Allez!
Esse brado imperioso e entrecortado era a primeira recordação da senhorita Nora da sua infância errante, monótona e obscura. A sua lingüinha infantil e débil pronunciou essa palavra antes de qualquer outra; em seguida a tal grito, sempre, até em sonhos, ressurgiam na memória da moça o frio da arena do circo, o cheiro da estrebaria, o galope pesado de um cavalo, o estalo seco de um chicote comprido e a dor aguda de um golpe, que a arrancava da hesitação momentânea provocada pelo medo.
— Allez!...[5]
No circo deserto, está escuro e faz frio. Cá e além, raios do sol invernal, mal conseguindo coar-se através da cúpula de vidro, deitam manchas tênues no veludo carmesim e na douradura dos camarotes, nos escudos com cabeça de cavalo e nas bandeiras de enfeite dos pilares, brincam nos vidros opacos das lanternas elétricas e deslizam pelo metal das barras fixas e dos trapézios, a uma altura medonha em que aparelhos e cabos se confundem. É possível lobrigar apenas as duas primeiras fileiras de poltronas; os lugares superiores aos camarotes e a galeria acham-se imersos na escuridão.
Realiza-se o ensaio diurno. Cinco ou seis artistas, com casacos de peles e gorros, estão sentados na primeira fila, ao pé da entrada da cavalariça, e fumam charutos fedorentos. No centro do picadeiro, está um homem atarracado, de pernas curtas, com a cartola derreada sobre a nuca, e bigodes negros, esmeradamente torcidos em guias bem finas. Ele ata uma corda à cintura de uma menininha de cinco anos, que treme de inquietação e com o frio intenso. Um enorme cavalo branco, conduzido pelo palafreneiro ao longo da cercadura da arena, bufa alto, a sacudir o pescoço curvado, e jatos de vapor branco saem das suas ventas. Todas as vezes em que ele passa em frente ao homem de cartola, olha de esguelha para o azorrague preso na sua axila, bufa inquieto e, com um salto, puxa o cavalariço, que tenta firmar-se no chão. A pequena Nora ouve-lhe os movimentos nervosos atrás de si e treme ainda mais.
Duas mãos poderosas cingem-na e atiram-na sem esforço para o largo colchão de couro do lombo do animal. Quase simultaneamente a isso, as cadeiras, os brancos mastros e as cortinas de cotim das entradas, tudo se funde em um círculo multicor, que gira veloz ao encontro do cavalo. As mãos, ao agarrarem convulsamente uma onda áspera da crina, gelam-se, e os olhos fecham-se com força, deslumbrados pelo girar doido do círculo turvo, mas isso é inútil. O homem de cartola caminha pelo picadeiro, mantém a ponta do longo chicote próxima à cabeça do cavalo, e dá estalos ensurdecedores com ele...
— Allez!...
Ei-la com uma sainha curta de escumilha, com os braços magros e semi-infantis nus, à luz de uma lâmpada elétrica, quase sob a cúpula do circo, de pé em um trapézio, que oscila de rijo. Do mesmo trapézio, de cabeça para baixo, segurando-se à barra pelos joelhos, pende outro homem cruel e atarracado, de cabelos crespos e untados de brilhantina, e roupa de malha rosada com lantejoulas douradas e franjas. Ele ergue os braços, até então abaixados, separa-os, fita os olhos penetrantes, de atirador que faz mira, e hipnotizadores de acrobata nos de Nora e... bate as palmas. Nora faz um movimento rápido para a frente, para precipitar-se lá de cima direto naquelas mãos fortes e impiedosas (ah, com que susto suspirarão, agora, as centenas de expectadores!), mas gela-lhe o coração de repente, de medo, parando de bater, e ela apenas aperta as finas cordas com mais força. Erguem-se, outra vez, as mãos impiedosas, e torna-se ainda mais tenso o olhar do acrobata... O espaço, que a menina vê sob os pés, parece-lhe um abismo.
