CAPÍTULO 10

UM “PRÍNCIPE” IMPERIAL:
GERMÂNICO ALÉM DO RENO

Claudius Germanicus Caesar
(15 a.C.-19 d.C.)

Germânico recebeu tão bem suas instruções [de Tibério], tendo sob seu comando absorvido minuciosamente a essência do conhecimento militar, que mais tarde, ao retornar para casa depois da conquista da Germânia, agradeceu-lhe muito. Quantas recompensas ele lhe concedeu apesar da sua pouca idade, de modo que o esplendor do seu triunfo se igualasse aos seus grandes feitos![1]

Os conspiradores que assassinaram Júlio César não parecem ter tido uma ideia muito clara do que se deveria fazer em seguida e podem ter esperado que, com o ditador morto, a vida pública fosse simplesmente retornar ao normal. Em poucos meses, uma nova guerra civil irrompeu, quando Marco Antônio reuniu muitas das legiões de César para vingar a sua morte. Por algum tempo, o Senado, que simpatizava demasiadamente com os conspiradores, tentou usar o filho adotivo de César, Caio Júlio César Otaviano – mais citado pelos historiadores como Otaviano –, no papel de figura destinada a enfraquecer o controle de Antônio sobre as legiões veteranas. Otaviano tinha apenas 19 anos e parecia ser de pouca valia, a não ser pelo seu famoso nome. Cícero teria dito que o Senado deveria “louvar o jovem, recompensá-lo e, então, descartá-lo” logo que tivesse cumprido seu propósito. Entrementes, foi-lhe concedido o imperium proconsular, oficializando o seu comando sobre grande número de veteranos de César, inclusive a Legio X, que apoiava a sua causa. Percebendo a atitude do Senado para com ele e ansioso por combater os conspiradores, Otaviano escapou em 43 a.C., para unir-se a Antônio e Marco Lépido. Juntos, formaram o Segundo Triunvirato, no qual, diferentemente da aliança entre Crasso, Pompeu e César, cada homem recebeu o título, oficializado pela lei, de triumvir rei publicae constituendae. As palavras ecoam a posição de Sula enquanto ditador, bem como o comportamento dos triúnviros quando capturaram Roma e instituíram novas interdições, condenando à morte um número enorme de senadores e membros da ordem equestre.

Cícero pagou o preço pelas suas Filípicas, uma série de discursos vitriólicos que havia pronunciado e publicado para atacar Antônio: este ordenou que sua cabeça e sua mão fossem pregadas na plataforma do orador no Fórum. Em um ano, Bruto e Cássio tinham morrido por suas próprias mãos, depois que seus exércitos foram derrotados nas duas batalhas de Filipos. Os triúnviros dividiram o controle das províncias, porém, gradualmente, sua aliança deteriorou-se. Lépido foi colocado de lado de forma pacífica, mas a luta entre Antônio e Otaviano foi decidida à força na batalha naval de Áccio, em 31 a.C. Antônio fugiu para o Egito, onde ele e Cleópatra – que fora sua amante por mais de uma década e esposa durante um ano – se suicidaram[2].

Depois de Áccio, Otaviano comandou as maiores forças militares que já tinham sido controladas por qualquer general romano, com nada menos do que sessenta legiões comprometidas a ele pelo juramento de obedecer-lhe – um total que ele logo reduziria a 28 unidades permanentes. Com a morte de Antônio, não havia mais nenhum rival sério a ameaçar sua supremacia, e, com efeito, as batalhas, condenações e o suicídio fizeram muito no sentido de diminuir as fileiras dos membros mais poderosos do Senado. César foi assassinado porque seu poder era estrondoso. Seu filho adotivo sobreviveu porque criou um regime no qual o controle que exercia sobre os assuntos de Estado era velado. Otaviano – que mais tarde receberia o nome de Augusto em votação no Senado, o que lhe ajudou a gradualmente se desassociar do seu passado brutal como triúnviro – não era nem ditador nem rei, mas princeps senatus, um título honorífico tradicional conferido ao senador de maior distinção. Por conta desse título, o regime que ele criou é hoje conhecido como principado, ou, por vezes, império, em oposição à república. Na realidade, imperadores com poder absoluto, Augusto e seus sucessores fingiram ser não mais do que o magistrado-mor do Estado.

Muitas das instituições tradicionais de Roma persistiram, porém o poder real estava agora de maneira firme e irrevogável nas mãos dos princeps. O Senado sobreviveu e prosperou, ganhando novas responsabilidades e marcas de distinção ao preço de perder sua independência. Os jovens aristocratas continuaram a buscar a carreira na vida pública, que lhes trazia mais obrigações militares e civis, mas as nomeações para todos os postos importantes eram, agora, feitas por Augusto, em vez de conquistadas por meio de eleições. A vida pública era cuidadosamente controlada, para evitar um regresso à guerra civil. O regime de Augusto não foi uma criação instantânea, e sim produto de um desenvolvimento gradual, de tentativa e alguns erros. Seu sucesso se deveu em grande parte à habilidade política de Augusto, ao profundo desejo de estabilidade após décadas de sublevação e também devido à longevidade do princeps. Quando Augusto morreu, em 14 d.C., quase ninguém que estivesse vivo podia lembrar-se do tempo em que a república funcionara do modo tradicional.

Augusto não era um grande comandante, e corriam rumores de que fugira do campo de batalha quando a sua ala do exército fora derrotada no primeiro confronto de Filipos. Forte o bastante para admitir suas próprias limitações, ele contava com muito poucos subordinados de confiança para controlar por sua delegação as tropas. Sua atitude com relação aos soldados sob seu comando era muito mais rígida e formal do que a de César. Depois de Áccio, ele nunca mais se dirigiu a seus soldados como “camaradas”, mas sempre como “soldados” (nilites), e exigia uma disciplina rígida. Em diversas ocasiões, aplicou a pena da decimatio às coortes que entraram em pânico e fugiram. Seus oficiais arriscavam-se a enfrentar a humilhação pública caso falhassem no cumprimento das suas funções, e Suetônio nos diz que ele costumava ordenar aos centuriões que permanecessem em prontidão do lado de fora da sua tenda o dia inteiro, às vezes segurando um punhado de turfa. Normalmente eram instruídos a remover seu cinturão de armas, e, sem esse aparato, a bainha da longa túnica militar caía quase que à altura dos tornozelos, parecendo-se mais com um vestido feminino do que com um uniforme militar. Não obstante, juntamente com a punição, ele também condecorava e promovia os homens que tinham realizado serviços com distinção, embora não fossem gratificados com a típica liberdade característica dos comandantes da era da guerra civil. Ainda mais importante, Augusto garantiu que os soldados fossem pagos com regularidade e os dispensava com terras ou com uma polpuda recompensa. Em 6 d.C., um tesouro especial, o Aerarium Militare, foi estabelecido e mantido sob o controle direto do imperador para realizar tal intento. Augusto não queria repetir o erro do Senado de negligenciar as necessidades dos legionários, ao mesmo tempo encorajando-os a dar sua lealdade a generais carismáticos[3].

Augusto promoveu a paz interna em Roma, feito que foi sempre celebrado durante o seu principado. Seu regime baseou-se fortemente na glória obtida nas guerras contínuas e espetaculares contra oponentes estrangeiros. Sob seu primeiro imperador, Roma continuou a expandir-se com tanta intensidade como nas últimas décadas da república, e, por volta de 14 d.C., já estava controlando quase todo o território que comporia o império por mais de quatro séculos. O res gestae, uma longa inscrição gravada do lado exterior do mausoléu de Augusto recontando suas realizações, lista os diversos povos e reis derrotados pelo imperador. Em termos de estilo, o texto é idêntico aos monumentos erguidos por generais vitoriosos durante muitas gerações, mas, em termos puramente numéricos de inimigos derrotados, a lista eclipsa as vitórias até de Pompeu e César.

De modo tipicamente romano, esses espetaculares sucessos militares justificaram a proeminência do imperador enquanto pinceps, o maior servidor do Estado. A maioria dessas vitórias foram, na verdade, conquistadas por seus legati, porém o crédito principal era conferido normalmente ao comandante supremo. Augusto não tinha intenção de ser rivalizado pelos mortos e, menos ainda, pelos vivos. Em 29 a.C., quando Marco Licínio Crasso, neto do aliado de César, completou sua vitória sobre os bastarnas matando o seu rei em combate singular, não teve permissão de receber o direito de dedicar o spolia opima devido a uma particularidade técnica legal. O próprio Augusto celebrou esse rito subsequentemente, mesmo apesar de não ter realizado o feito. Ninguém tinha permissão de conquistar glória pessoal o bastante a ponto de depreciar os feitos do princeps. Depois de 19 a.C., nenhum senador que não fosse parente de Augusto e de sua família recebeu o direito de celebrar um triunfo, apesar de os sucessos ainda serem, algumas vezes, recompensados com honras triunfais (triumphalia), permitindo que o homem exibisse os símbolos da vitória sem, de fato, participar da procissão pela cidade. A não ser pela África, todas as províncias que continham uma guarnição de legionários eram controladas diretamente por Augusto e governadas pelos seus legati, que recebiam o imperium. Não só todas as legiões em serviço – exceto uma – estavam sob o comando direto dos seus representantes, mas, com o tempo, o comando de todas as guerras importantes foi dado apenas a membros da família do imperador[4].

