norte provocaram ainda mais críticas dos nobiles. Cilano Popílio (o legado responsável pelos sobreviventes do exército de Cássio, que se renderam em 107), Málio e Cipião foram processados, os dois últimos por incompetência, e acusados de roubarem a pilhagem de Tolosa. As desilusões com a aristocracia, combinadas com os poucos êxitos dos comandantes, levaram à exigência de que Mário assumisse o cargo de cônsul uma segunda vez.

Os movimentos das tribos bárbaras continuaram erráticos como antes, pois, depois de Aráusio, as forças principais dos cimbros e teutões foram em direção ao oeste, tentando sem sucesso chegar à Hispânia. Em 104, Mário e seu exército não tinham ninguém para combater, mas todos sabiam que a ameaça permanecia e que os romanos não fizeram nada para detê-la. Tendo determinado que apenas Mário poderia impedir a invasão e estimulada pela história da sua rígida imparcialidade no caso de Luzio e Trebônio, a Comitia Centuriata elegeu-o cônsul mais uma vez. Em outra época, seu comando poderia ter sido prorrogado, mas o Senado normalmente não tomava decisões como essa até depois das eleições, e os apoiadores de Mário podem não ter confiado que o Senado faria isso. Também é verdade que os procônsules e os propretores eram mais raros nessas décadas no começo do século. Esse terceiro mandato foi seguido por um quarto, pois uma vez mais o inimigo não tinha se materializado, sendo apenas em 101 a.C. que as tribos, por fim, lançaram sua invasão[17].

Pouco se sabe sobre as forças sob o comando de Mário, mas muito provavelmente se constituíam de um forte exército consular de duas legiões e duas alae, com cerca de seis mil homens e apoiadas por contingentes de auxiliares, somando um total de trinta mil a 35 mil homens. Eles tomaram e fortificaram uma posição bem defendida nas margens do rio Ródano, onde Mário reunira imensas quantidades de suprimentos. Durante a longa espera pelo inimigo, ele colocou seus soldados para construir um canal até o mar, melhorando muito as comunicações e facilitando o recebimento de provisões. O cônsul estava determinado a não forçar uma batalha nem sair da sua posição por falta de alimentos. A leste, os desfiladeiros mais importantes que levavam à Gália Cisalpina eram guardados pelo seu colega, Quinto Lutácio Catulo, com um exército consular mais fraco, de pouco mais de vinte mil homens. Os romanos sabiam que as tribos tinham se dividido, os teutões e ambrones indo em direção a Mári, enquanto a maior parte dos cimbros voltava à Nórica e ameaçava os Alpes. Os relatos dos movimentos do inimigo chegaram aos comandantes romanos, vindos de muitas tribos gálicas aliadas de Roma, ou, pelo menos, hostis à chegada de um grande número de migrantes. Sula, o homem que tinha capturado Jugurta, serviu Mário como legado em 104 e como tribuno em 103, quando foi encarregado de diversas missões diplomáticas junto aos gauleses, a exemplo de quando persuadiu os marsos a se aliarem a Roma. Menos ortodoxa foi a ação de Quinto Sertório, oficial que tinha sido ferido em Aráusio e escapado apenas porque nadara através do Ródano. Disfarçado de membro da tribo – ele possuía algum conhecimento rudimentar da língua –, infiltrou-se no acampamento inimigo e conseguiu detalhes sobre o número de guerreiros e suas intenções[18].

Quando os teutões e os ambrones aproximaram-se do acampamento romano no Ródano, os legionários assustaram-se com o que viram. De acordo com Plutarco, “seu número era ilimitado, sua aparência, horrível, e sua fala e seus gritos de guerra eram sem igual”[19]. Mais adiante, ele descreve os bárbaros ao saírem para a batalha, a cavalaria

usando capacetes feitos de forma a parecerem as bocarras abertas de feras selvagens ou as cabeças de criaturas fantásticas que, com plumas no alto, faziam aqueles que os usavam parecerem mais altos. Também eram equipados com couraças de ferro e escudos brancos que brilhavam na luz. Cada homem levava um dardo com pontas nas duas extremidades, e para o combate singular usavam espadas grandes e pesadas.[20]

Ao que parece, todos eram homens grandes, musculosos, de pele clara, cabelos loiros e olhos azuis. As descrições dos cimbros e dos teutões foram muito influenciadas pelo estereótipo literário e artístico dos bárbaros do norte: fortes, mas sem vigor; corajosos, mas sem disciplina. Embora exagerados, era fato que os exércitos tribais fossem, em geral, forças indisciplinadas. As táticas eram simples, quase sempre ataques frontais. Isso era uma ação terrível e, por vezes podia desbaratar o oponente – em especial um inimigo nervoso –, porém, se fossem repelidos, os bárbaros tendiam a perder o entusiasmo e a desistir.

