CAPÍTULO 14

UM CÉSAR EM CAMPANHA:
JULIANO NA GÁLIA, 356-360 D.C.

Juliano, o Apóstata
(332-263 d.C.)

E se for necessário enfrentar o inimigo, tomar seu posto com convicção entre os porta-estandartes, espere cuidadosamente pelo momento certo para inspirar seus homens com um ato audacioso, inspire os combatentes pelo exemplo sem ser imprudente, apoie-os com reforços quando estiverem sob pressão, repreenda os preguiçosos com moderação e esteja presente como uma verdadeira testemunha dos seus feitos, tanto dos corajosos como dos covardes. Desse modo, instado pela gravidade da situação, vá como um homem corajoso liderar outros homens corajosos.

Conselho de Constantino a Juliano depois da sua nomeação como césar em 355 d.C.[1].

A expansão sob Trajano foi seguida pela redução e reorganização das fronteiras sob Adriano e Antonino Pio. Quando Pio morreu, em 161 d.C., seu sucessor, Marco Aurélio, herdou a guerra com a Pártia. Problemas na fronteira do Danúbio obrigaram Aurélio a passar grande parte da última década do seu reinado em campanha, e ele provavelmente planejava criar novas províncias a leste do Danúbio pouco antes da sua morte, em 180. Apesar de o século II d.C. ter testemunhado diversos conflitos maiores, foi em geral uma época de notável prosperidade, quando o Império Romano atingiu em muitos aspectos o seu apogeu. No século XVIII, Edward Gibbon veria os anos entre 96 e 180 d.C. como o “período da História do mundo em que a condição da raça humana foi a mais feliz e próspera”. Para ele, o declínio de Roma começou com o reinado do filho de Aurélio, o brutal Cômodo, que rompeu o costume recente de o imperador escolher um senador capaz para adotá-lo como herdeiro em vez de procurar parentes consanguíneos. O assassinato de Cômodo produziu uma guerra civil que certamente superou em escala o “Ano dos Quatro Imperadores”, que se seguiu ao suicídio de Nero. O vencedor do conflito, Sétimo Severo, passou a maior parte do seu reinado combatendo rivais ou fazendo guerra contra os partos e, mais tarde, contra as tribos caledônias do norte da Britânia. Severo morreu em York, aconselhando os dois filhos que o sucederam a “cuidar dos soldados e desprezar todos os demais”[2]. Poucos meses depois, seu filho mais velho, Caracala, assassinou seu irmão e assumiu o poder.

Caracala apreciava a vida militar e gostava de ser visto não só com o uniforme dos soldados comuns, mas também usando um moinho manual para moer sua ração de trigo e fazer sua própria farinha, como os próprios legionários faziam[3]. Mesmo assim, essas atitudes não evitaram que fosse apunhalado até a morte por um cavaleiro da sua própria guarda, quando se agachou atrás de um arbusto para aliviar-se a caminho de outra guerra contra a Pártia. Depois de Caracala, imperadores foram entronizados e caíram com uma frequência alarmante, a maioria assassinada ou executada por rivais, e uns poucos morrendo em batalha com inimigos estrangeiros. As guerras civis eram comuns, e, como o exército romano desgastava sua força lutando contra si próprio, as derrotas nas fronteiras tornaram-se cada vez mais frequentes. Ocasionalmente, um imperador forte era capaz de manter a estabilidade por alguns anos, talvez por toda uma década, antes de as revoltas e o caos retornarem.

Embora seja extremamente difícil descrever em detalhes qualquer uma das guerras do século II d.C., as fontes sobre as campanhas do século III tornam essa tarefa impossível. Certamente não nos permitem escrutinar a capacidade de liderança de qualquer comandante do exército com a mínima clareza, apesar de os poucos casos preservados sugerirem que seu comportamento tinha muito em comum com o dos primeiros séculos. Contra essa medida de continuidade, o relacionamento entre o general e o Estado mudou profundamente durante esse período, uma vez que a antiga tradição de delegar aos senadores o comando do exército terminou. O relacionamento entre o princeps e seus legados senatoriais sempre foi instável, pois tais homens nunca deixaram de ser rivais em potencial. Marco Aurélio promoveu vários oficiais equestres ao alto-comando, mas normalmente apenas depois de admiti-los no Senado. Tais homens eram quase sempre soldados profissionais, tendo passado muitos anos em comandos sucessivos em vez de intercalar postos militares e civis conforme o modo tradicional. É impossível dizer se esse fato os tornou marcadamente mais competentes do que a massa de oficiais senadores, porém eles eram claramente vistos como mais leais, já que sua promoção dependia do favor imperial. Severo estimulou essa tendência quando colocou prefeitos equestres em lugar de legados senatoriais no comando das três novas legiões – I, II e III Parthica – que formou durante seu reinado. No século III, os equestres substituíram os senadores em todos os postos militares mais elevados, e apenas um punhado de senadores prestou serviço militar.

Embora a crescente confiança nos oficiais equestres fosse motivada sobretudo pelo temor dos sucessivos imperadores de que, incitadas por subordinados ambiciosos, suas próprias tropas se voltassem contra eles, no longo prazo o resultado foi, de fato, tornar tal usurpação muito mais fácil. Marco Aurélio passou quase metade do seu reinado com o exército, assim como Sétimo Severo. Aqueles que buscavam o patronato do imperador eram forçados a ir até ele, de modo que, com o tempo, grande parte da atividade da corte imperial passou a ocorrer nos quartéis de qualquer exército que o imperador estivesse acompanhando. A cidade de Roma teve sua importância diminuída, pois os governantes passavam cada vez menos tempo lá. A importância do Senado também declinou, tanto porque o imperador raramente o visitava quanto porque seus membros estavam perdendo seu prestigioso papel militar. Por volta do final do século III, o Senado era irrelevante em termos políticos, e a cidade de Roma assumiu pouco mais que um significado simbólico. O foco da atividade política estava agora com o exército, que garantia aos imperadores sua única segurança. Um homem continuava no poder somente enquanto detinha a lealdade de tropas suficientes para derrotar as forças de qualquer rival. Assim como no passado o homem que buscava tornar-se imperador precisava conquistar o apoio da maioria do Senado – apesar da inveja –, ele agora precisava do consentimento dos oficiais mais importantes do exército, os quais eram quase todos equestres. Cada vez mais, esses homens encontravam líderes entre seus pares e os cobriam de púrpura. Quando o imperador não outorgava recompensas e favores suficientes à facção de oficiais que o colocara no poder, isso levava ao rápido assassinato do governante e à sua substituição por outro. Era muito mais fácil virar imperador do que havia sido no início do principado, mas permanecer no poder era consideravelmente mais difícil. Como os imperadores recém-empossados deveriam conceder honras e promoções aos líderes do exército que apoiaram sua aclamação, os homens que serviam em outras províncias tinham poucos benefícios com sua elevação. Como resultado, eles quase sempre se mostravam ansiosos por encontrar alguém entre seus pares que fosse adequado ao trono e apoiavam sua reivindicação em batalha, ávidos para receber benefícios pela sua vitória.

Era extremamente difícil para um homem reter a lealdade do exército em todo o império, e a situação tornou-se ainda pior por conta do desaparecimento, na estrutura de comando do exército, de uma patente equivalente em autoridade ao antigo legado provincial. Sob o principado, houve uma redução gradual no número de legiões estacionadas numa única província. Sob Augusto, várias das províncias tinham permanentemente quatro legiões, porém por volta do final do século I era raro haver até mesmo três legiões sob o mesmo comando. No século II, a mesma tendência continuou, de modo que, por exemplo, a província da Britânia, com três legiões, foi dividida em duas. Conforme os imperadores perdiam cada vez mais segurança, tornaram-se relutantes em confiar o comando de um exército com mais de vinte mil soldados ou mais a qualquer rival em potencial. Ao redor do século IV, a maioria das antigas províncias havia sido dividida em cinco ou seis regiões com guarnições comparativamente menores. Mesmo assim, o poder civil e militar era dividido entre diferentes oficiais, o que dificultava a organização do abastecimento de uma força de campo.

