CÉSAR CONTRA POMPEU
A Guerra Civil (49-45 a.C.)
Tudo isso deixou César tão forte que agora a esperança de resistência depende de um cidadão. Eu gostaria que esse cidadão [Pompeu] não tivesse lhe conferido tanto poder, em vez de se opor a ele na hora da sua força[1].
As vitórias de César na Gália lhe deram a glória militar e a riqueza que ele almejara em 59 a.C., mas a dúvida era se teria permissão de assumir uma posição de importância na vida pública em Roma. Ele sabia que tinha feito muitos inimigos implacáveis durante sua turbulenta carreira e esperava ser processado por ninguém menos que Catão, que desejara entregá-lo aos germânicos. O fato de ser inocente ou culpado tinha pouca relevância em determinar o resultado dos julgamentos políticos romanos, e, por volta do outono de 50 a.C., ele não sabia com quantos amigos poderia contar no Senado. Crasso tinha sido assassinado pelos partos em 53 a.C., ao invadir suas terras numa guerra desnecessária, inspirada em grande parte pelo desejo de rivalizar as realizações militares dos dois outros membros do triunvirato. Júlia tinha morrido ao dar à luz no ano anterior, rompendo o mais íntimo laço entre César e Pompeu. Embora fosse um casamento ditado pela conveniência política, ao que tudo indica, a união foi genuinamente feliz para ambas as partes. Pompeu parecia ter sempre desejado o relacionamento e respondia bem à devoção, fosse da esposa, fosse de um exército.
Apesar de não ter querido uma província depois do seu segundo termo como cônsul, exercido com Crasso em 55, Pompeu amealhara enorme poder quando diversos distúrbios politicamente motivados causaram o caos em Roma, levando à sua nomeação como único cônsul em 52. Ele recebeu todas as províncias espanholas e suas guarnições para comandar durante cinco anos, mas teve permissão de permanecer em Roma e governar por meio de legados. Tal caso é, de muitas formas, uma grande subversão do sistema republicano tradicional, maior, até, que qualquer uma das suas atividades anteriores. No mesmo ano, ele tomou outra esposa, jovem o bastante para ser sua filha: Cornélia, filha de Quinto Cecílio Públio Metelo Cipião, um crítico destacado de César. Os dois aliados pareciam estar se afastando um do outro.
César anunciou que desejava ir diretamente do seu comando gaulês a um segundo termo como cônsul, concorrendo à eleição in absentia, permanecendo na Gália até que pudesse entrar em Roma para celebrar seu triunfo e tornar-se cônsul no mesmo dia, exatamente como fizera Pompeu. Enquanto magistrado, teria isenção de ser processado e poderia, então, receber outra província e outro comando militar para conquistar glórias adicionais. Havia muita conversa sobre a necessidade de vingar a derrota de Crasso em Carras e os subsequentes ataques dos partos à Síria, e sentia-se que tanto César como Pompeu deveriam receber o controle dessa guerra. Entretanto, os oponentes mais acirrados de César estavam determinados a evitar que ele, assim, deixasse de ser processado e tomaram medidas para que tivesse de retornar como um cidadão comum. Contudo, a atitude de Pompeu permaneceu ambígua: esperava que seu antigo aliado, que em 59 era o mais novo dos membros do triunvirato, deveria simplesmente confiar na sua proteção.
César não queria fazê-lo, em parte porque as ações prévias de Pompeu na defesa de seus amigos contra inimigos políticos foram um tanto ineficientes. Ele não fizera nada para evitar o exílio de Cícero em 58, embora tivesse contribuído para o seu retorno no ano seguinte. César também relutava em admitir que necessitava da assistência e proteção de outro senador. Para ele, suas vitórias na Gália lhe conferiram uma posição de influência tão elevada ou mesmo maior do que a de Pompeu. Este tinha sido a maior figura militar de Roma por trinta anos e não desejava aceitar como igual um homem cuja fama era tão recente. Pode ser também que ele temesse ser eclipsado caso César tivesse permissão de retomar a vida pública em Roma, pois mesmo ele, provavelmente, percebia que o jovem tinha muito mais talento político. Os frequentes pronunciamentos de César de que preferia ser o primeiro homem na menor aldeia do que o segundo em Roma, ou que era muito mais fácil cair do segundo para o último lugar na república do que do primeiro para o segundo, parecem ter deixado Pompeu intranquilo[2].
A política nos meses que levaram à Guerra Civil foi extremamente complexa, com diversas propostas sendo apresentadas, mas com nada sendo feito. Alguns pediam que César renunciasse ao seu comando e ao seu exército, outros faziam o mesmo com Pompeu, e, então, sugeriu-se que os dois homens abrissem mão das suas tropas, o que apenas produziu discussões sobre quem deveria fazê-lo primeiro. A hesitação de Pompeu em apoiar as demandas de César encorajou Catão e outros oponentes no Senado a acreditarem que poderiam colocar um homem contra o outro. Pompeu era, com certeza, o menor dos males, uma vez que era um político menos hábil e poderia ser deposto no futuro com facilidade. Por sua vez, ele, sem dúvida, considerava útil aparecer como o campeão dos “melhores homens” (optimates) do Senado contra o homem que tentava escarnecer das leis da república. É difícil saber se as numerosas propostas de conciliação, feitas pelos partidários tanto de César como de Pompeu, foram mais do que meras tentativas de conquistar maior terreno moral na luta que agora os dois lados viam como inevitável. César acreditava que tinha de escolher entre abdicar do seu comando e enfrentar um processo jurídico e sua consequente morte política, ou travar uma guerra civil. Seus oponentes desejavam destruí-lo de um modo ou de outro, e, assim, começou uma guerra para proteger sua posição, ou dignitas – palavra sem equivalente em português que abranja o conceito que encerra para um aristocrata romano. Os lados rivais não tinham diferenças ideológicas significativas, tampouco suas ideologias eram desiguais. Em lugar disso, o que os movia era o orgulho pessoal, e, no caso de Catão e alguns outros senadores, uma profunda inimizade pessoal que mergulhou a república romana em outra guerra civil, espalhando a devastação por todo o Mediterrâneo e custando muitas dezenas de milhares de vidas.
Nas primeiras horas de 11 de janeiro de 49 a.C., uma carruagem puxada por dois cavalos aproximou-se do pequeno rio Rubicão, que marcava a fronteira da província da Gália Cisalpina com a Itália. Seguindo a alguma distância, havia trezentos cavaleiros e, mais atrás, a Legio XIII. De um lado da fronteira, César ainda detinha legalmente o imperium e tinha o direito de comandar suas tropas, mas, logo que cruzasse o rio à frente de seus soldados, estaria violando a lei. Os Comentários não dão atenção a esse momento, mas, outras fontes, as quais podem ter se baseado nos relatos de alguns dos oficiais que o acompanhavam, afirmam que César desceu da carruagem e hesitou durante um longo tempo. Finalmente, deu a perceber que chegara a uma conclusão e, empregando a expressão de jogadores “o dado está lançado” (normalmente citado em latim, alea iacta est, embora, na verdade, deva ter falado em grego), continuou sua jornada atravessando o Rubicão. Desse modo começava a Guerra Civil, apesar de que, como um grupo de centuriões e legionários à paisana tinham cruzado para a Itália e tomado a cidade mais próxima, Arimino (Rímini), de alguma forma ela já havia começado[3].
A pretensão dos dois lados de buscar um acordo negociado evitara que cada um dos líderes arregimentasse tropas. Nos meses anteriores, Pompeu havia declarado de modo jovial que tudo o que tinha a fazer era bater o pé no chão e as legiões brotariam do solo da Itália. Havia apenas duas legiões treinadas e experientes à sua disposição imediata, mas ambas tinham servido recentemente sob César na Gália e sua lealdade era um tanto questionável. Pompeu deixou Roma em meados de janeiro, anunciando que a cidade não podia ser defendida, e ele e seus aliados começaram a formar um exército. Embora fizesse sentido em termos militares, a decisão colaborou para criar um clima de pânico entre senadores como Cícero, que era simpático, mas não devotado, à sua causa. César tinha apenas uma única legião e alguns poucos auxiliares, sem quaisquer outras unidades próximas, exceto as estacionadas na Gália Transalpina, porém decidiu lançar uma ofensiva imediata. Nas semanas seguintes, pequenas forças compostas por tropas de César penetraram no coração da Itália, tomando cidades e forçando a render-se quaisquer coortes de Pompeu que se opusessem a elas. Nesse estágio, o treinamento e a experiência, aliados à agressão e à extrema confiança, mostraram-se mais eficientes do que a vantagem numérica.