As tribos migrantes vinham viajando e lutando durante anos a fio, e é provável que tenham se tornado mais eficientes do que a maioria dos exércitos tribais arregimentados para defender seus territórios ou promover uma breve campanha de pilhagem. Não obstante, os guerreiros eram na essência combatentes individuais, todos eles – sobretudo os nobres e aqueles bem equipados – ansiosos por conquistar glória pessoal através de atos heroicos. Também eram extremamente confiantes, desprezando o inimigo que derrotaram em encontros anteriores. Essas vitórias, mesmo tendo sido conseguidas sobre exércitos romanos mal treinados, tiveram, inevitavelmente, o efeito oposto nos homens de Catulo e de Mário enquanto esperavam pela invasão. Os rumores, sem dúvida, aumentavam o número e a ferocidade do inimigo e contribuíam para o nervosismo dos legionários. Os soldados que entravam numa batalha com tal disposição muito dificilmente conseguiam impedir um ataque selvagem de guerreiros terríveis e, até aquele momento, invencíveis[21].

Mário estava consciente da disposição de seus soldados e, por esse motivo, declinou a oferta do inimigo de travar batalha quando as tribos chegaram e acamparam perto de seu exército. Durante vários dias, os teutões postaram-se na planície entre os dois acampamentos, desafiando os romanos. Tais demonstrações eram parte central da guerra tribal, compondo os rituais de muitas sociedades guerreiras heroicas. Um guerreiro que esperava conquistar grande fama gritou o nome de Mário, desafiando-o para um combate singular. O cônsul sugeriu que o homem se enforcasse, já que estava tão ansioso para morrer. Quando o germânico, porém, insistiu, Mário enviou um gladiador pequeno e idoso, anunciando que, se o campeão inimigo derrotasse primeiro aquele homem, então ele o enfrentaria pessoalmente. Essa zombaria do código de honra germânico – um guerreiro orgulhoso exigia um oponente tão distinto quanto ele – foi, marcadamente, distinta do desejo de Marcelo de igualar tal comportamento heroico.

Mário também mantinha seus homens sob rígido controle, impedindo qualquer soldado de aceitar o desafio inimigo. Ele queria que seus homens vissem os bárbaros de perto e se acostumassem à sua aparência e aos gritos que davam, acreditando acertadamente que assim pareceriam menos amedrontadores. Depois de um tempo, os soldados começaram a ficar irritados com a recusa de seu comandante em aceitar a batalha. Os teutões saquearam os arredores e até realizaram um ataque ao acampamento romano, tentando forçar Mário a lutar. O ataque foi facilmente repelido, e as tribos decidiram passar do inimigo estático e continuar em direção aos Alpes. É muito provável que a permanência em um único lugar durante tanto tempo os tenha deixado com escassez de alimentos e de forragem. Gritando aos soldados romanos se desejavam enviar alguma mensagem às suas esposas, pois logo as visitariam, os bárbaros passaram pelos legionários. Plutarco diz que levou seis dias para que todos cruzassem o acampamento, indicando que isso se devia ao seu grande número, mas, se esse relato for verdadeiro, é mais provável que reflita a falta de disciplina das tribos ao marchar[22].

Mário esperou que o inimigo passasse, ergueu acampamento e o seguiu. Durante os dias seguintes, foi em seu encalço, aproximando-se sem entrar em contato e escolhendo cuidadosamente os locais de acampamento, de forma a se proteger por meio do terreno contra um possível ataque. Ele já havia anunciado aos seus soldados que tinha intenção de lutar, mas estava determinado a esperar o momento e o local corretos para assegurar a vitória. Mário incluíra na sua comitiva, divulgando o fato publicamente, uma mulher síria chamada Marta, famosa como profetisa. Os boatos diziam que sua esposa Júlia a encontrara em um espetáculo de gladiadores, onde ela havia previsto acertadamente o resultado de cada combate na arena. Agora ela acompanhava a marcha instalada numa liteira. Outros presságios que prediziam a vitória dos romanos foram divulgados amplamente. Da mesma forma que Cipião Africano afirmou que fora inspirado por Netuno antes do ataque a Nova Cartago, nossas fontes não estavam certas sobre se o general realmente acreditava nesses sinais ou se estava simplesmente manipulando o ânimo de seus homens[23].

