No circo
i
O doutor Lukhovítski, que se considerava o médico permanente do circo, mandou Arbúzov tirar a camisa. Apesar da corcunda, e talvez até por esse defeito, votava aos espetáculos circenses um amor pungente e um tanto ridículo em uma pessoa da sua idade. É bem verdade que recorriam aos seus préstimos muito raramente, porque, naquele mundo, se tratavam contusões, reanimavam pessoas e reduziam luxações por meios próprios, invariavelmente transmitidos de geração a geração, provavelmente desde os tempos dos primeiros Jogos Olímpicos. Isso, no entanto, não o impedia de assistir a todas as funções vespertinas, conhecer de perto todos os cavaleiros, acrobatas e malabaristas afamados e de usar palavrinhas do léxico da arena e da estrebaria.
Dentre todas as pessoas ligadas ao circo, os lutadores profissionais e os atletas suscitavam-lhe uma admiração especial, que beirava com a verdadeira paixão. Por isso, quando Arbúzov tirou a camisa engomada e a camisola de tricô, usada por todos os circenses, sem exceção, e ficou de peito nu, o pequeno doutor até esfregou as mãos de satisfação, volteando em torno daquele, a admirar-lhe o corpanzil bem cuidado, brilhante e rosado, de músculos bem salientes e duros como madeira.
— O diabo o carregue, isso é que é força! — dizia, a apertar ora um ombro do atleta, ora o outro, com os dedos finos e tenazes. — Isso já não é nem de gente, mas de um cavalo, com a breca! Com o seu corpo, é possível dar aula de anatomia sem usar atlas. Vamos lá, amigo, dobre o braço.
Arbúzov suspirou e, após um olhar sonolento e de esguelha para o braço esquerdo, dobrou-o; inflando a fina pele acima do cotovelo e esticando-a, cresceu e rolou, em direção ao ombro, uma esfera grande e rija, do tamanho da cabeça de uma criança. Simultaneamente ao toque dos dedos frios do médico, a parte desnuda do seu corpo recobriu-se de erupções minúsculas e ásperas.
— Pois, meu caro — continuou Lukhovítski, entusiasmado —, Deus realmente quis favorecê-lo. Vê essas pelotas aqui? Na nossa anatomia, chamam-se bíceps, ou seja, bicéfalos. E esses são os chamados músculos supinadores e pronadores. Gire o punho, como se uma chave para abrir uma porta. Assim, assim, excelente. Vê como se movem? E esses, que tateio no ombro, são os músculos deltóides. Sente? Os seus são como dragonas de coronel. Ah, mas que sujeito forte você é! Que seria da pessoa, a quem você assim... involuntariamente? Hein? Ou, então, que desse de cara com você em um sítio escuro? Hein? Barbaridade, Deus o livre! Eh-eh-eh! Pois, então, quer dizer que nos queixamos de sono ruim e de fraqueza geral?
Arbúzov sorria o tempo todo, tímida e indulgentemente. Na presença do médico franzino, sentiu embaraço, quase vergonha, do seu corpanzil musculoso e forte, embora de muito já se houvesse acostumado a ficar seminu diante de pessoas vestidas.
— Temo que me constipei, doutor — disse com voz aguda, débil e um tanto roufenha, totalmente destoante da sua figura maciça. — Principalmente porque os camarins são uma pouca vergonha, as paredes estão cheias de frestas. Durante o número, como sabe, ficamos suados, e, depois, temos de mudar a roupa no meio de correntes de ar, que entram de todos os lados. E aí se apanha um resfriado.
— Dói a cabeça? Tem tossido?
— Não, tossir, eu não tusso, mas a cabeça... — Arbúzov esfregou a nuca com a palma da mão. — A cabeça, a bem dizer, alguma coisa está errada nela. Não dói, é só... como se houvesse um peso em cima... E também durmo mal. Principalmente no começo. Saiba, assim: estou quase já para adormecer-adormecer, e, de repente, como que uma coisa me atira para cima; como se eu tivesse levado um susto. Até o coração bate mais forte. Isso três ou quatro vezes, e eu acordo sempre. De manhã, a cabeça e, de modo geral... sinto-me lá um tanto azedo.