Desde o começo, Pompeu foi prejudicado pela recusa de muitos dos seus aliados em seguir ordens. Vários senadores, cujo orgulho pesava mais do que sua capacidade, e cuja influência política exigia que recebessem cargos de responsabilidade, correram com audácia para enfrentar César com forças inadequadamente treinadas ou preparadas. Uma vitória seguiu-se a outra, conforme as tropas de César, agora reforçadas, mas ainda em desvantagem numérica, devastavam toda a península em apenas dois meses. Com a situação tornando-se cada vez mais crítica, pelo menos um senador sugeriu com acidez que talvez fosse a hora de Pompeu bater o pé. Não obstante, Pompeu não estava particularmente preocupado com o sucesso do seu antigo aliado, pois resolvera transferir a guerra para outro teatro. Ele concentrou todas as suas legiões recém-formadas em Bríndisi e, depois de travar uma hábil ação de retaguarda, embarcou-as em navios e levou o exército através do Adriático até a Macedônia. César conquistou, naquele momento, o controle da Itália, mas sua vitória estava longe de ser completa, e a guerra continuaria[4].
É difícil dizer quando Pompeu decidiu que a Itália não podia ser defendida e que era melhor levar suas forças para a Macedônia, porém é possível que já considerasse a ideia antes mesmo de César cruzar o Rubicão. Ele sabia que levava tempo treinar soldados e preparar um exército para a batalha, em especial quando iriam enfrentar legiões endurecidas por anos de campanhas bem-sucedidas na Gália. O apoio que César tinha era limitado a alguns senadores mais jovens e com pouca reputação, enquanto a maior parte do Senado e das províncias favorecia ativamente Pompeu e seus aliados, ou, no mínimo, simpatizava com eles. Um encontro imediato tendia a favorecer César, mas uma guerra prolongada permitiria que seus talentos de organizador e planejador pudessem ser empregados. Deslocar seu exército para a Macedônia lhe daria acesso imediato aos enormes recursos das províncias orientais do império. Era uma área em que praticamente cada comunidade e governante inclinavam-se a ele, como resultado da sua colonização da região na década de 60 a.C., e, logo, tropas, dinheiro e suprimentos inundaram seu acampamento. Uma grande esquadra de navios de guerra também foi reunida. Pompeu, então com 57 anos, demonstrou toda a energia da juventude ao reunir e treinar seus soldados, exibindo sua própria habilidade nas armas e como cavaleiro, ao unir-se aos homens nos exercícios militares. O restante do ano foi passado na criação de um exército grande e eficiente, forte o bastante para enfrentar César caso ele escolhesse atacar, mas o objetivo de longo prazo sempre foi o retorno à Itália. Como o próprio Pompeu observava com frequência, “Sula fez isso; por que eu não deveria fazê-lo também?”[5].
Em março de 49, César não estava em posição de ir atrás de seu inimigo. Muitas das suas legiões ainda não tinham chegado à Itália e, de qualquer modo, ele não possuía uma frota que as transportasse através do Adriático. Não fazer nada seria colaborar com Pompeu enquanto ele aumentava suas forças, por isso César resolveu ir para o oeste e atacar os exércitos de Pompeu nas províncias espanholas. Tais forças consistiam em sete legiões, todas apropriadamente equipadas e treinadas, contando, também, com muitos auxiliares espanhóis. Os comandantes rivais pareciam passar a Guerra Civil sonhando com pronunciamentos dramáticos, e César declarou que iria combater “um exército sem general”, antes de voltar para derrotar “um general sem exército”. A campanha durou de abril a agosto e culminou na rendição das legiões de Pompeu. César tinha deliberadamente escolhido evitar uma batalha campal para não haver a perda desnecessária de vidas romanas. Em lugar disso, executou manobras que o colocaram em vantagem sobre os oponentes, de modo a interromper seu abastecimento de água e obrigando-os a render-se. César, então, colocou em prática a tática de libertar os prisioneiros aristocratas, a qual estava usando desde o começo da guerra, permitindo que fossem aonde quer que desejassem, enquanto desmobilizava ou recrutava seus soldados. Foi um sucesso considerável e uma operação a qual demonstrou a determinação das suas tropas e sua própria habilidade tática. Contudo, embora Pompeu tivesse perdido algumas das suas melhores legiões, seus legados derrotados logo juntaram-se a ele; ainda que fosse um reforço um tanto questionável, a campanha lhe deu um tempo precioso. A derrota total de uma expedição de início bem-sucedida à África, liderada por um dos subordinados de César, ajudou em parte a equilibrar suas perdas.
Por volta do final de 49, a posição de César ainda era extremamente precária, e notícias de que quatro das suas legiões tinham se amotinado em Placentia, no norte da Itália, foram especialmente desencorajadoras. Tais unidades, sobretudo a veterana Legio IX, que servira durante toda a campanha na Gália, reclamavam que muitos soldados já deveriam ter dado baixa há tempos e que nenhum deles tinha recebido o donativo de 500 denários por homem (valor maior do que o salário de dois anos) que César lhes prometera na primavera. A reação do general foi severa ao dizer a seus homens que receberiam tudo quando a guerra fosse vencida e que ele nunca deixara de cumprir nenhuma de suas promessas. Ele, então, declarou que submeteria a Legio IX à punição da decimatio, mas que se deixaria ser “persuadido” pelos apelos dos oficiais e soldados para executar doze dos 120 soldados tidos como líderes. O motim – como tantos outros que aconteceram ao longo da História – havia sido, em parte, produto de um período de inatividade, o qual permitira que um descontentamento menor fermentasse, mas era outro motivo pelo qual César não poderia se dar ao luxo de continuar na defensiva e esperar pelo retorno de Pompeu[6].
Em 4 de janeiro de 48 a.C., César embarcou, na pequena frota de navios mercantes que conseguira reunir, sete das doze legiões que havia concentrado em Bríndisi. Não é provável que qualquer uma dessas unidades tivesse mais do que a metade da sua força – no final do ano, a Legio VI contaria com menos mil efetivos –, de modo que sua força, provavelmente, tinha menos de vinte mil homens, com uma cavalaria auxiliar de quinhentos. Junto com suas tropas, ia o número mínimo de servos e bagagem para equipar o máximo de tropas de combate. A pequena cavalaria refletia como era necessário um espaço muito maior para transportar cavalos, mais do que implicava a ênfase romana na infantaria pesada. Poucos navios de guerra acompanharam os transportes para protegê-los da grande frota de Pompeu, comandada por Bíbulo, antigo colega consular de César em 59 a.C. e homem com uma meta pessoal a ser obtida. Contudo, a decisão de zarpar fora da estação normal de campanha surpreendeu o inimigo, e a sorte de César brilhou como de costume, de modo que ele pôde aportar sem enfrentar oposição em Paeleste, na costa de Épiro.
Bíbulo conseguiu capturar alguns dos navios vazios quando retornavam da viagem, e logo impôs um bloqueio que cortou o contato do exército de César com suas linhas de reforços e suprimentos. O problema mais crítico era o alimento, pois a estação – naquela época, janeiro, no calendário romano, caía no final do outono – implicava que ainda restavam alguns meses antes que quantidades significativas de alimento e forragem pudessem ser obtidas nas colheitas locais. O exército de César também estava em expressiva desvantagem numérica. Em pouco tempo, Pompeu foi capaz de concentrar nove legiões – cada qual com força próxima da total –, apoiadas por uma infantaria ligeira composta por cinco mil homens e uma cavalaria de sete mil. Mais duas legiões estavam a caminho da Síria para unirem-se a essas forças, comandadas por Cipião, sogro de Pompeu[7].