Tal sistema respondia bem às escaramuças nas fronteiras, contudo era completamente inadequado para enfrentar um grande ataque ou invasão. Se um problema comparativamente expressivo surgisse, então o imperador tinha de ir pessoalmente resolver a questão ou enviar um subordinado com número suficiente de tropas, correndo o risco de que usasse mais tarde seu comando para reivindicar o poder. Sem confiar nos seus oficiais, a maioria dos imperadores dos séculos III e IV passaram grande parte dos seus reinados em campanha, realizando tarefas que no passado cabiam aos governadores provinciais. Como um homem só pode lidar com um problema de cada vez, tornou-se mais e mais comum que os imperadores compartilhassem o poder com um colega. Isso ocorreu pela primeira vez quando Marco Aurélio nomeou Lúcio Vero, seu irmão por adoção, seu cogovernante, ou césar. Foi Vero que presidiu a guerra contra a Pártia, embora, a despeito de algumas histórias extremamente mentirosas que o retratam como herói, seja improvável que ele tenha exercido papel muito ativo na campanha[4].

No final do século III, Diocleciano criou um sistema conhecido como tetrarquia, pelo qual o império foi dividido numa seção oriental e em outra ocidental, cada qual controlada por um imperador, conhecido como Augustus (“augusto”), auxiliado por um parceiro em posição menor, ou Caesar (“césar”). Uma estátua mostrando os quatro homens, em pé, cada qual repousando um braço no ombro de um colega imperador, simbolizava o governo cooperativo ideal. Em sua forma mais pura, o sistema de tetrarquia mal sobreviveu a Diocleciano, mas o princípio de múltiplos imperadores continuou a ser a norma, exceto em períodos ocasionais nos quais um homem, mais notadamente Constantino, o Grande, foi capaz de tomar o poder e reinar sozinho. As regiões sentiam-se negligenciadas se um imperador falhasse em dedicar atenção suficiente aos seus problemas. Tal descontentamento quase sempre levava as tropas lá estacionadas a nomear um novo imperador que pudesse satisfazer suas necessidades[5].

A NOMEAÇÃO DE JULIANO COMO CAESAR NA GÁLIA, 355 D.C.

Quando Constantino morreu, em 337, tendo reinado por treze anos como único imperador, o poder imperial foi distribuído entre seus três filhos, Constantino II, Constantino e Constante, mas não demorou muito para que eles começassem a lutar entre si. Por volta de 350, apenas Constantino sobrevivera, e a maior parte do Império do Ocidente fora tomada pelo usurpador Magnêncio. Este foi derrotado completamente em três anos. O império havia mais uma vez sido unificado sob um único Augustus, mas Constantino logo descobrira a necessidade de ter pelo menos um assistente para auxiliá-lo na sua tarefa. Quase toda a família estendida de Constantino fora assassinada nas lutas pelo poder após a sua morte, sobrando apenas os dois filhos do seu meio-irmão Júlio Constantino. Em 351, o mais velho dos dois, Galo, foi nomeado Caesar e recebeu a tarefa de supervisionar as províncias orientais, enquanto Constantino enfrentava Magnêncio.

Um ano depois da supressão do usurpador, Galo foi executado por um Augustus que deixara de confiar no julgamento e nas ambições do seu Caesar. Não obstante, Constantino podia apenas estar em um lugar de cada vez, e os distúrbios trazidos pela guerra civil tinham provocado uma série de problemas na fronteira. O Augustus enviou Silvano, o Mestre da Infantaria (Magister Peditum, um termo que não implicava maior associação com os soldados a pé do que com os cavaleiros e simplesmente denotava um general), para restaurar a situação na Gália, que havia sofrido com ataques de bárbaros, alguns dos quais estabeleceram-se como colonos. No entanto, o risco inerente de confiar em qualquer um com comando independente logo ficou claro, quando esse homem foi proclamado Augustus pelo seu exército. O perigo de uma guerra civil foi evitado quando um dos oficiais de Constantino subornou alguns soldados descontentes para assassinarem Silvano. Os problemas na Gália continuaram, e o Augustus resolveu enviar o irmão de Galo, Juliano, para resolvê-los, decidindo que um parente deveria ser mais confiável do que qualquer outra pessoa. Para fortificar ainda mais esse elo, Juliano casou-se com a irmã de Constantino, Helena.

Juliano foi proclamado Caesar na Gália, em 6 de novembro de 355 d.C., num desfile formal do exército, quando os soldados demonstraram sua aprovação batendo seus escudos contra os joelhos. Essa cerimônia demonstrava abertamente a transferência do poder político aos militares. O novo Caesar tinha 23 anos e nunca assumira nenhum cargo público, tampouco passara tempo algum no exército. Como Galo até sua ascensão ao poder, Juliano passara os primeiros anos da sua vida em confortável prisão, dedicando-se com entusiasmo aos estudos acadêmicos em Nicomédia e subsequentemente em Atenas, onde foi deveras influenciado pelo neoplatonismo místico. Constantino, o Grande havia tornado o cristianismo a religião oficial do império, embora nunca tenha suprimido ativamente a maioria dos cultos pagãos, e sua família também era cristã. Estimulada por uma profunda aversão por Constantino – sentimento reforçado pela execução de Galo –, a rebelião do estudante tomou um caminho religioso. Publicamente Juliano seguia a nova fé, mas abraçava o paganismo em segredo, uma decisão descrita pelos cristãos como sua apostasia. Mais tarde, afirmou que o deus Sol lhe aparecera num sonho, instruindo-o na criação de um novo culto, o qual ele tentaria introduzir, sem sucesso. Tanto nos seus escritos quanto em outros relatos, Juliano aparece quanto um homem hábil, mas que não tinha compreensão das visões e dos sentimentos dos outros, especialmente aqueles com menos informação acadêmica. Como general, ele se mostraria competente, embora pouco inspirado, e a sua inclusão neste trabalho deve-se, mais do que a seu grande gênio, à relativa riqueza de material sobre suas campanhas em comparação com o existente sobre qualquer outro general do século IV[6].

Até que estivesse a caminho da região, Constantino deliberadamente ocultou de seu colega inferior a escala do problema na Gália. O mais sério era a notícia de que a Colônia Agripina (Colônia) tinha sido invadida pelos francos, mas também estava sendo atacada severamente por outras tribos, os alamanos. Nenhum desses povos era conhecido no início do principado, e tem-se aventado a hipótese de que as tribos germânicas menores que as enfrentadas por César e Germânico uniram-se nos séculos II e III d.C., formando confederações tribais mais poderosas que passaram a representar uma ameaça maior à fronteira romana do que suas predecessoras. No entanto, um exame mais profundo da organização militar e política dos povos germânicos no século IV leva a crer que pouco ou nada mudou de fato. Divididos em tribos e clãs, cada qual com seus próprios chefes, tinham muito pouca unidade política ou senso de propósito comum, e o poder dos reis e dos líderes mostrou-se transitório como sempre tinha sido. Não se sabe se as tribos, havia muito conhecidas pelos romanos, apenas mudaram seus nomes ou foram suplantadas por outros povos, mas o problema apresentado ao exército romano continuou o mesmo, como de modo geral também eram os métodos usados no esforço de resolvê-lo.

Sempre que percebiam que os romanos estavam vulneráveis, as tribos atacavam as províncias. Se tivessem sucesso e não fossem punidas, então mais ataques ocorriam em escala cada vez maior, talvez até promovendo invasões em massa para tomar e ocupar terras. Nos anos anteriores à nomeação de Juliano como Caesar, a fronteira ao longo do Reno e do Danúbio Superior teve muitas das suas guarnições retiradas, já que os homens eram enviados para combater nas guerras civis. A fraqueza romana era confirmada quando assaltantes bárbaros conseguiam penetrar as províncias estabelecidas e retornar com espólios e glória. Tais sucessos estimularam ataques em escala ainda maior e, como nenhum imperador ou subordinado ia para a região com força e autoridade suficientes para promover a guerra, esses ataques tornaram-se ainda mais comuns.

Roma era vista como fraca, e vários líderes guerreiros germânicos exploraram essa situação. A tarefa de Juliano não era simplesmente restaurar a ordem nas defesas fronteiriças, mas instilar novamente o temor pelo poderio romano nos povos além do Reno.