Finalmente, quando os teutões chegaram a Águas Sêxtias (Aix-en-Provence), Mário julgou que o momento chegara. Como de costume, os romanos acamparam perto do inimigo numa posição fortificada. Nesse caso, porém, o local tinha uma grande desvantagem: a falta de uma fonte adequada de água potável. Frontino culpou o grupo de vanguarda pela má escolha, já que a equipe sempre precedia a coluna principal e marcava o local do próximo acampamento. Mário declarou que esse fato incentivaria seus homens ainda mais a derrotar os bárbaros, que tinham acampado perto do rio e de fontes de água quente. Entretanto, sua primeira prioridade foi assegurar-se de que o novo acampamento fosse fortificado de maneira apropriada. Para tanto, destacou os legionários que mais reclamavam. Os escravos do exército (e, mesmo Mário tendo reduzido seu número ao mínimo necessário, ainda havia muitos deles para realizar tarefas essenciais, como a supervisão das bagagens e o cuidado dos animais de carga; alguns deles – galearii – usavam capacetes, uniforme rudimentar e portavam armas básicas) foram mandados ao rio para buscar água. Os germânicos não estavam esperando lutar naquele dia, pois os romanos os seguiram sem demonstrar qualquer inclinação para travar uma batalha, e estavam muito dispersos, alguns deles até banhando-se nas fontes de água quente.

Uma escaramuça teve início quando os guerreiros mais próximos atacaram os escravos romanos e o barulho atraiu um número cada vez maior de germânicos. Os ambrones estavam, provavelmente, acampados mais perto do distúrbio, pois muitos guerreiros entraram em formação e repeliram os escravos. Plutarco afirma que havia trinta mil deles, mas a cifra parece muito improvável. Os auxiliares lígures foram enfrentá-los – muito possivelmente postados de modo a cobrir a construção do acampamento romano – e, em seguida, outras tropas, pois Mário relutava em forçar o combate. Os germânicos dividiram-se em dois corpos, uma vez que apenas alguns deles conseguiram cruzar o rio e foram derrotados separadamente. Os romanos invadiram parte do acampamento inimigo, onde foram atacados até por algumas mulheres[24].

A luta não tinha sido planejada ou desejada por Mário, mas acontecera acidentalmente. O resultado foi uma vitória romana e um útil estímulo para o exército que, agora, sabia que podia derrotar o inimigo. Contudo, o combate também implicou falta de tempo para concluir as defesas ao redor do acampamento romano. O exército passou uma noite nervosa ouvindo o lamento pelos mortos ser cantado pelo inimigo, e Mário preocupou-se bastante com um ataque repentino. De acordo com Frontino, ele ordenou a um pequeno grupo de soldados que fosse perto do acampamento germânico e perturbasse seu descanso com gritos súbitos. Plutarco não menciona isso e sustenta que não houve combate no dia seguinte, já que os teutões precisavam de tempo para reunir suas forças, o que, de novo, pode ser uma indicação de que tendiam a deslocar-se dispersos sobre uma ampla área. Na noite seguinte, Mário convocou um destacamento de três mil homens sob o comando de Marcos Cláudio Marcelo e o enviou, oculto pela escuridão, para esconder-se em bosques no terreno elevado atrás da posição inimiga. Frontino diz que a força consistia em cavaleiros e soldados da infantaria e era acompanhada por muitos dos escravos do exército, que conduziam animais de carga recobertos com xairel, de modo que, a distância, pareciam ser da cavalaria. Se isso for verdade, então deve ter sido ainda mais difícil para Marcelo conduzir seus homens até a posição indicada sem se perder ou ser descoberto. Ao chegar ao local designado, não havia mais comunicação com Mário, e suas ordens eram lançar um ataque na retaguarda do inimigo quando a batalha tivesse começado. A decisão do momento em que iria lançar o ataque ficou sob responsabilidade de Marcelo[25].