Na noite seguinte à sua chegada, César marchou até Orico, cidade onde Pompeu conservava parte dos seus depósitos de suprimentos, forçando-a a render-se. Apesar de um comboio de navios de grãos de Pompeu ter conseguido fugir com sua carga, ou destruí-la, a cidade ainda era uma conquista importante. Ainda mais valiosa era a cidade maior de Apolônia, que se rendeu logo depois. Esses sucessos compeliram César a lançar um ataque imediato ao maior de todos os depósitos de suprimentos de Pompeu, no grande porto comercial de Dirráquio (na moderna Albânia). Os batedores de Pompeu reportaram a marcha do inimigo, dando início a uma corrida que ele venceu por pouco. César não era forte o bastante para arriscar-se numa batalha e retirou-se para proteger Apolônia e Orico.
Conforme as semanas passavam, ele ficou ainda mais desesperado por receber os reforços de Marco Antônio, que tinham ficado com o resto das suas tropas em Bríndisi. Diversas tentativas de cruzar o Adriático foram prejudicadas, e, segundo a maior parte das nossas fontes, César ficou tão desesperado que se convenceu de que apenas a sua presença seria capaz de apressar o embarque. Zarpando num pequeno barco com mau tempo e dizendo com jovialidade ao nervoso capitão que não temesse, pois levava “César e a boa sorte de César”, ele lhes ordenou que mantivessem o rumo apesar da tempestade. Entretanto, no fim das contas, até tal determinação teve de ceder aos elementos, e ele foi forçado a retornar ao litoral. Esses meses marcaram um período de desespero, com as expedições que buscavam alimentos, tendo de ir para cada vez mais longe. Pompeu estava satisfeito em deixar que a fome fizesse o trabalho por ele, em especial porque mesmo o seu bem preparado exército operava com dificuldade naquela estação. Não foi antes de 10 de abril que Antônio conseguiu levar o restante do exército – quatro legiões e oitocentos cavaleiros – até a Grécia, tendo sido extremamente afortunado ao conseguir realizar a operação com apenas poucas perdas diante da frota inimiga. Pompeu respondeu muito lentamente para evitar que as duas partes do exército de César se unissem[8].
César tinha agora onze legiões, cada qual, provavelmente, menor em tamanho do que as do inimigo, mas mais experiente. No entanto, ele ainda estava em grande desvantagem numérica em termos de cavalaria e tropas ligeiras. Certamente não foi fácil alimentar a força que chegava com seus magros recursos, pois não conseguiu obter quantidades substanciais de alimentos do outro lado do mar, da Itália, e a primavera demoraria ainda algumas semanas para chegar. Uma vez mais, ficar na defensiva traria benefícios ao inimigo, e César decidiu atacar Dirráquio. Ele conseguiu marchar mais rapidamente do que Pompeu e ficar entre seu exército e a cidade, mas não pôde tomar Dirráquio. O exército de Pompeu fortificou um acampamento numa colina chamada Petra, que dominava uma baía formando uma enseada natural. Desse modo, foi capaz de trazer alimentos suficientes para seus homens, enquanto o exército de César, acampado no terreno elevado no interior ao norte, seguia sem provisões.
A fim de deixar suas patrulhas e grupos forrageadores realizarem seus trabalhos sem serem atacados pela cavalaria inimiga, César ordenou a construção de uma linha de fortificações que seguia o relevo das colinas em frente à posição de Pompeu. Ele logo decidiu estender a linha com o objetivo de envolver completamente o inimigo, fazendo um cerco eficiente ao redor do exército maior. Para evitar isso, Pompeu ordenou a seus legionários que construíssem uma linha de fortificações em frente às de César, e várias escaramuças foram travadas enquanto os dois lados lutavam para controlar posições-chave. Os homens de César apressaram-se para estender a muralha e a trincheira de forma que chegassem ao mar, enquanto os soldados de Pompeu buscavam construir sua própria linha tentando impedir a conclusão das obras do inimigo. Pompeu tinha a vantagem numérica e uma distância menor a cobrir – cerca de 24 quilômetros, contra mais de 27 de César –, uma vez que estava mais perto da costa.
O uso de linhas de fortificação para cercar total ou parcialmente um inimigo, restringindo seus movimentos e o acesso a suprimentos, tinha sido usado pelos exércitos romanos no passado, notadamente por Crasso contra Espártaco, Pompeu contra Mitridates e César contra Vercingetórix. Os grandes projetos, marca das legiões profissionais, eram outro reflexo de sua habilidade de engenharia e tenacidade. De muitas maneiras, também era uma extensão dos dias ou semanas das tradicionais tentativas de manobra entre dois exércitos antes de uma batalha. As vantagens defensivas oferecidas pelos trabalhos de campo não deveriam tirar a atenção, nessas ocasiões, de seu uso altamente agressivo para restringir as atividades do inimigo, forçando seu comandante a lutar contra a sua vontade, a se retirar, ou, nos casos mais extremos, a observar a lenta destruição do seu exército pela fome[9].
Os dois exércitos tinham problemas de suprimentos, enquanto labutavam para estender as linhas de fortificação para o sul em direção ao mar. Por vezes, os homens de César alimentavam-se quase que exclusivamente de carne, em lugar da ração balanceada de grãos, legumes e carne que era normalmente distribuída – a afirmação de que as legiões eram vegetarianas e consumiam pouca ou nenhuma carne é um mito, baseado numa leitura errônea desta e de outra passagem dos textos de César. Alguns soldados procuravam uma planta chamada charax, cujas raízes podiam ser transformadas num substituto do pão de sabor desagradável, mas comestível. Ao ver uma dessas plantas, Pompeu teria dito que estava lutando contra animais e não contra homens. O moral não parece ter sido abalado, e muitos dos veteranos recordaram-se de privações semelhantes que passaram em Avárico. O exército de Pompeu sofreu mais com a falta de água do que com a de alimentos, pois os principais regatos que corriam em direção às suas posições haviam sido represados pelos homens de César. Poços foram cavados, mas não ofereceram solução completa para o problema. Além de soldados, seu exército tinha um número muito grande de montarias e animais de carga. Os primeiros receberam a prioridade depois dos homens, e as mulas e os cavalos do comboio logo começaram a morrer ou tiveram de ser abatidos em quantidades consideráveis. Doenças – possivelmente o tifo – também começaram a se espalhar entre os soldados.
O ritmo da luta aumentou quando os homens de César fizeram um último esforço inútil para completar o cerco ao inimigo. Antônio liderou a Legio IX para tomar uma colina vital, mas foi rechaçado pelo contra-ataque de Pompeu – embora tenha conseguido retirar-se com perdas mínimas. Pompeu, então, lançou uma série de ataques contra os fortes em um setor das linhas de César. Houve algum progresso inicial, porém a resistência extremamente obstinada ganhou tempo e possibilitou a chegada das reservas, que ajudaram a repelir o inimigo. As tropas de ataque de Pompeu foram apoiadas por um número muito grande de arqueiros e fundeiros, que lançaram uma barragem de projéteis contra os baluartes. Em um dos fortes, a maioria dos homens da guarnição de três coortes foi ferida, e quatro de seis centuriões de uma coorte perderam um dos olhos. O escudo de um centurião chamado Ceva foi encontrado, mais tarde, com marcas de 120 projéteis, e ele também foi ferido num olho. Fingindo que se rendia, esperou até que dois legionários de Pompeu o alcançassem, para, de repente, decepar o braço de um deles e matar o outro. De algum modo, a posição foi mantida, e, no final do dia, os atacantes fugiam em desordem. Ao que parece, muitos dos oficiais de César acreditaram que podiam vencer a guerra se aproveitassem essa vantagem, saindo do forte e atacando, mas o legado de César, Sula, decidiu em contrário, sentindo que não era tarefa de um subordinado tomar tal resolução crítica. César, que estava num setor diferente da linha de defesa, concordou totalmente com essa atitude[10].
Os heroicos defensores do forte foram regiamente recompensados com pagamento extra, algumas promoções e, o que na ocasião pode ter trazido maior satisfação, rações extras para todos. A deserção para o lado de Pompeu de dois nobres gauleses, juntamente com seus guerreiros, deu ao comandante informações que o levaram a promover um novo ataque no setor indicado como um ponto fraco das linhas inimigas. Dessa vez, a coluna principal de legionários que avançou a partir das linhas de Pompeu foi apoiada por uma força de infantaria ligeira, transportada por mar e colocada atrás das posições de César. Seu alvo era a seção ainda não terminada das fortificações, e, uma vez mais, o assalto fez algum progresso antes de ser rechaçado. Quando César e Antônio comandavam reservas até o setor ameaçado, o inimigo começou a sucumbir e foi derrotado.