Os recursos disponíveis para resolver a situação não eram de maneira alguma abundantes. Sob Diocleciano e Constantino, o número de homens servindo o exército aumentou de modo significativo, embora no mesmo período o tamanho dos exércitos de campo individuais tenha diminuído. Nos dias de Juliano, o exército romano era dividido em duas seções básicas, os limetani, que eram estacionados nas fronteiras e as patrulhavam, e os comitatenses, ou exércitos de campo. Os comitatensis por vezes são vistos como uma reserva móvel, porém suas origens residem mais no desejo dos sucessivos imperadores de obter proteção contra rivais internos do que na ameaça de inimigos estrangeiros. No exército, o tamanho das unidades individuais diminuíra, de forma que a legião com cerca de cinco mil homens não passava de uma memória distante e agora continha ao redor de mil a 1,2 mil homens. As unidades de infantaria auxiliar eram semelhantes em termos de tamanho, ou talvez fossem menores, e a cavalaria tinha provavelmente um número em torno de quinhentos soldados. Cada regimento era comandado por um oficial chamado de tribuno, prefeito ou praepositus. Em campanha, muitas unidades eram ainda menores. A maioria delas, nos exércitos de campo, eram dispostas em pares, contudo o nível de organização era mais elevado e subdivisões maiores dentro de um exército não eram mais consideradas necessárias. O exército do século IV era composto para fazer guerra em escala relativamente menor, uma impressão confirmada pelas operações de Juliano na Gália.

O serviço no exército era compulsório para os filhos dos soldados, e, de modo geral, as condições parecem ter piorado com relação às do início do principado. Números consideráveis de recrutas eram fornecidos pelas tribos bárbaras, inclusive muitas de fora do império, e tem sido aventado com frequência que essa barbarização do exército levou ao declínio da eficiência militar. No entanto, os romanos tinham longa tradição de fazer bom uso de soldados estrangeiros, e é difícil encontrar muitos exemplos de soldados “bárbaros” que se mostraram menos leais ou eficientes do que as tropas recrutadas nas províncias. O que sem dúvida é verdadeiro é que a tendência a recrutar tropas locais, já visível nos séculos I e II, tornara-se ainda mais pronunciada e que os soldados frequentemente demonstravam uma lealdade particular à região na qual estavam estacionados[7].

A PRIMEIRA CAMPANHA, 356 D.C.

Quando Juliano chegou à Gália, o ano já estava muito adiantado para iniciar a campanha, e ele passou o inverno em Vienne, reunindo informações e lidando com problemas administrativos. Em junho, recebeu um relatório informando-o de que Augustodunum (Autun) estava sob ataque de um grupo de alamanos. Os exércitos tribais não dominavam as técnicas de cerco e tinham um registro baixo na conquista de posições fortificadas, mas nesse caso as muralhas estavam em mau estado, e foi apenas a defesa entusiasmada de um grupo de veteranos aposentados que os repeliu. Os alamanos haviam instalado um bloqueio frouxo contra a cidade, enquanto a maior parte dos guerreiros se dispersava para atacar e saquear a área próxima. Juliano foi imediatamente socorrer a cidade e lá chegou em 24 de junho sem enfrentar oposição séria.

ÁREA DE COMANDO DE JULIANO A PARTIR DE 355 D.C.

Reunindo seus oficiais mais graduados num consilium para decidir como atacar e punir os bárbaros, ele perguntou àqueles que conheciam as rotas principais qual delas o levaria à importante cidade de Remi (a moderna Reims), onde ordenou que seu exército de campo se concentrasse e reunisse provisões suficientes para alimentar os soldados durante um mês. Ignorando diversas alternativas, Juliano escolheu tomar uma rota direta através de uma região densamente florestada, desprezando o risco de emboscada basicamente porque fora informado de que o usurpador Silvano tinha usado a mesma estrada com sucesso. Com ele, seguia apenas uma unidade de catafractos – a primeira dessas unidades de cavalaria pesada fora formada por Adriano, mas mais tarde tornaram-se relativamente comuns, sobretudo nos exércitos das províncias orientais – e um regimento de ballistarii, que eram provavelmente homens da artilharia, porém podem apenas ter sido equipados com um tipo primitivo de arco. Não era uma força especialmente adequada a escaramuças, mas, no primeiro momento, os romanos não encontraram quaisquer guerreiros e conseguiram passar pelo trecho mais perigoso da estrada sem enfrentar nenhum combate. Conforme a jornada prosseguia, foram atacados por pequenos grupos de alamanos, porém conseguiram repelir todos, apesar de não terem infligido muitas perdas, pois os catafractos com seus cavalos protegidos por armaduras não eram adequados à perseguição rápida. Uma indicação clara do nervosismo da população local diante de tantos ataques foi dada quando a pequena força chegou a Tricasa (Troyes) e encontrou o portão da cidade fechado. Foi só depois de um debate longo e um tanto indigno que o Caesar e seus homens foram admitidos. Depois de um breve descanso, Juliano prosseguiu e juntou-se ao exército principal. Outro consilium foi realizado para discutir a situação. Estavam presentes Marcelo, o Magister Equitum (outro título de oficial de alta patente no exército do século IV), e seu predecessor Ursicino, o homem responsável por planejar o assassinato de Silvano e que recebera ordens para continuar lá até o final do ano, a fim de informar e aconselhar o jovem Caesar. Decidiu-se lançar um ataque punitivo imediato aos grupos de alamanos mais próximos. O ataque foi realizado no dia seguinte, mas, sob a proteção de densa névoa, os germânicos passaram pela coluna romana em marcha e atacaram as duas legiões que formavam a retaguarda. Os gritos de guerra levaram algumas unidades auxiliares a irem em seu socorro antes de serem esmagadas, porém a inesperada quase derrota teve um impacto profundo em Juliano. O historiador Amiano Marcelino, na época oficial servindo sob Ursicino e que estava provavelmente junto à coluna, afirma que esse fato o tornou “prudente e cauteloso” (providus et cunctator), características que, para ele, estavam entre as maiores virtudes de um grande comandante. Os romanos atacaram várias cidades tomadas e pilhadas pelo inimigo, embora, em cada caso, depois do seu sucesso os germânicos tenham se dispersado para saquear a área próxima. Nos arredores de Brotomagum (Brumath), um bando de guerreiros enfrentou os romanos e Juliano realizou sua primeira luta significativa, apesar de não ter passado de uma escaramuça. Ele empregou as tropas de modo que as duas alas avançassem, tentando parecer um crescente, e cercou os germânicos. A maioria fugiu antes de a armadilha se fechar e apenas uns poucos foram mortos ou capturados. Entretanto, a pequena vitória bastou para intimidar outros bandos de saqueadores e restaurar alguma ordem na área[8].

Image

ÁREA SOB O COMANDO DE JULIANO A PARTIR DE 355 D.C.

Juliano foi para o norte e reocupou a Colônia Agripina. A presença do exército romano foi suficiente para persuadir os reis francos mais próximos a encerrar as expedições de saque e a aceitar os termos de paz impostos por Juliano. Agora aproximava-se o fim da estação de campanha, e a maior parte do exército de campo romano dispersou-se em quartéis de inverno. Os alimentos também podem ter escasseado, e Amiano menciona que o Caesar estava especialmente preocupado em conseguir suprimentos suficientes para a campanha do ano seguinte. Os anos de saque e perturbações tinham prejudicado a agricultura da área e consumido muitas fontes de alimentos e forragem. Outro grande problema era a necessidade de restabelecer um sistema apropriado de guarnições na fronteira para impedir futuras incursões. Juliano resolveu passar o inverno em Senonae (Sens), e alguns desertores foram procurar os francos. Não é claro se esses soldados eram germânicos e simpatizavam com o inimigo ou se sua deserção foi provocada por outra circunstância. Quando Amino dá um motivo para a deserção de algum soldado, é normalmente o temor da punição.