No começo da manhã seguinte, Mário conduziu seu exército para fora do acampamento e o colocou em formação de batalha no aclive em frente ao local em que haviam acampado. Em seguida, enviou a cavalaria à planície mais abaixo, uma ação que rapidamente obteve o resultado desejado de provocar o ataque dos teutões. Oficiais cavalgavam ao redor do exército romano, repetindo as ordens do comandante de que os homens deveriam permanecer onde estavam e esperar que o inimigo avançasse colina acima. Foi só quando o inimigo estava próximo, a cerca de quinze metros da formação romana, que os legionários arremessaram seus pila, desembainharam as espadas e foram à carga. O próprio Mário estava na linha de frente, determinado a pôr em prática suas instruções, confiando na sua habilidade com as armas e na boa forma física. Essa foi uma das pouquíssimas ocasiões em que um general romano resolveu tomar parte no combate desde o início da ação, uma vez que, em tal posição, ele pouco podia fazer para controlar a batalha. Não obstante, era um gesto poderoso que mostrava aos soldados que seu comandante compartilhava os mesmos perigos que eles. Apesar do seu treinamento rigoroso e do encorajamento obtido com a derrota dos ambrones, as legiões ainda enfrentavam um inimigo numeroso e confiante e poderiam sucumbir ao ataque dos germânicos. A necessidade de animar seus homens de todas as maneiras possíveis provavelmente contribuiu para a decisão de Mário. Não há registros de que ele tenha feito algo semelhante em qualquer outra batalha, antes ou depois de Águas Sêxtias.

Os germânicos atacaram a encosta, e o terreno tornou difícil que se mantivessem juntos e mantivessem a muralha de escudos contra o inimigo. No início da luta, Plutarco descreve os ambrones batendo ritmicamente suas armas nos escudos e cantando seu nome enquanto avançavam. As legiões esperaram até que estivessem muito perto e arremessaram seus pila. Os dardos receberam força adicional por terem sido arremessados do alto da colina e penetraram os escudos, a fina haste deslizando facilmente através do buraco aberto pela ponta e ferindo o homem atrás do escudo. Alguns germânicos foram mortos ou incapacitados, outros, cujos escudos estavam atravessados por um pilum, tiveram de descartá-los e combater sem sua proteção. Isso diminuiu o ímpeto da carga e rompeu sua formação. Em seguida, os legionários atacaram usando seus escudos pesados para golpear e desequilibrar o inimigo, abrindo assim caminho para acertá-los com suas espadas curtas. Os germânicos foram primeiro detidos e, então, gradualmente repelidos. O aclive favorecia os romanos, mas, quando os teutões retiraram-se à planície, essa vantagem foi perdida e os bárbaros tentaram restabelecer uma sólida linha de combate. Foi nesse momento que Marcelo comandou o ataque de seus homens contra a retaguarda alemã. A nova ameaça provocou pânico entre o inimigo e, em pouco tempo, seu exército foi desbaratado, desordenando-se. Diz-se que os romanos fizeram cem mil prisioneiros, bem como conseguiram grande quantidade de pilhagem. A ameaça dos teutões e dos ambrones a Itália teve, com isso, o seu fim. Enquanto o exército comemorava, chegaram notícias de que Mário fora uma vez mais eleito cônsul. Ele decidiu protelar o seu triunfo até que os cimbros também fossem derrotados[26].

No entanto, também havia más notícias, já que, nesse meio-tempo, os cimbros tinham chegado à Itália. Os homens de Catulo, não tão bem preparados para lutar com o inimigo, haviam entrado em pânico ao avistar a ferocidade dos bárbaros, abandonando suas posições e fugindo. O cônsul, percebendo que nada poderia detê-los, agarrou um estandarte e correu à frente da turba, afirmando que a vergonha do incidente recairia sobre ele, por tê-los comandado, em vez de sobre os soldados. Apesar desse fracasso, ele foi eleito procônsul e seu comando foi estendido para o ano seguinte, uma vez que o colega de Mário se fazia necessário na Sicília para abafar uma rebelião de escravos. Os dois exércitos romanos uniram-se e enfrentaram os cimbros em Vercelas. Os relatos dessa ação não são bons, pois, subsequentemente, houve consideráveis discussões entre os homens de Mário e de Catulo sobre quem tinha contribuído mais para a vitória. Os líderes dos cimbros continuaram a guerrear da maneira heroica, a qual parecia arcaica aos romanos. O rei Boeorix, com uma pequena tropa de seguidores, cavalgou até o acampamento romano e fez um desafio formal para combater as legiões na hora e no local da escolha dos romanos. Àquela altura, Mário tinha mais confiança na capacidade de seus homens de derrotar o inimigo e, após afirmar que não era costume romano deixar seu inimigo decidir a ação que tomariam, aceitou o desafio. Num único dia de combate sob um sol quente, entre nuvens de poeira erguidas por dezenas de milhares de pés e cascos, os cimbros foram massacrados. Alguns dos inimigos em fuga se suicidaram. Outros foram mortos pelas próprias esposas, que, em seguida, mataram os filhos e, finalmente, a si próprias. Mesmo assim, um número enorme de inimigos foram feitos prisioneiros e vendidos como escravos. Tanto Mário quanto Catulo celebraram um triunfo[27].