Dessa vez, o comandante estava presente para ordenar o contra-ataque, cujo alvo foi um acampamento originalmente construído pela sua Legio IX, mas que tinha sido abandonado e agora era ocupado pelo inimigo. Escondidos numa área florestada, os legionários de César puderam aproximar-se sem ser vistos e invadiram a posição, num repentino ataque devastador. Não obstante, conforme os soldados de Pompeu descobriram, o sucesso desse ataque, como quase sempre acontecia, levou rapidamente à desordem e à confusão. Uma coluna dos homens de César perdeu-se, confundindo uma muralha que conduzia a outra direção com parte do baluarte do acampamento, e a seguiu. Então foi a vez de Pompeu enviar apressadamente todas as reservas disponíveis àquela área e derrotar os atacantes. O pânico se alastrou a partir das unidades mais avançadas e chegou até o núcleo das 33 coortes que César tinha empregado no ataque. O próprio César estava no local e tentou impedir o tumulto, agarrando os porta-estandartes enquanto fugiam. Segurar um estandarte ou seu carregador, além de tentar persuadir os soldados que batiam em retirada a reunir-se ao redor desse símbolo do orgulho e da identidade de sua unidade, era um gesto comum de um comandante romano que enfrentava tal situação. Sula fez isso uma vez com sucesso ao combater o exército de Mitridates, na Grécia. Dois anos depois, durante a campanha africana, César agarrou um dos seus porta-estandartes e virou o homem para o outro lado, dizendo: “Veja! É lá que está o inimigo!”. Daquela vez, porém, sua presença não foi capaz de influenciar seus soldados. Pelo menos um homem deixou o estandarte nas mãos do seu comandante e continuou a correr. Outros relatos, embora ausentes dos Comentários, afirmam até que um dos homens em fuga tentou atingir César com a ponta pesada de ferro do seu signum (estandarte) e só foi detido quando a guarda pessoal do general decepou seu braço.
As baixas dessa ação foram muito pesadas, somando 960 homens e 32 tribunos ou centuriões mortos e outros capturados. Pompeu não aproveitou essa vantagem, o que levou César a declarar que o inimigo “teria vencido a batalha de hoje, caso fossem comandados por um vencedor”. Contudo, a velocidade com a qual o sucesso inicial degenerou em derrota para ambos os lados leva a crer que Pompeu estava certo. Linhas de fortificação defendidas com firmeza e apoiadas de perto por fortes reservas eram muito difíceis de ser capturadas, mesmo por outro exército romano. O terreno de relevo acidentado, dividido ainda mais pelas muralhas e trincheiras, dificultava que o comandante controlasse qualquer ataque, introduzindo, desse modo, um alto nível de acaso no resultado de qualquer combate. Pompeu tinha conquistado uma vitória e, como no começo da campanha, o tempo estava ao seu lado; não havia vantagem real em buscar uma decisão rápida. Os soldados capturados pelas suas forças foram executados, embora até o próprio César tenha dito que essa ação não foi ordenada por Pompeu, apesar de ele não ter se oposto a ela. Foi o seu velho legado Labieno que fez um discurso contra os prisioneiros e, então, os executou. Labieno tinha mudado de lado no começo da campanha italiana – fosse por estar insatisfeito com as recompensas e elogios que recebera de seu comandante, um velho aliado de Pompeu, fosse por pura convicção política. César ordenara que sua bagagem pessoal lhe fosse enviada, mas, embora em público tratasse a deserção como algo de pouca monta, foi um grande golpe que o privou de seu comandante mais capaz. Labieno aparece como uma figura muito mais brutal em A Guerra Civil que em A Guerra Gálica, sendo em especial odiado pelos oficiais que escreveram livros complementando os relatos de César[11].
No dia seguinte, do mesmo modo que fizera em Gergóvia, César reuniu seus soldados e tentou restaurar o moral da tropa. Diversos porta-estandartes foram rebaixados publicamente por covardia. César não fez esforço algum para oferecer batalha ao inimigo como fizera na Gália, julgando provavelmente que seria muito arriscado caso o inimigo aceitasse. Agora ficava claro que ele não tinha perspectiva de bloquear Pompeu até que ele se submetesse, assim resolveu deixar o local e marchar até a Grécia central para recuperar a confiança e a saúde do seu exército. Enviando os feridos e doentes na frente, mandou o comboio de bagagens deixar o acampamento à noite e, então, seguiu com o exército principal. Alguns poucos homens da cavalaria de Pompeu perceberam a retirada a tempo de atacar a retaguarda, mas foram logo repelidos. A cavalaria numericamente inferior de César era apoiada de perto por uma coorte de quatrocentos legionários especialmente escolhidos, que marchavam prontos para a batalha, não estando, por isso, sobrecarregados com bagagem. César tinha se afastado com habilidade do contato próximo com o inimigo, o que nunca foi uma operação fácil, mas isso e o seu tom confiante nos Comentários não devem esconder o fato de que sofrera uma séria derrota[12].
Era época da colheita e, conforme as tropas de César marchavam por uma terra que não havia sido devastada por exércitos em campanha, puderam colher grãos em quantidade suficiente para satisfazer suas necessidades. Para algumas comunidades gregas, as legiões de César pareciam uma força derrotada, e elas relutaram em lhes oferecer auxílio, uma vez que poderia lhes custar a antipatia dos vitoriosos. Depois que Gomfoi fechou os portões aos seus oficiais e recusou-se a lhe fornecer alimentos, César invadiu a cidade e a saqueou. De acordo com algumas das nossas fontes, o progresso do exército no dia seguinte pareceu mais uma festa de bêbados que uma marcha disciplinada. Após essa lição brutal, a maior parte das cidades não ousou se recusar a atender pedido algum de César[13].
Pompeu o seguiu, mas manteve distância e aparentemente desejava continuar com sua estratégia de desgastar o inimigo privando-o de suprimentos. Muitos dos senadores eminentes no seu acampamento foram críticos e exigiram que ele concluísse a guerra com rapidez, derrotando César em batalha. César, que obviamente não é uma fonte imparcial, afirmou que eles já estavam discutindo entre si sobre quem receberia os cargos e as honras dos que o apoiavam naquele momento. A pressão sobre Pompeu era considerável, mas não está, de modo algum, claro se foi isso que finalmente o persuadiu a procurar batalha. Corria o mês de agosto, e tanto a estação quanto a liberdade de movimento melhoraram bastante a situação de César com relação a suprimentos. Os exércitos de Pompeu tinham uma superioridade marcante na infantaria e ainda maior na cavalaria, o que tornava a luta, especialmente se fosse travada em terreno aberto, uma perspectiva atraente. No começo do mês, os exércitos rivais estavam próximos a Farsália e passaram vários dias realizando as tradicionais manobras e oferecendo batalha. Na manhã de 9 de agosto de 48 a.C., César estava prestes a marchar a um novo local – onde ergueria seu acampamento, pois seus homens tinham exaurido a forragem disponível na posição em que estavam –, quando chegou a notícia de que o exército de Pompeu estava uma vez mais oferecendo batalha. Pela primeira vez, eles tinham avançado para além do terreno elevado em frente ao acampamento inimigo e entraram em formação na planície ao longo do rio Enipeu. Era um sinal de determinação arriscar uma ação propícia a César. Dando ordens para que seus homens depusessem as bagagens e se preparassem para a batalha, ele levou suas tropas para enfrentar o inimigo.
César tinha 22 mil legionários, divididos em cerca de oitenta coortes – sete delas deixadas para guardar o acampamento –, e uma cavalaria de mil soldados.
Estacionando seu flanco esquerdo no rio, ele mandou que as legiões entrassem em formação no usual triplex acies. Sua melhor unidade, a veterana Legio X, assumiu o lugar de honra à direita da linha, flanqueada por toda a cavalaria e apoiada por parte da infantaria ligeira. À esquerda, posicionou uma unidade composta pela Legio VIII e pela Legio IX, ambas muito desfalcadas, pois a última, em particular, tinha sofrido demasiadamente em Dirráqueo. Dividindo a linha em três setores, César colocou Marco Antônio no comando das forças à esquerda, Cneu Domício Calvino no centro e Públio Sula à direita. O comandante ficou, desse modo, livre para ir a qualquer seção da frente de batalha, mas iria, de fato, controlar a luta a partir da ala direita, passando a maior parte do seu tempo com a sua favorita Legio X.