Sejam quais forem suas razões, os desertores informaram as tribos de que o Caesar tinha relativamente poucas tropas. Uma força de alamanos atacou Senonae de imediato, mas foram frustrados pelas muralhas que os romanos reformaram rapidamente. Juliano tinha poucos homens para deixar a cidade e combater em terreno aberto, e após um mês de cerco os germânicos retiraram-se, lamentando sua insensatez ao tentar sitiar a cidade. Se a surpresa ou a traição impediram que entrassem na cidade, um exército tribal normalmente ficaria sem provisões e teria de se dispersar antes que os defensores fossem forçados a se render. Nos séculos III e IV, muitas comunidades que não haviam percebido a necessidade de fortificações construíram muralhas no início do principado. Simultaneamente, o exército colocava muito mais ênfase na construção de baluartes reforçados e projetava torres ao redor de suas bases. A defesa era agora uma prioridade muito maior do que tinha sido nos primeiros séculos[9].

A CAMPANHA E A BATALHA DE ARGENTORATO (ESTRASBURGO), 357 D.C.

Durante o cerco de Senonae, Marcelo tinha fracassado em fornecer reforços ao seu comandante. Perto do final do inverno, ele foi substituído pelo muito experiente Severo. Ursicino também foi chamado de volta e logo enviado à fronteira oriental, onde a guerra com a Pártia estava fermentando. Entretanto, como clara indicação da prioridade dedicada à Gália, Constantino enviou da Itália uma força de 25 mil homens sob o comando do Magister Peditum Barbácio. O plano romano era lançar uma grande ofensiva contra os alamanos, Juliano atacando do norte e Barbácio, do sul. Além disso, pressão indireta seria colocada sobre os alamanos pelas operações do próprio Augustus a partir da Récia, no Danúbio Superior. Organizar tão grande operação tomou tempo, e no início da primavera uma força invasora de tribos alamanas iludiu as concentrações de tropas romanas e atacou Lugdunum (Lyon). Uma vez mais, os bárbaros foram frustrados pelas fortificações da cidade, mas vaguearam livremente através das terras vizinhas, queimando e saqueando. Juliano respondeu com rapidez, reunindo uma força de três regimentos de cavalaria e enviando-os para guardar as três rotas principais que os saqueadores teriam maior probabilidade de tomar em sua jornada de retorno. Grupos saqueadores sempre eram mais vulneráveis quando se retiravam, sobrecarregados com seu espólio e quase sempre superconfiantes por conta do sucesso inicial. Houve muitas ocasiões, ao longo da história romana, em que os saqueadores foram surpreendidos e massacrados enquanto transportavam seu espólio de maneira descuidada. Quase sempre, a maior parte dos guerreiros estava embriagada, e Amiano fala sobre uma vez em que todo um grupo foi emboscado enquanto os guerreiros se banhavam ou tingiam seu cabelo de vermelho num rio[10].

De início, a operação romana teve sucesso, eliminando com facilidade quaisquer grupos de guerreiros que tomavam as estradas. Apenas aqueles germânicos que abandonaram seu butim e seguiram pelo terreno florestado conseguiram passar pela cavalaria. Contudo, Barbácio, cujo acampamento estava muito mais perto do que o de Juliano, não fez movimento algum para apoiar os três regimentos de cavalaria, e, de fato, um de seus oficiais ordenou explicitamente que essas tropas não protegessem a estrada principal dos bárbaros que se retiravam. Na sequência dessa falha, dois dos tribunos da cavalaria foram dispensados do exército quando foram falsamente acusados – embora um deles reapareça pouco depois em outro comando e o segundo tenha se tornado imperador, de modo que essa passagem pode estar incorreta. Não foi um começo promissor para uma campanha que exigia cooperação entre Juliano e Barbácio.

Quando a ofensiva principal se iniciou e as colunas avançaram contra as comunidades alamanas que se estabeleceram na margem ocidental do Reno, os romanos descobriram que os inimigos tinham, na maioria dos casos, se retirado, muitos deles para as ilhas do rio. O progresso foi lento, pois os bárbaros haviam construído numerosas barricadas ou derrubado árvores para bloquear as estradas e caminhos principais, obrigando os romanos a abrir passagem para que o comboio de bagagens pudesse passar. Juliano decidiu que era importante atacar os germânicos que se escondiam nas ilhas, portanto pediu a Barbácio que lhe emprestasse sete das barcaças que tinha reunido para serem usadas na construção de uma ponte. O Magister Peditum não só recusou, como também ordenou que as barcaças solicitadas fossem queimadas. Então, logo depois, também destruiu parte significativa dos grãos estocados por Juliano para sustentar o exército. Amiano, que descreve esses incidentes, obviamente antipatizava com Barbácio quase tanto quanto admirava Juliano, mas não há motivos para rejeitar a veracidade de incidentes desse tipo. Os líderes romanos sempre foram demasiadamente competitivos, porém, no final da Antiguidade, essa concorrência envolvia menos constrangimentos do que em qualquer outro período, inclusive o das guerras civis do século I a.C. As carreiras não tinham a estrutura formal e os limites do antigo cursus honorum, e era possível alcançar o poder supremo de modo repentino ou por meio de pequenos estágios. Como qualquer um que conseguisse conquistar o apoio de um número suficiente de tropas podia tornar-se imperador, quem quer que fosse julgado capaz disso era considerado alguém que nutria tais ambições. Talvez Silvano fosse um usurpador relutante, mas fora forçado efetivamente a essa disputa pelo poder, uma vez que se acreditou que ele tramava contra o Augustus, e provavelmente seria executado mesmo que continuasse a obedecer às ordens. As ligações familiares não garantiam segurança contra a desconfiança e, desde o momento da sua nomeação, Juliano foi alvo de uma campanha de difamação que visava a plantar dúvidas quanto à sua lealdade na cabeça de Constantino. Muitos homens amealharam poder e influência na corte ao tramar a derrubada de seus superiores, apesar de muitos tornarem-se presa das maquinações de outros homens ambiciosos. Havia pouca segurança para os líderes do exército e do Estado romanos nesse período.

Frustrado por Barbácio, Juliano teve a sorte de capturar alguns batedores germânicos, que revelaram, durante o interrogatório, que o rio podia ser vadeado no verão. O tribuno Bainobaudes, comandando um regimento de auxiliares chamado cornuti (ou “chifrudos”, talvez em referência a algum ornamento no escudo ou no elmo), recebeu ordens de lançar um ataque-surpresa. Os homens são descritos como infantaria ligeira, o que possivelmente significa que deixaram de lado a armadura e os capacetes em geral usados em batalhas para aquela operação específica. Eles conseguiram cruzar o rio nas partes mais rasas e nadaram através das seções mais profundas, usando os escudos como boias, e alcançaram uma ilha antes de os alamanos os perceberem. Num ataque violento e repentino, os auxiliares caíram sobre os germânicos e massacraram todos os que encontraram, mulheres, crianças e idosos, além dos guerreiros. O objetivo dessa incursão era matar, com o propósito de aterrorizar as outras tribos. O contexto da operação teria, de qualquer maneira, dificultado tomar prisioneiros e levá-los de volta. Capturando alguns barcos, os auxiliares remaram até diversas outras ilhas, massacrando seus ocupantes. Então, retornaram à margem ocidental do Reno sem sofrer baixa alguma, apesar de a maior parte do espólio capturado ter se perdido quando um barco atolou. Percebendo que as ilhas eram vulneráveis, os alamanos fugiram para a margem oriental tentando escapar dos romanos. Juliano ocupou-se da restauração ou reconstrução das guarnições ao longo do rio. Era a época da colheita, e os romanos aproveitaram a oportunidade para retirar a produção dos campos cultivados pelos germânicos, conseguindo provisões suficientes para encher os celeiros dos fortes e sustentar o exército de campo por vinte dias[11].

Os alamanos sofreram um revés, mas um único ataque, ainda que aterrorizador, certamente não era o bastante para convencer as tribos de que Roma havia de repente se tornado invencível de novo após anos de fraqueza. Uma grande força de guerreiros cruzou a Gália e surpreendeu o exército de Barbácio, derrotando-o e capturando boa parte da sua bagagem, dos seguidores de acampamento e dos animais de transporte. Amiano pode ter exagerado a escala da derrota, mas Barbácio de fato não participou do restante da campanha daquele ano. Em vez disso, foi até a corte de Constantino para fazer intrigas contra Juliano. Alguns anos mais tarde, essas intrigas levariam à sua própria execução, quando o Augustus passou a acreditar que ele nutria ambições imperiais.