Desde o começo da sua carreira, Otaviano confiou muito em seu grande amigo Marco Vipsânio Agripa para comandar suas tropas. Foi Agripa que controlou as frotas que derrotaram Sexto Pompeu – o último filho sobrevivente de Pompeu, o Grande – em Nauloco, em 31 a.C., e Antônio em Áccio, em 31 a.C. Membro de uma família obscura, ele nunca ameaçou eclipsar o filho adotivo de César e cresceu com ele, casando-se com a filha de Augusto, Júlia. Até sua morte, em 12 a.C., Agripa foi frequentemente despachado para travar as guerras mais importantes do império, tendo realizado campanhas na Hispânia, na Gália, na Germânia, nos Bálcãs e no Oriente com grande sucesso. Era, evidentemente, um comandante muito capaz, porém pouquíssimas fontes sobre suas campanhas sobreviveram, nenhuma das quais nos permite reconstruí-las em detalhes. Isso pode não ser inteiramente uma coincidência, pois seus maiores sucessos sempre foram atribuídos publicamente ao imperador.

Conforme os membros mais jovens da família estendida de Augusto atingiam a maturidade, a maioria recebeu com pouca idade responsabilidades importantes. Os mais bem-sucedidos em termos militares foram seus enteados Tibério e Druso, que foram, ambos, colocados à frente de grandes exércitos quando contavam pouco mais de 20 anos. Os filhos do primeiro casamento da mulher do imperador, Lívia, eram membros da antiga elite senatorial, pertencendo ao clã patrício Claudiano tanto pelo lado da mãe como pelo do pai. Poucas famílias eram tão distintas quanto os Claudianos, os quais eram extremamente orgulhosos, autoconfiantes e conscientes de seu valor. Como resultado, produziram alguns dos maiores heróis do Estado, bem como alguns dos seus mais odiados vilões. Druso era um herói nos moldes tradicionais, carismático e popular tanto entre suas tropas quanto diante dos cidadãos de Roma. Desesperado para conquistar o spolia opima, ele teria perseguido chefes germânicos no campo de batalha com a esperança de derrotá-los em combate singular. Houve um desânimo geral quando Druso morreu, em 9 a.C., devido a ferimentos causados quando caiu do cavalo, retornando de uma campanha na Germânia[5].

Tibério não tinha o encanto do seu irmão mais novo nem, aparentemente, a habilidade de fazer os outros, em especial senadores, gostarem dele. Mesmo quando jovem, ele parece nunca ter adotado o estilo extravagante de liderança de Druso ou de Pompeu. Era considerado um disciplinador muito rígido, mesmo pelos padrões estabelecidos por Augusto, tendo reintroduzido alguns métodos arcaicos de punição. Numa ocasião, expulsou o legado que comandava uma legião porque ele havia mandado alguns dos seus soldados escoltarem um escravo numa expedição de caça em território hostil. Suetônio descreve como, em expedições do outro lado do Reno, ele ordenou que itens desnecessários não fossem transportados no comboio de bagagens, inspecionando pessoalmente a carga de cada carroça antes de o exército partir. Tendo negado luxos aos seus oficiais, ele também passava sem eles, dormindo na terra exposta e muitas vezes até sem uma tenda. Ele era cuidadoso com a rotina, certificando-se de que todas as suas ordens fossem escritas e estando sempre disponível aos oficiais para explicar o que exigia deles. Veleio Patérculo, que serviu sob seu comando como prefeito da cavalaria auxiliar e, mais tarde, como legado, conta que Tibério sempre cavalgava durante a marcha em vez de viajar numa carruagem e tomava sentado a refeição noturna (para a qual os oficiais eram normalmente convidados), em vez de reclinado num divã à maneira romana comum.

Apesar da rigidez que mantinha para si próprio e exigia dos outros, Tibério era solícito com o bem-estar de seus oficiais, colocando seu próprio cirurgião e seus servos à disposição de qualquer um que estivesse doente ou ferido e também lhes providenciando transporte. Como líder, era duro, mas justo; enquanto general, era cuidadoso e bem-sucedido e tinha a confiança dos soldados. Veleio escreveu depois que Tibério sucedera Augusto como imperador e, portanto, tinha grande tendência a bajular seu antigo comandante, mas podia, também apresentar um retrato fiel do respeito e até da afeição que o exército lhe dedicava[6]. A descrição que ele faz da recepção quase extática do exército germânico quando Tibério chegou para assumir o comando em 4 d.C. remete a algumas das inspeções de Napoleão:

As palavras não podem descrever a reação dos soldados durante a reunião, suas lágrimas de alegria e de exultação ao saudá-lo, seu desejo desesperado de tocar sua mão e a incapacidade de conter gritos como: “Nós estamos realmente vendo o senhor, general?”; “O senhor voltou mesmo a salvo para nós?”; e, em seguida: “Eu servi com o senhor, general, na Armênia!”; “E eu em Récia!”; “Eu fui condecorado pelo senhor na Vindelícia!”; “Eu também, na Panônia!”; e “Eu, na Germânia!”[7]

A SITUAÇÃO NA FRONTEIRA DO RENO EM 14 D.C.

Augusto confiou em Tibério, da mesma forma que no passado confiara a Agripa praticamente todos os comandos mais importantes na segunda metade do seu principado, mas esperou longo tempo antes de indicá-lo como sucessor. Vários outros, quase sempre mais jovens, membros da família ligados a ele pelo sangue e não simplesmente pelo casamento, foram preferidos, porém todos morreram prematuramente. Os rumores acusavam a esposa de Augusto, Lívia – a quem o imperador Calígula chamaria, mais tarde, Ulixem stolatum, ou “Ulisses de vestido”, em referência ao herói causador de intrigas no poema de Homero –, pelas mortes, a fim de assegurar que seu filho se tornasse o imperador seguinte. Hoje é impossível saber a veracidade dessa afirmação, mas a família imperial teve uma taxa de mortalidade excepcionalmente elevada, mesmo para os padrões da época. O que está claro é que, no final, Augusto adotou Tibério como filho e compartilhou o poder com ele durante os últimos dias da sua vida. Tibério tinha um filho de sangue, conhecido como Druso, o Jovem, mas foi instruído a adotar o filho de seu falecido irmão, Germânico. O nome fora dado a Druso para honrá-lo pelas suas vitórias sobre as tribos germânicas e foi estendido a seus filhos depois de sua morte acidental. Germânico tinha 6 anos de idade em 9 a.C., mas seu nome mostrou-se singularmente apropriado, pois, como adulto, conquistou a fama em campanhas na Germânia. Sua mãe era Antônia, filha de Marco Antônio e Otávia, irmã de Augusto, a mesma Otávia cuja rejeição a favor de Cleópatra adicionara um elemento pessoal à Guerra Civil[8].

Quando Júlio César invadiu a Gália, deixou claro que não pretendia ocupar o território a leste do Reno, mas controlou todas as terras a oeste. Os Comentários enfatizam que o Reno era a fronteira entre os povos gauleses e os germânicos, mostrando que a sua “pacificação” da Gália fora completa. A recém-conquistada Gália, a antiga província romana da Gália Transalpina e a própria Itália só estariam seguras se os germânicos, mais primitivos e selvagens do que os gauleses, fossem mantidos a distância além do Reno e impedidos de fazer como os cimbros e os teutões. Na verdade, César admite que a situação era um pouco mais complicada e que vários povos germânicos já tinham se estabelecido a oeste do rio. A arqueologia tem dificuldade em confirmar a distinção que César e outros autores antigos traçaram entre as tribos germânicas e as gaulesas com base na sua cultura material – padrão e estilo de colonização, metalurgia e, principalmente, cerâmica. Isso não significa necessariamente que não houvesse diferença entre esses povos, e sim que esse tipo de evidência não pode, no caso, nem confirmar nem negar tal afirmação. A análise linguística dos nomes de lugares e pessoas tende a apoiar a imagem apresentada nas nossas fontes antigas. As fontes literárias deixam claro que, a não ser por compartilhar língua e cultura comuns, havia pouco senso de união ou de uma causa comum entre os gauleses e, em especial, entre os germânicos. Um guerreiro identificava-se com sua própria tribo ou clã como os catos, os marsos ou os queruscos, ou, por vezes, até certo grau, com um grupo maior de povos relacionados, como os suevos. De modo algum ele via a si próprio como um germânico[9].

