D e s t i n o
Lenda oriental
Em tempos já muito recuados, em pequena mas rica cidade, vivia um mercador de tapetes, marfim, especiarias e óleo de rosas. Era um homem inteligente, cortês, devoto e honesto, tocava os negócios exemplarmente e, com isso, granjeara a confiança e o respeito de todos.
Um dia, apresentou-se-lhe a possibilidade de comprar grande carga de ouro em pó e revendê-la, com o que a sua riqueza imediatamente triplicaria. Mas, para isso, precisava não apenas de juntar todo o seu dinheiro, tanto o guardado no cofre como o emprestado a outrem, senão também vender rapidamente todas as suas mercadorias. Após ponderar bem todas as vantagens e as desvantagens do empreendimento e chegar à conclusão de que ele era tão lucrativo e certo que somente um desfavor excepcional do destino poderia empecer o seu bom êxito, o mercador decidiu investir nele todos os seus bens, de uma só vez.
Assim, em uma semana, fez todos os preparativos e disposições, sem revelar nada aos familiares, como convém a um administrador de verdade. Quando chegou a manhã da quinta-feira, dia feliz para todos os cometimentos, disse ele ao seu primogênito:
— Sela a égua alazã para ti e o burro para mim e para a carga.
O mancebo estava acostumado a obedecer ao pai sem fazer perguntas. Cumpriu a ordem em silêncio. Deitou sobre o burro os dois pequenos sacos de couro, que o pai lhe dera, e prendeu-os à sela; fizeram breve prece de viagem e partiram de casa ao alvorecer: o pai à frente, o filho um pouco atrás e de lado.
Acompanhou-os a boa fortuna. Todas as transações comerciais e monetárias correram tão fáceis, breves e lucrativas que o mercador, começando a assustar-se do constante êxito, murmurava consigo, a trechos: “Se Alá quiser”, “Se aprouver a Alá ”. Tentava, dessa maneira, prevenir a ingerência do destino.
Soube ele, no caminho, que haviam subido extraordinariamente os preços dos artigos de luxo, por causa do matrimônio do príncipe francês com a infanta espanhola. Com isso, logrou vender a crédito todas as suas mercadorias, recebendo sinais que excediam substancialmente os seus cálculos. Todos os devedores revelaram-se pessoas abastadas e lhanas e saldaram de bom grado as dívidas. Não houve, também, nenhum atraso ou estorvo na estrada.
Ao terminar com tanta felicidade todas as transações, rumou o mercador para a magnífica cidade litorânea, onde esperava por ele a carga de ouro em pó. Tinha a alma em festa, mas, não obstante isso, murmurava consigo:
— In-xa’llakh.[3]
Antes do termo daquele primeiro dia de viagem para o mar e o glorioso porto, saíram o velho e o filho da estrada e dirigiram-se a uma estalagem, para ali comer e pernoitar. Pegou o pai os alforjes, como sempre, e foi para a taberna, ao passo que o filho levou a mula e o burro para a estrebaria, desselou-os e arraçoou-os. Em seguida, ambos lavaram as mãos, oraram e sentaram-se a comer uma refeição modesta.
Ceavam ainda quando na taberna irrompeu um rancho de pessoas de aspecto suspeito, bulhentas e malvestidas. Elas exigiram vinho, puseram-se a beber e a cantar, e beberam novamente. Pouco depois, desentenderam-se; a altercação transformou-se em gritos, impropérios e luta; reluziram facas.
— Vamo-nos para longe do pecado — disse o mercador ao filho, levantando-se. — Eu te ajudarei na estrebaria.
Selaram apressadamente os animais na escuridão, alcançaram a estrada, e seguiram açodadamente até não ouvirem o tropel de pés e os brados furiosos daquela gente. Quando aos seus ouvidos não chegou nenhum som da taberna, o mercador sofreou subitamente o burro, tateou a sela e ordenou ao filho:
— Pára! Volta!
Virou ele próprio a montaria com impaciência e, açoitando-a com o látego, cavalgou a toda brida. O mancebo seguiu-o.