— Põe sangue pelo nariz?
— Acontece às vezes, doutor.
— Po-ois. É-é... — arrastou Lukhovítski, significativamente, e arqueou os sobrolhos, baixando-os em seguida. — Quem sabe não se tem exercitado muito, ultimamente? Não se sente cansado?
— Muito. Agora, é máslenitsa,[11] e tem-se de trabalhar com pesos todos os dias e, de quando em quando, até duas vezes por dia, por causa das apresentações matinais. E, dia sim, dia não, eu luto, além de fazer o número habitual... Claro, fica-se muito cansado...
— Pois, pois, pois — fazia-lhe coro o doutor, aspirando o ar e bamboleando a cabeça. — Pois bem, agora, nós o auscultaremos. Abra os braços. Ótimo. Respire agora. Calmamente, calmamente. Respire... mais fundo... mais regularmente...
O pequeno médico, que mal chegava, em altura, ao peito do lutador, aplicou sobre esse o estetoscópio e iniciou a auscultação. A olhar assustado para a sua nuca, Arbúzov inspirava ruidosamente e expirava o ar com os lábios arredondados, para não lhe soprar na risca brilhante dos cabelos.
Depois de auscultá-lo e percuti-lo, Lukhovítski sentou-se sobre um canto da mesa, traçou as pernas e abraçou os joelhos pontudos. O seu rosto de pássaro, saliente para a frente, largo nos zigomas e afilado no queixo, tornou-se sério, quase severo. Refletiu um momento e disse, a olhar para uma estante de livros:
— Não lhe encontro nada de grave, meu amigo, embora essa arritmia cardíaca e a hemorragia pelo nariz bem possam considerar-se advertências delicadas lá do outro mundo. Compreenda, você tem tendência à hipertrofia do coração. Ela é, por assim dizer, uma doença, a que está sujeito quem faz esforço físico intenso: ferreiros, marinheiros, ginastas, e assim por diante. Por causa do esforço constante e excessivo, as paredes do coração alargam-se, e daí vem o que, em medicina, se chama “cor bovinum”, ou seja, coração de boi. Num belo dia, esse coração recusa-se a trabalhar, pára, e aí então basta, acabou o espetáculo. Não se preocupe, está ainda muito longe de tão desagradável momento, mas, em todo o caso, eu aconselho: nada de café, chá forte, bebidas alcoólicas e demais coisas estimulantes. Compreende? — perguntou Lukhovítski, a tamborilar com os dedos na mesa e a olhar de soslaio para Arbúzov.
— Compreendo, doutor.
— Recomenda-se a mesma moderação também em todo o resto. Certamente compreende do que falo, não?
O atleta, que abotoava os punhos e o colarinho da camisa, corou e sorriu-se, embaraçado.
— Compreendo... mas, como sabe, na nossa profissão, é preciso ser moderado até sem motivo sério. E, a dizer a verdade, nem tenho tempo para pensar nisso.
— Pois, ótimo, meu amigo. Descanse um diazinho, dois e até mais, se puder. Não é hoje a luta com o Roeber? Tente adiá-la. Impossível? Pois então diga que está doente, e acabou. Eu o proíbo de lutar, está a ouvir-me? Vamos a olhar essa língua. Aí está, horrível, também ela. Não se sente fraco? Eh! Fale com franqueza. De qualquer modo, eu não contarei isso a ninguém, então por que diabos tem medo? É justamente para guardarem segredos que padres e médicos cobram pelos seus serviços. Está muito mal, não?
Arbúzov confessou que realmente não se sentia bem. Às vezes, experimentava fraqueza e algo como preguiça, não tinha apetite e, à noite, sentia calafrios. Quem sabe se o doutor receitasse umas gotas?