César apresentou um retrato das tribos gaulesas como inerentemente instáveis; elas eram divididas por lutas pelo poder entre chefes ambiciosos que buscavam a supremacia e que faziam quase anualmente guerra contra seus vizinhos. Os germânicos tornaram-se profundamente envolvidos na região quando líderes gauleses buscaram sua ajuda ou quando um povo migrava para o outro lado do Reno em busca de terras mais férteis ou seguras para se estabelecer. César pode ter exagerado o cenário para justificar sua intervenção em defesa dos interesses de Roma e de seus aliados – o que em si não foi diferente do apoio que estendeu aos sequânios, conforme Ariovisto observou –, mas é provável que sua versão seja substancialmente precisa e se conforme ao padrão que prevalecia na maior parte da Europa durante as eras do Bronze e do Ferro. A guerra e, sobretudo, o saque eram endêmicos. Por vezes uma tribo tornava-se poderosa, quase sempre sob um líder guerreiro carismático, e passava a controlar os povos vizinhos. Normalmente, isso era temporário e raramente sobrevivia ao líder poderoso. Com frequência, guerras civis e expansões agressivas levavam facções ou tribos a migrar, o que resultava em pressão sobre os povos por cujas terras eles passavam. As migrações podiam ter o efeito de bater à porta de uma área muito ampla. César também exagerou quando pintou as tribos germânicas como pastores seminômades, baseando-se em estereótipos muito antigos que viam tais sociedades como inerentemente mais primitivas e selvagens do que as comunidades que cultivavam a terra e, em última instância, construíam cidades. Assim, na Odisseia de Homero os ciclopes não plantavam porque eram preguiçosos demais, comiam carne, bebiam leite e não tinham assembleia política – indicações de barbárie. A arqueologia demonstrou que muitas fazendas e aldeias da atual Alemanha foram ocupadas durante séculos, mas essa estabilidade não precisava conflitar com o potencial das tribos ou de parte delas, que buscavam terras em outros locais[10].

César conquistou a Gália – não há evidência de nenhuma rebelião séria enquanto ele estava longe travando a Guerra Civil –, mas o território ainda não estava completamente estabelecido enquanto província. O processo envolvia a imposição de uma nova estrutura administrativa, que incluía a realização de um censo para determinar a cobrança de impostos em pelo menos três ocasiões a partir de 27 a.C. e que, por vezes, provocava resistência generalizada. Agripa operou na Gália em diversos momentos entre 38 e 19 a.C., e houve muitas outras campanhas travadas em menor escala sob outros comandantes. Assim como na época de César, as tribos gaulesas próximas do Reno sempre buscavam a ajuda de bandos guerreiros entre os germânicos. Estes, “com frequência ainda maior”, pilhavam as ricas terras da Gália; às vezes, esses ataques eram em grande escala. Em 16 a.C., um exército formado por três tribos, os sicambros, os tencteros e os usípetes, emboscou um destacamento da cavalaria romana e, depois de derrotá-lo, surpreendeu o exército principal do governador provincial Marco Lólio, infligindo uma grande derrota aos romanos. Durante essa batalha, uma legião de Roma, a Legio V Alaudae, sofreu a humilhação de perder seu estandarte de águia. A campanha tinha começado quando os germânicos aprisionaram e crucificaram mercadores romanos que operavam nas suas terras. Como em outros lugares, os mercadores romanos e italianos atuavam muito à frente do exército. Suas atividades e práticas eram, por vezes, ressentidas, e eles eram quase sempre o primeiro alvo quando as tribos se tornavam hostis a Roma. Tanto para assegurar a estabilidade e a paz na Gália quanto em resposta aos ataques e à violência contra os cidadãos, as legiões de Augusto iam, com frequência cada vez maior, realizar ações punitivas contra os germânicos.

Druso, o pai de Germânico, foi o primeiro comandante romano a alcançar o Elba, onde, segundo a versão oficial dos eventos ele foi avisado para não prosseguir pelo surgimento de uma deusa. Depois da sua morte, Tibério passou vários anos operando na mesma área. Com o tempo, uma província romana entre o Reno e o Elba começou a tomar forma. Em 6 d.C., um ataque foi planejado e preparado contra Marobóduo, rei de uma importante confederação de tribos suevas e de vários de seus vizinhos nas terras entre o Reno e o Danúbio. Contudo, uma grande rebelião na Panônia e na Daumásia irrompeu inesperadamente, exigindo a atenção de Tibério e de boa parte do exército romano. Os panônios eram extremamente belicosos; seus exércitos baseavam-se no modelo romano, já que muitos dos seus homens serviram como auxiliares em Roma. Em determinado ponto da campanha, Tibério viu-se à frente de uma força de dez legiões, apoiada por setenta coortes de infantaria auxiliar, catorze unidades com o tamanho de coortes, ou alae de cavalaria auxiliar, e número expressivo de tropas aliadas. É interessante notar que ele considerava tal força um exército grande demais para um único general controlar com eficiência, por isso dividiu-o em dois grupos independentes e, subsequentemente, em colunas muito menores. Foram necessários quase três anos de lutas árduas e custosas para sufocar a rebelião[11].

Quase imediatamente, Augusto recebeu notícia de um terrível desastre na Alemanha. Como na Gália, o processo de transformar um território conquistado numa província formal provocou nova resistência. O líder rebelde mais importante era um príncipe dos queruscos chamado Armínio, que servia como comandante de um contingente de homens da sua tribo no exército romano. No passado, ele tinha recebido a cidadania romana com o status de equestre e fora íntimo do legado provincial, Públio Quintílio Varo. A família de Varo tinha uma reputação militar um tanto questionável, pois tanto seu pai como seu avô apoiaram o lado errado na Guerra Civil e por fim foram obrigados a se suicidar; contudo, ele era muito experiente, tendo servido anteriormente como governador da Síria, onde suprimira uma rebelião na Judeia em 4 a.C. Sua nomeação para o comando germânico conformava-se à tendência de Augusto a confiar, basicamente, na sua família estendida, uma vez que era casado com uma filha de Agripa.

No final do verão de 9 d.C., Varo recebeu relatos de uma revolta e, do mesmo modo como agira em 4 a.C., respondeu da maneira tradicional romana ao reunir seu exército e marchar imediatamente contra o inimigo. A necessidade de reagir tão logo fosse possível a uma insurgência era considerada uma justificativa razoável para um general romano ir a campo com uma força pequena ou mal abastecida, composta apenas por tropas disponíveis no momento. Em contraste, Varo enfraqueceu sua tropa ao enviar muitos pequenos destacamentos, marchando com um exército sobrecarregado por um grande comboio de bagagem e acompanhado por uma horda de seguidores de acampamento, que incluía as famílias dos soldados. Abandonada por Armínio e seus batedores germânicos, a lenta coluna marchou em direção à emboscada numa área difícil, coberta de pântanos e floresta densa, a Teutoberg Wald. Atacando repentinamente durante vários dias, os guerreiros de Armínio enfraqueceram a coluna romana até conseguir matar seu último remanescente. Três legiões – as Legiones XVII, XVIII e XIX – foram massacradas, juntamente com seis coortes de infantaria auxiliar e três alae da cavalaria. Varo fez o que nenhum general romano deveria fazer e desesperou-se, suicidando-se antes do final da batalha. Escavações em Kalkriese (perto da moderna Osnabrück) revelaram cruéis evidências da provável última grande ação realizada por seu exército. A maioria dos pequenos destacamentos de tropas espalhadas pela província sofreu destino semelhante nos dias seguintes. Alguns poucos sobreviventes conseguiram chegar ao Reno, onde as duas legiões que sobraram esperavam ser atacadas a qualquer momento[12].

O desastre na Teutoberg Wald foi um golpe terrível no idoso Augusto, que deixou seu cabelo e barba crescerem durante um mês como sinal de luto e teria perambulado por seu palácio batendo a cabeça nas paredes e gritando: “Quintílio Varo, devolva as minhas legiões!”. Por algum tempo, o exército ficou reduzido à força de 25 legiões, e os números XVII, XVIII e XIX nunca mais foram usados. Tibério foi enviado imediatamente à fronteira do Reno, e todas as tropas disponíveis foram transferidas de outras províncias para reforçar seu exército. Logo havia oito legiões e pelo menos o mesmo número de tropas auxiliares nas duas províncias das Germânias Superior e Inferior, que se estendiam ao longo da margem ocidental do rio. A invasão germânica esperada não se materializou, e os guerreiros de Armínio aparentemente seguiram a prática da maioria dos exércitos tribais ao longo de toda a História, dispersando-se e voltando para seus lares a fim de exibir os espólios e celebrar sua glória. Quando estava suficientemente forte, Tibério começou a enviar expedições punitivas contra as tribos germânicas. A reputação romana de invencibilidade fora abalada pela derrota de Varo e levaria vários anos de duras campanhas para começar a recuperá-la. Em 11 d.C., Tibério foi reforçado por Germânico, que ganhara experiência sob seu comando durante a rebelião das tribos da Panônia, ganhara 22 anos de idade. Augusto estava agora muito idoso e, em 13 d.C., Tibério retornou a Roma para ajudar o princeps e assegurar que a sucessão fosse realizada sem entraves depois da sua morte. Germânico substituiu-o como comandante supremo na fronteira do Reno[13].

