UM JOVEM CÉSAR:
TITO E O CERCO DE JERUSALÉM, 70 D.C.
Titus Flavius Sabinus Vespasianus
(41-81 d.C.)
Percebendo que sua segurança dependia unicamente de suas façanhas pessoais, ele virou o cavalo e gritou aos companheiros que o seguissem num ataque ao centro das forças inimigas, lutando para abrir caminho a golpes de espada em meio a seus próprios homens [...] De toda a chuva de flechas disparadas contra Tito, que não usava nem elmo nem couraça – pois ele havia se adiantado [...] não para lutar, mas para fazer reconhecimento – nenhuma o atingiu.[1]
Nero, abandonado pelo Senado e pela sua própria guarda pretoriana, ordenou a um dos seus últimos escravos fiéis que o matasse, em 68 d.C. Desse modo, morreu o último membro da dinastia Júlio-Claudiana. Ele não tinha herdeiros, e o poder foi tomado por Galba, o legado da Hispânia, apoiado pela legião que estava estacionada em sua província e pela Guarda Pretoriana – seduzida pela promessa de uma polpuda recompensa a quem quer que o seguisse. No entanto, o novo imperador não cumpriu sua promessa e foi linchado pelos pretorianos sete meses depois de tomar o poder. Seu sucessor, Oto, comprou sua ascensão, mas durou apenas 95 dias até se suicidar, ao receber notícias da derrota do seu exército por um rival, Vitélio, o legado da Germânia Inferior. Vitélio conseguira reunir a força principal dos exércitos do Reno em torno da sua causa e invadira a Itália. Logo ele teve de enfrentar as legiões das províncias orientais, comandadas por Vespasiano, o legado da Judeia. Com seu exército derrotado no vale do Pó e com Roma invadida pelo inimigo, Vitélio foi brutalmente assassinado oito meses após tomar posse.
Vespasiano foi o quarto homem a se tornar princeps em doze meses, e os eventos mais recentes demonstraram abertamente o poder das legiões de criar ou destruir imperadores. Depois de quase um século de paz interna, o império tinha mergulhado numa guerra civil tão selvagem quanto qualquer uma daquelas que marcaram as décadas finais da república. Diferentemente dos conflitos do século I a.C., a Guerra Civil de 68–9 d.C. não nasceu de rivalidades políticas que existiam há tempos. Os líderes eram em geral legados razoavelmente comuns que se viram no comando de exércitos poderosos numa época em que havia um vácuo no poder no centro do império. Com exceção de Vespasiano, não eram homens que haviam comandado recentemente legiões em campanha e criado, desse modo, um elo baseado em experiência comum e confiança. Em vez disso, contavam com a conquista do exército, principalmente os oficiais, mesmo nas suas províncias e também nas vizinhas. Uma vez mais os soldados romanos mostravam-se desejosos de lutar contra outros romanos em prol de generais que lhes prometeram recompensas. Vitélio tinha dissolvido a guarda pretoriana de Oto e recrutado uma nova guarda de coortes de suas próprias legiões. O apoio das legiões sírias a Vespasiano ganhou força quando chegaram rumores afirmando que Vitélio planejava colocá-las no Reno e enviar guarnições daquelas províncias para assumir os alojamentos mais confortáveis do Oriente[2].
Vespasiano mostrou-se líder capaz e decente, um dos poucos homens cujo caráter não degenerou sob as tentações de ter o poder supremo nas mãos. Sua família não fazia parte da antiga aristocracia, e ele e seu irmão Sabino foram os primeiros a entrar no Senado. A riqueza que lhes garantiu acesso a essa instituição vinha de diversas fontes pouco respeitáveis, como o recolhimento de impostos e a criação de mulas, e a própria carreira de Vespasiano incluíra diversas atividades. Em 43 d.C., ele era o legado legionário no comando da Legio II Augusta, que tomou parte na grande expedição de Cláudio à Britânia. Vespasiano teve papel proeminente na batalha principal – provavelmente no rio Medway – contra a forte confederação tribal comandada pelos irmãos Caratacos e Togodumno, e em seguida operou de modo independente com sua própria legião apoiada por tropas auxiliares contra os povos do sudoeste. Cláudio foi extravagante ao recompensar com honras e condecorações os participantes da expedição, sua única grande guerra, e Vespasiano foi um dos que recebeu direito a uma triumphalia, o que era uma honra incomum a alguém da sua patente. Mesmo assim, ele nunca se tornou um dos homens mais importantes do Senado e durante algum tempo praticamente se retirou da vida pública. Mais tarde, gozou dos favores de Nero por um período, até que seu hábito de sair abruptamente ou de cochilar durante os recitais musicais do imperador levou à sua exclusão da corte.
Obscuro demais e com poucas relações para ser visto como um rival em potencial, o descontentamento que Vespasiano causou ao imperador não provocou sua execução, e em 67 d.C. ele foi enviado como legado à Judeia, onde uma rebelião começara no ano anterior. Ele havia assumido todos os postos normalmente delegados antes do comando de uma província imperial e conquistara certa reputação na Britânia, mas sua nomeação devia-se ao sentimento de que ele nunca representaria uma ameaça ao imperador. Como forma de garantir sua segurança, Nero manteve o filho mais novo de Vespasiano, Domiciano, com ele em Roma, efetivamente como refém. É duvidoso que qualquer um, inclusive o próprio imperador, considerasse seriamente Vespasiano um possível candidato para o trono até que a guerra civil já estivesse em curso. Mesmo após a morte de Nero, ele reconheceu abertamente a autoridade, primeiro de Galba e depois de Oto, declarando-se imperador somente depois do suicídio do último[3].
As vitórias conquistadas por seus subordinados tornaram Vespasiano imperador, mas foi sua capacidade política que evitou que seu principado fosse tão breve quanto o de seus predecessores imediatos. O mais importante de tudo foi que ele negou aos governadores provinciais a oportunidade de virarem seus exércitos contra ele. Como Augusto, usou parentes e partidários – todos homens cujos interesses eram servidos pela continuação do novo regime – para travar as maiores guerras do seu reinado. O novo imperador precisava celebrar sucessos militares, pois esse tipo de glória ainda era um dos atributos mais importantes de um princeps. O serviço ativo também mantinha os exércitos ocupados e evitava que se amotinassem ou se revoltassem, sobretudo se seus líderes fossem homens de confiança. Uma guerra era especialmente importante para Vespasiano, pois, apesar do progresso que realizou ao suprimir a guerra civil, o conflito evitara que sua campanha na Judeia fosse concluída. Embora a maior parte da província estivesse agora sob controle romano, a grande cidade de Jerusalém, além de um punhado de pequenas fortalezas, continuava nas mãos dos rebeldes. Um imperador novo e ainda inseguro não poderia bancar a associação pessoal com uma guerra que ainda não resultara numa vitória total dos romanos. Jerusalém precisava ser tomada o mais rapidamente possível e de um modo que não depreciasse os primeiros feitos de Vespasiano no conflito. Assim, na primavera de 70, a tarefa de cercar a cidade e de esmagar o centro da rebelião coube ao filho mais velho do imperador, Tito, então com 29 anos.
O cerco de Jerusalém é descrito com mais detalhes do que qualquer outra operação importante realizada pelo exército romano. A cidade ocupava uma forte posição natural e era muito fortificada, com três fileiras principais de muralhas, de forma que, durante os cinco meses de cerco, os romanos foram obrigados a conquistar seção por seção, um assalto difícil seguido por outro e mais outro. O custo foi elevado, tanto em termos de baixas como do entusiasmo dos sobreviventes, sendo que por vezes o moral dos legionários caía a um nível muito baixo. Tito enfrentou uma tarefa extremamente complicada, mas que por motivos políticos deveria ser realizada tão logo fosse possível. A captura de Jerusalém fornece uma ótima ilustração da natureza da guerra de cerco e dos problemas peculiares que ela traz a um comandante. Nossa compreensão da campanha é auxiliada em grande parte pelo trabalho arqueológico, que permite uma reconstituição bastante fiel do traçado de Jerusalém no período do Segundo Templo. A principal narrativa literária é fornecida pelo historiador judeu Josefo, que escreveu em Roma, sob o patrocínio de Vespasiano e de Tito, sua história da Rebelião Judaica. A adulação que ele faz a ambos, em especial ao último, muitas vezes chamado simplesmente de César, é frequente e óbvia, como, por exemplo, na seguinte passagem:
Assim, se, sem uma sílaba de adulação ou mácula de inveja, a verdade deve ser contada, César resgatou pessoalmente a legião inteira por duas vezes quando estava em perigo e permitiu que se entrincheirasse no seu acampamento sem ser molestada.[4]
Apesar de todo o sicofantismo, Josefo estava presente no quartel de Tito durante a operação e descreve os eventos em grandes detalhes, oferecendo de longe o melhor retrato do exército do principado em campanha. Ele também era peculiarmente adequado para descrever o conflito, pois começara a guerra como general nomeado pelo governo rebelde e combatera os romanos antes de se render e passar a colaborar com o antigo inimigo. Sua atitude com relação aos líderes rebeldes foi extremamente hostil, porém ele também se dedicou a descrever o heroísmo de muitos combatentes judeus e as derrotas que infligiram aos romanos. Mais do que qualquer conflito fora das guerras civis, somos capazes de observar a Rebelião Judaica a partir da perspectiva dos dois lados e não simplesmente do ponto de vista romano[5].