— Não, meu amigo, ache lá o que quiser, mas lutar você não pode — disse o médico com decisão, saltando da mesa. — Como sabe, eu não sou novato nesse negócio, e a todos os lutadores que tive a oportunidade de conhecer sempre disse que, antes de qualquer combate, observassem estas três regras: primeira — dormir bem, na véspera; segunda — ter um almoço saboroso e nutritivo; terceira — ir de estômago vazio para a luta, e, por fim, quarta — que é já psicológica — não perder a confiança na vitória nem por um minuto. Pergunta-se: como lutará você, se desde a manhã se sente dessa maneira? Perdoe uma pergunta indiscreta... de uma pessoa da casa... não é a vossa disputa uma daquelas? Não é simulada? Isto é, não está já acertado quem derrubará a quem e em que combate?
— Oh, não, doutor, que está a dizer?... Faz já tempo que Roeber e eu corremos um atrás do outro pela Europa toda. Até a caução é verdadeira, e não um chamariz. Tanto ele como eu pusemos cem rublos cada um em mãos de terceiros.
— Ainda assim não vejo razão que impeça adiar a luta.
— Pelo contrário, doutor, há razões muito importantes. Julgue o senhor próprio. A nossa disputa é de três combates. Suponhamos: Roeber ganhou a primeira, eu a segunda; a terceira, então, fica como a decisiva. Mas nós conhecemos já tão bem um ao outro, que é possível dizer, sem medo de errar, quem vencerá a terceira luta; assim, se eu não estou seguro das minhas forças, que me impede, então, de ficar doente ou pôr-me a manquejar etc., e pegar o meu dinheiro de volta? Para que, então, Roeber teria lutado as duas primeiras vezes? Só por prazer? Precisamente para um caso desses, doutor, foi acordado por nós que quem estivesse doente no dia da luta decisiva, tanto faz, seria considerado vencido e perderia o dinheiro.
— Pois, pois, negócio nojento — disse o doutor, e novamente soergueu as sobrancelhas e baixou-as significativamente. — Pois então, meu amigo, ao diabo com eles, com esses cem rublos, hein?
— Duzentos, doutor — corrigiu Arbúzov. — Por contrato com a direção, eu pago multa de cem rublos se me recuso a trabalhar em dia de apresentação, ainda que por doença.
— Com o diabo... que seja, duzentos! — zangou-se o médico. — No seu lugar, eu de qualquer modo me recusaria... Ao diabo o dinheiro, perdido que seja, a saúde vale mais. No final das contas, meu amigo, corre o risco de perder a caução do mesmo jeito, lutando contra um adversário tão perigoso como esse estadunidense.
Arbúzov sacudiu a cabeça, com confiança em si, e os seus lábios, grandes, abriram-se em um sorriso desdenhoso.
— Eh, tolice — soltou ele, com desprezo. — Roeber pesa só seis puds[12] e mal bate no meu queixo, em altura. O senhor verá como eu o porei de espáduas no chão, em três minutos. Havê-lo-ia já derrubado na segunda luta, se ele não me houvesse prensado à cercadura do picadeiro. Propriamente falando, foi canalhice dos jurados levar em consideração aquela luta infame. Até o público protestou.
O médico esboçou um sorriso malicioso, quase imperceptível. Em contato freqüente com a vida circense, já conhecia bem e de muito aquela autoconfiança inabalável e gabola dos lutadores profissionais, atletas e boxeadores, e a sua tendência a atribuir as derrotas a causas acidentais. Ao despedir-se de Arbúzov, receitou-lhe bromo, que ordenou tomar uma hora antes do combate, e, após um tapinha amigável nas suas largas espáduas, desejou-lhe vitória.
ii
Arbúzov saiu à rua. Era o último dia da semana da máslenitsa, a qual caíra tarde naquele ano. O frio não cedera ainda, mas, no ar, sentia-se já o cheiro indefinido e sutil da primavera, que lhe excitava alegremente o peito. Sobre a neve batida e imunda, duas filas de trenós e carruagens passavam rápidas, sem rumor e em sentidos contrários, e os gritos dos cocheiros tinham uma sonoridade clara e suave. Nos cruzamentos, vendiam-se maçãs para conserva, em tinas novas e brancas, khalvá,[13] semelhante à neve da rua na cor, e balões de gás. Estes avistavam-se de longe. Como cachos multicoloridos e brilhantes, alçavam-se e flutuavam sobre a corrente negra e fervilhante dos passantes, que enchiam as calçadas, e havia, nos seus movimentos, ora impetuosos, ora indolentes, algo primaveril e da alegria de uma criança.