Do outro lado da planície, as onze legiões de Pompeu também entraram em formação em três linhas. Somavam juntas 45 mil homens, e cada uma das suas coortes tinha dez fileiras de profundidade – as unidades de César, quase da metade desse tamanho, tinham provavelmente apenas quatro ou cinco fileiras. As melhores legiões foram estacionadas nos flancos e no centro, e a linha inteira foi dividida em três comandos, com Lúcio Domício Enobarbo à esquerda, o sogro de Pompeu, Cipião, no centro e Lúcio Afrânio à direita. Pompeu uniu-se a Enobarbo e às tropas imediatamente opostas a César. De acordo com Frontino, seiscentos cavaleiros foram postados no flanco direito próximo ao rio. Os 6,4 mil cavaleiros restantes – ou, em outras fontes, toda a força montada – foram concentrados à esquerda, com grandes números de fundeiros, arqueiros e outras unidades de infantaria como apoio. Sob o comando de Labieno, era essa força que deveria realizar o ataque principal e decisivo, conforme Pompeu esperava, derrotando a cavalaria de César, que estava em desvantagem numérica, e então voltando-se contra as legiões no flanco e na retaguarda. O plano não era sutil, uma vez que a concentração de tantos milhares de cavaleiros numa seção da planície não podia ser ocultada, mas isso não significava que seria fácil para César reagir. Sua resposta foi enviar uma coorte da terceira linha de cada legião e estacioná-la como quarta linha atrás da sua cavalaria, possivelmente escalonada atrás à direita. Os cavaleiros de César devem ter evitado que o inimigo observasse essa manobra.
Os dois exércitos estavam confiantes. Foram passadas senhas dos dois lados para reduzir a inevitável confusão que surgia quando lutavam oponentes com os mesmos uniformes e falando a mesma língua. Os homens de César usaram “Vênus que Traz a Vitória”, em referência à sua ancestral divina, enquanto os soldados de Pompeu escolheram “Hércules, o Invencível”. Numa cena semelhante àquelas que moldariam a lenda napoleônica, um antigo centurião da Legio X, que agora servia como comandante de uma unidade ad hoc de 120 veteranos, gritou para César: “Hoje eu conquistarei sua gratidão, vivendo ou morrendo”. Esse homem, Caio Crastino, estava na linha de frente, que abriu a batalha ao avançar em direção ao exército de Pompeu. Este não se moveu. Era uma tática incomum, pois a infantaria romana normalmente avançava de encontro aos soldados inimigos a pé. Mesmo os homens de Mário em Águas Sêxtias e os de César quando enfrentavam os helvécios, embora tenham esperado o inimigo se cansar ao atacar colina acima, tinham no último minuto arremessado seus pila e, então, atacado imediatamente quando o inimigo estava a dez ou quinze passos. César diz que a ordem para permanecer imóveis foi dada por Caio Triário, que persuadira Pompeu de que, assim, evitaria que as coortes entrassem em desordem e lhes permitiria conseguir a melhor proteção possível com seus escudos contra os projéteis inimigos. A crença em que suas formações se romperiam caso se movessem pode ter sido um reflexo da inferioridade patente dos legionários de Pompeu em comparação aos homens de César. Por outro lado, Pompeu pode simplesmente ter desejado trazer a infantaria de César o mais para a frente possível, a fim de facilitar que sua cavalaria na ala esquerda a envolvesse. Nos Comentários, César é crítico quanto a essa decisão, argumentando que um avanço ajuda a encorajar os soldados e que a defesa passiva é prejudicial ao moral da tropa.
Antes de as linhas de legionários colidirem, a cavalaria de Labieno atacou a de César, rechaçando-a depois de breve luta. No processo, os cavaleiros de Pompeu saíram de formação. Era raro concentrar tantos cavaleiros numa frente tão estreita, e a maioria das unidades era inexperiente. Nem Labieno, nem seus oficiais subordinados tinham muita experiência em comandar e controlar tantas tropas montadas, e sua tarefa tornou-se ainda mais árdua devido às espessas nuvens de pó erguidas por tantos cascos. Tais fatores, combinados com a tendência natural de tantos cavalos colocados juntos a excitar-se, parecem ter transformado a ala esquerda de Pompeu, que passou de linhas bem ordenadas de esquadrões individuais a uma única massa desajeitada. Antes que pudessem reunir-se e entrar de novo em formação, César ordenou à sua quarta linha que contra-atacasse. As coortes surgiram de repente em meio à poeira e à confusão e avançaram rumo à multidão estacionada da cavalaria. Esses legionários receberam ordens de usar os pila como lanças. Em outras ocasiões, quando a infantaria romana tentou causar pânico na cavalaria inimiga, os soldados gritavam e batiam suas armas contra os escudos. Em uma das raras vezes em que a infantaria teve sucesso ao atacar a cavalaria em terreno aberto, os homens de Labieno começaram a ceder, transformando a confusão em derrota quando toda a massa de cavaleiros se dirigiu à retaguarda. Não sabemos se os cavaleiros de César tinham se reunido, nem se foram capazes de perseguir o inimigo, mas fica claro que a cavalaria de Pompeu não participou mais da batalha.
O ataque principal de Pompeu havia fracassado, expondo o flanco esquerdo da sua infantaria pesada e mostrando ainda outro motivo pelo qual não teria sido prudente essas forças avançarem. As coortes de César tinham seguido e, da maneira usual, acelerado e corrido numa carga preparatória para lançar os seus pila quando estivessem a cerca de trinta ou quarenta metros da linha inimiga. Quando os soldados de Pompeu foram impedidos de usar as táticas normais dos legionários e, finalmente, avançaram ao seu encontro, as tropas de César observaram e não desperdiçaram seus dardos enquanto permaneciam fora de alcance. Durante um tempo, a linha inteira parou, os centuriões e seus subordinados refazendo a formação das fileiras que se dispersaram durante a carga abortada. A frieza dessa manobra quando o inimigo estava tão próximo é testemunho da qualidade, treinamento e experiência dos legionários de César e de seus oficiais. Então, depois dessa pausa, a linha avançou de novo. A cerca de dez a quinze metros, os soldados arremessaram os pila e atacaram os homens, dando seu grito de guerra e desembainhando as espadas. A seu favor, e de certa forma confirmando as táticas de seu líder, os soldados de Pompeu os receberam com firmeza e também lançaram seus pila. A luta foi encarniçada; as fileiras extras e a formação muito próxima das coortes de Pompeu as manteve no combate contra seus adversários mais experientes. Crastino foi morto por um golpe de espada na boca tão forte que a ponta do gládio do seu oponente saiu pela nuca. As coortes da segunda linha de César, que sempre operavam em apoio próximo à primeira, logo entraram na luta.
Por algum tempo, nenhum dos lados conquistou vantagem marcante, até que a quarta linha de César voltou-se para atacar o flanco esquerdo de Pompeu. A linha de combate de Pompeu começou a ceder, e César deu o sinal para a terceira linha – menor em número do que o usual devido à criação da quarta linha, mas composta por tropas descansadas – avançar e entrar em combate. A pressão foi tanta que as legiões de Pompeu cederam e fugiram. César afirma que quinze mil soldados inimigos foram mortos e 24 mil capturados, juntamente com nove águias legionárias e 180 signa (estandartes). Ele teria dado ordens para que seus homens poupassem os conterrâneos sempre que possível, mas chacinassem auxiliares estrangeiros. Suas perdas somaram duzentos soldados e trinta centuriões – proporção que reflete o estilo de liderança agressivo e, portanto, arriscado que se desejava das legiões[14].
Pompeu parece pouco ter participado da batalha após o fracasso do ataque da sua cavalaria. César afirma que ele deixou o campo antes de a luta terminar, desesperando-se com sua derrota de modo indigno para um romano, e retornou ao seu acampamento. Quando viu que seu exército estava para ruir, retirou as insígnias de general e afastou-se a galope. Mesmo nos relatos favoráveis a Pompeu, não há traço do vigor que ele demonstrara nas primeiras campanhas que realizou. No que diz respeito aos Comentários, ficou claro que o melhor homem – com certeza, o melhor romano – tinha vencido.