A Judeia tornou-se uma província governada diretamente depois da morte de Herodes, o Grande, em 4 a.C. Isso provocou uma rebelião que foi brutalmente suprimida por Varo, o legado da Síria. Herodes fora um político consumado; mesmo que tenha apoiado Antônio na guerra civil, conquistou o favor de Otaviano depois de Áccio, conseguindo assim permanecer no trono. Não obstante, nunca fora popular com seus súditos, que o viam como um estrangeiro – ele era idumeu e, portanto, não considerado propriamente judeu – imposto a eles por uma potência gentílica. Os governadores romanos que o sucederam tiveram ainda menos sucesso na conquista dos corações e mentes da população. Tais homens não eram senadores, pois a Judeia era uma província menor com uma pequena guarnição auxiliar, constituída de equestres com o título de prefeito, apesar de por volta de 40 d.C. esse título ter sido alterado para procurador.
Não era uma província fácil de controlar, já que a cultura e a religião da sua população monoteísta a colocavam à parte do restante do mundo politeísta romano. Os pagãos viam os judeus (e mais tarde os cristãos) como perversos, quase ateus, pois negavam a existência de outros deuses[6]. Mesmo os aristocratas judeus que recebiam a cidadania romana não conseguiam seguir carreira no serviço imperial devido aos tabus religiosos. Desse modo, foi impossível absorvê-los na elite do império como aconteceu com as famílias nobres de outras províncias, que passaram, com o tempo, a receber posições elevadas no exército e na administração, tornando-se finalmente equestres e até entrando para o Senado. As famílias dos sumos sacerdotes de Jerusalém receberam papel dominante na administração do Grande Templo, outorgado pelos procuradores, mas sua capacidade de controlar o grosso da população era limitada. Muitos judeus desejavam ter, como líderes religiosos, pessoas que não pertencessem à aristocracia, quase sempre homens de origem humilde como João Batista ou Bano, a quem o adolescente Josefo seguiu por algum tempo. De maneira geral, os judeus tinham um sentido muito mais forte da sua identidade enquanto nação do que a maior parte dos outros povos que vieram a ficar sob o governo romano. Todo ano, o festival da Páscoa os lembrava da sua fuga da escravidão no Egito e, mais recentemente, cultuavam a memória da bem-sucedida rebelião dos Macabeus contra o domínio do Império Selêucida, no século II a.C.[7].
A religião e os rituais associados ao Grande Templo de Jerusalém atuavam como uma lembrança contínua da identidade judaica, porém a sociedade também estava dividida de forma ferrenha em seitas e doutrinas que se separavam devido à interpretação da lei. Os nativos da Judeia não consideravam os galileus como judeus de fato, enquanto ambos detestavam os samaritanos, que ocuparam a Palestina central e possuíam seu próprio culto e templo. As três maiores seitas religiosas judaicas, fariseus, saduceus e essênios, discordavam com relação à maioria dos temas e dividiam-se em dissidências internas. A atitude apropriada quanto ao governo romano era sempre tema de discórdia, e muitos dos líderes religiosos populares que surgiam periodicamente eram percebidos como revolucionários que incitavam à rebelião. Nos anos 30, Jesus foi questionado publicamente sobre sua atitude com relação ao pagamento de impostos – “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” – e finalmente foi executado como rebelde – “Não temos rei, exceto César”. Problemas econômicos dividiam ainda mais a sociedade, com a quebra da lei e o banditismo tornando-se um desafio recorrente à paz e à estabilidade. A violência surge logo abaixo da superfície dos Evangelhos, em histórias de viajantes sendo assaltados e espancados ou mencionando a ausência de proprietários, além de discípulos com nomes de revolucionários como Simão Zelote ou Judas Iscariotes. Barrabás, que foi libertado por Pôncio Pilatos em lugar de Cristo, estava na prisão, de acordo com Marcos, por liderar uma insurreição em Jerusalém. Pelo menos alguns dos criminosos provavelmente tinham motivação religiosa ou política, mas o impacto das suas ações (como tem sido frequentemente o caso ao longo de toda a História) caía mais pesadamente sobre os pobres.
A Judeia era uma região problemática, esforçando-se por se conformar com o sistema romano e muitas vezes sujeita a procuradores que não compreendiam suas peculiaridades e eram quase sempre corruptos e repressores. Irrupções esporádicas de rebelião ocorreram a partir de 4 a.C., transformando-se, finalmente, numa grande revolta no verão de 66 d.C. O procurador marchou sobre Jerusalém para sufocar a insurreição com uma demonstração de força, mas acabou derrotado. Em poucos dias, a guarnição de Jerusalém foi massacrada. O legado da Síria, Caio Céstio Galo, reuniu apressadamente um exército para enfrentar os rebeldes, chegando aos arredores da cidade em outubro. Sua força se baseava em torno da Legio XII Fulminata, que fora derrotada de forma humilhante com Peto em Randeia quatro anos antes, reforçada por vexillatio da III Gallica, da VI Ferrata e da X Fretensi, que eram apoiadas por alguns auxiliares regulares e grande número de recrutas recentemente convocados e mal disciplinados. Não era um exército preparado com cuidado, treinado ou adequadamente abastecido para a guerra, porém Galo estava seguindo a prática romana normal de responder tão rapidamente quanto possível à insurreição, esperando que um contra-ataque imediato e executado com confiança seria capaz de sufocar a rebelião antes que ela se alastrasse.
Surpreso com a força da resistência, Galo sofreu algumas derrotas menores e, concluindo que não poderia tomar a cidade, abandonou o cerco e retirou-se. A sua saída logo transformou-se em desastre quando a coluna romana foi atacada sem piedade ao transpor o estreito passo de Beth-Horon. No final da campanha, 5.780 soldados romanos tinham sido mortos e a XII Fulminata perdera sua águia (Josefo não menciona a captura desse troféu pelos rebeldes, de modo que ele pode ter sido perdido na confusão. Isso não teria alterado a desgraça causada pela perda do precioso estandarte, símbolo do orgulho da legião.) Galo morreu logo depois, provavelmente de doença[8].
No final de 66 ou no início de 67, Vespasiano foi enviado para assumir o comando da guerra na Judeia, enquanto Caio Licínio Mulciano tornou-se legado da Síria, a fim de tratar da administração regular da província. O arranjo era semelhante de muitas maneiras à estrutura de comando por meio da qual Córbulo fora mandado ao Oriente para resolver o problema armênio. Na época em que Vespasiano foi nomeado para a Judeia, Córbulo talvez já estivesse morto, mas é improvável que tenha recebido outro comando, mesmo não tendo perdido os favores do imperador. O ideal da classe senatorial – se não de cada senador – era que as oportunidades de conquistar glória militar fossem aproveitadas sempre que possível. Vespasiano, então com 57 anos de idade, ainda não tinha servido como legado provincial, mas possuía um registro militar competente e a confiança qualificada do imperador, que recentemente havia estado muito preocupado com as ambições dos senadores mais proeminentes. Tácito descreveu-o como o comandante romano ideal, “ativo na guerra e acostumado a marchar à frente da coluna, a escolher o local para acampar e a assolar o inimigo dia e noite por meio da sua habilidade de general e, se a ocasião exigisse, pela própria mão; sua ração era o que a sorte dava, no vestir e no modo de vida era muito parecido com o soldado raso”[9]. Em 67, Vespasiano lançou uma invasão à Galileia em grande escala e devidamente preparada, invadindo as cidades muradas e aldeias que não se renderam.