Entraram novamente no pátio da estalagem. Espiaram pela janela da taberna, pondo-se à escuta. Dentro, reinava um silêncio de sepulcro. As luzes estavam acesas. O lugar parecia deserto. Depois, quando olharam bem, notaram cadáveres e poças de sangue pelo chão. Chamaram pelo dono, pelos serviçais. Não lhes respondeu ninguém. Todos deviam ter-se assustado com a carnificina e estavam escondidos ou haviam fugido para a floresta.
O mercador atirou as rédeas nas mãos do filho. Subiu com rápidas passadas ao terraço da frente, entrou no salão, caminhou até ao lugar em que estiveram a jantar, e inclinou-se sobre o banco; o filho viu, então, pela janela, o pai levantar do assento os dois sacos de couro, atados por uma corda, e pô-los a tiracolo. Somente nesse instante compreendeu o mancebo que se haviam esquecido de pegá-los, na precipitação.
Porém, ao sair para o pátio, não lhe disse o mercador nenhuma palavra de explicação. Prendeu os sacos à sela, subiu no burro com um salto e açoitou-o.
Galoparam pela estrada durante muito tempo, temerosos, pois podia a polícia aparecer de supetão na taberna, seguir-lhes as pegadas frescas, prendê-los e levá-los ao juiz. E, de um juiz, ninguém — inocente ou culpado — consegue livrar-se pelo resto da vida, até entregar-lhe a última camisa.
Ao amanhecer, atingiram pequeno rio, ourelado de ambos os lados por um bosque virente e sombroso. Ordenou o pai que se atassem as montarias a uma árvore. Fizeram a ablução matinal. Depois, disse ele:
— Pega os sacos e segue-me.
Chegaram a uma clareira pequena, defesa, de todos os lados, dos olhares de estranhos. O mercador parou e disse:
— Senta-te.
Sentaram-se. O pai abriu os sacos e pôs-se a tirar tudo o que havia neles, formando dois montes iguais. Tudo meio a meio: brilhantes, pérolas, turquesas — pedrinha por pedrinha, por tamanho e valor. Do mesmo modo, com as moedas de ouro e os cheques das casas bancárias de ricos mouros. Ao termo da divisão, disse:
— Eis cá duas partes iguais. Uma é tua. Escolhe um dos montes, deita todas as coisas em um saco e prende-o à sela. Montarás imediatamente e irás na direção em que viemos até agora. A cinco minutos de cavalgada daqui, verás que o caminho se bifurca. Tomarás o rumo da tua sinistra. Assim, regressarás em menos tempo. Lembra-te: és agora o mais velho da casa. Constrói a tua vida como quiseres e puderes. Eu não te dou conselhos nem a bênção. Vai-te. Até chegares ao primeiro povoado, não ouses olhar para trás. Eu ficarei muito tempo longe de casa. Talvez até não retorne nunca. Podes ir.
O mancebo escutou a ordem em silêncio, prostrou-se diante do pai, beijou-lhe a terra entre os pés, virou-se, montou-se na égua e desapareceu entre as árvores.
Eis tudo, por ora, sobre o mercador e o filho.
Em uma cidade rica e esplêndida, capital de um reino poderoso, era a véspera de solene data festiva. Por isso, desde as primeiras horas da manhã, os seus habitantes — do magnânimo e onipotente monarca ao último jornaleiro — observavam rigoroso jejum. Até à noite, até à hora, a que não se conseguisse já distinguir uma linha negra de uma vermelha, não poderia ninguém provar alimento; a quem sentisse sede, a lei permitia tão-somente aliviar a boca ressecada com um bochecho de água. Recompensasse cada um, depois, a sua paciência com abundantes iguarias, doces, frutas, bebidas e outros bens terrenos.
Havia ainda, no país, um costume consagrado desde prístinas eras: invitar, para essa festa, o pobre, o órfão, o ancião solitário ou o viandante sem abrigo para aquela noite. Tal costume era respeitado tanto nos palácios luxuosos como nas cabanas do arrabalde.