MOTIM

Como seu pai, Germânico era extremamente popular entre os soldados e o povo de Roma, afeição que continuaria a ser nutrida muito tempo após sua morte. Sabemos que pelo menos uma unidade auxiliar romana, e, talvez, todo o exército, celebrava anualmente seu aniversário no século III d.C. Urbano, belo, de cabelo loiro, atlético – ele tinha trabalhado arduamente para desenvolver suas pernas, que eram muito finas na juventude –, seus modos eram tranquilos e corteses. Uma vez mais como seu pai, Germânico levou a esposa e os filhos para sua província. Ela era Agripina, filha de Agripa e da filha de Augusto, Júlia, e, portanto, sua prima, pois a família imperial tendia a arranjar casamentos entre os diferentes ramos da família estendida a fim de evitar dar a estranhos o elo sanguíneo do imperador. De muitas maneiras, ela personificava a matrona romana ideal – um grupo muito celebrado pela propaganda augustana como virtuoso –, trabalhando na administração do lar, no apoio ao marido para o desenvolvimento da sua carreira e produzindo a próxima geração de cidadãos romanos. O casal tinha nove filhos, muito acima da média numa época em que as taxas de natalidade entre as famílias senatoriais e de equestres estava em declínio, mas apenas seis dessas crianças – três meninos e três meninas – sobreviveram à infância. O filho mais novo, Caio, nasceu em 12 d.C. e, quando criança, era sempre vestido pelos pais com um uniforme de legionário em miniatura. Os soldados o apelidaram Calígula, ou “Botinhas”, pelo nome das botas militares, caligae[14].

A morte de Augusto em 14 d.C. provocou ondas de choque em todo o império, pois a maioria da população mal se lembrava de uma época sem o princeps. A incerteza, aliada à falta de campanhas durante aquele verão, produziu motins entre as legiões, primeiro na Panônia e, então, no Reno. Os soldados reclamavam das pesadas deduções dos seus salários, tanto as oficiais, para custear uniformes, equipamentos e tendas, como as não oficiais, na forma de subornos aos centuriões para evitar fadigas desnecessárias. Sob Augusto, o processo de transformar o exército romano numa força profissional tinha sido praticamente completado. No começo do seu principado, os legionários deviam servir por dezesseis anos, seguidos de mais quatro anos como veteranos, quando deveriam ser dispensados das tarefas normais, porém ainda deveriam combater. As guerras quase constantes dessas décadas levaram ao aumento dos períodos para, respectivamente, vinte anos e cinco anos. A mudança foi ressentida, em especial porque um tempo maior de serviço foi exigido de um número imenso de homens após a grande crise de 6 e 9 d.C. Augusto tinha tanta necessidade de soldados que nesses dois anos reintroduziu o alistamento compulsório, o que se tornara extremamente impopular, em especial na Itália. Suetônio nos diz que Augusto vendeu como escravo um membro da ordem equestre que decepara os polegares dos filhos para incapacitá-los de usar uma arma e, assim, desqualificá-los para o serviço militar. A força das legiões era composta por homens relutantes em servir ou de um calibre que não era normalmente aceito pelos recrutadores. Ainda mais drástico, o Estado comprou grande número de escravos e os libertou para torná-los soldados, repetindo um fato que ocorreu nos dias desesperados da Segunda Guerra Púnica. Embora tais homens recebessem a cidadania juntamente com sua liberdade, Augusto insistia em que servissem em unidades distintas, as cohortes voluntariorum civium Romanorum, em vez de nas legiões[15].

A pior revolta começou no exército da Germânia Inferior, comandado por Aulo Cecina, oficial muito experiente que sempre era nomeado para cargos de responsabilidade subordinados aos membros mais jovens da família imperial. Nessa ocasião, ele permaneceu estranhamente inativo, até que todas as suas quatro legiões – I, V, XX e XXI – abandonaram completamente toda a disciplina. Os primeiros alvos do ressentimento dos soldados foram os centuriões, muitos dos quais foram aprisionados e açoitados. Germânico estava na Gália supervisionando a cobrança de impostos, mas logo correu para o acampamento do exército. Foi saudado por uma paródia da recepção normal oferecida a um comandante e conseguiu com alguma dificuldade impor certa ordem, pois os homens o bombardearam com reclamações sobre dispensas atrasadas e as más condições com que era pago o seu leal serviço. Algumas das tropas chegaram até a gritar que desejavam fazê-lo imperador em lugar de Tibério. Chocado, Germânico tentou abandonar a reunião e, quando os homens bloquearam seu caminho, chegou ao ponto de desembainhar a espada, ameaçando matar-se se os soldados não recobrassem a lealdade devida. Foi o tipo de gesto teatral comumente usado por um senador romano no Fórum ou no exército, mas naquele momento o impacto não saiu como desejado, pois, enquanto alguns homens seguraram seu braço para detê-lo, pelo menos um soldado teria oferecido sua espada ao general, afirmando que era mais afiada.

Por algum tempo, as concessões evitaram que houvesse mais violência, porém alguns senadores enviados por Tibério para investigar os agravos dos legionários foram maltratados e um ex-cônsul escapou por pouco da morte. Agindo por sugestão do seu consilium, Germânico resolveu enviar Agripina e Calígula, então com 2 anos de idade, para um local seguro numa das cidades gaulesas mais próximas. Os legionários romanos eram homens duros, capazes, por vezes, de extrema crueldade, mas também profundamente sentimentais, e a visão de um grupo choroso de refugiados fugindo do acampamento causou uma mudança radical de ânimos. Aproveitando-a, Germânico dirigiu-se a eles novamente, e dessa vez conseguiu exigir que os líderes do motim fossem trazidos até ele, sendo condenados e executados sumariamente. Entretanto, para evitar que o problema voltasse a acontecer, ele também dispensou diversos centuriões que foram julgados culpados de receber propina de seus homens.

Várias das concessões, inclusive a dispensa imediata daqueles cujo tempo de serviço havia vencido e o retorno do padrão anterior de dezesseis anos de serviço, mais quatro como veterano, foram anunciadas pouco tempo depois. A redução do tempo de serviço não durou muito tempo e logo retornou ao total de 25 anos, mas em outros aspectos as maiores demandas dos amotinados parecem ter sido atendidas. Depois de novas execuções sumárias e de escaramuças em outro acampamento, o motim do exército da Germânia Inferior terminou. Percebendo o resultado desse último incidente, Germânico teria dito que isso “não foi uma cura, mas um desastre!”. Com todo o seu exército – os auxiliares estrangeiros, ao que parece, permaneceram leais o tempo todo – de volta à costumeira disciplina, Germânico pôde voltar a atenção aos inimigos estrangeiros[16].

Agora, a estação de campanha estava no fim, porém, mesmo assim, Germânico reuniu uma coluna punitiva formada por elementos das quatro legiões que recentemente estiveram amotinadas, somando cerca de doze mil homens, juntamente com 26 coortes de infantaria auxiliar e oito alae de cavalaria. Cruzando o Reno, essa força moveu-se rapidamente para atacar os marsos. Em vez de seguir o caminho normal e mais fácil até o território da tribo, Germânico usou uma rota mais longa e menos conhecida. A infantaria auxiliar estava à frente, marchando depressa e carregando apenas seu equipamento, com ordens de encontrar e limpar o caminho de obstáculos, e atrás vinha o corpo principal da legião com um pequeno comboio de bagagens. Os romanos viajaram à noite, mas o céu claro pela forte luz das estrelas lhes permitiu encontrar a rota sem dificuldade. A surpresa foi ainda maior porque à noite havia um festival que os germânicos estavam comemorando com um banquete.

Antes do amanhecer, várias aldeias dos marsos foram cercadas pelas tropas romanas. Quase não houve resistência ao ataque e ao massacre dos habitantes. Germânico, então, dividiu seu exército, criando pequenos grupos de combate, cada qual baseado numa das quatro legiões presentes, e os enviou individualmente para devastar as terras num raio de cerca de oitenta quilômetros. Em geral, as expedições punitivas romanas eram brutais – numa ocasião, em 51 a.C., César causou surpresa simplesmente por ordenar que seus homens não incendiassem todas as casas pelas quais passassem –, mas essa expedição em particular foi ainda mais cruel do que o usual. Não foram feitos prisioneiros, e todo germânico encontrado foi massacrado independentemente de idade ou sexo. Os romanos costumavam ter certo grau de respeito por locais religiosos, mas um importante templo foi deliberadamente incendiado pelas tropas[17].