Durante a rebelião, os judeus não foram capazes de formar um exército de campo efetivo, e o conflito foi dominado por cercos. Em Jotapata, Vespasiano recebeu a rendição do comandante rebelde Josefo, que havia se escondido numa caverna com um grupo de seguidores devotados, todos os quais resolveram se suicidar em vez de entregar-se. O futuro historiador, que admite não ter se entusiasmado com tal gesto, persuadiu seus companheiros a tirar a sorte para determinar quem deveria matar os outros. Por um milagre – embora o leitor incline-se a suspeitar de uma causa mais desonrosa –, Josefo e outro soldado foram escolhidos para ser os últimos a morrer e, tendo observado o resto dos companheiros despacharem-se uns aos outros, resolveram que render-se era, de fato, a única ação razoável a ser tomada. O general rebelde foi levado a Vespasiano e declarou, rastejando na própria bajulação, que ele iria um dia tornar-se imperador – atitude que mais tarde levaria à libertação de Josefo e ao tratamento favorável que recebeu quando a “profecia” realizou-se[10].
Em 68, o exército romano foi dividido para suprimir a Idumeia, a Pereia e praticamente toda a Judeia, mas o ano seguinte testemunhou poucos combates, uma vez que Vespasiano concentrou seus esforços na tentativa de assumir o trono. A sucessão de derrotas que os judeus sofreram desde sua vitória inicial em 66 tinha, a essa altura, desacreditado o governo essencialmente aristocrático formado no início na insurreição. Em vez disso, diversos outros líderes muito mais radicais haviam tomado o poder. No começo de 70, Jerusalém estava cindida entre três facções, duas baseadas no movimento zelote e a outra liderada por Simão bar Giora. Deixados pelos romanos, esses líderes vinham lutando entre si pelo poder. Depois de um derramamento de sangue considerável, a disputa no movimento zelote foi resolvida, e João de Giscala – que fora o maior rival de Josefo pelo controle da Galileia – foi reconhecido como seu líder. As hostilidades entre os zelotes e os homens de Simão continuaram, envolvendo expressiva perda de vidas da população em geral e a destruição de reservas de alimentos – o que seria sentido muitíssimo nos meses seguintes. Apenas a chegada dos romanos aos arredores da cidade trouxe finalmente uma união cheia de inveja e de suspeitas contra o inimigo comum.
Até a repentina elevação de seu pai ao poder supremo, a carreira de Tito tinha sido bem convencional. Ele serviu como tribuno senatorial numa legião na Germânia e na Britânia, talvez na época da rebelião de Boadiceia, em 60-61 d.C. Quando Vespasiano recebeu o comando da Judeia, Tito foi nomeado legado da Legio XV Apollinaris, unidade que vira alguma ação no final da campanha de Córbulo, mas não possuía a experiência da maior parte do restante do exército. Em 27, Tito era mais jovem que a maioria dos legados legionários, e sua escolha refletia a tradição, estabelecida havia muito tempo, de senadores confiando em membros da família para servir como seus subordinados diretos. Na Armênia, uma das legiões de Córbulo fora comandada por seu genro Viniciano, enquanto o filho de Cesênio Peto era um tribuno sob o comando do pai. Esse era outro exemplo de uma prática que não foi alterada pela criação do principado, apesar de possivelmente haver apenas favorecido comandantes que tinham permissão para escolher seus próprios legados. O jovem Tito era uma figura arrojada, atlética e bela – seu rosto tão redondo quanto o do pai, mas mais suave –, e, conforme o clichê familiar, tão hábil em cavalgar e manobrar suas armas quanto em comandar as tropas sob sua responsabilidade. Ele teve papel de destaque nas campanhas da Galileia e da Judeia, comandando assaltos bem-sucedidos a Jafa, Tarichaeae [Magdala] – onde liderou sua cavalaria através das ondas do mar da Galileia para invadir a cidade pelo seu lado desprotegido – e Gamala, além de persuadir Giscala a se render ou a enfrentar ataque semelhante[11].
Jerusalém era um alvo muito maior e mais difícil de dominar que qualquer uma das pequenas comunidades, e para essa tarefa Tito assumiu o comando de uma força de campo maior do que qualquer outra que seu pai jamais concentrara. Era baseada em quatro legiões: a V Macedonica, comandada por Sexto Vetuleno Cerealis; a X Fretensis, liderada por Aulo Lársio Lépido Sulpiciano; a XII Fulminata; e a XV Apollinaris, sob o comando de Marco Tício Frugi. Também presente e ocupando posição de proeminência no concilia do general estava Tibério Júlio Alexandre, judeu alexandrino que abandonara a prática formal da sua religião pela carreira a serviço do império. A identidade do comandante da XII Fulminata é desconhecida. Essa era a primeira vez que a legião veria serviço ativo após a desastrosa campanha de 66, e sua reputação continuava baixa, embora Josefo afirme que os soldados estavam especialmente ansiosos pela vingança. Duas inscrições dão a entender que um dos centuriões da unidade foi transferido para a X Fretensis com uma patente menor depois do desastre. Tal medida – seja forçada, seja voluntária, para se desassociar do estigma da derrota – não tem paralelo entre nossas evidências sobre as carreiras dos centuriões. Todas as legiões, principalmente a V, a X e a XV, tiveram suas forças reduzidas como resultado das baixas da campanha, e também porque enviaram destacamentos à Itália para derrotar Vitélio. A fim de compensar esse estado de coisas, o exército tinha recebido reforços de uma vexillatio de dois mil homens da III Cyrenaica e da XXII Deiotariana, estacionadas no Egito, e mais algumas tropas do exército sírio[12]. O contingente egípcio incluía poucos homens (ou nenhum) com experiência de combate, porém lutariam com bravura rara em pelo menos uma ocasião. Era comandado pelo prefeito Fronto e por Atério. Apoiando as legiões, havia oito alae de cavalaria auxiliar e vinte coortes de infantaria, juntamente com forças enviadas pelos reis clientes locais, muitas das quais foram treinadas e equipadas seguindo o modelo dos auxiliares regulares. No total, Tito deve ter tido uma força de combate entre trinta mil e quarenta mil homens sob seu comando, além de grande número de escravos do exército e de gente que seguia os acampamentos militares[13].
Era uma força formidável, que incluía uma boa proporção de soldados experientes, mas a missão que precisava realizar era extremamente difícil, pois Jerusalém era intensamente protegida tanto por fortificações feitas pelo homem como por defesas naturais. A cidade fica sobre duas colinas, a do leste marcadamente mais baixa do que a outra. Na época do Antigo Testamento, a cidade estivera confinada à colina mais baixa, que era ainda protegida por uma muralha e incluía o Grande Templo – conhecido como Segundo Templo, em contraste com o Primeiro, construído originalmente por Salomão. O Segundo Templo fora erigido com enormes proporções por Herodes, o Grande, que deixou sua marca em boa parte da cidade. Ele havia instalado uma grande torre, encimada por um torreão em cada um dos cantos, a nordeste do templo, batizando-a de Fortaleza Antônia em homenagem a seu patrono Marco Antônio. Mesmo sem esse reforço, o templo era basicamente um forte da rebelião contra Nero. Mais tarde, sob os asmoneus, a cidade se expandiu e ocupou a segunda e maior colina, uma região que foi mais tarde cercada ao norte por outra muralha, normalmente conhecida como segunda muralha (sendo a primeira ao redor da Cidade Velha). O palácio de Herodes e vários outros monumentos, notadamente as três grandes torres que receberam o nome da sua família (uma área conhecida hoje como “cidadela”), foram construídos na Cidade Nova. No século I d.C., Jerusalém continuou a se expandir, com muitas habitações construídas fora da segunda muralha, porém não foi antes de 66 que uma terceira muralha exterior foi levantada para defender esse subúrbio. Era a mais fraca das fortificações, pois as estruturas mais antigas eram obras de escala excepcional e de grande qualidade em termos de materiais utilizados e da habilidade dos construtores. A leste, a colina mais baixa era ainda defendida pelo vale de Cédron, em cujo lado oposto erguia-se o monte das Oliveiras. Um ataque realizado a partir dessa direção teria poucas possibilidades de sucesso, e isso nunca foi de fato tentado[14].
Nossas fontes antigas não fornecem nenhuma estatística confiável sobre a população da cidade em 70 d.C. e o número de defensores ativos. Jerusalém era sem dúvida uma comunidade excepcionalmente grande pelos padrões do mundo romano, mas um total de mais de um milhão de habitantes, de acordo Josefo, ou mesmo cerca de seiscentos mil, segundo Tácito, parece elevado demais. Josefo afirma que Simão comandou uma força de dez mil dos seus próprios guerrilheiros e cinco mil aliados idumeus, enquanto João possuía oito mil zelotes. Esses homens bem armados e altamente motivados iriam suportar a violência da luta durante o cerco, mas em várias ocasiões seu número foi aumentado por muitos dos cidadãos comuns. Os zelotes controlavam o Templo e uma parcela significativa da área ao redor, enquanto os homens de Simão dominavam a maior porção da Cidade Nova[15].