No consultório do médico, Arbúzov sentira-se quase bom, mas, ao ar livre, novamente o dominaram as penosas sensações da doença. A cabeça parecia grande e vazia, e cada passo repercutia nela com desagradável zunzum. Na boca ressequida, de novo sentiu gosto de queimado e, nos olhos, uma dor cansada, como se dedos os premessem; quando volvia o olhar de uma coisa a outra, então, juntamente com isso, pela neve, pelas casas e pelo céu, moviam-se duas grandes manchas amarelas.
Perto de um cruzamento, saltou-lhe à vista o próprio nome, impresso em letras garrafais, em um poste roliço. Ele se aproximou maquinalmente. Entre cartazes multicoloridos dos divertimentos do feriado, sob o vermelho costumeiro do circo, estava um verde, em separado, e Arbúzov leu-o com indiferença, do começo ao fim, como se dormisse:
C I R C O D E B R. D U V E R N U O I S
REALIZAR-SE-Á, HOJE, O TERCEIRO E DECISIVO COMBATE DE LUTA ROMANA ENTRE O CONHECIDO CAMPEÃO ESTADUNIDENSE, SR. JOHN ROEBER, E O FAMOSO LUTADOR E HÉRCULES RUSSO, SR. ARBÚZOV, POR UM PRÊMIO DE 100 RUBLOS. MAIS PORMENORES NOS CARTAZES.
Ao pé do poste, detiveram-se dois homens, que, pelos rostos sujos de fuligem, deviam ser serralheiros, e um deles pôs-se a ler o anúncio da luta em voz alta, estropiando as palavras. Arbúzov ouviu o seu apelido, e este pareceu-lhe um som pálido, esfarrapado, estranho e desprovido de sentido, como sói acontecer quando repetimos uma palavra durante longo tempo. Os operários reconheceram-no. Um tocou o companheiro com o cotovelo e apartou-se respeitosamente. O lutador virou-se zangado, enfiou as mãos nos bolsos do casaco e seguiu adiante.
Terminara já a função matinal. A luz penetrava na arena apenas através de uma janela da cúpula, cujo vidro estava coberto de neve, e o circo, na penumbra, parecia um galpão imenso, vazio e frio.
Entrando da rua, Arbúzov distinguiu com dificuldade as cadeiras da primeira fila, o veludo na cercadura do picadeiro e nos cabos de isolamento das passagens, a douradura dos cantos dos camarotes e os mastros brancos, a que estavam pregados escudos com representações de caras de cavalo e de máscaras de palhaço, além de monogramas. O anfiteatro e a galeria imergiam na escuridão. No alto, sob a cúpula, via-se o brilho frio do aço e do níquel dos aparelhos de ginástica, presos por roldanas: escadas, argolas, barras fixas e trapézios.