O Caesar tinha mais problemas imediatos em suas mãos, pois sete reis alamanos haviam se reunido sob Conodomário e seu sobrinho Serápio, que comandaram um dos maiores exércitos tribais registrados no século IV. Amiano afirma que chegava a 35 mil homens comandados pelos reis, dez príncipes e diversos outros chefes. Como sempre, é difícil saber quão preciso é esse número, ou se os romanos ou os alamanos conheciam exatamente o tamanho da força.

O grosso do exército era constituído por guerreiros capazes de armar-se para a batalha e combater em bandos com os membros da sua tribo e os clãs. A força principal era formada pelos comites, guerreiros semiprofissionais ligados aos líderes. Conodomário comandava duzentos desses guerreiros bem equipados e altamente motivados, mas parece improvável que os outros chefes com menos prestígio tivessem tantos seguidores. Os exércitos tribais normalmente levavam algum tempo para se reunir, uma vez que os guerreiros apareciam quando tinham disposição para tanto, e essa força não era exceção. Apenas parte do exército estava do outro lado do Reno quando Juliano acampou, a cerca de 35 quilômetros. Os líderes germânicos foram informados por um desertor de que Juliano tinha pouco mais do que treze mil à sua disposição – provavelmente três mil a cavalo e dez mil a pé –, e sua vantagem numérica, que era talvez significativa fosse qual fosse o tamanho do seu exército, aumentou ainda mais sua confiança. Também estavam encorajados pela fácil derrota que as tropas de Barbácio sofreram e pela informação de que tais tropas estavam longe demais para apoiar outra força romana.

Depois de avançar até a área vizinha a Argentorato (Estrasburgo), enviaram mensageiros ao Caesar, dizendo-lhe que deixasse as terras que tomaram pela espada e que a recusa significaria enfrentar seu grande exército em batalha. Os alamanos estavam tratando os romanos do mesmo modo como tratariam qualquer tribo germânica cujas terras tivessem tomado. Tais gestos eram típicos de muitas sociedades tribais encontradas pelos romanos por todos os séculos. Juliano demorou a dar uma resposta aos embaixadores, esperando até que suas tropas tivessem terminado de reparar um antigo forte de fronteira, e então preparou-se para a batalha. Ele também esperou ansiosamente que grande parte dos alamanos se reunisse na margem ocidental do Reno, já que a derrota de apenas uma pequena guarda de vanguarda não deveria resultar em vantagem duradoura, mas não queria enfrentar todo o exército. Essa consideração dificulta ainda mais estimar o número de guerreiros germânicos que participaram da batalha subsequente[12].

Juliano retirou seu exército do acampamento ao amanhecer e avançou numa coluna bem ordenada em direção ao inimigo. A infantaria estava no centro, flanqueada pela cavalaria, que incluía não apenas os catafractos, mas também arqueiros montados, bem como cavaleiros armados do modo convencional. Todo o exército estava protegido por pequenos grupos de batedores, arregimentados provavelmente da cavalaria. Por volta de meio-dia, eles se aproximaram do inimigo, e Juliano estava inclinado a parar e construir um acampamento, permitindo que seus homens descansassem antes de travar batalha no dia seguinte. Quando explicou esse plano aos soldados, surgiram protestos, com os homens batendo as hastes das lanças contra os escudos – um gesto que Amiano diz ser sempre um sinal de protesto, diferente da aclamação, quando batiam os escudos nos joelhos. Os homens gritaram, pedindo-lhe que os levasse para atacar o inimigo imediatamente e declarando que, com um general afortunado como ele, tenderiam a vencer. Os oficiais também estavam ansiosos por lutar, argumentando que era melhor confrontar e derrotar todos os alamanos em vez de perseguir grupo por grupo se seu grande exército se dispersasse. Finalmente, um porta-estandarte destacou-se das fileiras e pediu que o “mais afortunado de todos os Caesars” os comandasse para a vitória. O exército, então, retomou seu avanço[13].

Os comandantes romanos eram quase sempre um tanto teatrais nos discursos que faziam aos seus homens, porém esse incidente denota um relacionamento muito diferente entre o general e suas tropas do que aquele que existira em períodos anteriores. É possível que Juliano estivesse planejando combater naquele dia e simplesmente fingisse relutar na frente de seus soldados entusiasmados, de modo que sua ansiedade os ajudasse a esquecer a fadiga da longa marcha sob o calor de final de verão. Não obstante, Amiano certamente não dá a entender que esse fosse o caso, mas tal engodo seria louvável num general e sem dúvida não seria algo a ser suprimido. Uma das piores coisas que um comandante poderia fazer era arriscar uma batalha quando julgava não ser o momento. César certamente não teria retratado a si próprio sendo dissuadido pelos seus subordinados de desistir de uma ação que tinha planejado. O porta-estandarte que fez o pedido a Juliano parece, num primeiro momento, semelhante aos centuriões e soldados descritos nos Comentários dirigindo-se a César, mas é importante observar que estes nunca tentaram convencer seu comandante a nada que ultrapassasse sua coragem e devoção a ele. É difícil evitar a conclusão de que no século IV, os soldados tinham consciência da sua capacidade de induzir qualquer general e substituir suas ordens por uma alternativa da sua própria escolha, sentindo-se muito livres para expressar sua opinião.

Os romanos prosseguiram e chegaram até uma série de colinas baixas que não eram distantes da margem do Reno. Três batedores da cavalaria germânica foram vistos galopando para avisar sobre a aproximação, e um guerreiro a pé foi capturado. Ele informou aos romanos que os alamanos estavam cruzando o rio nos três dias anteriores. Logo, os bandos de guerreiros tornaram-se visíveis, formando uma linha de batalha a distância. Cada grupo tinha entrado na formação conhecida como cuneus, palavra que pode ser traduzida como “cunha” e que possivelmente indica uma formação vagamente triangular – provavelmente causada pela minoria formada pelos guerreiros mais entusiasmados que se adiantavam com relação aos demais –, ou talvez apenas uma coluna estreita, porém profunda. Amiano nos conta, em outro lugar, que o apelido que os soldados davam para a formação cuneus era “cabeça de porco” (caputporci)[14]. À sua direita, havia uma área de terreno pantanoso irregular que incluía um aqueduto ou canal abandonado. Provavelmente por conta do terreno impraticável à sua esquerda, os romanos concentraram a cavalaria na ala direita, exceto pelos duzentos homens que formavam a escolta pessoal de Juliano. Os alamanos responderam concentrando todos os seus cavaleiros do lado oposto ao de seus pares romanos. Não se sabe quantos cavaleiros os germânicos tinham, mas é possível que fossem relativamente poucos e em geral equipados de modo mais leve que seus oponentes, sobretudo os catafractos. Os alamanos seguiram a tática enfrentada por César e descrita por Tácito de apoiar o cavalo com grupos de jovens guerreiros ágeis a pé. Conodomário – que é descrito como uma figura heroica, quase homérica, por Amiano – comandou a esquerda do exército romano, enquanto Serápio liderou a direita[15].

Conforme os romanos avançavam em direção à linha inimiga, Severo, que estava no comando da ala esquerda, suspeitou de uma emboscada num local à sua frente e parou. Com o flanco esquerdo parado, o restante do exército romano entrou em formação antes de retomar o avanço. Ao que parece, a infantaria foi ordenada em pelo menos duas linhas. Juliano foi a cavalo até cada unidade discursando em turnos, pois Amiano nos diz que era impossível ser ouvido pela força inteira quando ela estava em formação de batalha (e também observa que um discurso formal a todo o exército era prerrogativa do Augustus). A alguns homens ele pediu que lutassem com valentia, enquanto a outros incitou a restringir seu entusiasmo e não se adiantar com relação aos outros sem ordens para tanto. De modo geral, repetiu as mesmas palavras a cada uma das unidades que visitou. Durante esse longo intervalo, Amiano afirma que a infantaria germânica deu um grande grito, o que indicava que os reis e príncipes deveriam deixar a cavalaria e desmontar para combater ao seu lado. Era um sentimento semelhante àquele que uma vez proibira os ditadores romanos de cavalgar, de modo que ficassem com a falange. Conodomário foi o primeiro a desmontar e unir-se a eles, num gesto semelhante ao encontro de César com os helvécios em 58 a.C., ou à atitude de Agrícola em monte Graupius em 84 d.C. Os outros chefes imediatamente seguiram seu exemplo[16].