— Allez!...
Ela se balança, mal conseguindo tomar alento, no ponto mais alto da “pirâmide viva” de seis pessoas. Desliza, a contorcer o corpo flexível como o de uma serpente, por entre as barras da longa escada branca, que alguém embaixo sustenta sobre a cabeça. Dá voltas no ar, “no vôo de Ícaro”, impulsionada pelas pernas do malabarista, fortes e terríveis qual molas de aço. Caminha a grande altura, sobre o picadeiro, por um fio fino e oscilante que lhe corta dolorosamente os pés... Em todos os lugares, os mesmos rostos tolamente bonitos, riscas de cabelo untadas, coques armados, bigodes torcidos, cheiro de charuto e de corpo humano suado; em todos os lugares, o mesmo medo e o mesmo grito inevitável e fatídico, igual para pessoas, cavalos e cães amestrados:
— Allez!...
Ela acabara de completar dezesseis anos e era muito bonitinha, quando, durante um espetáculo, despencou da barra fixa aérea e, voando rente à rede, se estatelou na areia do picadeiro. Levaram-na imediatamente para os bastidores e, por uma prática antiga dos circos, puseram-se a sacudi-la com toda a força pelos ombros, para a reanimarem. Ela deu acordo de si e ficou a gemer da dor, que lhe causava o braço destroncado. “O público está agitado e começa a retirar-se”, diziam à sua volta, “vá mostrar-se ao público!” Ela obedientemente repuxou os lábios no sorriso de “amazona graciosa”, mas, após dois passos, soltou um grito e cambaleou, do sofrimento insuportável. Dezenas de mãos, então, agarraram-na e empurraram-na vigorosamente para a cortina da entrada do picadeiro, para os olhos do público.
— Allez!...
No circo, naquela temporada, na qualidade de artista excursionante, “trabalhava”[6] o palhaço Menotti. Este não era um simples palhaço, um desses coitados que rolam pela areia, tomam bofetadas e, apesar de não terem comido nada desde o dia anterior, são capazes de divertir o público uma tarde inteira com brincadeiras inesgotáveis; era uma celebridade, o maior palhaço solo[7] e imitador do mundo, um amestrador conhecido internacionalmente, laureado com muitos prêmios de honra ao mérito etc., etc.
Usava uma corrente de medalhas de ouro no peito, cobrava duzentos rublos por apresentação, orgulhava-se de já havia cinco anos não envergar trajes que não de seda ondeada e cambiante, sentia-se inevitavelmente “moído” após os espetáculos e dizia a si próprio, com amargura: “Pois, pois! Nós somos bufões, nós devemos divertir o público bem alimentado!”. No picadeiro, cantava velhas coplas de maneira pretensiosa e desafinada ou declamava versos da própria lavra, ou sentava a língua na Duma[8] e no sistema de canalização, o que, de modo geral, ao público, atraído ao circo por uma propaganda estouvada, causava a impressão de uma denguice afetada, tediosa e despropositada. No dia-a-dia, tinha aspecto lânguido e protetor e gostava de aludir, de modo misterioso e displicente, a condessas extraordinariamente belas e incrivelmente ricas, mas que já o haviam enfastiado completamente.
Quando Nora, recuperada da contusão, reapareceu no circo para o ensaio matinal, Menotti, ao saudá-la, reteve-lhe a mão na sua, pôs nos olhos um brilho úmido e uma sombra de cansaço e perguntou-lhe, com voz lânguida, como ia de saúde. Ela ficou perturbada, corou e retirou a mão. Esse momento decidiu o seu destino.