Na arena, cosidas ao chão, debatiam-se duas pessoas. Arbúzov deixou-se ficar a observá-las largo tempo, apertando os olhos, até que reconheceu o seu adversário, o qual, como sempre, de manhã, treinava com um ajudante, também estadunidense, de nome Harvan. No jargão dos atletas profissionais, tais assistentes chamam-se “lobos” ou “cachorrinhos”. Viajando por todos os países e cidades com um lutador famoso, auxiliam-no no treinamento diário, cuidam do seu guarda-roupa, se a esposa não o acompanha, esfregam-lhe os músculos com luvas ásperas após o banho matinal e a ducha fria e, em geral, prestam-lhe uma porção de pequenos serviços, relacionados diretamente com a profissão. Porquanto os “lobos” são ou atletas jovens e inseguros de si, que não dominaram ainda os muitos segredos do desporto nem desenvolveram uma técnica, ou lutadores velhos, mas medianos, raramente conseguem vitória em combates por prêmio. Porém, antes de enfrentar um adversário respeitável, o mestre solta os seus “cachorrinhos” sobre ele, para, acompanhando as lutas, descobrir os pontos fracos e as falhas habituais do futuro rival e avaliar as qualidades, com que deverá tomar cuidado. Roeber soltara já sobre Arbúzov um dos seus auxiliares, o inglês Simpson, lutador de segunda categoria, obeso e pesadão, mas conhecido, no meio, pela força do grifo, isto é, da mão e dos dedos. A luta não envolvia prêmio, a pedido da direção do circo, e Arbúzov derrubou o inglês duas vezes, quase a brincar, com dois golpes raros e espetaculares, que não ousaria empregar em luta com algum adversário minimamente perigoso. Já então Roeber assinalara para si os principais defeitos e qualidades de Arbúzov: peso imenso e estatura elevada, a par da força terrível dos braços e das pernas, ousadia e determinação nos golpes e também a beleza plástica dos movimentos, que sempre conquistava a simpatia do público, mas, ao mesmo tempo, mãos e pescoço comparativamente fracos, respiração curta e impetuosidade. Ainda então decidira que, contra tal adversário, precisava manter-se na defensiva, enfraquecendo-o e cansando-o; não podia deixar-se agarrar pela frente ou por trás, pois teria dificuldade em defender-se, e, principalmente, devia agüentar as suas primeiras arremetidas, em que aquele selvagem russo demonstrava uma força e uma energia realmente colossais. Roeber adotou tal tática nos dois primeiros combates, perdendo um e vencendo o outro.
Quando os olhos se acostumaram à penumbra, Arbúzov enxergou distintamente os dois atletas. Trajavam camisolas cinzentas, que deixavam nus os braços, cintos largos de couro e meias-calças presas nos tornozelos por correias. Roeber encontrava-se em uma das posições mais difíceis e importantes de um atleta em combate, a chamada “ponte”. Só com a nuca e os calcanhares encostados no chão, com a espinha arqueada pronunciadamente e o equilíbrio mantido pelas mãos, que se afundavam na areia misturada com serragem, ele representava, com o seu corpo, um arco rijo e vivo; Harvan, pondo todo o seu peso sobre a barriga proeminente e o peito do mestre, empregava todas as forças para endireitar aquela massa de músculos, derrubá-la e apertá-la ao chão.
A cada tranco seu, ambos gemiam, tensos, e tomavam fôlego com dificuldade, em grandes sorvos. À meia-luz incerta, difundida pelo circo deserto, os dois, enormes, pesados, com os músculos terríveis e salientes dos braços nus, e como que hirtos em posturas extravagantes no chão do picadeiro, pareciam caranguejos monstruosos, que se houvessem agarrado pelas pinças.
Pela ética peculiar, existente entre os atletas, a qual condena observar os treinos do adversário, Arbúzov, contornando a cercadura do picadeiro e fingindo não ver os contendores, encaminhou-se para a saída, que levava aos camarins. Quando afastava a pesada cortina vermelha, alguém fez a mesma coisa do lado oposto, e, à sua frente, sob uma cartola brilhante e tombada de banda, surgiram os bigodes negros e os olhos sorridentes e também negros de um grande amigo seu, o acrobata António Battista.
— Buon giorno, mon cher monsieur Arbousofff![14] — exclamou o italiano, como se cantasse, a mostrar os belos e brilhantes dentes, com os braços bem abertos, como se desejasse apertar o lutador neles. — Eu terminei o meu répétition[15] nesse instante. Allons donc prendre quelque chose. Vamos tomar alguma coisa? Um cálice de conhaque? Oh, só não quebre minha mão. Vamos no cantina.[16]
No circo, do diretor aos cavalariços, todos gostavam de António. Era um artista excepcional e versátil: igualmente bem fazia malabarismos, exercitava-se no trapézio e nas barras fixas, adestrava cavalos, encenava pantomimas e, principalmente, tinha uma capacidade inexaurível de inventar números, coisa extremamente valorizada no mundo circense, em que a arte, pelas próprias características, quase não evolui e permanece até hoje quase da mesma forma que era no tempo dos imperadores romanos.