Eis que, antes da festa, à saída de uma casa de orações, disse um dos homens mais ilustres e respeitados da cidade aos que o rodeavam:
— Amigos — disse ele —, eu vos rogo: levai à minha casa todos os mendigos que encontrardes pelas ruas e à porta das tabernas. Quanto mais débeis, desamparados e infelizes forem eles, com tanta mais atenção e tanta mais honra eu os receberei.
Era pessoa de riqueza incalculável: as suas longas caravanas internavam-se pelo país, chegando até ao grande rio; os seus barcos, de muitas velas, singravam todos os mares do mundo; as suas mansões de mármore impressionavam pelos vastos jardins e pelas frescas fontes. Mas, se a riqueza lhe granjeara consideração e admiração, era ele querido, em toda parte, pelas suas virtudes: o amor à verdade, a bondade e a sabedoria. Pródiga era a sua mão com os pobres, sempre; jamais abandonara um amigo na dor ou na desgraça, e, nas situações mais complexas da vida, eram os seus conselhos tão certos e sagazes, que não raramente a eles recorria o próprio soberano, sombra do Profeta na Terra.
Por isso, os amigos, em resposta ao seu pedido, fizeram-lhe uma reverência e prometeram atender o seu pedido o mais depressa possível.
Um falou de modo especial:
— Ó, fonte do Bem, protetor dos pobres, apreciador de pedras preciosas! Tem a condescendência de escutar o que me contaram servos meus, quando voltaram dos banhos, aonde, como sabes, são obrigados a ir, neste dia, todos os maometanos. Encontraram ali um homem tão velho, tão decrépito e tão pobre, como jamais se vira alguém igual na nossa rica cidade, por si já repleta de mendigos. Tudo o que possuía eram as babuchas, um saco de couro e andrajos, e nada por que pudesse trocá-los. Esse indigente, ao ir ao vestiário, notou que lhe roubaram — talvez até nem por rapacidade e mais por tolo divertimento — o surrão de mendigo e as babuchas de corda, deixando-lhe somente as vestes imprestáveis e esburacadas. Todos os que o viram naquele momento ficaram profundamente comovidos e indignados. Porém, maior ainda do que a consternação e a ira, foi o seu espanto, ao verificarem que, em vez de espelhar tristeza e raiva, o rosto do velho resplandecia de alegria. De mãos alçadas para o céu, agradeceu a Alá e ao destino com expressões tão belas, tão sinceras e ardentes, que os presentes emudeceram e, perturbados, puseram-se a certa distância dele... É sobre tal homem que eu desejava falar-te, ó provedor da nossa paz, embora confesse que esse estranho velho me pareça louco.
O nababo ilustre meneou a cabeça e disse:
— Se é um louco ou um santo, não o sabemos. Leva-o, amigo meu, o mais depressa que puderes, à minha casa. Será ele o meu primeiro hóspede para a ceia desta noite.
Quando chegou o tão esperado minuto e se acenderam luzes brilhantes em todas as casas da capital, e de todos os fornos se evolaram os aromas do pilav,[4] de aves assadas e de picantes temperos, foi o velho mendigo levado à casa do célebre ricaço. Este, em pessoa, recebeu-o no pátio; segurando-o respeitosamente pelo braço, levou-o para o salão de festas, assentou-o no lugar de mais honra e, quando a criadagem trazia pratos, ele os tomava, para servir os melhores bocados ao hóspede.
Todos os comensais folgavam de ver a afabilidade e a bondade que o rosto do ancião irradiava. Comovido com as suas cãs e a serena alegria senil, perguntou-lhe o anfitrião:
— Dize-me, por caridade, meu pai, não poderia eu servir-te de alguma maneira, realizando algum desejo teu, grande ou pequeno, não importa?
O velho abriu um sorriso luminoso e respondeu:
— Mostra-me todos os filhos teus e netos, e eu lhes darei a bênção.
Um de cada vez, por idade, abeiraram-se dele quatro varões — os filhos do mercador — e três mancebos, os seus netos, e cada um ajoelhou-se aos pés do ancião, que lhe depunha as mãos na cabeça.