Os romanos não encontraram nenhuma oposição séria até as colunas se reunirem e começarem a marchar de volta para o Reno, pois levou algum tempo para que os exércitos tribais voltassem a se agrupar. Os marsos tinham sido muito afetados pelo massacre para reagir, mas seus vizinhos brúcteros, tubantes e usípetes juntaram um exército e se postaram ao longo da rota que, supuseram corretamente, os romanos usariam na jornada de regresso. Germânico soubera das suas intenções e moveu-se com seu exército em formação de quadrado, com o comboio de bagagem, agora aumentado pelo saque, no centro, e as coortes individuais prontas para entrar rapidamente em formação de batalha. Quando os romanos chegaram a um local estreito, os germânicos empreenderam a emboscada, lançando seu ataque principal contra a retaguarda. De acordo com Tácito, Germânico galopou até as tropas da Legio XXI Rapax (ou “gananciosa”, implicando que tinha ganância por glória), que estavam na ala esquerda, “gritando que agora era tempo de erradicar a desgraça causada pelo motim. Deviam atacar e transformar a vergonha em glória”. Com entusiasmo, as coortes dessa legião rechaçaram os germânicos, infligindo-lhes pesadas baixas. Temeroso, o exército tribal permitiu que as coluna romana completasse a marcha sem ser molestada. Germânico levou seus homens para os quartéis de inverno na Germânia Inferior[18].

A VINGANÇA DE ROMA, 15-16 d.C.

Sob diversos aspectos, as operações nos dois anos seguintes foram semelhantes à expedição punitiva contra os marsos, mas em escala muito maior. A guerra estava sendo travada para vingar o desastre de 9 d.C. e, ainda mais importante, para restabelecer um profundo temor pelo poderio romano entre as tribos germânicas. Armínio era o inimigo principal, mas o sucesso dos queruscos tinha estimulado muitos outros povos a se tornarem abertamente hostis. O poder dos chefes entre as tribos não era de modo algum absoluto, e dependia de seu prestígio. A maioria dos guerreiros costumava escolher um líder bem-sucedido, porém ele não podia obrigá-los a fazer isso: Armínio não era a única figura proeminente entre os queruscos, e alguns dos outros príncipes ressentiam seu domínio. Dessa forma, o esforço de guerra das tribos era normalmente descoordenado, e alguns grupos não reconheciam a preponderância dos queruscos. Roma fez guerra, portanto, contra muitos inimigos diferentes simultaneamente, e cada qual precisava ser persuadido de que a alternativa a fazer aliança e firmar a paz com o império era terrível demais para suportar. Nessa altura, os romanos não parecem ter planejado a reocupação física da província perdida a oeste do Elba. Na estação de campanha, os exércitos romanos entravam na Germânia, devastavam a terra (os romanos tinham um verbo, vastare, para essa ação) e derrotavam qualquer um que se atrevesse a opor-se a eles, mas no outono sempre retornavam às bases seguras no Reno. Em nenhum momento guarnições de tamanho significativo eram deixadas para trás, como fizera César ao invernar com as tropas nos setores da Gália invadidos mais recentemente durante suas campanhas.

A Germânia também diferia da Gália em outros aspectos importantes. Grandes povoamentos, equivalentes ao oppida gaulês, eram extremamente raros, e a maior parte da população vivia em aldeias dispersas, longe umas das outras. César conseguira obter quantidades consideráveis de grãos e de outros suprimentos das cidades gaulesas, fosse exigindo esses produtos das comunidades aliadas, fosse tomando-os à força do inimigo. Germânico não podia contar com isso na Gália; como reunir suprimentos diminuiria a marcha das colunas e deixaria os pequenos destacamentos encarregados da tarefa vulneráveis ao ataque, foi forçado a levar com as colunas quase tudo de que precisava. Há algum exagero retórico no retrato que Tácito faz da Germânia como sendo inteiramente coberta de florestas e pântanos, porém é verdade que boa parte do terreno era difícil para um grande exército em marcha. Mesmo na primavera e no verão, havia poucos caminhos adequados para as carroças do comboio de bagagem. Muitas das rotas eram trilhas formadas pelo uso frequente, melhoradas com a construção de pontes e, em certos trechos, com a pavimentação por exércitos romanos que operaram anteriormente na região sob Druso e Tibério. Os exércitos romanos pouco usavam mapas como hoje fazemos, e tinham tendência a pensar em termos de rotas a determinado lugar, mas na Germânia havia muito menos opções de caminhos alternativos. Os dois lados sabiam disso, e os germânicos quase sempre eram capazes de antever a direção que o inimigo iria tomar a tempo de reunir um exército e colocá-lo numa posição de emboscada.

Os exércitos tribais levavam algum tempo para se reunir, pois os guerreiros vinham de povoações dispersas e, sem disciplina formal e prestando obediência casual aos seus líderes, moviam-se vagarosamente. Por esse motivo, as grandes emboscadas aconteciam como em 14 d.C., quando a expedição romana estava retornando à base. Pode ser também que uma retirada dos romanos depois de um ataque fosse interpretada como sinal encorajante de timidez. Germânico, como todos os outros comandantes romanos que lideraram ou liderariam exércitos nesse teatro de operações, tinha de ser muito cuidadoso para equilibrar as forças que conduzia nas expedições punitivas. Se as enviasse em número insuficiente, havia o risco de serem derrotadas, em especial se penetrassem demais no território hostil. Grandes colunas exigiam um comboio de bagagem de tamanho considerável, com animais de carga e carroças para transportar os suprimentos, por isso moviam-se inevitavelmente com lentidão. Por esse motivo Tibério dispensara tanta atenção ao carregamento das carroças de bagagem durante suas expedições ao outro lado do Reno. Um grande comboio de suprimentos também tendia a forçar a coluna romana a espalhar-se sobre uma área maior, sobretudo se tivesse de transpor uma passagem estreita, o que dificultava sobremaneira a defesa em caso de emboscada.

O objetivo dos romanos era atacar com a maior velocidade e força possíveis, infligindo devastação e terror sobre a maior área possível e, então, retirar-se sem sofrer nenhuma perda significativa. Sua intenção era convencer cada uma das tribos de que era vulnerável e que não conseguiria resistir aos romanos se decidissem atacá-la. A derrota de um exército tribal em batalha travada quando o inimigo penetrava e quando se retirava do território também aumentava a impressão do poderio militar romano, mas não era essencial. Era vital que os romanos nunca sofressem um revés, mesmo pequeno, que pudesse encorajar as tribos no futuro[19].

Para a nova campanha, Germânico planejou usar exércitos tanto da Germânia Superior como da Inferior, reunindo uma força de oito legiões apoiadas por auxiliares. Lançou seu ataque no início da primavera de 15 d.C., atacando com sua força principal de quatro legiões e a maior parte dos auxiliares dos catos, enquanto Cecina, com o restante do exército, fustigava os queruscos. O inverno havia sido incomumente seco, e a coluna principal pôde vadear com facilidade os regatos, que eram quase sempre muito mais fundos. Um destacamento foi deixado para trás a fim de construir pontes e uma estrada apropriada. Os germânicos foram completamente surpreendidos e muitos dos catos, capturados ou mortos, embora a maioria dos guerreiros tenha fugido cruzando a nado o rio Eder. Sob a proteção da artilharia leve e dos arqueiros auxiliares, os legionários rapidamente construíram uma ponte até o outro lado do rio e atacaram, dispersando essa força. Nos dias seguintes, o principal assentamento dos catos, Matio, foi incendiado e as terras ao redor foram devastadas. Então, Germânico retirou-se com seu exército sem ser perturbado, uma vez que os catos não estavam em condições de reunir um exército e as ações de Cecina impediram que os queruscos e os marsos interviessem.

Germânico, como qualquer bom comandante romano, sabia sempre lançar mão da diplomacia a par da força quando parecia possível obter vantagem. Enviados de Segestes, um líder mais velho dos queruscos cuja influência fora desgastada pela ascensão de Armínio, procuraram Germânico pedindo proteção contra o rival. A mensagem do chefe germânico enfatizava a lealdade que tivera para com Roma, em particular quando tentara sem sucesso avisar Varo da revolta planejada por Armínio e da sua traição. Ainda no início das negociações, o exército de Germânico recebeu Segestes e seus homens durante a marcha. Muitos daqueles guerreiros, inclusive o próprio filho de Segestes, haviam lutado contra Roma em 9 d.C. e traziam com eles troféus tirados dos homens de Varo. Os ressentimentos passados foram ignorados por conta da vantagem política que a deserção de um chefe tão famoso oferecia. Tibério concedeu perdão a todos, dando aos exilados um lugar para viver no império e uma pensão vitalícia. A filha de Segestes não tinha, porém, tanta boa vontade. Ela fora sequestrada por Armínio e se casara com ele, sendo levada de volta à força para seu pai. Agora estava grávida do filho de Armínio, que nasceria e seria criado no exílio[20].