Encontrando-se com a esposa, Pompeu fugiu para o Egito, onde foi assassinado pelos cortesãos do rei Ptolomeu XII, que esperava receber favores do general vitorioso. O primeiro golpe foi, na verdade, desferido por um centurião que servira sob Pompeu durante as campanhas orientais, mas que estava com uma das duas legiões estacionadas no Egito havia alguns anos, as quais agora, segundo acreditava-se, tinham “se tornado nativas”. Quando César chegou, em 2 de outubro de 48 a.C., foi presenteado com a cabeça de Pompeu, mas recusou-se a olhar para ela e deu ao seu antigo aliado um funeral com honras. Ele afirmou publicamente que lamentava não ter podido estender sua famosa clemência a seu oponente mais distinto. Isso, porém, pode ter sido apenas para agradar a opinião pública, mas também é possível que ainda conservasse certa afeição e respeito pelo velho amigo[15].
César passou os seis meses seguintes no Egito, dando, desse modo, tempo para os soldados sobreviventes de Pompeu formarem um novo exército no norte da África. O longo atraso antes do seu retorno a Roma desconcertou muitos daqueles que, como Cícero, esperavam que a Guerra Civil tivesse terminado. Talvez César acreditasse que, sem Pompeu, a oposição a ele findasse, ou provavelmente teve, naquele momento, menos satisfação na sua vitória do que esperava. Ele foi envolvido na disputa dinástica entre o adolescente Ptolomeu e sua irmã de 21 anos, Cleópatra. Esta – vivaz, inteligente, carismática e atraente, embora não estritamente linda conforme os padrões do seu tempo, e bem-educada tanto na cultura helenística como na antiga tradição egípcia – é famosa por supostamente ter sido levada aos quartéis de César escondida num tapete ou cobertor, que foi, então, desenrolado para revelar sua notável passageira. Os dois, que rivalizavam em perspicácia, em conhecimento e na enorme ambição, logo tornaram-se amantes, e a rainha egípcia causou impressão muito maior no promíscuo romano de meia-idade do que talvez qualquer uma das suas amantes, exceto, possivelmente, Servília, a mãe de Bruto e grande amor de César na juventude.
César derrotou Ptolomeu, que morreu na confusão, e instalou Cleópatra no trono egípcio. Mesmo assim, ele não queria deixar o Egito, e diz-se que os amantes partiram num longo e luxuoso cruzeiro através do Nilo. Foi apenas quando chegaram más notícias do Mediterrâneo que, finalmente, César viu-se forçado a interromper seu devaneio. Farnaces, o filho de Mitridates que se voltara contra o pai e recebera permissão de Roma para manter um reino muito reduzido, tinha invadido a província do Ponto e derrotado um exército romano. No final de maio de 47, César reuniu uma pequena força com as legiões imediatamente disponíveis e marchou contra ele. O exército do Ponto foi totalmente derrotado em Zela, em 2 de agosto, e a rapidez da sua vitória o levou a proferir o famoso comentário “Vim, vi, venci” (veni, vidi, vici). Não obstante, por um momento a disputa pareceu não estar resolvida, quando Farnaces quebrou todas as regras do generalato da época e atacou o exército de César enquanto este construía o acampamento em terreno elevado. Atacar um inimigo numa posição forte conferiu a vantagem inicial da surpresa ao exército do Ponto, mas as legiões recuperaram-se rapidamente e destruíram o inimigo. Zombando de Pompeu, César comentou como um general que combatera oponentes fracos como aqueles tinha sido beneficiado pela boa sorte[16].
Retornando para o oeste e para seus inimigos romanos, a forma como César conduziu o resto da Guerra Civil foi enérgica, impaciente e cada vez mais impiedosa. Em dezembro de 47, ele comandou uma invasão mal preparada à África, que foi, em certos aspectos, até mais audaciosa do que a ida à Macedônia dois anos antes. Uma vez mais, seu talento para a improvisação e sua recusa em duvidar de seu sucesso final, combinados com a grande qualidade dos oficiais e homens sob seu comando, permitiram que o exército de César sobrevivesse à sua fraqueza inicial até a chegada de reforços e a melhoria da situação relativa aos suprimentos. Em abril de 46, enfrentou o exército de Pompeu nos arredores da cidade de Tapso. O autor de A Guerra Africana dá a entender que César não tinha controle total sobre seu exército:
César estava firme, resistindo ao entusiasmo e à ansiedade [de seus homens], gritando que não aprovava um ataque imprudente e segurando a linha [de combate], quando, de repente, na ala direita, um tubicen [trombeteiro], sem ordens de César, mas encorajado pelos soldados, começou a soar seu instrumento. A ordem foi repetida por todas as coortes, e a linha começou a avançar contra o inimigo, apesar de os centuriões terem se colocado à frente tentando em vão deter os soldados e impedir que atacassem sem ordens do general.
Quando César percebeu que era impossível segurar os soldados entusiasmados, pronunciou a palavra de ordem “Boa sorte” [felicitas] e esporeou o cavalo em direção às fileiras frontais do inimigo.[17]
Em outra tradição menos favorável, César precisou deixar o campo por conta de um ataque epilético. Seja qual for a verdade desses relatos, as legiões de César conquistaram uma vitória rápida e decisiva. Ainda não foi o fim da guerra, porém, já que o filho de Pompeu, Cneu Pompeio, tomou o controle da Hispânia e precisou ser derrotado em Munda, em 45 a.C.[18].
César tinha vencido a Guerra Civil, espalhando devastação por toda a Itália e províncias para defender sua própria honra, mas ainda era necessário ver se podia ou não conquistar a paz. Enquanto ditador vitalício, deteve um poder igualado no passado apenas por Sula, o qual chamou de analfabeto político por ter se retirado da vida pública. As honras recebidas por ele foram maiores do que as concedidas a qualquer outro indivíduo, e a escala dos projetos que planejou eram verdadeiramente surpreendentes. Durante toda a Guerra Civil, César exibiu sua clementia, perdoando oponentes capturados, em alguns casos mais de uma vez. Muitos temiam que isso fosse simplesmente um estratagema cínico, lembrando como Sula tinha, num primeiro momento, agido de modo conciliador até a vitória permitir que executasse sua brutal vingança. Os temores de que César faria o mesmo mostraram-se infundados, pois não havia proscrições, e o Senado recebeu grande número dos seus antigos oponentes, alguns dos quais em cargos elevados. Contudo, se a ditadura não foi repressiva, também está claro que as eleições foram controladas de perto e que o Senado não tinha poder real nem independência. Corriam rumores de que César desejava tornar-se rei – título que ainda era tabu para os romanos, séculos depois da extinção da monarquia – e ser deificado. Às vezes, dizia-se que queria governar com Cleópatra (que trouxera para Roma) como sua rainha e fundar uma nova dinastia. Os motivos dos conspiradores liderados por Bruto e Cássio eram muitos e variados, mas tinham mais a ver com os temores relativos aos planos futuros de César do que com qualquer outra coisa que ele tivesse feito até então.
As intenções do ditador não podem, agora, ser estabelecidas, pois as fontes desse período foram completamente obscurecidas pela propaganda dos que o apoiavam dos seus inimigos após a sua morte. É, por exemplo, impossível saber se o garoto Cesarião era, de fato, o filho ilegítimo de César e Cleópatra. O próprio César não foi claro quanto aos seus objetivos finais, uma vez que seu plano imediato era voltar a realizar o que fazia melhor: comandar um exército em guerra. Quando foi esfaqueado até a morte, numa sessão do Senado em 15 de março de 44 a.C., tendo publicamente dispensado sua guarda pessoal algum tempo antes, ele estava prestes a partir em campanha contra os dácios e, então, levar a guerra até os partos. Estes, em particular, demandariam uma tarefa que inevitavelmente duraria muitos anos, e não sabemos o que ele esperava que acontecesse em Roma durante sua ausência. Com o assassínio de César, Roma foi de novo arrastada a uma guerra civil. Numa última ironia, o cadáver do ditador caiu aos pés de uma estátua de Pompeu, pois o Senado estava, naquele dia, reunindo-se num templo ligado ao complexo teatral de Pompeu[19].