O exército romano aproximou-se em várias colunas, principalmente a partir do Oeste, a não ser a X Fretensis, que estivera estacionada em Jericó durante a maior parte do ano anterior e avançou a partir daquela direção. Embora não fosse provável que os romanos encontrassem uma grande força inimiga em campo aberto, o exército não avançou em ordem de batalha, contudo, mesmo assim, movia-se com cuidado e sob o firme controle de Tito e seus oficiais. A ordem de marcha da coluna principal era muito semelhante à adotada por Vespasiano em 67 d.C. A vanguarda consistia em tropas auxiliares e aliadas, a maioria em formação cerrada, mas provavelmente apoiada pela cavalaria e por grupos de arqueiros e infantaria ligeira, cuja missão era reconhecer locais potenciais para emboscada. Seguindo bem perto iam os oficiais e os homens encarregados de demarcar e iniciar a construção do acampamento noturno do exército em marcha. Então vinha o comboio de bagagens dos oficiais, seguido por Tito e seus ajudantes pessoais, protegidos pelos singulares – guarda de elite de infantaria e cavalaria escolhida entre as unidades auxiliares – e pelos 120 cavaleiros que cada legião mantinha. Depois, vinham os equipamentos de artilharia necessários para o cerco e, então, os comandantes das unidades auxiliares, cada qual com uma pequena escolta. Presumivelmente iam juntos em lugar de permanecer com suas unidades, de modo a facilitar que Tito transmitisse suas ordens. Atrás vinham as legiões, cada qual precedida por sua águia e outros estandartes, reunidas e escoltadas pelos trombeteiros e seguidas por seus comboios de bagagens e escravos. Finalmente, a retaguarda era formada pelo restante das tropas auxiliares e aliadas[16].
Conforme suas forças aproximavam-se da cidade, Tito, escoltado por seiscentos cavaleiros, muito possivelmente seus singulares, cavalgou à frente para fazer o reconhecimento. Ele não estava usando nem capacete nem armadura, pois não planejava lutar, e sim observar e julgar a disposição e o entusiasmo dos defensores. Num primeiro momento, o surgimento da patrulha romana não provocou resposta da cidade, até que, quando cavalgaram sem cautela ao longo das muralhas, um grupo de rebeldes lançou um ataque repentino. Por um momento o general romano foi separado, junto a um pequeno grupo de seguidores, do restante da sua força – os demais tinham fugido acreditando que ninguém ficara para trás –, vendo-se forçado a comandar uma carga para romper a linha inimiga. Tito escapou ileso, embora dois dos seus guarda-costas tenham sido mortos quando tentavam escapar. O reconhecimento feito em pessoa dava ao comandante informações úteis, mas era difícil não haver riscos envolvidos, conforme a morte de Marcelo demonstrara séculos antes[17].
No dia seguinte, as três legiões – as quais se aproximavam ao longo da mesma rota seguida quatro anos antes por Céstio Galo –, chegaram ao monte Scopus, uma elevação que dominava a cidade a cerca de 1,6 quilômetro ao norte de Jerusalém. A XII Fulminata e a XV Apollinaris montaram acampamento juntas nesse terreno elevado, com a V Macedonica a algumas centenas de metros de distância, na retaguarda. Presumivelmente, os auxiliares e as tropas aliadas foram distribuídos entre esses acampamentos. Conforme planejado, a X Fretensis também chegou ao lado mais distante da cidade e começou a construir um acampamento no monte das Oliveiras, quando os soldados dispersaram-se nos grupos de trabalho. Decidindo unir-se contra o inimigo comum, os judeus lançaram um ataque combinado a partir da muralha oriental, correndo em massa através do vale de Cédron e atacando a legião isolada. A surpresa e o entusiasmo do ataque abateram os legionários, que pareciam ter certeza de que os rebeldes não eram capazes de uma ação agressiva. Muitos entraram em pânico e fugiram, enquanto seus oficiais tentavam formar uma linha de combate eficiente para deter os rebeldes, que subiram a colina e capturaram o acampamento romano. A facilidade com que tomaram tal posição naturalmente defendida testemunha a falta de precaução por parte dos romanos. Tito e os seus singulares correram até o local, mas levou algum tempo para que mais reforços chegassem e tomassem parte na luta.
Reunindo alguns dos soldados em fuga e fazendo-os entrar em formação para voltar e atacar o inimigo, Tito apoiou o seu avanço atacando o flanco dos rebeldes com a cavalaria. Durante toda a rebelião, os combatentes judeus, que nunca conseguiram reunir uma cavalaria com número significativo, mostravam-se especialmente vulneráveis aos rápidos e bem disciplinados cavaleiros romanos. Conforme o contra-ataque dos romanos ganhava ímpeto, os judeus foram repelidos, voltando pelo mesmo caminho de onde vieram. Tendo cruzado o Cédron, conseguiram agrupar-se na outra margem e detiveram seus perseguidores. Durante algum tempo, os dois lados lançaram projéteis esporádicos e iniciaram algumas cargas. Por volta da hora do almoço, Tito concluiu que a ameaça terminara e ordenou à maior parte da legião que voltasse à tarefa de construir o acampamento, deixando uma força de cobertura de coortes auxiliares e de outros homens trazidos como reforços. Os rebeldes tinham uma sentinela nas muralhas, que observava os romanos e sinalizou essa retirada parcial com uma bandeira. Isso acionou um novo ataque dos rebeldes, que saíram de um dos portões e
correram com tanto ímpeto que sua velocidade era comparável à das feras mais selvagens. Na verdade, ninguém na linha oposta esperou pela carga, mas, como se atingidos [por um projétil] de uma máquina, romperam suas fileiras, voltaram-se e fugiram para um dos lados da montanha, deixando Tito com alguns poucos seguidores a meio caminho da encosta.[18]
Galopando ao redor da colina, o comandante romano liderou todos os homens que pôde encontrar numa série de ataques desesperados, combatendo à sua frente. Depois de algum tempo, algumas seções da legião interromperam suas tarefas para unirem-se à luta, recebendo reforços de algumas outras tropas. Tito foi capaz de interromper o ataque inimigo e reunir sua força mais uma vez, permitindo, em seguida, que os legionários retornassem às suas tarefas e completassem o acampamento[19].
Nos dias seguintes, um grupo de soldados, ludibriado por rebeldes que fingiam se render, aproximou-se das muralhas e ficou ao alcance de projéteis, sofrendo pesadas baixas antes de fugir. Tito fez um discurso furioso aos sobreviventes, condenando sua indisciplina ao se aproximar das muralhas sem ordens expressas. O jovem comandante anunciou que pretendia executá-los, de acordo com as tradições mais rígidas de disciplina militar. Ouvindo isso, uma grande multidão de camaradas dos soldados condenados aproximou-se dele, implorando que perdoasse os homens e declarando que garantiriam que aquilo não voltaria a acontecer. Foi uma cena teatral semelhante a alguns dos confrontos de Júlio César com suas tropas, e típica do modo como os senadores romanos interagiam com os soldados e com a multidão no Fórum. Tito cedeu aos seus pedidos, sabendo que não era prático executar tantos homens de uma vez e também porque a importância do que queria enfatizar sobre a necessidade de obediência fora entendida.
Ele ordenara que três legiões saíssem do monte Scopus e acampassem mais perto da cidade, no lado oeste. Como os rebeldes tinham demonstrado vontade de atacar qualquer destacamento que parecesse vulnerável, os romanos colocaram-se de frente para a cidade a fim de cobrir os movimentos do comboio de equipamento e dos seguidores do acampamento. Tito posicionou sua infantaria numa formação de três fileiras, apoiadas por uma quarta de arqueiros, por sua vez secundada de perto por três fileiras de cavalaria. Uma vez mais, as três legiões foram divididas em dois acampamentos, Tito com a XII Fulminata e a XV Apollinaris em posição a menos de quinhentos metros das muralhas, enquanto a V Macedonica estava um pouco além, ao sul, de frente para a Torre Hípico, um dos três grandes torreões construídos por Herodes[20].