Armínio ficou enfurecido, tanto por causa da deserção como pela perda da esposa, e logo começou a reunir um grande exército, recebendo o apoio de seu tio, Inguiomero, outra figura poderosa da tribo que, no passado, fora considerado a favor dos romanos. O prestígio dos dois era tal, que muitos bandos de guerreiros de tribos vizinhas uniram-se aos queruscos. Quando relatos dessa movimentação chegaram a Germânico, ele e Cecina atacaram as tribos consideradas simpáticas ao inimigo, devastando o território dos brúcteros em particular. Durante as operações, o estandarte da águia da Legio XIX foi recuperado. Como não estava longe do local do desastre sofrido por Varo, Germânico resolveu marchar até a Teutoberg Wald e enterrar os mortos. Cecina foi à frente para reconhecer o terreno, construir pontes onde fosse necessário e pavimentar as áreas pantanosas. Por algum tempo, eles seguiram o mesmo caminho do exército derrotado. Tácito faz uma descrição dramática do que viram:

O primeiro acampamento de Varo mostrou, com o seu tamanho e traçado apropriados, os esforços das três legiões; então, um baluarte meio destruído e uma trincheira rasa marcavam o local onde os últimos remanescentes tinham acampado. Na planície pouco além, havia ossos brancos espalhados por onde os homens tinham fugido, empilhados onde antes estiveram. Ao redor, estavam armas quebradas e pedaços de cavalos, enquanto os crânios dos homens estavam pregados nos troncos de árvores. Não muito longe, havia bosques que continham altares dos bárbaros, onde tinham sacrificado os tribunos e os centuriões. Testemunhas do massacre, que haviam sobrevivido à luta ou escapado das correntes do cativeiro, descreveram onde os legados caíram, onde as águias foram capturadas, onde Varo foi ferido pela primeira vez e onde ele encontrou a morte pela própria mão; e contaram sobre o tribunal de onde Armínio tinha feito seu discurso de vitória, sobre as forcas e as covas para enterrar prisioneiros e sobre a arrogância com que ele insultara as águias e outros estandartes.

Agora, seis anos depois do desastre, um exército romano chegava ao local e enterrava os ossos de três legiões, sem que nenhum homem soubesse se eram os restos de um estranho ou de um parente que depositava para descansar... mas com a raiva pelo inimigo aumentando cada vez mais, e todos pranteavam e sentiam ódio.[21]

Uma colina funerária foi erguida como memorial sobre o túmulo coletivo. O próprio Germânico colocou o primeiro torrão de turfa para demonstrar seu respeito pelos mortos, embora tal ato não fosse realmente apropriado, uma vez que ele era membro do colégio áugures, e os romanos não gostavam que esses sacerdotes tivessem contato físico com os mortos. Tendo completado sua triste tarefa, o exército avançou contra Armínio. No primeiro momento, os germânicos retiraram-se à sua passagem, mas, quando os soldados da cavalaria auxiliar seguiram um pouco mais à frente que o costume da coluna principal, foram emboscados e massacrados. A infantaria auxiliar enviada como apoio foi contaminada pelo pânico e rechaçada. A perseguição dos germânicos só foi interrompida quando Germânico chegou com as legiões e as colocou em formação. Armínio não estava pronto para se arriscar numa batalha campal e retirou-se, contente com o sucesso conquistado. Agora era o final da estação, e o comandante romano estava relutante em atrasar seu retorno aos quartéis de inverno pela possibilidade incerta de provocar e vencer uma batalha decisiva. Decidiu retirar-se, levando metade do exército pela rota do norte, onde parte de seus homens podia ser transportada pelo rio ou pelo mar, e enviou Cecina com as quatro legiões restantes pela estrada pavimentada, conhecida como “pontes longas”, que fora usada pelo exército no passado. Construídos por um exército sob o comando de Lúcio Domício Enobarbo mais de uma década antes, esses calçamentos sobre os pântanos estavam em mau estado e exigiram alguns reparos antes de poderem ser utilizados com segurança pelo comboio de bagagem. No entanto, a escolha dos romanos de usar essa rota bem conhecida foi logo percebida por Armínio, que levou rapidamente seus guerreiros por outros caminhos mais curtos, chegando às pontes antes de Cecina e tomando posições nas florestas e no terreno elevado[22].

O comandante romano dividiu seus homens entre construir um acampamento fortificado e reparar os calçamentos, mantendo algumas unidades em formação prontas para cobrir os grupos de trabalho. Durante todo um dia, foram atacados pelos germânicos, que combatiam a distância, mas que ocasionalmente faziam carga quando percebiam um ponto vulnerável nas linhas romanas. O terreno não era adequado às operações de um exército treinado e disciplinado, pois havia poucos trechos de terreno aberto e seco onde as unidades pudessem operar em formação. A situação piorou ainda mais quando alguns guerreiros de Armínio fizeram uma barragem num riacho, dirigindo o fluxo de água à planície já meio encharcada. Os germânicos, que portavam equipamento leve, estavam mais acostumados com o terreno pantanoso e lutaram muito melhor do que os legionários. Tácito afirma que as legiões estavam prestes a ceder sob a pressão quando a noite caiu, colocando um fim à luta. Usando um estilo literário, o qual tem sido empregado por vários autores ao longo dos séculos – como o famoso Henrique V, de Shakespeare –, ele contrastou o silêncio nervoso dos romanos insones com a algazarra bêbada e as bravatas audíveis dos acampamentos germânicos.

Na manhã seguinte, Cecina colocou seu exército na formação de quadrado com um espaço vazio no meio, muito empregada nessas campanhas, com a Legio I na frente, a Legio V Alaudae à direita, a Legio XXI Rapax à esquerda e Legio XX à retaguarda. Ele esperava que essa formação possibilitasse uma linha de combate forte o bastante no meio do pântano para cobrir os movimentos do comboio de bagagem e passar pelas “pontes longas”. Contudo, por ter confundido as ordens ou, conforme Tácito dá a entender, por pânico, a V Alaudae e a XXI Rapax apressaram-se demais, não entrando em formação de batalha até passarem do pântano e chegarem a uma planície mais aberta à frente. O movimento deixou o comboio exposto, e Armínio ordenou que seus guerreiros atacassem em massa. O combate foi confuso, com os germânicos caindo em grandes números sobre as carroças e a coluna em marcha. O cavalo de Cecina foi ferido quando ele tentava dar alguma ordem àquele caos, jogando ao chão o idoso comandante – ele tinha, agora, cerca de 60 anos. Foi apenas a rápida ação de alguns soldados da Legio I que evitou sua morte ou captura.

Finalmente, o núcleo do exército romano conseguiu chegar ao terreno aberto, já ocupado pelas duas legiões que deveriam ter coberto os flancos. Uma vez lá, os homens exauridos foram forçados a trabalhar por várias horas para construir uma trincheira básica e um baluarte ao redor do acampamento. Grande parte da bagagem fora tomada pelo inimigo, cuja preocupação com o espólio contribuíra muito para a fuga da força principal. Naquela noite, poucos dos feridos tinham curativos ou remédios para tratar os ferimentos, e quase nenhum dos homens possuía uma tenda onde dormir. Quando um cavalo fugiu, rompendo as correntes que o prendiam, galopando através do acampamento e causando confusão, um grupo de homens em pânico correu até os portões acreditando que estavam sendo atacados pelo inimigo. Cecina só conseguiu detê-los porque se jogou à frente do portão aberto e os desafiou a passar sobre ele, pisoteando-o. Em seguida, os tribunos e os centuriões explicaram em detalhe o que tinha acontecido, acalmando os homens.

Armínio e Inguiomero pareciam ter à sua mercê o exército romano, encurralado num terreno difícil e exausto depois de dias de emboscadas, assim como os homens de Varo em 9 d.C. No entanto, enquanto Armínio planejava deixar Cecina sair do seu acampamento e marchar de novo até um terreno aberto antes de lançar um ataque, seu tio estava convencido de que já tinham vencido. Sua sugestão de que os bandos de guerreiros deveriam cercar o acampamento romano e lançar um ataque direto foi calorosamente recebida pelos outros chefes. Era isso que Cecina esperava que fizessem, e preparou-se para tanto. Seus homens entraram em formação de modo a prepararem-se para sair de cada um dos quatro portões do acampamento, liderados por um corpo selecionado entre os soldados mais valentes montados a cavalo, cedidos a eles pelo comandante, e seus oficiais mais graduados. Em tal situação desesperadora, Cecina queria deixar claro aos seus homens que não fugiria a galope abandonando-os, mas enfrentaria o destino que eles tivessem.

Os legionários foram mantidos sob rígido controle, quando o amanhecer revelou um denso círculo de guerreiros germânicos avançando para atacar. Cecina deixou que se aproximassem, esperando que a aparente relutância dos romanos em sair do acampamento e lutar aumentasse o desprezo que os bárbaros sentiam por eles. Só no último minuto ele ordenou às legiões que atacassem e saíssem dos portões, com as trombetas soando e os homens gritando. Quase que imediatamente, a inflada confiança do inimigo foi esmagada e o pânico logo se espalhou por entre suas fileiras. Embora não tenham fugido instantaneamente, a planície aberta permitiu que os romanos tirassem vantagem de seu treinamento e equipamento superiores. As baixas dos germânicos foram pesadas e incluíram Inguiomero, que foi gravemente ferido enquanto os romanos os perseguiam pelo resto do dia. Durante o restante da marcha de volta ao Reno, a coluna romana não foi atacada. Entretanto, os rumores de um desastre precederam os homens de Cecina, causando pânico nos comandantes das guarnições na fronteira. Diz-se que foi apenas devido à intervenção de Agripina, esposa de Germânico, que se evitou a destruição da ponte sobre o rio, em Vetera (hoje, Xanten). Ela também permaneceu lá para receber a coluna que retornava, agradecendo pessoalmente aos homens, distribuindo roupas àqueles que as tinham perdido e cuidando dos feridos[23].