Nos últimos capítulos, abordamos generais – Mário, Sertório, Pompeu e César – os quais, a certa altura da carreira, comandaram suas legiões contra outros exércitos romanos. Desde os primeiros dias da república, a política romana foi extremamente competitiva, mas só no século I a.C. as rixas entre senadores rivais transformaram-se em guerra civil. Parece extremamente duvidoso que Cipião Africano tenha sonhado lutar contra o regime que o forçou a retirar-se prematuramente da vida pública. Se ele tivesse feito isso, é difícil imaginar que qualquer um dos seus antigos soldados – agora aposentados e estabelecidos em suas casas – quisesse usar a força em defesa de seu antigo comandante. As legiões eram recrutadas de todas as seções das classes proprietárias, todas as quais eram capazes de contribuir para a vida política da república ao votar nas assembleias. Não obstante, em um século o relacionamento entre o exército, seus comandantes e a república havia se alterado, de modo que em 88 a.C. e em muitas outras ocasiões subsequentes os generais puderam comandar, como de fato o fizeram, suas legiões contra outros exércitos romanos. A mudança foi profunda e relacionava-se à ascensão do exército profissional, no qual a maioria dos legionários era recrutada entre os mais pobres da sociedade. Para tais homens, o serviço militar não era um dever ao Estado que interrompia sua vida normal, mas uma fonte de emprego e uma receita estável, embora pequena. Quando dispensados do exército, os proletarii não tinham nada a que voltar em termos de propriedade ou trabalho na vida civil. Diversos comandantes, como Mário, Sula, Pompeu e César, pressionaram, em alguns momentos, para que fossem estabelecidas colônias, que seriam povoadas por seus soldados veteranos. Em todos os casos, a ideia foi tremendamente impopular, em grande parte porque nenhum senador desejava que um rival tivesse tantos cidadãos devedores a ele. O Senado como um todo também relutava em reconhecer que as legiões eram, agora, recrutadas entre os pobres e se recusava a se responsabilizar pelo seu bem-estar depois que fossem dispensados. Isso estimulou uma relação mais próxima entre o comandante e suas tropas, de forma que a lealdade dos legionários era dirigida muito mais à pessoa do seu comandante do que à república, a qual lhes oferecia tão pouco. As legiões, com efeito, tornaram-se “clientes”, ou exércitos particulares de comandantes populares e poderosos.
A visão tradicional de que as mudanças foram resultado da Reforma de Mário é um tanto simplista e tem sido muito criticada, especialmente pelos estudiosos que acreditam que a evolução do exército foi gradual e que sob Mário não houve mudança repentina. Eles observam, por exemplo, ser certamente falso que todo general romano do século I a.C. era capaz de voltar suas legiões contra seus rivais. Lúculo comandou seu exército durante anos de campanhas bem-sucedidas no Oriente, mas nunca conseguiu conquistar a afeição de seus soldados, os quais recusaram seus apelos para resistir à sua substituição por Pompeu. Em diversas ocasiões durante as guerras civis, generais impopulares foram desertados ou até linchados pelos seus próprios homens. Entretanto, se muitos generais do final da república, talvez a maioria, não podiam persuadir suas legiões a lutar contra outros romanos, alguns deles – e este é o ponto essencial – tanto puderam como o fizeram. Tal ação teria sido impossível nos velhos dias do exército de milícia ou de alistamento compulsório, responsável por conquistar o domínio de Roma no Mediterrâneo, e, embora talvez a intensidade e o jogo da competição política tivessem aumentado, a guerra civil só se tornou uma possibilidade com a nova natureza da legião. Isso é algo que os defensores da mudança gradual em detrimento da reforma militar repentina ainda não conseguiram explicar de modo adequado, apesar de, realmente, não haver motivo para que a primeira ideia não pudesse ter impacto tão poderoso quanto a última[20].
Uma vez que os comandantes romanos construíram uma relação próxima com seus legionários, de forma que estes desejassem lutar contra outros romanos, é importante considerar como o fizeram. Pompeu formou um exército às suas próprias custas e, em grande parte, às custas das propriedades da sua família, embora fosse jovem demais e não tivesse autoridade legal alguma. Poucos homens tinham riqueza para correr tal risco, mas muito do seu sucesso residia no seu carisma pessoal e na ligação tradicional da população com sua família. Em 88, Sula persuadiu seus homens a marchar contra Roma porque temiam que Mário levasse outras legiões à guerra lucrativa no Oriente. Contudo, apesar de ocasionalmente um homem ser capaz de conquistar o apoio dos soldados antes de os comandar numa campanha, um período comum e bem-sucedido de serviço ativo era o que, de fato, unia os legionários e os generais. Os homens de Pompeu e de Sula confirmaram sua lealdade desse modo, da mesma maneira que os dez anos que enfrentaram entre dificuldades e vitórias na Gália garantiram que nunca fosse levantada nenhuma questão sobre se o exército de César se recusara a segui-lo além do Rubicão. Normalmente, as campanhas longas e bem-sucedidas criavam um forte elo entre o general e os soldados, apesar de a experiência de Lúculo demonstrar que, por vezes, não era esse o caso. Uma das principais razões da sua impopularidade era a crença de que ele era miserável na distribuição do espólio capturado do inimigo. Mário, Sula, Pompeu e César recompensavam regiamente seus homens, em especial os oficiais. A certa altura, possivelmente durante a Guerra Civil, César dobrou o pagamento de seus legionários para 225 denários por ano.
Nos Comentários, César justifica repetidamente sua causa, quase sempre em passagens nas quais reconta os discursos que fez às suas tropas. Era uma forma de reforçar sua mensagem para seu público leitor, mas apelos semelhantes também aparecem na maioria dos relatos que outros historiadores registraram sobre as guerras civis. Em grau maior ou menor, todos os soldados de um exército durante uma guerra civil provavelmente tinham algum conhecimento da natureza das suas causas. Os centuriões e os oficiais mais graduados, como os tribunos, certamente parecem haver apresentado interesse ativo nas políticas de Roma e precisavam ser persuadidos da justificativa e da legitimidade das ações dos seus comandantes. Os oficiais do exército, em especial os soldados rasos, sem dúvida tinham uma perspectiva diferente sobre as disputas políticas da classe senatorial, mas isso não significa que suas preocupações e ideias sobre legitimidade não fossem defendidas com afinco. Ao que parece, com frequência foram oficiais do exército que iniciaram deserções em massa para o lado oposto ou o assassinato de um general. No início da Guerra Civil, cada um dos centuriões de César ofereceu-se formalmente para pagar e equipar um cavaleiro às suas próprias custas, identificando-se fortemente com sua causa[21].