Quando findou esse bom e antigo rito, por último pediu-lhe a bênção o ilustre homem. O ancião não somente o abençoou, como também o abraçou e beijou nas faces e nos lábios.
Erguendo-se, profundamente comovido, disse o insigne mercador:
— Perdoa-me, meu pai, a pergunta que ouso fazer-te, e não a consideres vã curiosidade. Desde que tu puseste os pés na minha casa, olho fixamente para ti e não consigo desviar os olhos do teu venerável rosto, e ele, a cada vez mais, me parece familiar. Não te lembras se já nos encontramos antes... há muitos, muitos anos?
— Perdôo-te de bom grado, filho — respondeu o velho, com um sorriso amoroso —, e, por minha vez, também te farei uma pergunta: não te recordas de sombroso bosque à margem de um ribeiro, bem como de um burro e de uma égua, atados a uma árvore, e de duas pessoas, pai e filho, que, em uma clareira, tiraram pedras preciosas de um saco e dividiram tudo meio a meio?...
Nesse momento, o mercador prostrou-se diante do ancião, beijou-lhe o chão entre os pés, aprumou-se e exclamou:
— Ó pai amado meu, louvado seja Alá, que te trouxe de volta. Esta é a tua casa, e eu, os meus filhos e os meus netos, todos somos servos e escravos teus.
Ele e o pai se abraçaram e choraram longamente de alegria. Choraram também todos os presentes. Depois, quando serenou a comoção, perguntou o ilustre mercador, com terno respeito, ao pai:
— Dize-me, meu pai, por que, naquela manhã, repartiste entre nós todos os teus bens e por que desejaste que tomássemos rumos diferentes, separando-nos por muito tempo, se não para sempre?
Respondeu o ancião:
— Se te recordas ainda, mal partíramos nós para aquela viagem de negócios, pudemos verificar que nos acompanhava uma ventura extraordinária. Lembra-te, eu repetia o tempo todo: “In-xa’llakh”. Eu temia a invídia do destino. Quando nós voltamos à estalagem e eu encontrei intocados os nossos sacos, que haviam ficado à vista e ao alcance de toda aquela gente, eu compreendi que tal sorte excedia a tudo que podia ocorrer a um homem e que, daquele dia em diante, por longo, longo tempo, a minha vida conheceria apenas malogros e desditas. Assim, querendo proteger a ti, meu primogênito, e toda a minha casa de futuras desgraças, decidi deixar-vos, levando comigo o meu inelutável destino. Pois é dito: durante a tempestade, só o tolo procura refúgio sob a árvore, que atrai o raio... Tu bem podes ver o estado de indigência a que eu cheguei nesses anos de separação. Não achas que fui previdente?
Todos os presentes, atentos a essas palavras, fizeram uma reverência ao ancião e admiraram-se da sua sabedoria e perspicácia e do seu inquebrantável amor à família abandonada por ele.
Perguntou-lhe um dos hóspedes mais honoráveis:
— Mas por que, ó irmão do meu tio, hoje, em vez de chorares, te alegraste e regozijaste ao saberes que te roubaram o surrão, o último bem de um mendigo? Não te zangues, peço-te, com a minha pergunta e, se desejares, responde-me.
A isso respondeu o velho, com um sorriso bondoso:
— Eu compreendi, naquele instante, que o destino deixaria de perseguir-me, eis por que me regozijei. Pois, medita e dize-me: pode imaginar-se, sobre toda a terra iluminada pelo Sol, alguém mais pobre e mais infeliz do que um mendigo, a quem hajam roubado o surrão? Não podia já o destino preparar-me nada mais cruel do que aquilo. Como vês, eu não me enganei. Não encontrei eu, no mesmo dia, um filho meu, os filhos dele e os filhos dos seus filhos? Agora, já sem temer atrair a mão maligna do destino sobre as suas cabeças, eu viverei os restantes dias meus cercado de carinho, com alegria e paz.
Todos lhe fizeram novamente uma reverência e disseram, a uma só voz:
— Foi o destino!