Antes de lançar o ataque à terceira muralha exterior, Tito foi novamente com sua cavalaria de guarda-costas examinar as fortificações e escolher o trecho mais adequado para rompê-la. A abordagem mais fácil era perto do túmulo de um sumo sacerdote, cuja localização não conhecemos com precisão, embora pareça ter sido perto do atual Portão de Jafa. Foram dadas ordens para os legionários prepararem o terreno perto das muralhas, a fim de que fossem iniciadas as obras de cerco, e para começarem a obter a madeira necessária para as obras. Os defensores tentaram atingir os trabalhadores com projéteis disparados de escorpiões e de uma ballistae maior, que tinham capturado nas fortalezas da cidade ou durante a derrota de Céstio Galo, em 66 d.C. Instruídos por desertores romanos, seus disparos eram, num primeiro momento, muito imprecisos, mas a pontaria melhorou gradualmente conforme o cerco prosseguia. As legiões usavam sua artilharia – uma fonte posterior afirma que cada unidade tinha sessenta escorpiões e dez grandes ballistae que arremessavam pedras, mas é provável que os números variassem consideravelmente dependendo da natureza da operação – num esforço de suprimir os defensores na muralha. Tal era a função principal da artilharia durante um cerco: o atacante tentava impossibilitar que os defensores ficassem em posições das quais pudessem impedir as obras de cerco, enquanto os atacados buscavam justamente o contrário. As fortificações da escala das muralhas e torres de Jerusalém não podiam ser danificadas pelos projéteis da artilharia antiga.
Embora os romanos sofressem baixas durante a troca de mísseis e pedras disparados das máquinas, no final a ação por parte dos defensores não foi suficiente para impedir o progresso dos grupos de trabalho de modo significativo. O grande número e o tamanho das suas máquinas – os da X Fretensis eram especialmente renomados –, além da qualidade das suas equipes, permitiam que vencessem o duelo da artilharia, apesar de essa disputa não pender de forma alguma para nenhum dos lados. Josefo nos diz que, no começo, as pedras coloridas das catapultas – que podem ter sido cortadas e talhadas no local – eram fáceis de serem vistas no ar pelos defensores. As sentinelas na muralha gritavam: “Bebê a caminho!”, a tempo de os defensores se agacharem e se protegerem. Quando souberam disso, os romanos começaram a pintar sua munição com uma cor muito mais escura, tornando os projéteis bem menos visíveis e aumentando de maneira expressiva os danos causados. A força de tais projéteis era incrível. Josefo registrou ter visto a cabeça de um homem voar até quinhentos metros de seu corpo ao receber o impacto de uma pedra de catapulta durante o cerco de Jotapata. Ainda mais terrível, ele descreve o projétil que acertou uma mulher grávida, matando-a instantaneamente e fazendo-a expelir o bebê natimorto[21].
Como as muralhas não podiam ser demolidas pela artilharia, o método principal para abrir uma brecha era o uso de um grande aríete, cuja ponta de ferro era normalmente moldada na forma da cabeça de um carneiro. Os esforços dos romanos concentraram-se principalmente em construir três rampas que permitissem que essas máquinas se aproximassem da muralha. Lançando uma linha com um peso de chumbo à ponta para calcular a distância até os muros da cidade – o único meio de os engenheiros não ficarem expostos aos projéteis do inimigo – a fim de confirmar que as rampas estavam prontas, as legiões levaram as imensas máquinas. Tito ordenara a construção das posições de artilharia para cobrir as rampas e evitar que os defensores prejudicassem o trabalho dos aríetes. Em Jotapata, um gigante galileu arremessou uma pedra que quebrou a cabeça de ferro de um aríete. Em outra ocasião, os defensores baixaram sacos cheios de palha para amortecer os golpes e reduzir a força das máquinas. A convenção romana determinava que, até o primeiro golpe do aríete na muralha de uma cidade, seus ocupantes ainda podiam render-se e esperar termos razoáveis. Segundo nos conta Josefo, um grande lamento do povo de Jerusalém ecoou quando o barulho do primeiro golpe de aríete soou através das ruas. Outra trégua tensa foi firmada entre Simão e João, o primeiro permitindo que os zelotes passassem através dos setores dominados pelos seus homens a fim de chegar à seção ameaçada da muralha. Do baluarte, começaram a arremessar projéteis incendiários ou a atirar em qualquer romano visível. Alguns grupos saíam rapidamente das muralhas e lançavam tochas nos aríetes e nas construções de cerco. Apesar da audácia dos atacantes, todos foram repelidos por uma combinação de arqueiros e artilharia apoiados por cargas da cavalaria enviada por Tito, que dirigia a batalha[22].
Embora os romanos tenham conseguido defender suas obras, os aríetes causaram, inicialmente, pouco dano às muralhas, com exceção do operado pela XV Apollinaris, que conseguiu minar o canto de uma torre. Conforme o dia passava, muitas das unidades romanas tiveram permissão de retornar ao acampamento, já que se tinha a impressão de que a ameaça principal havia sido contida. Não obstante, uma vez mais eles subestimaram a determinação dos seus oponentes, que lançaram um segundo ataque, dessa vez de um portão escondido próximo à Torre Hípico. Foi nesse momento que a resistência acirrada da vexillatio das legiões egípcias conquistou fama, detendo um avanço que parecia poder derrotar os inimigos. Dessa vez, Tito comandou sua cavalaria numa carga contra os rebeldes, matando doze deles com as próprias mãos. Um único prisioneiro foi feito durante o combate, e o comandante romano ordenou que ele fosse crucificado à vista das muralhas como um aviso sobre o destino que aguardava aqueles que combatiam Roma. Apesar disso, o fervor dos rebeldes surpreendera os homens de Tito e criara uma atmosfera de nervosismo. Quando uma das torres de cerco caiu durante a noite, o pânico se alastrou, até que oficiais fossem enviados para descobrir a causa da confusão. Havia três dessas torres, uma para cada rampa, e seu propósito era fornecer uma plataforma sobre a qual os arqueiros e os escorpiões pudessem disparar contra os defensores que estavam nas ameias da muralha. Aos poucos, os defensores foram perdendo a capacidade de combater a partir das suas fortificações, ao mesmo tempo em que o trabalho dos aríetes começava a surtir efeito, e um deles finalmente conseguiu abrir uma brecha na muralha. A maior parte dos rebeldes decidiu que aquela posição estava perdida e retirou-se para a segunda muralha. Quando os invasores romanos entraram pela brecha, os poucos homens que haviam ficado fugiram. A muralha externa da cidade caíra após quinze dias de cerco. Tito ordenou que a maior parte da muralha fosse demolida, juntamente com a maior parte dos edifícios, dos jardins e de outras estruturas nessa seção da cidade. As legiões – exceto a X Fretensis, que permaneceu no monte das Oliveiras – ocuparam a área tomada e acamparam[23].
Apesar de os defensores terem abandonado a terceira muralha, a defesa que empreenderam na segunda foi tão determinada e agressiva como a dos combates iniciais. Ataques contínuos foram realizados contra os soldados romanos que trabalhavam na preparação do assalto, o que resultou em muitas escaramuças sangrentas. Josefo nos conta que os rebeldes ainda confiavam na sua capacidade de defender a cidade e estavam ansiosos por conquistar os favores dos seus líderes. Em contraste, para os romanos,
os incentivos à bravura eram o hábito da vitória e a inexperiência da derrota, suas campanhas contínuas e treinamento perpétuo, a magnitude do seu império e, acima de tudo, Tito sempre em todos os lugares ao lado de todos eles. Porque, quando César estava ali compartilhando as dificuldades, a covardia era algo monstruoso, enquanto o homem que lutasse com bravura tinha como testemunha do seu valor alguém que também iria recompensá-lo.[24]
Enquanto isso, um cavaleiro de uma das alae auxiliares fez um ataque solitário contra um denso bloco de inimigos postados do lado de fora das muralhas, matando três deles antes de galopar de volta intacto. Havia uma antiga tradição no exército romano, datada pelo menos dos dias de Políbio, de recompensar tais atos de bravata. Nesse caso, Tito elogiou o homem, um certo Longino, ou Longuinho – o nome era comum, em especial entre os auxiliares –, mas também alertou seus homens para que não fossem tão imprudentes na busca da honra.
A abordagem da segunda muralha foi mais fácil do que a da primeira, e em cinco dias um dos aríetes abriu brecha numa das torres. Tito levou seus singulares e mil legionários até a cidade e, no primeiro momento, encontrou pouca oposição. Contudo, não ordenou que os grupos de trabalho aumentassem a brecha na muralha. De acordo com Josefo, isso foi por esperar que Jerusalém ainda se rendesse e para evitar destruição desnecessária, mas essa suposição não parece provável –, e os soldados invasores tiveram dificuldades em encontrar o caminho através do labirinto de ruas estreitas. Os rebeldes lançaram um contra-ataque; seu número e o conhecimento do local lhes deram grande vantagem. Os romanos sentiram intensamente o golpe e logo foram forçados a se retirar, porém a estreita brecha na muralha os impediu de deixar a cidade depressa, e tampouco deixou que os reforços entrassem. Uma ação desesperada de retaguarda desenvolveu-se, enquanto Tito e uma força de arqueiros auxiliares detinha os rebeldes cobrindo a retirada do restante dos homens. Nessa ocasião, o comandante romano teria demonstrado tanta habilidade com o arco como antes demonstrara com a lança e a espada, abatendo doze homens com o mesmo número de flechas[25].