Mário é lembrado por introduzir uma forma de disciplina menos rígida, a não ser quando estava em campanha. E, em algumas ocasiões, como em Gomfi, César deu licença a seus homens para comemorar do modo mais desregrado. Ele teria bravateado que seus homens lutaram tão bem que era “como se estivessem cheirando a perfume”[22]. Nenhum dos dois comandantes negligenciava ofensas sérias, e ambos eram tidos como muito justos no tratamento dispensado aos transgressores, independentemente da sua patente. Vários oficiais foram humilhados publicamente e dispensados quando César julgava que não correspondiam aos seus padrões. Mário, Pompeu e César também se destacaram pelos rigorosos programas de treinamento que impuseram às suas tropas. Suetônio nos diz que César
nunca avisou antecipadamente sobre uma marcha ou uma batalha, mas sempre as mantinha [suas tropas] prontas e preparadas para mover-se de repente sempre que decidia. Ele quase sempre as fazia marchar, mesmo quando não havia emergência, particularmente quando chovia ou durante festivais. E costumava avisar seus homens para observá-lo de perto e, então, saía repentinamente do acampamento a qualquer hora do dia ou da noite e realizava uma marcha especialmente longa e difícil, para cansar aqueles que seguiam muito devagar.[23]
Como Sertório, ele equipou seus homens com armas e armaduras impressionantes, as bainhas das espadas decoradas com ouro e prata, esperando que se orgulhassem de si próprios e de sua aparência. Os legionários eram estimulados por seu general ou por oficiais graduados, os quais respondiam diretamente ao comandante, sempre observavam seu comportamento e iriam recompensar os corajosos e punir os covardes. Quando César se dirigia a seus homens, sempre os chamava de commilitones, ou “camaradas”. Na Gália, ele mandou transportar lajes no comboio de bagagem, de forma que sua tenda sempre fosse pavimentada, mas, apesar desse luxo e de outros, os quais em parte visavam a impressionar os chefes locais, ele buscava compartilhar os mesmos sofrimentos que seus homens. Suetônio menciona como ele
demonstrava incrível poder de resistência. Nas marchas, liderava seu exército, normalmente a pé, mas por vezes a cavalo, sem proteção contra o sol ou a chuva, e podia viajar muito rápido numa carruagem leve, cobrindo grandes distâncias e levando um mínimo de bagagem; atravessava a nado rios que não podiam ser vadeados, ou flutuava até a outra margem usando peles infladas de animais, frequentemente chegando ao seu destino antes dos mensageiros que enviara à frente para anunciar sua chegada.[24]
Embora os Comentários descrevam as ações heroicas individuais de muitos soldados, é muito raro que legionários comuns sejam mencionados pelo nome. Quase sempre, sua coragem é elogiada coletivamente e legiões específicas são louvadas. Já observamos o talento de César na manipulação do orgulho das unidades militares, como na ocasião em que anunciou que atacaria Ariovisto apenas com a Legio X, se o restante do exército estivesse temeroso. Depois de um incidente no qual parte da sua legião recebeu cavalos para que atuassem como guarda-costas de César, a unidade adotou o título informal de equestris, ou “cavaleiros”, e os soldados fizeram piada de que seriam promovidos à classe equestre pelo seu generoso comandante. Os soldados se identificavam muito com suas legiões, em especial as melhores unidades, e a rivalidade para provar que eram superiores ao restante do exército era intensa e muito estimulada[25].
A narrativa de César atenta em particular aos feitos dos seus centuriões. As vitórias são atribuídas, com frequência, em grande parte à sua coragem e ao exemplo inspirador, bem como às derrotas evitadas pelo seu heroísmo. O louvor que receberam nos seus relatos formais das campanhas era aliado a recompensas tangíveis e promoções dadas de imediato. Durante as campanhas na Gália, o exército de César mais do que dobrou em tamanho, criando diversas oportunidades de ascensão aos escalões mais elevados do centurionato. Pouco se sabe sobre as origens dos centuriões nesse período, e não é certo se a maioria era diretamente comissionada ou promovida, embora essa última ação nunca tivesse sido mencionada de modo explícito nos Comentários. É possível que pertencessem, sobretudo, ao que poderíamos chamar imprecisamente de “classe média” da sociedade romana – famílias que possuíam algumas propriedades e educação e que podem ter sido proeminentes nas pequenas comunidades italianas. Certamente, quando se tornavam centuriões, gozavam de condições de pagamento e serviço consideravelmente maiores que as dos legionários comuns. O potencial para promoções e recompensas também era grande. Ceva, o centurião que se distinguiu ao defender um dos fortes em Dirráquio, foi promovido à patente de primus pilus e recebeu uma recompensa de 50 mil denários (equivalente ao pagamento de cem anos de um legionário comum). Uma inscrição que data, provavelmente, da década de 30 a.C. faz referência a uma unidade de cavalaria auxiliar gaulesa conhecida como ala Scaevae (regimento de Ceva), e parece muito possível que seja o mesmo homem. Alguns dos centuriões de César até entraram para o Senado em seu período como ditador. Os centuriões eram recompensados regiamente, mas eram vítimas de alto índice de mortalidade, uma vez que buscavam conquistar distinção. Segundo Ápio, César ordenou a seus homens que procurassem com cuidado o corpo de Crastino entre os cadáveres da carnificina de Farsália e o enterrou em um túmulo distante da cova coletiva. Ele também teria condecorado o cadáver, o que, se for verdade, representaria um gesto poderoso, já que os romanos não conferiam normalmente medalhas póstumas[26].
César elogiava e recompensava seus homens, compartilhava os perigos que enfrentavam em campanha e os treinava arduamente. As vitórias sucessivas, interrompidas apenas por um punhado de derrotas, todas elas rapidamente vingadas, confirmaram a fé que os legionários tinham na sua habilidade como comandante. O próprio César sempre lembrava a todos que não era simplesmente um general com talento, mas também com sorte. Poucos comandantes na História obtiveram tanta devoção de seus soldados. Ocasionalmente, a relação se desviava da obediência absoluta retratada nos Comentários, como aconteceu durante a Guerra Civil, quando houve dois grandes motins. No final de 49 a.C., a Legio X protestou porque muitos homens não estavam sendo pagos nem dispensados, mas rapidamente cederam quando seu general chegou e os repreendeu pela ingratidão e falta de confiança. César encenou uma atuação tão repleta de fúria, anunciando que puniria a legião com a pena da decimatio, que os soldados ficaram quase aliviados quando ele, por fim, ordenou a execução de apenas doze líderes do motim.
A sua reação quando grande parte do exército, inclusive sua amada Legio X, se amotinou antes da campanha africana foi ainda mais avassaladora. Uma vez mais, a causa foi, provavelmente, a inatividade e a ausência de objetivo quando César estava no Egito, fazendo emergir antigos descontentamentos. Salústio, o futuro historiador e, na ocasião, um dos oficiais de César, escapou por pouco de ser linchado quando os soldados amotinados exigiram raivosamente os pagamentos atrasados e as recompensas. Então, seu comandante chegou de repente e apareceu no tribunal. O convite para que comunicassem suas queixas chocou as tropas reunidas, silenciando-as, até que algumas vozes se ergueram afirmando que desejavam ser dispensados do serviço. César, que estava para iniciar uma grande campanha e, portanto, obviamente precisava muito das tropas, replicou, sem qualquer emoção visível, que os homens estavam dispensados e que venceria a guerra com outras tropas, mas ainda daria a eles tudo o que prometera depois de conquistar a vitória. Não parece ter havido desejo real algum da parte de César de desmobilizar suas tropas, e a disposição dos legionários mudou da hostilidade para a mágoa e a vergonha, pois seu antigo general não parecia valorizar seus serviços.
César não disse mais nada, até que alguns dos seus oficiais de alta patente – muito possivelmente instruídos para esse papel antes do início do confronto – imploraram em voz alta que ele perdoasse os homens que passaram por tantos sofrimentos sob seu comando e desculpasse algumas poucas palavras precipitadas. As esperanças de que ele pudesse compadecer-se foram frustradas quando falou de novo, dirigindo-se às tropas como “civis” (quirites) em vez do seu tratamento habitual, “camaradas”. Os amotinados começaram a gritar que estavam arrependidos e a implorar pela permissão de voltar ao seu serviço. Quando César se virou para deixar a plataforma, os gritos ainda mais altos, e os legionários pediram que ele punisse os que provocaram o tumulto e levasse o restante para sua campanha na África. O general fez um teatro de indecisão, deixando os homens cada vez mais desesperados, até finalmente anunciar que levaria todos à campanha, exceto a Legio X, cuja ingratidão após seus repetidos favores não podia ser desculpada. Os homens dessa unidade chegaram ao ponto de implorar que os condenasse à pena da decimação, mas levasse a legião para a guerra. No final, ele decidiu que a profusão de emoções era tão forte que seria desnecessário tomar medidas adicionais. A Legio X lutou com distinção em Tapso e teve papel importante ao romper as linhas inimigas em Munda. Depois do assassínio de César, os remanescentes de sua unidade veterana continuaram leais à sua memória e lutaram durante anos com grande eficiência ao lado do seu filho adotivo Otaviano[27].
César sabia como jogar com as emoções dos seus comandados, mais do que tudo com o orgulho que nutriam por suas unidades e com a sua própria condição de soldados bons e corajosos. O sucesso na vida pública exigia que todos os senadores romanos desenvolvessem a habilidade de lidar com as pessoas e conquistá-las, fossem indivíduos, fossem multidões, tanto no Fórum como num acampamento militar. César desenvolveu, por meio de instinto e experiência, a aptidão de conquistar e inspirar os soldados a um grau que nenhum outro grande comandante de Roma conseguiu alcançar, com a possível exceção de Pompeu.