Quando os dois lados soaram suas trombetas, ambos os exércitos ficaram a uma distância de alcance dos projéteis e começaram a arremessar dardos uns contra os outros. Em seguida os germânicos atacaram, berrando seu grito de guerra. Aproximaram-se primeiro da cavalaria romana, e o combate avançou e retrocedeu durante algum tempo. Então, enquanto os catafractos romanos estavam descansando e se reagrupando, seu comandante foi ferido. Quase no mesmo momento, a montaria de outro homem desabou de cansaço, por conta do peso do cavaleiro e da armadura. Esses eventos menores alastraram um pânico repentino, e toda a unidade fugiu. Na confusão, a maioria do restante da cavalaria romana uniu-se à fuga, alguns correndo em direção à própria infantaria. Era um momento perigoso, pois, se os soldados a pé tivessem entrado em pânico, todo o flanco do exército poderia ter se dissolvido. No entanto, a disciplina da infantaria funcionou e os soldados mantiveram a formação enquanto a massa de cavaleiros vinha em sua direção. Juliano percebeu o perigo e galopou com sua guarda pessoal para reunir as tropas em fuga, sendo sua posição marcada pelo estandarte púrpura draco, a cabeça de um animal em bronze com a boca aberta e algo semelhante a uma biruta drapejando por trás. Era um tipo de estandarte copiado dos povos do Danúbio no século II d.C., e está retratado na Coluna de Trajano tremulando acima das cabeças dos dácios e de outros bárbaros.

A visão do seu comandante fez que um dos tribunos da cavalaria sentisse vergonha, parasse e reunisse seus homens. Amiano comparou a ação de Juliano à ocasião em que Sula deteve seus homens em fuga, dizendo-lhes que contassem como abandonaram seu general lutando sozinho na Ásia. Mesmo assim, era muito difícil retomar o controle sobre tropas em fuga, como César descobriu em Dirráquio. Alguns cavaleiros entraram em formação ao redor de Juliano e outros reuniram-se sob a segurança da infantaria pesada, mas é bem provável que muitos tenham abandonado o campo de batalha. Aqueles que ficaram deviam estar abalados, e não há menção de que a cavalaria tenha realizado muito no restante da ação. No entanto, também não há indicação de que a cavalaria alamana tenha ameaçado os flancos da infantaria romana, de modo que é possível que um número suficiente de cavaleiros tenha se reunido e enfrentado[17].

Um combate feroz aconteceu ao longo da linha principal, com o ar repleto de dardos e flechas, enquanto grupos entravam na batalha e lutavam. Na linha romana, havia uma brigada de auxiliares constituída pelos cornuti e pela sua unidade irmã, os bracchiati. Amiano descreve esses soldados dando o grito de batalha germânico tradicional, o barritos, que começa com um murmúrio baixo e vai aumentando num crescendo. É impossível dizer se esses auxiliares agiram assim porque eram germânicos ou se simplesmente porque os muitos anos de campanha contra as tribos lhes mostrara que os guerreiros germânicos achavam esse gesto especialmente intimidador. Logo depois, mais duas unidades auxiliares, os batavos e os regnis, foram enviadas à linha de combate, presumivelmente por ordem de Juliano ou de algum de seus oficiais. Durante algum tempo as coisas se estabilizaram, até que um grupo de guerreiros germânicos muito determinados, comandado por diversos de seus reis, lançou uma carga, estimulando os outros bandos a fazerem o mesmo. Algumas das tropas romanas cederam e os bárbaros romperam a primeira fileira, continuando seu avanço para atacar as tropas na reserva. A força principal desse ataque caiu sobre a legião Primani, no centro da segunda linha. Esses soldados mantiveram-se firmes e gradualmente começaram a fazer os alamanos recuarem. Por um tempo, os guerreiros germânicos seguiram lutando com grande determinação, até que suas perdas se tornaram demasiadas e seu ânimo de repente desabou. Toda a força tribal cedeu e se dissolveu numa fuga, com os oponentes romanos perseguindo-os. Quando os alamanos tiveram a fuga interrompida pelo rio, Juliano preocupou-se com que seus homens pudessem sofrer perdas ao perseguir o inimigo com tanta ansiedade na água, e ele e seus oficiais galoparam ao redor dos soldados, detendo seu avanço na margem do rio. Os romanos atiraram dardos e dispararam flechas nos inimigos que tentavam escapar a nado. Na confusão inicial, Conodomário conseguira fugir, mas foi logo encontrado e capturado quando se escondia num pequeno bosque[18].

Juliano conquistara uma importante vitória na sua primeira grande batalha. Quando seu exército se retirou para um acampamento erguido às pressas, com baluartes improvisados por fileiras de escudos, Juliano descobriu que perdera 243 homens e quatro tribunos. Amiano não menciona o número de feridos. Afirmou-se que seis mil cadáveres do inimigo foram contados no campo, e muitos outros devem ter morrido durante a perseguição ou afogados no Reno. Quando o exército romano celebrava a vitória, os soldados começaram a saudar Juliano como Augustus, o que levou o Caesar a se manifestar imediatamente, reprovando a aclamação e fazendo um juramento público, pelo qual declarava não ter ambição alguma além do seu status de então. Vários cortesãos desejavam alimentar as suspeitas sobre o subordinado de Constantino, mas o Augustus também ficou feliz por receber o crédito da derrota dos alamanos no seu pronunciamento oficial. Acredita-se até que ele tenha afirmado estar presente na batalha, dirigindo o exército em pessoa, e que no final Conodomário fora trazido a ele, e não a Juliano[19].

Na Gália, o Caesar estava determinado a explorar ao máximo sua vitória, cruzando o Reno e devastando o território dos alamanos. De início houve alguma resistência por parte das suas tropas, que achavam que a campanha estava completa, forçando Juliano a persuadi-los por meio de um discurso.

Cruzando o Reno, ele comandou uma coluna numa expedição de punição. Os alamanos vacilaram, tentando primeiro fazer a paz, e então resolveram lutar por seu território. Assim, um exército tribal começou a se reunir no terreno elevado de frente para os romanos. Durante a noite, Juliano embarcou oitocentos homens numa frota de pequenos barcos e os enviou a cerca de cinco quilômetros rio acima, onde desembarcaram e começaram a atacar e queimar as aldeias mais próximas. O ataque naquele ponto inesperado bastou para retirar os guerreiros da posição elevada vantajosa. Uma vez mais, os germânicos perderam o ímpeto e os romanos não encontraram oposição ao seu avanço, tomando o gado e as colheitas dos aldeões, e incendiando todas as casas e construções que encontravam.

Depois de quinze quilômetros, chegaram a uma floresta, onde um desertor informara Juliano que muitos guerreiros estariam esperando para emboscar os invasores. Durante algum tempo os romanos prosseguiram, até avistar os caminhos principais bloqueados com barricadas de árvores caídas – um claro sinal de que os germânicos pretendiam acossá-los se continuassem. Era início de outono e o tempo começava a esfriar, de modo que Juliano resolveu retirar-se em vez de se arriscar a lutar em condições inadequadas em troca de ganhos potencialmente modestos. Em vez disso, dirigiu-se a um forte abandonado nas proximidades que havia sido construído por Trajano. Os soldados trabalharam para restaurar as fortificações e uma guarnição foi instalada e abastecida ali. Esse sinal de que os romanos planejavam manter uma presença mais permanente na sua terra finalmente levou os alamanos a buscarem a paz, a qual Juliano concedeu num primeiro momento por dez meses aos três reis que o procuraram[20].