Encorajados por terem repelido o inimigo, os defensores continuaram controlando a posição com determinação renovada durante mais três dias, até que um segundo assalto romano reverteu o panorama no quarto dia. Dessa vez, as legiões receberam ordens para demolir a maior parte das muralhas e dos prédios naquela área para lhes dar mais espaço de movimento. A resistência foi temporária, mas é notável que alguns dias tenham se passado antes de os romanos conseguirem promover o segundo ataque. Assaltar uma fortificação defendida pelo inimigo exigia demais da coragem dos soldados que tomavam parte no ataque, provavelmente ainda mais do que nas batalhas. Na tentativa de dar aos soldados mais tempo para se recuperar, e para animá-los, Tito ordenou a suspensão das obras principais do cerco, enquanto o exército realizava uma parada formal para receber seu pagamento. O exército era pago normalmente três vezes por ano, no primeiro dia de janeiro, maio e setembro. Como o desfile em Jerusalém aconteceu no começo de junho, isso significa que o pagamento foi atrasado em pelo menos um mês.
Era uma ocasião de grande cerimônia, com as unidades desfilando cada qual por sua vez durante quatro dias para receber o pagamento que lhes era devido. Muito tempo e trabalho eram devotados a polir armaduras e armas, uma vez que os soldados e as unidades competiam para mostrar-se as melhores. O resultado era uma cena de grande esplendor, em que as fileiras passavam com os escudos pintados de cores vivas, pela primeira vez livres das coberturas protetoras de couro à vista da cidade. Para os romanos, era um lembrete do orgulho que tinham de si e de suas unidades, bem como das recompensas tangíveis do serviço militar. Para os rebeldes, era uma demonstração do poder e da força esmagadora do exército romano. Embora não tenha tido o efeito de provocar uma rendição repentina, esse retorno à rotina formal e ritual de tempos de paz ajudou a preparar as tropas para as tarefas ainda maiores que as aguardavam[26].
A fase seguinte do cerco envolveu a construção de rampas de assalto contra a Fortaleza Antônia e um trecho da primeira muralha. A V Macedonica trabalhou na construção da primeira rampa contra a Fortaleza Antônia, enquanto a XII Fulminata construiu outra a cerca de dez metros de distância. A X Fretensis e a XV Apollinaris construíram mais duas rampas a cerca de quinze metros da muralha, provavelmente perto do atual Portão de Jafa (é possível que cada par de legiões estivesse, de fato, trabalhando em cada um dos lados de uma única rampa, mas essa teoria não pôde ser provada nem afeta a narrativa básica do cerco, no caso de ter havido duas rampas em vez de quatro)[27]. A altura das muralhas, em especial da Fortaleza Antônia, combinada com a crescente precisão da artilharia rebelde, tornou esse trabalho extremamente difícil. Além disso, os defensores continuamente atacavam as obras com tropas, de modo que um grande número de soldados tinha de ser disponibilizado para defender os trabalhadores. Apesar disso, os romanos perseveraram e completaram as rampas após dezessete dias de trabalho pesado. A necessidade de obter madeira para a construção já tinha desnudado as colinas numa área de vários quilômetros.
O grande senso de realização obtido após o término das obras foi tremendamente abalado quando as rampas foram destruídas antes de os aríetes serem colocados em posição. Enquanto os romanos trabalhavam na sua construção, os homens de João de Giscala escavaram túneis a partir da Fortaleza Antônia até as rampas. O telhado do túnel era sustentado por escoras de madeira recobertas com betume e cercadas de material combustível. Finalmente, ateou-se fogo a elas, e as chamas consumiram as escoras, provocando o desmoronamento do túnel e destruindo as obras dos romanos. Aquilo que não foi demolido incendiou-se conforme o fogo se alastrou rapidamente na madeira da rampa. Dois dias depois, Simão igualou o sucesso do seu rival, quando seus homens saíram das muralhas num ataque repentino e incendiaram as rampas em frente à sua seção na primeira muralha. Os romanos ficaram confusos com esse ataque, de modo que os rebeldes chegaram perto de invadir parte do acampamento e só foram repelidos por um piquete estacionado em frente à rampa, pois seus membros tinham jurado não abandonar sua posição. Tito, que estava na Fortaleza Antônia inspecionando o estrago feito à construção pelo inimigo, chegou à frente dos seus singulares e atacou o flanco do inimigo. Uma vez mais, a infantaria dos judeus mostrou-se vulnerável à cavalaria bem-ordenada e sofreu pesadas baixas ao retornar à cidade. Isso não diminuiu a extensão de sua vitória ao destruir o resultado de tanto trabalho dos romanos[28].
O moral entre os soldados que promoviam o cerco caiu de maneira alarmante depois desses reveses. Dion nos diz que alguns soldados ficaram tão desesperados e desanimados de tomar a cidade, que desertaram e juntaram-se aos rebeldes. Tito reuniu seus oficiais mais graduados para um consilium a fim de discutir o problema. Alguns sugeriram um ataque imediato usando todo o exército, na esperança de esmagar os defensores e invadir a cidade, mas isso era arriscado e poderia resultar num grande fracasso, que abalaria irrevogavelmente o moral dos homens. Outros sugeriram que era melhor cercar Jerusalém com uma muralha e deixar que a fome submetesse os inimigos, apesar de isso demandar inevitavelmente um tempo maior e de estar longe de ser o tipo de vitória dramática de que o pai de Tito precisava para cimentar sua posição à frente do império. Tito apoiou aqueles com opinião mais moderada, resolvendo que deveriam continuar o ataque e começar a construir novas rampas, apesar de isso exigir quantidades de madeira que poderiam ser difíceis de encontrar e que sem dúvida não seriam rapidamente substituídas se fossem destruídas pelo inimigo.
Antes de o exército retomar esse trabalho, ele ordenou também o levantamento de uma linha de circunvalação ao redor da cidade. Cada legião e subunidade do exército foi encarregada de construir um trecho da rampa, provavelmente de pedra, como no pequeno circuito ainda visível em Massada. Tal era o método romano normal de realizar qualquer projeto maior, empregado, por exemplo, na construção da Muralha de Adriano, onde foram descobertas muitas inscrições registrando que o término de determinado trecho da muralha fora realizado por uma centúria específica de uma legião. Essa divisão do trabalho fazia sentido prático em termos administrativos, mas também tinha a intenção de explorar o orgulho que os soldados nutriam pelas suas unidades, estimulando-os a competir para terminar suas tarefas antes dos demais. Tito visitava os grupos de trabalho continuamente, estimulando as tropas a acreditar que seu comandante notava tudo o que faziam e que iria recompensar sua capacidade com a mesma rapidez com que punia a indolência. Em três dias, uma linha de cerca de oito quilômetros de extensão, que incluía quinze fortes, foi construída completamente ao redor da cidade. A cada noite Tito ia inspecionar as obras em pessoa, visitando as sentinelas e postos avançados em torno da muralha. Na segunda inspeção, Tibério Alexandre assumiu essa tarefa e, na terceira, um dos legados legionários foi selecionado por sorteio para a mesma missão[29].
Tito dera aos seus homens um trabalho que, embora envolvesse considerável esforço, podia ser, e foi, realizado rapidamente. A satisfação sentida quando da sua conclusão ajudou a aumentar o moral entre os soldados. Aos defensores, a muralha dos romanos enviava a clara mensagem de que não poderia haver escapatória, tornando muito mais perigosa a situação para os pequenos grupos que saíam da cidade em busca de alimentos. Os suprimentos de comida em Jerusalém estavam terminando, especialmente para a população comum, incapaz de evitar que os rebeldes se apoderassem de tudo o que podiam encontrar. Não obstante, qualquer tentativa de deixar a cidade e se render aos romanos implicava execução imediata. Tampouco era seguro aproximar-se do acampamento romano. A certa altura do cerco, alguns civis que se renderam foram vistos recolhendo moedas de ouro das suas próprias fezes, as quais tinham engolido para evitar que fossem confiscadas por soldados de ambos os lados. Espalhou-se o rumor de que os desertores estavam cheios de ouro, o que levou a um terrível massacre, quando seguidores do acampamento, auxiliares e alguns legionários agarravam qualquer prisioneiro que encontravam e abriam seu estômago em busca de riquezas. Horrorizado, até porque tais atrocidades apenas impediriam que outros desertassem para o acampamento romano no futuro, Tito discursou às suas tropas, prometendo executar qualquer um que fosse responsável por crimes desse tipo, embora os culpados não tivessem sido descobertos. Mesmo assim, o sonho do ouro escondido levou a mais instâncias de tais assassínios brutais sempre que o oficial responsável não estava à vista[30].