A jornada de retorno da outra metade do exército, comandada por Germânico, teve menos incidentes; no entanto, uma seção da sua força enfrentou dificuldades consideráveis e algumas perdas quando a planície costeira através da qual marchavam – mais ou menos ao longo da atual costa norte holandesa – foi inundada por uma maré incomumente alta. Esse incidente, aliado à problemática retirada da coluna de Cecina, reduziu o impacto do sucesso daquela estação de campanha, pois indicou que os romanos não eram invencíveis. Armínio pode não ter conquistado nenhuma vitória significativa, mas evitara ser derrotado de modo decisivo e seu prestígio se elevara. Germânico decidiu que no ano seguinte buscaria o confronto direto com o líder guerreiro germânico. Dessa vez, todas as oito legiões combateriam como uma força única. Para esse fim, passou os meses de inverno em preparativos, recompondo seu exército. As províncias ocidentais do império, notadamente a Hispânia e a Gália, rivalizaram no envio de grãos, montarias e animais de carga ao exército, apesar de Germânico saber que o custo das longas guerras na Germânia levara essas regiões ao limite dos seus recursos. Isso tornava ainda mais imperativo o sucesso amplo e possivelmente final da próxima estação de campanha.

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AS TRIBOS DA ALEMANHA

Foi decidido que o exército seria transportado até o local mais longe possível por água, navegando ao longo da costa do mar do Norte e passando pelas ilhas frísias para aportar já no interior do território inimigo. Desse modo, grande parte do exército foi incumbida da tarefa de construir quase mil barcos para serem adicionados à frota já estacionada no Reno. A campanha diplomática para conquistar chefes guerreiros germânicos continuou, com o irmão de Segestes, Segimero, e seu filho desertando para o lado do Império. O filho não só tinha lutado contra Roma em 9 d.C., como também, segundo dizia-se, havia desonrado o cadáver de Varo, porém, uma vez mais, a vantagem a ser obtida ao acolher desertores inimigos foi maior do que a cólera romana. Além dos preparativos práticos, Germânico dedicou atenção particular à saúde e ao moral dos seus homens, visitando os hospitais dos quartéis de inverno, conversando com os soldados e elogiando seus feitos de coragem[24].

Na primavera de 16 d.C., o exército uniu-se à esquadra no território dos batavos, uma tribo que ocupava a “ilha” entre o Reno e o Waal e que forneceu muitos auxiliares para o exército romano. Os batavos eram uma ramificação dos catos que tinham atravessado o Reno e lá se estabelecido após uma disputa interna. Antes do início da campanha principal, Germânico enviou uma pequena coluna ligeira para atacar os catos. Ao mesmo tempo, chegaram notícias de que um forte romano construído perto do local do desastre de Varo estava sob ataque, por isso ele comandou seis legiões para reverter a situação. Nenhuma das operações desdobrou-se em combates sérios, mas Germânico descobriu que os inimigos tinham destruído a colina funerária erigida sobre o túmulo coletivo dos homens de Varo, bem como o altar e o monumento construídos décadas antes por seu pai. Tais símbolos do poder romano erguidos no seu território parecem ter sido vistos como profundamente humilhantes para os guerreiros nativos. Germânico ergueu novamente o altar, porém decidiu não restaurar a colina funerária[25].

Marchando de volta para encontrar-se com a frota, o exército romano embarcou e navegou ao longo da costa até o estuário do rio Ems. O desembarque foi na margem ocidental, embora isso tenha causado atraso, pois as legiões tiveram de construir uma ponte através do rio, permitindo que o exército de Armínio se reagrupasse. As notícias de uma rebelião entre os angrivários levou ao envio de uma coluna para devastar suas terras como punição imediata. Em seguida, Germânico avançou para oeste e encontrou o exército inimigo reunido na margem oriental. Tácito conta a história de que Armínio chamou seu irmão Flavo, que tinha permanecido leal a Roma e ainda estava servindo o império como comandante auxiliar. Os dois teriam discutido aos berros das margens opostas, comparando seu destino, mas isso é muito possivelmente uma invenção retórica, ou, pelo menos, o exagero de um incidente real. Relutante em tentar o ataque direto através do rio até dominar uma posição segura e dar tempo às legiões para construir algumas pontes, Germânico enviou uma força de cavalaria auxiliar do outro lado do rio por um vau. Com eles foram Chariovalda, o chefe guerreiro (ou dux) dos batavos, e seus guerreiros. No início as coisas foram bem, mas os batavos caíram numa emboscada armada pelos queruscos e viram-se cercados, com seus guerreiros formando um círculo de escudos voltados para fora, num episódio que se conformava às tradições mais heroicas da guerra intertribal. Depois de algum tempo, Chariovalda liderou um ataque e rompeu o círculo de proteção, contudo foi morto na ação. Os remanescentes de seus homens foram salvos pela cavalaria romana que saiu em seu auxílio[26].

Nos dias seguintes, o restante do exército romano conseguiu atravessar o Weser. Batedores informaram que Armínio tinha se retirado para uma posição a partir da qual planejava travar combate, perto da floresta sagrada dedicada a um deus, o qual os romanos relacionavam com Hércules. Um desertor afirmou que o líder germânico planejava realizar um ataque noturno ao acampamento romano, mas este não se realizou porque se descobriu que as legiões estavam em alerta. Mais cedo naquela mesma noite, Germânico teria se disfarçado usando um capuz de pele de animal, provavelmente do tipo usado pelos porta-estandartes, e circulou através das tendas, esperando mensurar o ânimo dos soldados. (Direta ou indiretamente, é provável que o incidente tenha servido de inspiração para um episódio muito semelhante da peça Henrique V, de Shakespeare.) Ouvindo as conversas ao pé das fogueiras, o comandante romano de 31 anos teria ficado surpreso pela aflição e confiança que seus homens nutriam por ele. Sentiu-se ainda mais encorajado quando um guerreiro germânico que falava latim – talvez como resultado de ter prestado serviço como auxiliar – aproximou-se do baluarte e propôs aos berros que qualquer um que desertasse recebesse terra e uma esposa, mais 25 denários por dia até o final da guerra. Como o salário anual de um legionário era, nessa época, apenas 225 denários, a oferta era tremendamente generosa. Contudo, a ideia de que pudessem trair o seu lado insultou os homens, que tomaram alegremente a proposta como um bom presságio, respondendo que significava que as terras e mulheres germânicas eram suas para serem tomadas[27].

Na manhã seguinte, o comandante falou ao seu exército, apesar de que, como havia oito legiões e auxiliares presentes, é provável que tanto ele como seus oficiais tenham repetido o discurso para vários grupos menores. De acordo com Tácito, ele lhes disse:

A planície aberta não é o único campo de batalha bom para um soldado romano, pois, se ele pensar bem, as florestas e os cerrados também são adequados. Do meio dos troncos das árvores, os grandes escudos e as enormes lanças dos bárbaros não são tão adequados como os pilum, os gládios e a couraça bem ajustada. O que eles [os legionários] precisam fazer é atacar de modo duro e rápido, apontando para o rosto. Os germânicos não usavam armadura nem capacete, e seus escudos não eram reforçados com metal ou pele, mas simplesmente feitos de vime ou de tábuas finas pintadas. Apenas as primeiras fileiras portam lanças adequadas, o restante tinha só clavas curtas endurecidas pelo fogo. Apesar de sua estatura ser impressionante e poderosa, não aguentavam ser feridos num ataque rápido.[28]