A luta parecia ter sido concluída por aquele ano, porém, quando o exército romano retornava aos quartéis de inverno, uma coluna comandada por Severo encontrou inesperadamente alguns guerreiros francos que estavam saqueando a província romana. Mais tarde, descobriu-se que cerca de seiscentos desses guerreiros concluíram que a preocupação de Juliano com os alamanos o impediria de defender apropriadamente outras seções da fronteira. Assim, em vez de retornar às suas terras pós a estação de saque, tinham resolvido estabelecer sua base em dois fortes romanos abandonados e continuar suas atividades pelos meses de inverno. Durante 54 dias entre dezembro e janeiro, Juliano, o Caesar na Gália e segundo homem com status menor apenas que o do imperador Constantino, cercou esses francos até eles finalmente se renderem. Para evitar que os germânicos fugissem pelo rio congelado, ele estabeleceu um sistema pelo qual soldados em pequenos barcos quebravam regularmente o gelo. Isso não evitou que a notícia chegasse a alguns membros daquela tribo, que formaram um pequeno exército para ir em auxílio dos saqueadores, mas essa força voltou ao seu local de origem ao descobrir que seus camaradas haviam se rendido. A operação foi executada com bastante eficiência e concluída com sucesso, contudo o envolvimento de um imperador, mesmo de status menor, num problema de pequena escala é um sintoma do baixo nível no qual os governantes de Roma operavam no final da Antiguidade. Durante todo o seu tempo na Gália, quase tudo o que Juliano fez teria sido tarefa normal de um procônsul ou propretor na época da república, ou de um legado sob o principado[21].

MAIS OPERAÇÕES, 358-359 D.C.

Juliano passou o resto do inverno em Lutécia (Paris), tratando de assuntos administrativos e financeiros. A derrota dos alamanos fora apenas parcial, e os romanos tinham consciência de que a maioria das suas tribos e dos clãs estava determinada a se vingar por Argentorato. Juliano dera ordens para que fossem estocados grãos para abastecer o exército, mas sabia que isso só poderia ser feito a partir de julho. Os germânicos também sabiam dessa situação, assim não esperavam qualquer atividade maior por parte dos romanos antes daquele mês. Acreditando que o inimigo chegara a essa conclusão, Juliano resolveu ir a campo diretamente, alimentando suas tropas com biscoito duro (buscellatum) feito com os grãos dos depósitos das bases. Era uma aposta, pois, se não fosse possível reabastecer os celeiros dos fortes, que eram normalmente objeto de cerco, eles poderiam sucumbir facilmente à fome. Quando o exército partiu, cada soldado recebeu uma ração desses biscoitos para vinte dias[22].

Os primeiros alvos de Juliano foram os francos sálicos, povo que se estabelecera na província romana da Toxiandra, correspondente mais ou menos à área das Flandres modernas. Antes de iniciar a campanha, Juliano recebeu uma delegação desse povo, que estava consciente de suas intenções. Os embaixadores francos pediam permissão para manter a terra que haviam tomado, prometendo que não atacariam nem devastariam as comunidades próximas daquela província. Juliano lhes deu uma resposta deliberadamente truncada e ordenou um rápido ataque logo depois que os enviados partiram. Os sálicos foram tomados de surpresa e rapidamente se renderam, permitindo a Juliano impor-lhes seus próprios termos. Após esse sucesso inicial, os romanos foram contra outro povo germânico, os chamavos, que também tinham se estabelecido naquela província. Dessa vez houve alguns combates, mas a resistência logo foi superada e os germânicos receberam ordens de retornar às suas terras originais além do Reno. Essas vitórias foram rápidas, e Juliano decidiu que poderia restabelecer uma segurança mais permanente na área restaurando e reocupando três fortes ao longo do rio Meuse. As guarnições poderiam ser fornecidas pelas unidades sob seu comando, porém era mais difícil conseguir alimentos suficientes para abastecer os celeiros dos fortes. O exército ainda tinha um suprimento de biscoitos equivalente a dezessete dias, e Juliano ordenou que seus soldados dessem a maior parte desse suprimento às guarnições. Isso produziu protestos, e mais uma vez os soldados sentiram-se livres para expressar sua desaprovação quanto à decisão do general, chamando-o de “asiático” ou “greguinho”, em referência à sua origem. Ainda havia algumas semanas para que a colheita pudesse ser feita, e a maioria ficou nervosa por ter de continuar a campanha sem alimento suficiente. Amiano parece haver tido considerável simpatia pelos soldados, observando que não estavam exigindo pagamento extra ou donativos, apesar de não terem recebido seu salário regular nem qualquer bonificação desde que Juliano assumira o comando. Constantino não desejara dar ao seu Caesar fundos suficientes, para que ele não conquistasse demasiada lealdade do exército da Gália[23].

Amiano não nos diz especificamente o que aconteceu depois desse protesto, a não ser que foi resolvido com palavras suaves, mas é mais do que possível que o comandante tenha recuado. Juliano também tinha outros problemas. Severo, seu antigo subordinado confiável, estava muito doente e logo iria morrer. Na sua última campanha, em 358, tornara-se quase morbidamente cauteloso, de modo que a coluna sob seu comando realizou muito pouco. Por meio da diplomacia, conseguira vencer um dos reis mais poderosos dos alamanos. Outro fora forçado a se submeter depois que uma expedição punitiva arrasara um trecho do seu território. Os romanos foram guiados por um guerreiro capturado por dois tribunos, enviados por Juliano explicitamente para lhe trazerem um prisioneiro. No primeiro momento, a coluna foi atrapalhada pelas familiares barricadas que bloqueavam as trilhas, mas foi finalmente capaz de penetrar numa região que os alamanos consideravam segura, provocando a capitulação do rei. A essa altura, o verão estava chegando ao final e o exército romano dispersou-se nos seus quartéis de inverno uma vez mais. Juliano voltou a ocupar-se com a administração[24].

A campanha do ano seguinte começou novamente com um ataque-surpresa a grupos dos alamanos que tinham se recusado a submeter-se. Como preparação, um tribuno que falava a língua germânica chamado Hariobaudes foi enviado numa missão diplomática ostensiva para conseguir informações sobre as intenções dos vários líderes. Além disso, Juliano conseguira grandes quantidades de grãos da Britânia, suficientes para alimentar seu exército de campo e também para encher os celeiros dos fortes e das cidades muradas que tencionava restaurar, deixando-as prontas para a defesa. Sete dessas cidades foram reocupadas, e até os auxiliares – que normalmente desdenhavam dessas tarefas, considerando-as abaixo do seu status de guerreiros – trabalharam com entusiasmo ao lado das outras tropas. Agindo de acordo com as informações fornecidas por Hariobaudes, Juliano cruzou o Reno e atacou os alamanos, a maioria dos quais fugiu, deixando suas plantações para serem queimadas ou confiscadas. No final do ano, quase todos os chefes alamanos tinham se rendido. Mesmo assim, a paz continuou provisória, possível de ser quebrada logo que os germânicos começassem a acreditar de novo que os romanos estavam fracos. Quando, no inverno de 359-360, grande parte do norte da Britânia foi invadido pelos pictos e pelos escotos, Juliano achou que não seria inteligente arriscar-se a ir resolver o problema. Em vez disso, enviou o sucessor de Severo, Lupicino, com quatro unidades de auxiliares para restaurar a situação do outro lado do canal da Mancha. O tamanho dessa força é outra indicação de como era pequena a escala da maior parte da atividade militar no século IV[25].

JULIANO COMO AUGUSTUS, 360-363 D.C.

Enquanto Juliano estava em campanha ao longo da fronteira do Reno, Constantino estivera lutando no Danúbio, mas suas atenções foram voltadas à fronteira oriental do império. Em 359, uma disputa com a Pérsia – no século III, a dinastia sassânida de etnia persa havia derrubado a monarquia arsácida parta –, que há muito se desenvolvia, finalmente evoluiu para a guerra aberta. Desde o começo, as coisas foram mal para os romanos. Precisando de homens, Constantino ordenou que seu Caesar lhe enviasse quatro regimentos auxiliares completos – Celtae, Petulantes, Batavi e Heruli –, juntamente com trezentos homens de cada uma das suas outras unidades. Correram rumores de que o Augustus estava quase tão preocupado em diminuir o poder do seu bem-sucedido colega de status inferior, quanto em reforçar o exército que iria enfrentar os persas.