Depois de completar a linha de circunvalação, os romanos começaram a construir novas rampas de frente para a Fortaleza Antônia. Havia pouco material e os homens precisavam ser enviados a distâncias de até vinte quilômetros para encontrar e derrubar árvores. Em 21 dias as novas rampas de assalto ficaram prontas, apesar de uma vez mais o trabalho ter sido dificultado pela atividade contínua dos defensores. Mesmo assim, quando João levou seus homens para incendiar as obras, encontrou as tropas romanas guardando as posições, apoiadas por arqueiros e escorpiões. O ataque foi mal organizado e não cumpriu seu objetivo. Então, os aríetes foram trazidos para demolir as muralhas da Antônia, enquanto uma barragem de projéteis lançados pela artilharia foi dirigida aos baluartes e tentava atingir os defensores. Alguns legionários entraram na formação testudo, com seus escudos criando uma proteção sobre a cabeça, e puseram-se a trabalhar tentando tirar pedras da muralha com pés de cabra. Pouco foi realizado após um dia de esforço concentrado, mas durante a noite tudo mudou, quando a maior parte da Fortaleza Antônia, minada pelos túneis anteriormente cavados pelos homens de João, ruiu de repente. Uma grande brecha se abriu na fortaleza, para espanto dos romanos. Os zelotes tinham suspeitado dessa possibilidade e construído às pressas uma nova muralha por trás da primeira, cortando o caminho que levava direto até o pátio do Templo. Contudo, as pedras da torre demolida empilharam-se sobre essa nova muralha, tornando relativamente fácil escalá-la[31].
As tropas romanas demonstraram relutância surpreendente em assaltar a fortificação improvisada, apesar do discurso encorajador de Tito, prometendo recompensar os primeiros homens que chegassem ao parapeito. Apenas uma dúzia de auxiliares respondeu, liderados por um sírio chamado Sabino, cuja compleição fraca e pele escura não se conformava de modo algum com a imagem ideal do bravo soldado. Chamando a atenção do general que os observava, Sabino comandou a carga rampa acima, apenas para ser morto juntamente com três dos seus camaradas. Os outros soldados foram feridos, porém conseguiram voltar às linhas romanas. O restante das tropas não seguiu o exemplo desses homens corajosos. No entanto, duas noites depois, um grupo de vinte legionários que estavam de serviço num posto avançado, aliado a um porta-estandarte (signifer), um trombeteiro e dois cavaleiros auxiliares, subiu por sua própria inciativa ao alto do baluarte inimigo. Tendo matado ou expulsado as sentinelas judaicas, eles ordenaram que o músico soasse a trombeta.
Até onde podemos dizer, essa iniciativa não fora passada pelos comandantes, mas era simplesmente uma tentativa dos soldados de conquistar fama e obter recompensa. Mesmo assim, Tito rapidamente descobriu o que estava acontecendo e levou um corpo das tropas para garantir a posição. Explorando esse êxito, enviou homens ao pátio do Templo, onde um furioso combate se desenvolveu, no qual os rebeldes tentaram defender aquele que era o mais sagrado dos locais. Na escuridão, havia pouco que os líderes pudessem fazer para organizar a luta, porém a refrega continuou até depois da metade do dia seguinte, quando os romanos foram finalmente repelidos. Durante o combate, um centurião da Bitínia chamado Juliano fez um ataque solitário ao pátio do Templo, repelindo o inimigo, porém sem conseguir persuadir os soldados romanos a segui-lo. No final, suas sandálias – as caligae, nome do qual fora tirado o apelido de Calígula – escorregaram nas pedras lisas, e ele foi cercado por um grupo de rebeldes e feito em pedaços. Tais histórias de morte heroica, semelhantes às histórias que César contava com tanta frequência para amenizar o impacto dos seus reveses, são mais que prováveis e foram incluídas nos Comentários de Tito, os quais Josefo afirma ter consultado[32].
O assalto seguinte ao Templo foi mais bem preparado que o primeiro, e o general ordenou que demolissem o restante da Fortaleza Antônia que permanecia de pé, criando uma larga rampa até o pátio do Templo. Apenas um único torreão foi deixado intacto como posto de observação. O general romano também enviou Josefo com uma mensagem a João de Giscala, desafiando-o formalmente a sair e travar batalha. O gesto tinha em parte a intenção de enfatizar ao grosso da população da cidade que ela apenas sofreria com as ações dos seus líderes radicais, mas também pode ter visado a encorajar suas tropas, dando a entender que o inimigo temia lutar contra elas de igual para igual. As deserções, sobretudo entre os membros da aristocracia, estavam agora ocorrendo com mais frequência, sempre que esses homens podiam despistar os guardas colocados pelos guerreiros rebeldes. Alguns dias depois, Tito formou uma força especial de assalto, a qual colocou sob o comando do legado Cerealis. Era constituída por unidades temporárias de mil homens, comandados por um tribuno e escolhidos entre os trinta legionários mais corajosos de cada centúria. Assim, esses homens foram tidos como especiais, na esperança de que seu orgulho os motivasse a lutar ainda melhor para justificar sua escolha. O ataque deveria acontecer à noite, sendo observado por Tito a partir do torreão da Fortaleza Antônia que não fora demolido. Josefo afirma que o jovem comandante precisou ser impedido por seus oficiais de liderar a invasão em pessoa como fizera em cercos anteriores. Certamente, cada comandante enfrentava a difícil escolha entre permanecer na retaguarda, onde não veriam o que estava acontecendo, e arriscar a morte ou a captura indo à frente com seus soldados. No primeiro, e malsucedido assalto a Gamala, em 67 d.C., Vespasiano ficara frustrado por não ter podido dirigir o ataque e nem entrar na cidade com seus singulares. Quando os romanos foram repelidos pelo contra-ataque dos rebeldes, Vespasiano foi separado das tropas e sofreu um ferimento no pé, antes que ele e seus guardas conseguissem abrir caminho e fugir. Em Jerusalém, Tito enfatizou de novo aos soldados que o motivo principal de ficar à retaguarda era poder observar melhor sua conduta individual.
O ataque pegou os defensores de surpresa, mas eles rapidamente se organizaram e foram em número cada vez maior para o pátio do Templo a fim de conter o inimigo. Novamente a batalha noturna continuou até o dia seguinte, sem que qualquer um dos lados obtivesse uma vantagem marcante. A maior parte do pátio, exceto por um canto estreito, estava nas mãos dos judeus. Em sete dias, o caminho sobre as ruínas da Fortaleza Antônia estava pronto, possibilitando aos romanos enviarem tropas com mais facilidade para apoiar seus ataques. Com essa tarefa completada, começaram as obras nas rampas para permitir que os aríetes fossem levados até a primeira muralha, embora a madeira necessária para as obras tivesse agora de ser trazida de mais de vinte quilômetros de distância. Por algum tempo houve um intervalo entre os maiores ataques, mas todos os dias havia escaramuças. Tito ordenou a execução de um cavaleiro de um grupo que deixara seus cavalos livres enquanto participava de uma expedição para obter forragem; com isso, eles haviam sido roubados pelo inimigo. A falta de víveres na cidade atingia proporções dramáticas como resultado do bloqueio, e João e Simão uniram forças para lançar um ataque ao acampamento da X Fretensis no monte das Oliveiras, esperando romper a linha romana naquele ponto. Foram repelidos depois de uma luta árdua e perseguidos pela cavalaria romana ao tentar fugir através do vale. Um cavaleiro auxiliar, membro das tropas de cavalaria com menor pagamento e prestígio que formavam parte de certas coortes predominantemente de infantaria, galopou no meio dos inimigos em fuga e pegou um deles pelo tornozelo. A sela de quatro pontas usada pelos romanos conferia ao cavaleiro muita firmeza, mas mesmo assim esse foi um feito marcante de força, bem como uma mostra de desprezo pelo inimigo. O homem ganhou seu prêmio e o depositou diante de Tito. O soldado foi elogiado e seu prisioneiro, crucificado às vistas das muralhas. Em várias ocasiões durante o cerco, os legionários romanos divertiam-se ao pregar suas vítimas nas cruzes em diversas posturas grotescas[33].