Tudo, nele, agradava a Arbúzov: o temperamento alegre, a generosidade, a delicadeza refinada, notável até entre os artistas de circo, que, fora do picadeiro, onde, por tradição, se admite certa dureza no trato, normalmente se distinguem por uma cortesia cavalheiresca. Apesar da juventude, António lograra já percorrer todas as cidades grandes da Europa e era o companheiro mais desejado e popular em todos os grupos circenses. Dominava igualmente mal todas as línguas européias e misturava-as, quando conversava, estropiando as palavras, talvez um tanto de propósito, pois, em cada acrobata, há sempre um pouco de palhaço.
— Não sabe onde está o diretor? — perguntou Arbúzov.
— Il est à la l’écurie. Ele foi na estrobaria, olhou um cavalo doente. Mais allons donc. Vamos um pouquinha. Eu tenho muito contente de ver o senhor. Meu flór? — disse António de repente, em tom interrogativo, rindo da própria pronúncia e enfiando a mão sob o cotovelo de Arbúzov. — Muito brem, saúde para o senhor, samovar, corcheirô — acrescentou como uma metralhadora, ao ver que o outro sorria.
Na cantina, beberam um cálice de conhaque cada um e mastigaram pedacinhos de limão, salpicados de açúcar. Após a bebida, Arbúzov teve, na barriga, primeiro, a sensação de frio e, depois, de um calor agradável. Mas imediatamente sentiu tontura, e certa fraqueza sonolenta espalhou-se por todo o seu corpo.
— Oh, sans doute, san dúvida, terá une victoire, uma vitória — disse António, a girar agilmente o bastão entre os dedos da mão esquerda, e os seus dentes, brancos, perfeitos e grandes, brilharam sob os bigodes negros. — É um tão brave homme,[17] um lutador tão maravilhoso e forte. Eu conheci lutador notável, ele chamava Karl Abs... sim, Karl Abs. E ele agora já ist gestorben... ele está morreu. Oh, embora ele alemão, ele foi grande professor! Uma vez ele disse: luta romana é um ninhariazinha. E bom lutador, ein guter Kampfer, deve ter muito, muito pouco: nada mais que um pescoço forte, da jeita de um búfala, um espinha extremamente duro, da jeita de carregador, um braço comprido com múscula firme und ein gewaltiger Griff... Como é isso em russo? (António cerrou os dedos da mão esquerda e descerrou-os, várias vezes, diante do rosto.) Oh!, Dedos, dedos muito forte. Et puis,[18] também necessário ter pernos muito firme, da jeita de um monumenta, e, claro, a maior... como é?... a maior peso no tronca. Se pegar também um coraçon são, les poumons... como é issso em russo?... pulmões, da jeita de um cavala, depois também um pouquinha de sangue fria e um pouquinha de coragem, e também pouquinha savoir les rêgles de la lutte, conhecer todas as regras do luta, então, fim das contas, aí estão todos ninhariazinhas que precisa para lutador bom! Ah, ah, ah!
A rir do próprio gracejo, António agarrou Arbúzov carinhosamente pelo casaco, à altura das axilas, e imediatamente ficou sério. No seu belo rosto trigueiro e vivo, havia uma particularidade admirável: logo depois do riso, tomava um aspecto severo e sombrio, quase trágico, e tal mudança de expressão sobrevinha tão rápida e tão inesperadamente, que parecia que António tinha duas faces — uma, sorridente, a outra, séria — e que trocava uma pela outra conforme a sua vontade, de maneira incompreensível.
— Claro, Roeber é adversário perigoso... Lá, na América, eles lutam comme les bouchers, como açôgueros. Eu vi luta em Chicago e em Nova York... Fu, que nojo!