Juliano ficou perplexo com a ordem. Seus homens se enfureceram e se amotinaram mais uma vez, recusando-se a deixar suas famílias e parentes, sobretudo porque estes ficariam à mercê dos alamanos. Novamente proclamaram Juliano Augustus, e dessa vez ele aceitou, apesar de Amiano afirmar que isso se deveu apenas a ele não ter conseguido persuadir os soldados a obedecerem às ordens e a lhe permitirem pedir que Constantino rescindisse a exigência. O general de 28 anos foi erguido num escudo levantado à altura dos ombros por alguns soldados – a primeira ocasião registrada em que um imperador romano foi aclamado do modo tradicional germânico de nomear um chefe guerreiro. Um torque usado ao redor do pescoço como sinal de valor lhe foi dado por um porta-estandartes para servir como diadema do Augustus (isso foi um avanço em relação à sugestão inicial de que o objeto fosse um dos colares da sua esposa ou, ainda menos auspicioso, parte dos arreios decorativos de um cavalo). Enquanto era levado pelo acampamento, o novo Augustus, “relutante”, prometeu a cada soldado um prêmio substancial em prata e ouro por apoiá-lo. Até Amiano acreditava que Juliano tinha a expectativa de que Constantino o aceitasse como seu igual e compartilhasse o governo do Império[26].

Roma enfrentava uma vez mais a guerra civil, mas nesse caso houve menos combates, pois Constantino morreu de causas naturais no começo de 361. O império voltava a ter um único senhor, porém sua popularidade mostrou-se fugaz. Sem mais sentir-se constrangido em fingir ser fiel à Igreja, Juliano professou abertamente o paganismo, limitando a atuação dos cristãos, que àquela altura eram um grupo numeroso e poderoso. Mesmo alguns pagãos acharam que o decreto que proibia os cristãos de dar palestras e de lecionar era injusto. Outras medidas irritaram grupos como as aristocracias pagãs das grandes cidades orientais, com cujo apoio ele poderia ter contado. Quaisquer que fossem as intenções de Juliano, suas decisões enquanto imperador mostraram sua falta de bom senso.

O mesmo poderia ser dito sobre a grande expedição que lançou contra a Pérsia em 363. Para tanto, ele reuniu um exército de cerca de 83 mil homens, que incluiu boa parte das tropas da Gália, as quais desejaram seguir seu Augustus até o Oriente, apesar da sua relutância inicial em fazer o mesmo sob Constantino. Sendo o maior exército romano empregado contra um oponente estrangeiro no século IV, foi capaz de penetrar profundamente em território inimigo, derrotando todas as forças que encontrava. Não obstante, Juliano não conseguiu forçar os persas a travar uma batalha decisiva e logo enfrentou os problemas inevitáveis de abastecer um número tão expressivo de homens ao longo de grandes distâncias. Desde o início da campanha, pelo menos um quarto dos seus homens foram usados para tripular a frota de barcos fluviais que transportava suprimentos através do Eufrates.

O comportamento de Juliano denotava, por vezes, uma emulação consciente dos primeiros comandantes romanos. Tendo lido que Cipião Emiliano, Políbio e um pequeno grupo de soldados cortaram caminho através de um portão protegido pelo inimigo em Cartago, Juliano tentou copiar a ação no cerco de Pirisabora, mas foi rechaçado. Amiano desculpa essa falha do seu herói explicando que as circunstâncias em que o feito original foi realizado eram diferentes. Durante um reconhecimento em outra fortaleza em Maozamalcha, Juliano e seus oficiais foram emboscados por dez persas, dois dos quais reconheceram o imperador por conta do seu uniforme e o atacaram. O Augustus matou um deles com sua espada, enquanto seus guarda-costas cuidaram do outro. Depois de Maozamalcha cair, Juliano imitou publicamente Alexandre, o Grande e Cipião Africano ao não molestar (e nem mesmo olhar) muitas belas nobres que tinham sido capturadas. A literatura sempre enfatizou o ideal de comportamento de um grande general, porém há forte possibilidade de que o desejo de Juliano de se igualar aos grandes comandantes históricos ditasse seu comportamento[27].

Os romanos chegaram a Ctesifonte, tendo desobstruído um canal construído por Trajano e também usado por Sétimo Severo para trazer suprimentos pelo Eufrates e pelo Tigre. Mesmo assim, ao lá chegar, Juliano e seus oficiais resolveram que não estavam em posição de tomar a cidade e começaram a se retirar. Contra o conselho de seus oficiais, o Augustus ordenou que a frota de transporte fosse incendiada e instruiu o exército a marchar para longe do rio e se retirar através de uma região que os exércitos rivais ainda não tinham cruzado. A visão da frota sendo incendiada provocou protestos entre os soldados, mas a ordem cancelando a instrução original chegou tarde demais para evitar sua implementação. Nos primeiros dias de marcha, foi fácil conseguir água, alimentos e forragem das terras através das quais os romanos estavam passando. Logo, porém, os persas reagiram e começaram a queimar as plantações à frente da coluna inimiga. Juliano teve ainda mais motivos para lamentar suas ordens imprudentes, quando percebeu tardiamente que a destruição dos barcos tornara impossível para o exército construir uma ponte de barcos que lhe permitiria cruzar o Tigre uma vez mais, deixando o rio entre ele e os persas.

A situação de abastecimento estava agora ficando desesperadora, contudo o exército continuou a marcha, travando várias escaramuças violentas à noite com os persas que o perseguiam. Numa delas, Juliano destacou-se a cavalo para tentar dirigir o combate, sem haver tido tempo de vestir sua armadura. Foi atingido por um dardo que se alojou na lateral do seu corpo, derrubando-o do cavalo. Ninguém sabia ao certo quem arremessara o dardo, embora Libânio tenha registrado um rumor de que o atirador seria romano, um soldado cristão enfurecido com Juliano por ele promover o paganismo. O ferimento foi mortal, e o Augustus morreu na sua barraca pouco depois, sendo substituído rapidamente por um membro do exército escolhido pelos oficiais. Com o exército em tal posição precária, havia poucas opções a não ser concluir uma paz vergonhosa com a Pérsia[28].

Na Gália, Juliano se mostrara um comandante razoavelmente competente, apesar da falta de experiência militar antes de sua nomeação como Caesar. Como vimos, o tipo de problema que ele enfrentou era daquele rotineiramente tratado pelos governadores provinciais dos períodos anteriores. Por volta do século IV, apenas um imperador possuía tanta autoridade e tinha a capacidade de concentrar recursos suficientes para derrotar incursões bárbaras menores. Juliano contribuiu para restaurar a segurança da fronteira ao longo do Reno, embora nos anos subsequentes ela se mostrasse impossível de manter sem uma presença militar ativa na área. Ele conquistou diversas vitórias e não sofreu derrotas sérias, mas não há nada nessas campanhas que indique talento excepcional da sua parte. Algumas das suas decisões são questionáveis, e ele com certeza não tinha o talento de Cipião ou Júlio César para julgar a disposição dos seus homens.

Na campanha persa, a grande escala da operação e os problemas inerentes a operar no território inimigo em lugar de numa província aumentaram bastante as consequências dos seus erros e a falta de compreensão das opiniões dos seus soldados. Exércitos romanos excepcionalmente amplos não tinham um bom registro de resultados – Canas e Aráusio são os dois exemplos mais famosos e desastrosos –, e parecia extremamente difícil para um general controlar com eficiência forças maiores que quarenta mil homens. Por volta do século IV, quando o tamanho das unidades diminuíra e o exército era mantido para fazer guerras em escala muito menor, um exército de 83 mil homens era tremendamente desajeitado. Ninguém, nem mesmo Juliano, tinha experiência alguma em controlar e abastecer forças como essas. Isso, aliado aos mesmos problemas que contribuíram para evitar que as campanhas de Trajano e de Severo no Oriente resultassem na derrota definitiva dos partos, finalmente resultou num fracasso humilhante. A carreira de Juliano é interessante não por conta da sua capacidade pessoal como comandante, mas por fornecer uma boa indicação das circunstâncias sob as quais os generais romanos do final do Império realizavam suas funções.