Uma semana depois, ao acompanhar Nora até à sua casa, após o grande espetáculo da noite, Menotti convidou-a a jantar no restaurante do magnífico hotel, em que o mundialmente famoso e maior palhaço solo da Terra sempre se hospedava. Os reservados ficavam no andar de cima, e Nora, ao subir a escada, deteve-se por um minuto — em parte, por cansaço, em parte, pela comoção e uma última e casta indecisão. Menotti, porém, apertou-lhe com força o cotovelo. Uma paixão ferina e a ordem cruel do acrobata soaram na sua voz quando murmurou:
— Allez!...
Ela foi... Via nele um ser superior, extraordinário, quase um deus... Atirar-se-ia no fogo, se ele lho ordenasse.
Seguiu-o de uma cidade a outra durante um ano. Cuidava dos brilhantes de Menotti aquando das suas apresentações, vestia-lhe o fato de malha e tirava-lho, ajudava-o a amestrar ratazanas e porcos, passava-lhe cold-cream[9] no rosto e, o que é o mais importante, acreditava, com o ardor de uma idólatra, na grandeza mundial dele. Quando ficavam a sós, ele não achava de que falar a ela, e aceitava as suas carícias ardentes com o aspecto exageradamente enfastiado da pessoa que já está farta mas permite benevolentemente que a adorem.
Um ano depois, Menotti cansou-se dela. O seu olhar lânguido deteve-se em uma das irmãs Wilson, dos “vôos aéreos”. Não fazia mais cerimônias com Nora e não raramente a esbofeteava perante palafreneiros e outros artistas, no camarim, por causa de um simples botão despregado. Ela suportava isso com a mesma resignação com que um cão velho, inteligente e fiel agüenta as pancadas do dono.
Finalmente, em uma noite, em que o maior amestrador do mundo fora vaiado por haver chicoteado um cão com demasiada força, Menotti disse a Nora, sem rodeios, que se fosse dali para o diabo imediatamente. Ela lhe obedeceu, mas parou junto à porta do quarto, com olhar implorante. Ele, então, correu para a porta e a escancarou, aos gritos:
— Allez!...
Dois dias mais tarde, porém, ela, como o cão espancado e enxotado, sentiu vontade de voltar para o dono. A sua vista escureceu, quando um empregado do hotel lhe disse, com um sorriso impudente: “Ele não pode-s recebê-la. Ele está no reservado, ocupado com uma senhorita-s”.[10]
O papel de parede carmesim e dourado, a luz forte de dois candelabros, o brilho de cristais, o monte de frutas e garrafas em vasos de prata, Menotti deitado, sem sobrecasaca, no divã, a Wilson com o corpete aberto, os perfumes, o cheiro de vinho, charutos e de pó-de-arroz, tudo isso a deixou estonteada no início; depois, ela se atirou sobre a mulher e lhe deu vários socos no rosto. A outra pôs-se a gritar com voz esganiçada, e armou-se um sarilho.
Quando Menotti, com muita dificuldade, conseguiu apartar as duas, Nora ajoelhou-se impetuosamente diante dele e, cobrindo de beijos as suas botas, implorou-lhe seguidamente que voltasse para ela. Ele a afastou de si com esforço e disse, a apertar-lhe o pescoço com os dedos fortes:
— Se não sumires daqui imediatamente, canalha, eu mandarei os empregados te arrastarem!
Nora levantou-se, sufocada, e disse, num murmúrio:
— Ah... Se é assim... Se é assim...
O seu olhar deteve-se na janela aberta. Presta e ágil, como ginasta habituada, pulou para o peitoril e inclinou-se para a frente, segurando-se aos dois caixilhos exteriores.
Na rua passavam, com estrépito, carruagens que, vistas daquela altura, pareciam animaizinhos estranhos; brilhavam, após a chuva, as calçadas, e, nas poças, tremulavam os reflexos dos lampiões.
Os dedos de Nora ficaram frios, e o coração parou por causa daquele minuto de medo... Então, de olhos fechados, respirou bem fundo, levantou um braço sobre a cabeça e, sopitando a fraqueza com o esforço costumeiro, gritou, como no circo:
— Allez!...
(1897)