Encorajados por essa difamação do inimigo e pela promessa de que a vitória poria fim aos seus árduos trabalhos, os soldados gritaram “vivas” com entusiasmo, antes de receber ordem de entrar em formação e marchar para a batalha. Armínio, Inguiomero e o exército germânico esperaram por eles numa planície coberta pela floresta e com um terreno elevado à retaguarda perto do Weser. O local era conhecido como Idistaviso, mas nunca foi identificado com precisão. Armínio e a maior parte dos queruscos ficaram na reserva – um refinamento incomumente sutil para um exército tribal –, num terreno elevado. O exército romano marchou para o campo de batalha numa formação que podia entrar rapidamente em ordem de combate. Tácito diz que os romanos avançaram com auxiliares gauleses e germânicos apoiados por arqueiros a pé, à frente, seguidos por quatro legiões comandadas pelo próprio Germânico e duas coortes da Guarda Pretoriana (a guarda imperial de elite), além de um destacamento selecionado da cavalaria. Atrás, vinham as outras quatro legiões com a infantaria ligeira e os arqueiros montados na retaguarda. Não se sabe que formação cada seção empregou, se, por exemplo, cada grupo de quatro legiões marchou na formação de quadrado com o centro vazio tão usada nessas campanhas. No início da batalha, Germânico afirmou ter visto oito águias voando na direção em que os romanos avançavam e anunciou aos seus homens que aquilo era um augúrio da vitória. O relato de Tácito da batalha não nos permite fazer uma reconstrução clara da sequência de eventos. Ao que parece, alguns dos queruscos se adiantaram para atacar, desobedecendo às ordens de Armínio, e foram logo rechaçados no flanco e na retaguarda por unidades da cavalaria auxiliar. A infantaria romana também avançou com firmeza, repelindo os germânicos. O próprio Armínio liderou uma carga contra os arqueiros na vanguarda do exército romano e só foi detido pela infantaria pesada auxiliar. Ferido, ele lambuzou o rosto com o próprio sangue para evitar ser reconhecido e fugiu, graças à qualidade do seu cavalo. Correram rumores de que os auxiliares germânicos da tribo dos caúcos o deixaram escapar deliberadamente. Numa luta árdua, o exército germânico foi desbaratado e sofreu pesadas baixas. Alguns guerreiros afogaram-se ou foram atingidos por flechas ou dardos quando tentavam atravessar o Weser, outros foram atingidos pelos arqueiros quando tentavam esconder-se entre os galhos das árvores. As perdas dos romanos foram extremamente baixas, apesar de Tácito não fornecer números. Depois da batalha, o exército desfilou e saudou Tibério como imperator, pois qualquer vitória, até uma conquistada por seu filho adotivo, era sempre atribuída ao princeps. Foi feito um troféu com as armas capturadas e inscrições os nomes das tribos derrotadas[29].

Enfurecidos ao ver o símbolo da sua derrota, os germânicos começaram a fustigar a coluna romana enquanto ela se retirava. Uma vez mais, um exército foi reunido e tomou posição num local ao longo do caminho que os romanos seguiam, perto de um baluarte que marcava a fronteira das terras dos angrivários. Ali perto, havia florestas e pântanos margeando uma estreita planície alagada. A infantaria germânica escondeu-se perto do baluarte, enquanto a cavalaria se colocou no terreno coberto por floresta um pouco mais atrás, pronta para atacar a retaguarda da coluna romana. Os romanos estavam conscientes da presença do inimigo, e Germânico decidiu que outra batalha campal seria vantajosa. Deixando a cavalaria para cobrir terreno aberto, dividiu a infantaria em duas forças, uma para atacar o baluarte e outra visando o terreno florestado perto da trilha principal. O próprio comandante liderou o assalto à fortificação, pois julgava ser a área mais bem defendida.

O primeiro ataque fez pouco progresso, com os soldados sofrendo baixas ao tentar escalar a muralha de turfa. Germânico ordenou que se reagrupassem e, então, trouxe os fundeiros e os atiradores para bombardear os defensores. A artilharia leve (escorpiões) abateu os guerreiros mais resolutos, disparando seus projéteis a uma distância maior do que as armas manuais, e com uma força que nem um escudo ou uma armadura eram capazes de deter. Suprimidos, os defensores não conseguiram responder de modo adequado – os arqueiros parecem ter sido raros nos exércitos germânicos –, e um segundo ataque tomou o baluarte. Germânico abriu caminho com as duas coortes pretorianas, enquanto os romanos avançavam até o terreno coberto pela floresta para aproveitar essa vantagem. Germânico tinha tirado seu capacete para que seus homens o reconhecessem com maior facilidade. O combate foi acirrado, mas os romanos adaptaram-se melhor à visibilidade restrita da floresta do que seus oponentes, os quais tiveram problemas em fazer valer seu grande número. O comando de Armínio foi um tanto letárgico, e Tácito especula que isso pode ter sido em razão do ferimento que sofrera na última batalha. Perto do final do dia, Germânico retirou uma legião para começar a construir um acampamento. Novamente os romanos haviam infligido pesadas perdas ao inimigo, e outro troféu foi erguido para celebrar a vitória[30].

Agora, o verão estava no fim e era hora de retornar às províncias da fronteira. O núcleo do exército romano retirou-se pelo mesmo caminho por onde tinha vindo, embarcando nos navios e navegando ao longo da costa do mar do Norte. Uma grande tempestade dispersou a frota, levando alguns barcos até a costa da Britânia e afundando diversos outros. Ao retornar – a certa altura, ele se viu com apenas um navio e aportou no território dos aliados caúcos –, Germânico rapidamente organizou algumas expedições punitivas para mostrar que o exército romano ainda era formidável. Os catos e os marsos foram atacados de novo, sendo que a ação contra os últimos resultou na recaptura de outra das águias perdidas por Varo[31].

REGRESSO E MORTE MISTERIOSA

No final de 16 d.C., Tibério chamou Germânico de volta para Roma, onde ele celebrou um triunfo por conta da vitória sobre os germânicos. Duas coortes da Guarda Pretoriana receberam ordens para encontrá-lo em uniforme de gala, mas sua popularidade era tão grande que todas as nove coortes insistiram em tomar parte no triunfo como sinal de respeito. Segundo Tácito, Germânico implorou para que seu comando fosse estendido por um ano a fim de completar a vitória. Pode ser que isso fosse apenas um rumor aprovado oficialmente para mostrar que Roma poderia ter facilmente conquistado a vitória completa, se assim o tivesse desejado. Germânico logo foi enviado à Síria para supervisionar as províncias orientais, pois havia indicações de possíveis problemas entre os partos e a Armênia.

A atitude de Tibério com relação ao seu filho adotivo não pode ser estabelecida com certeza. Corriam rumores de que ele o invejava como um rival em potencial, lembrando-se da oferta dos amotinados em 14 d.C. de fazer imperador o jovem e popular comandante. O papel público de Agripina ao cuidar dos soldados, aliado ao fato de os pais vestirem seu filho com um uniforme em miniatura, pareciam indicar um desejo de subverter as tropas a seu favor. Dizia-se que o legado imperial enviado para governar a Síria, Cneu Calpúrnio Piso, tinha recebido ordens de Tibério para vigiar e dificultar as coisas para Germânico. Houve, com certeza, considerável fricção entre os dois homens, o que acabou com a demissão de Piso. Pouco depois, Germânico adoeceu e morreu em meio a rumores de envenenamento e de afirmações de que os culpados eram Piso e Tibério. Piso tentou retornar à sua província e assumir o comando, reunindo algumas tropas para defender a sua causa antes de ser derrotado. Posteriormente, foi julgado no Senado e se suicidou pouco antes de sair o veredito de culpado. A reação popular quanto à morte de Germânico foi enorme, dando testemunho da grande afeição que lhe era dedicada. Seu corpo foi levado de volta a Roma com grande cerimônia[32].

Se Tibério invejava ou não Germânico e se este foi, de fato, assassinado, é hoje impossível de dizer. Nos anos seguintes, ele certamente iria enviar Agripina e seus dois filhos mais velhos ao exílio ou executá-los. O regime estabelecido por Augusto apresentava-se como uma modificação da república tradicional, mas, apesar dessa fachada, era desde o início uma monarquia – e poucos monarcas não nutriram suspeitas quanto a rivais, imaginários ou não. Em Roma, a reputação do imperador baseava-se fortemente no sucesso continuado dos seus exércitos, porém era vital que ninguém mais, nem mesmo um parente, recebesse muita glória por seus feitos militares. As condições do principado ofereceram a alguns membros da família imperial boas oportunidades de comando militar quando ainda contavam pouca idade, mas não os livraram da suspeita de tramar contra o imperador.

Por uma estranha coincidência, o ano de 19 d.C. também viu a morte do grande oponente de Germânico, Armínio, que foi assassinado pelos seus chefes, os quais achavam que seu poder tinha crescido em demasia. No início daquele ano, Tibério recusara a proposta feita por um chefe querusco de assassinar o líder guerreiro, declarando que Roma não precisava lançar mão de métodos desonrosos. Claramente, as vitórias de Germânico foram consideradas vinganças suficientes por Teutoberg Wald, e o líder germânico não foi mais visto como uma ameaça, uma vez que outras guerras – notadamente contra Jugurta – foram concluídas com atos semelhantes de traição. O poder era sempre precário entre os povos tribais, e talvez Tibério simplesmente contasse com isso para eliminar Armínio, como de fato ocorreu. Armínio tivera sucesso onde outros, como Vencingetórix, fracassaram, rebelando-se contra Roma e não sendo vencido. O tributo feito a ele pelo historiador Tácito, no início do século II d.C., foi certamente merecido:

Sem dúvida, ele foi o libertador da Germânia, um homem que lutou contra o povo romano não nos seus primeiros dias, como outros reis e chefes guerreiros, mas no auge do seu poder; em guerras e batalhas não decididas, sem ser derrotado, ele viveu por 37 anos e conservou o poder por doze, e é, até hoje, celebrado nas canções locais.[33]