OS ÚLTIMOS ANOS: MÁRIO NA POLÍTICA E NA GUERRA CIVIL

Embora a guerra estivesse acabada, Mário ainda estava determinado a conseguir mais um mandato como cônsul. Claramente precisava de considerável capacidade política para alavancar sua carreira e explorar a agitação popular para vencer a eleição de 107, mas posteriormente seu toque ficou menos seguro. Talvez os anos que serviu como general, quando comandava e não precisava persuadir seus seguidores, tenham-no deixado despreparado para a vida pública em Roma, ou talvez os ânimos tenham simplesmente mudado. Sua fama levou-o a conquistar um sexto mandato como cônsul em 100 a.C., mas ele teve problemas para realizar a maior parte de seus objetivos, notadamente um programa para assentar muitos dos seus soldados dispensados em terras na Gália Transalpina, na Sicília e na Grécia. Muitos dos veteranos da Numídia já tinham recebido terras no norte da África. No passado, Mário fora generoso ao conceder a cidadania romana a soldados aliados que haviam combatido bem, e seu desejo de incluí-los no programa de colonos não foi bem recebido por muita gente em Roma.

No final, Mário aliou-se ao tribuno radical Lúcio Apuleio Saturnino, um demagogo que frequentemente se valia da violência da turba e até, conforme rumores, de assassínios para derrotar seus oponentes. Por algum tempo, os veteranos de Mário apoiaram o tribuno, o que resultou num grande tumulto no Fórum. Então Saturnino foi longe demais, tramando o assassinato do ex-tribuno Mêmio, o que levou ao rompimento com Mário. O Senado emitiu seu decreto final (Senatus Consultum Ultimum), que suspendia a lei normal e dava plenos poderes aos magistrados para empregar quaisquer meios necessários para proteger a república. Tal recurso tinha sido usado pela última vez para justificar a violenta supressão de Caio Graco e de seus servidores, e, agora, dava legalidade para usar a força de modo semelhante contra Saturnino. Mário cercou o tribuno e fez com que ele e seus seguidores se rendessem, mas eles foram linchados antes que qualquer decisão pudesse ser tomada com relação ao seu destino[28].

Depois de 100 a.C., Mário teve pouca participação na vida política por um longo período. Durante uma década, Roma pendeu na direção do confronto com muitos dos seus aliados italianos, que sentiam não estar recebendo um quinhão suficiente nos lucros de um império que seus soldados ajudaram a conquistar. Em 90 a.C., tal estado de coisas levou a uma rebelião aberta, a Guerra Social, travada em grande escala entre exércitos idênticos em termos de tática, equipamentos e doutrina militar. Durante algum tempo, as coisas foram mal para Roma, mas a república venceu, em grande parte devido às generosas concessões de cidadania a todos os aliados que tinham permanecido leais, ou se rendido de imediato, mais do que pelo uso da força. Nos anos seguintes à guerra, essa política foi estendida a praticamente toda a população livre do rio Pó. Em poucas décadas, a Gália Cisalpina também foi incluída no processo. Mário recebeu um importante comando no primeiro ano da guerra, lutando com competência e habilidade, apesar de não ter obtido nenhuma grande vitória. Ele estava mal de saúde e isso pode tê-lo impedido de assumir um papel proeminente nos estágios finais do conflito.

Um dos comandantes que se destacaram foi Sula, que, conforme a guerra chegava ao fim, venceu a eleição para cônsul em 88. Embora fosse membro da estirpe patrícia dos Cornélios, a família de Sula tinha se tornado obscura, e sua ascensão foi quase tão difícil quanto a de um “homem novo”. No Mediterrâneo oriental, o rei Mitridates VI, do Ponto, tentava expandir seu poder, enquanto os romanos eram enfraquecidos pela guerra na Itália. A diplomacia extremamente agressiva de Roma convenceu o rei de que a guerra era inevitável, levando-o à invasão da província da Ásia em 88, onde ordenou o massacre de todos os mercadores romanos. A cifra de oitenta mil romanos e italianos mortos no episódio é sem dúvida um exagero, mas o número foi com certeza muito substancial. A reação em Roma foi semelhante àquela com que encararam a queda de Cirta. Sula recebeu como missão a guerra contra Mitridates.