Com a sua rápida gesticulação de italiano, que explicava as palavras, António pôs-se a falar dos lutadores estadunidenses, de modo minucioso e interessante. Entre eles, são permitidos todos os golpes cruéis e perigosos, que se proíbem em todas as arenas da Europa. Nos Estados Unidos, os lutadores apertam o pescoço um ao outro, tapam a boca e o nariz do adversário, agarrando-lhe a cabeça com um truque medonho, a chamada “coleira de ferro” — colier de fer, privam-no da consciência com hábil pressão dos dedos sobre as artérias carótidas. Terríveis golpes secretos, cuja ação nem sempre é clara até para os médicos, passam de professores para discípulos, compondo impenetrável segredo profissional. Conhecendo tais truques, o lutador pode, por exemplo, com uma pancada leve e aparentemente involuntária no tríceps, provocar a paralisia momentânea do braço do adversário ou, com um movimento imperceptível para os outros, causar-lhe dor tão insuportável que o fará esquecer todos os cuidados. Havia pouco tempo, o próprio Roeber fora levado a tribunal porque, em Lodze, em combate com o famoso lutador polaco Vladislávski, agarrara o braço deste por cima do ombro, no truque tour de bras,[19] entortando-o para o lado oposto ao da dobradura natural, apesar dos protestos do público e do próprio adversário, e lhe rompera os tendões de ligação do ombro ao antebraço. Os estadunidenses não têm nenhum brio artístico e lutam, tendo em mente apenas o dinheiro do prêmio. O seu objetivo maior é amealhar uns cinqüenta mil dólares, encher-se de banha logo em seguida, degenerar-se e abrir um botequim em algum canto de São Francisco, no qual, às escondidas da polícia, prosperam as variedades mais cruéis do boxe daquele país.
Tudo isso, inclusive o escândalo de Lodze, era já de muito do conhecimento de Arbúzov, e o que mais o entretinha não eram os fatos narrados por António, mas as suas próprias estranhas e doentias sensações, para que ele atentava com espanto. Às vezes, parecia-lhe que o rosto de António quase se encostava ao seu, e cada palavra soava tão alta e áspera, que até repercutia como um zunzum angustiante na sua cabeça, mas, um minuto depois, o amigo começava a afastar-se, cada vez para mais longe, até o seu rosto tornar-se opaco e ridiculamente pequeno; a sua voz, então, soava baixa e abafada, como se falasse a Arbúzov por telefone ou de um aposento distante. O mais admirável de tudo era que a mudança de tais impressões dependia do próprio Arbúzov e ocorria conforme ele se entregava à agradável e sonolenta languidez que o dominava, ou, fazendo um esforço, a sacudia de si.
— Oh, eu não tenho dúvida, vós derrubar Roeber, mon cher Arbouzoff, meu caridinho, meu cairo — disse António, a rir e a estropiar as palavras carinhosas russas. — Roeber c’est un animal, un accapareur.[20] Ele, profissional sem espírito criador, como aguadeiro, sapateiro, um... un tailleur,[21] o que fazer roupa. Ele não tem nada aqui... dans le coeur... no coraçon, nenhuma sentimento e nenhum temperament. Ele, grande açôuguero rude, e vós, verdadeiro artista... Vós, artista, e eu tenho sempre prazer olhar para vós.
Na cantina entrou, a passos rápidos, o diretor do circo, homem pequeno, gordo, de pernas finas e ombros levantados, sem pescoço, de cartola e casaco de peles aberto, muito parecido ao retrato de Bismarck, pelo rosto redondo de buldogue, bastos bigodes e a expressão dura das sobrancelhas e dos olhos. Arbúzov e António levaram ligeiramente a mão ao chapéu. Ele lhes retribuiu o cumprimento e imediatamente, como alguém que se houvesse contido muito tempo e apenas esperasse uma ocasião, pôs-se a injuriar um cavalariço, que o enfurecera.
— Mujique, canalha russo... deu de beberr a um cavalo suado, com os diabos!... Eu irrei ao juiz de paz, e ele sentenciarrá essa patife a pagarr-me uma multa de trrezentos rublos. Eu... com os diabos!.. Eu irrei lá e vou quebrarr-lhe a fuça, eu vou açoitá-lo com a meu Reitpeitsch![22]
Exatamente como se se houvesse agarrado a tal pensamento, virou-se rapidamente e, corricando com as pernas finas e ágeis, foi em direção à estrebaria. Arbúzov alcançou-o junto à porta.