O combate acirrado continuava no pátio do Templo, com os dois lados colocando luzes nos pórticos para fortalecer suas posições nos contra-ataques. Como antes, os defensores faziam de tudo para atingir os homens que trabalhavam nas rampas do cerco. Durante esse período, Josefo conta como um pequeno homem chamado Jônatas desafiou qualquer romano para um combate singular. Um cavaleiro – obviamente a pé, numa indicação de que os homens a cavalo deviam realizar tarefas desmontados nas perigosas operações de cerco – aproximou-se e foi morto ao escorregar. O triunfo de Jônatas foi breve, pois ele foi morto pela flecha disparada por um centurião romano chamado Prisco. Os defensores tiveram mais sucesso ao abandonar uma seção do pórtico que já haviam preparado para incendiar, atraindo assim alguns legionários impetuosos para uma armadilha onde ou seriam mortos pelas chamas ou abatidos e capturados pelo inimigo. Alguns dias mais tarde, foi feita uma tentativa de capturar o restante do Templo escalando as muralhas. Escadas foram instaladas contra os pórticos e os invasores subiram até o alto, mas não conseguiram fazer avanço algum. Perto da frente, havia diversos porta-estandartes que pouco podiam fazer para se defender enquanto carregavam sua pesada carga. Depois de uma luta renhida em torno desses símbolos de orgulho da unidade, todos os romanos que tinham chegado ao alto do pórtico foram mortos e os estandartes, capturados. Nos dias subsequentes, outros pórticos exteriores foram incendiados pelos romanos, mas o enorme tamanho e a qualidade do trabalho de alvenaria impediram que os aríetes produzissem grande efeito[34].
De acordo com Josefo, Tito reuniu um consilium, no qual deixou claro que ainda esperava evitar a destruição do Templo. Para o historiador judeu, era importante que a culpa dessa terrível catástrofe não fosse imputada ao seu herói, e sim aos líderes radicais rebeldes. A luta continuou no que restou do pátio do Templo, assim Tito enviou a cavalaria da sua guarda pessoal para reforçar a linha de infantaria quando esta parecia prestes a ceder. Nessa ocasião, ele estava uma vez mais observando o combate de um ponto nas ruínas da Fortaleza Antônia. Gradualmente, os romanos tomavam cada vez mais terreno do Templo, até que os rebeldes foram rechaçados para o pátio interno. Na confusa luta que prosseguiu, eles foram retirados dessa posição e a parte mais sagrada do Templo acabou incendiada. Independente de quem tenha ateado fogo, logo as chamas saíram de controle, e muitos dos soldados romanos relutaram em apagá-lo. Tito tentou organizar grupos para combater o incêndio, ordenando a um centurião e a alguns dos seus homens que usassem a força contra quaisquer homens que desobedecessem ao comando, porém não conseguiu trazer ordem ao caos. Os soldados estavam ansiosos por saquear a fabulosa riqueza que se dizia haver naquele lugar, bem como desejavam destruir o local mais sagrado para um inimigo que os tinha combatido com tanta determinação. Na confusão da conquista final do Templo, a maioria dos prédios foi destruída pelo fogo e grande parte dos civis que se abrigavam nas proximidades foram massacrados. Era o final de agosto[35].
Mais tarde, quando parte da ordem foi reestabelecida, o exército romano celebrou de modo mais formal, desfilando os estandartes no pátio do Templo e oferecendo um sacrifício. A cidade velha foi logo conquistada e saqueada. Josefo menciona que o espólio tomado pelas tropas romanas foi de tal monta que o valor do ouro caiu pela metade em toda a Síria, quando os homens retornaram às suas guarnições. Às vezes, os saqueadores encontravam rebeldes realizando a mesma tarefa. Um legionário membro da cavalaria – cada legião desse período incluía uma pequena força de 120 homens a cavalo – foi capturado, mas conseguiu fugir antes de ser executado. Em mais uma ação teatral, Tito cedeu aos apelos de seus soldados para não matar o homem por ter sido pego, mas mesmo assim o fez sofrer a humilhação de ser expulso da sua legião. Houve ainda reveses menores, porém os defensores perderam o ânimo após a queda do Templo. João de Giscala e Simão bar Giora tinham tentado entabular negociações, mas essa iniciativa, tão tardia, foi rejeitada. Passaram dezoito dias construindo rampas contra as muralhas da cidade alta, mas os rebeldes estavam agora desmoralizados e sofrendo em demasia devido à falta de víveres, de modo que sua resistência foi débil. Antes mesmo de o grupo de invasores romanos atingir a brecha aberta pelos aríetes, os defensores fugiram e se dispersaram. O cerco de Jerusalém estava no fim. João de Giscala rendeu-se e foi condenado à prisão perpétua. Simão seria mantido como o prisioneiro mais importante no triunfo de Tito. Chegava o final de setembro[36].
Depois do cerco, Tito promoveu um desfile formal para agradecer a seus homens e recompensá-los.
Um espaçoso tribunal foi construído para ele no centro do seu antigo acampamento; aqui ele se colocou com os seus oficiais principais, de modo que pudesse ser ouvido por todo o exército. Ele expressou sua profunda gratidão a eles pela lealdade que tinham continuamente demonstrado...
E ordenou aos oficiais indicados que lessem o nome de todos os que haviam realizado feitos brilhantes durante a guerra. Chamando cada um pelo nome, ele os aplaudiu quando se aproximavam, tão exultante com seus atos como se fossem dele próprio. Então os coroou com coroas de ouro, presenteou-os com colares de ouro, pequenas lanças douradas e estandartes feitos de prata, e promoveu cada um a uma patente mais elevada; além disso, designou a eles parte dos espólios de ouro e prata e outros objetos do butim em abundância. Quando todos tinham sido recompensados conforme julgou merecido, ele invocou bênçãos sobre todo o exército, então desceu em meio a muitas aclamações e foi oferecer sacrifícios em agradecimento pela sua vitória. Uma grande quantidade de touros foi trazida até os altares, e ele sacrificou-os e distribuiu sua carne às tropas para que fizessem um banquete.[37]
Foi um ritual que confirmou o papel do comandante como juiz do comportamento dos seus homens, terminando com três dias de festejos. Depois disso, a Legio X Fretensis tornou-se a guarnição da cidade capturada. A XII Fulminata não havia ainda sido totalmente perdoada por suas derrotas iniciais, uma vez que não recebeu permissão para retornar à sua antiga base em Rafanaeae, na Síria, mas foi transferida para uma posição muito menos confortável na fronteira entre a Capadócia e a Armênia. Após várias celebrações e cerimônias, Tito retornou à Itália, eliminando os temores da volta à guerra civil ao saudar seu pai de forma muito calorosa. O imperador e seu filho mais velho celebraram então um triunfo sobre a Judeia, que culminou com o estrangulamento ritual de Simão bar Giora. Vespasiano achou que o ritmo da procissão era extremamente cansativo e murmurou que merecia aquilo por desejar tal honra na sua idade. Não obstante, a nova dinastia havia conquistado a vitória espetacular necessária para justificar o seu governo e tratou de demonstrar num desfile essa realização. Nos anos seguintes foi construído o Arco de Tito, que ainda conserva relevos retratando o seu triunfo. Isso foi parte de um programa de construções que incluía o Coliseu, com o qual Vespasiano empregou os cidadãos pobres e ajudou a reconstruir o centro de uma Roma devastada pelo incêndio e pelos projetos grandiosos de Nero[38].
Vespasiano conseguiu restaurar a estabilidade do império; seu único defeito grave era a avareza, mas ela pode ter se devido principalmente à necessidade de recuperar o tesouro, esgotado pelos excessos de Nero. Ele morreu em 79 d.C., e suas últimas palavras foram uma referência jocosa à convenção pela qual os imperadores eram quase sempre divinizados depois da sua morte – “Acho que estou me tornando um deus”. Na sua procissão funerária, o ator que usava sua máscara e seus símbolos de ofício perguntou aos oficiais que organizaram a cerimônia qual era o seu custo. Quando responderam com um número enorme, o ator lhes ofereceu 1% do total e sugeriu que simplesmente jogassem o corpo no rio Tibre.
Durante a vida de seu pai, Tito comandou a Guarda Pretoriana e realizou grande parte do trabalho sujo do imperador. Foi uma surpresa e um alívio que o seu governo tenha sido benevolente e justo. Para manter a propriedade, ele desistiu da sua amante de muito tempo, a rainha Berenice, descendente de Herodes, o Grande, bem como do bando de eunucos e homossexuais que normalmente participavam de seus entretenimentos. Como seu pai, Tito tornou-se muito mais popular depois de se tornar imperador. Mesmo assim, seu reinado foi breve. Ele morreu em 81 d.C., aos 40 anos, e foi sucedido por seu irmão mais novo, Domiciano, muito menos popular[39].