Por algum motivo, Mário estava obcecado em conseguir o comando dessa missão. Na década de 90, tinha visitado a Ásia e chegado à conclusão de que a guerra com o Ponto era apenas uma questão de tempo. Mário estava agora com 69 anos de idade, sendo considerado demasiado idoso para um comandante de campo. Contudo, algo, talvez a consciência de que apenas o sucesso militar o manteria no centro da vida pública e certamente uma rivalidade com Sula, que tentara roubar sua glória na Numídia, fez com que quisesse ser enviado para enfrentar Mitridates. Uma vez mais, ele se aliou a um tribuno, Públio Sulpício Rufo, que usou a Assembleia Popular para contornar a decisão do Senado e passar uma lei que dava a Mário o comando oriental como procônsul. Sula se sentiu ultrajado, vendo a oportunidade de renovar a fortuna da sua família ser sacrificada pela vaidade de outro homem. As seis legiões que ele tinha arregimentado para a guerra estavam nervosas com a possibilidade de Mário levar outras tropas em seu lugar, uma vez que as guerras no Mediterrâneo oriental eram, agora, sinônimo de vitórias fáceis e pilhagem abundante. O cônsul fez suas tropas desfilarem e realizou um discurso explicando seu agravo. Então, conduziu suas legiões até Roma para “libertá-la dos tiranos”. Nunca antes um exército romano tinha demonstrado vontade de usar violência para apoiar seu comandante numa disputa com seus rivais políticos. Todos, exceto um oficial senatorial, deixaram o exército imediatamente[29].

Roma foi ocupada com facilidade, pois os oponentes de Sula não tinham tropas para enfrentá-lo. Sulpício foi morto, mas Mário fugiu para a África. Mal de saúde e com sua sanidade por vezes questionada, dizem que às vezes ele tinha alucinações de que estava comandando um exército contra o Ponto, berrando ordens e gesticulando para tropas imaginárias. Ao mesmo tempo, Sula levou o seu exército para o leste a fim de combater Mitridates, num conflito que se arrastou durante anos. Mário, finalmente, conseguiu reunir apoiadores em número suficiente, muitos deles oriundos das colônias fundadas para seus veteranos, para voltar à Itália e tomar Roma em 87. Sua chegada à cidade foi agressiva, pois seus seguidores eram uma ralé que assassinava e saqueava sem restrições. Sem se importar com a formalidade de uma eleição real, Mário e seu aliado Cina declararam-se cônsules para o ano seguinte. No entanto, a idade e a doença cobraram seu preço e Mário morreu de maneira repentina após cerca de duas semanas da sua declaração, em seu sétimo mandato[30].

Mário, nos seus últimos anos, era uma figura egoísta, vingativa e por vezes patética, que mergulhou a república na primeira das guerras civis, as quais iriam, com o tempo, destruí-la. Pouco parece ter restado do talento genuíno que lhe conquistou os diversos mandatos como cônsul – fato sem precedentes – e lhe trouxe a vitória sobre os cimbros e os teutões. Se aparentemente é inevitável que a república romana triunfaria sobre umas poucas tribos bárbaras em migração, poucos romanos tinham, à época, tal confiança, e Mário parece genuinamente o herói e salvador da Itália. Suas realizações foram consideráveis, pondo fim à série de derrotas que os cimbros e seus aliados haviam infligido às legiões. Talvez seja melhor concluir este capítulo não com a Guerra Civil, mas com um incidente da Guerra Social que ilustra a atitude apropriada a um “bom general”. Plutarco diz que, em uma ocasião, Mário tomou uma posição muito forte e ficou bloqueado pelo inimigo, que tentava fazê-lo arriscar-se em uma batalha. “Pompédio Silo, o mais impressionante e poderoso dos seus oponentes, disse-lhe, ‘se você for um grande comandante, Mário, venha lutar’. Ao que Mário respondeu, ‘se você for um grande comandante, faça-me lutar, apesar de eu não o desejar’.”[31]