— Senhor diretor...
Este se deteve abruptamente e, com o mesmo rosto descontente, enfiou as mãos nos bolsos da peliça, em atitude de expectativa.
Arbúzov pediu-lhe que adiasse a luta daquela noite por um dia ou dois. Se desejasse, ele, Arbúzov, daria em troca duas ou até três apresentações vespertinas com halteres, fora das condições acordadas entre eles. Ao mesmo tempo, perguntou-lhe se não poderia dar-se o trabalho de falar a Roeber sobre a mudança da data do combate.
O diretor escutou-o de perfil, a olhar para uma janela. Ao certificar-se de que o atleta terminara, virou para ele os olhos duros, de sob os quais pendiam papos terrosos, e atalhou, curto e grosso:
— Cem rublos de multa.
— Senhor diretor...
— Com os diabos, eu sei muito bem que eu sou o senhorr diretorr — interrompeu-o, começando a exaltar-se. — Arrranje-se com Roeberr a senhorr prróprrio, eu não tenho nada com isso. O meu negócio é o contrrato, o seu, a multa.
Deu as costas a Arbúzov abruptamente e precipitou-se rumo à porta, a coxear de uma perna de cada vez, mas, diante dela, estacou repentinamente, voltou-se e, a estalar de raiva, com as faces flácidas trementes, o rosto rubro, o pescoço inflado e os olhos arregalados, começou a gritar, esbaforido:
— Com os diabos! Está a morrerr o Fatinitsa, a primeirro cavalo em corridas com obstáculos!... Uma cocheirro russo, uma canalha, uma porrco, um macaco russo deu de beberr em excesso a melhorr cavalo, e a senhorr acha ainda de virr pedirr um monte de tolices. Com os diabos! Hoje é o último dia desse carrnaval russo idiota, e me faltam até coxias, e o publicum vai-me fazerr ein grosser Scandal,[23] se eu cancelarr o luta. Com os diabos! Exigirrão o dinheiro da volta de mim e quebrrarr o meu cirrco em pedacinhos! Schwamm drüber![24] Eu não querro ouvirr tolices, não ouvi nada e não sei da nada!
Ele se precipitou da cantina em um salto, batendo a porta atrás de si com tanta força, que os copos do balcão até soltaram um tilintar leve e vibrante.
iii
Após despedir-se de António, Arbúzov foi para casa. Era preciso almoçar e tentar dormir bem até à luta, para refrescar um pouco a cabeça. Ao sair do circo, porém, de novo sentiu-se doente. O barulho e a agitação da rua passavam-se algures, longe-longe dele, e pareciam-lhe alheios, irreais, como se examinasse um quadro multicolorido movente. Quando atravessava as vias, experimentava um medo pungente de ser atropelado por trás por cavalos e lançado ao chão.
Ele morava perto, em uma pensão. Ainda na escada, sentiu o cheiro que havia sempre nos corredores: a cozinha, fumo de querosene e ratos. Encaminhando-se ao seu quarto, às apalpadelas, pelo passadiço escuro, esperava bater, a qualquer momento, em algum obstáculo, e a esse sentimento de tensa expectativa juntavam-se a tristeza, o desnorteamento, o medo e a consciência da sua solidão.
Não lhe apetecia almoçar, mas, quando de baixo, da copa do “Évrik”, lhe trouxeram a comida, obrigou-se a tomar algumas colheradas de borchtch[25] vermelho, o qual sabia a trapo sujo de cozinha, e a comer metade de uma almôndega clara, de carne fibrosa, com molho de cenoura. Após a refeição, veio-lhe vontade de beber. Mandou um menino comprar kvas[26] e deitou-se.
No mesmo instante, pareceu-lhe que o leito oscilava levemente e se movia sob ele, como um barco, ao passo que as paredes e o teto deslizavam lentamente para o lado oposto. Mas, em tal sensação, não havia nada de terrível ou desagradável; pelo contrário, no corpo penetrava um langor morno de cansaço e modorra, cada vez mais forte. O teto defumado, sulcado de rachaduras finas e sinuosas, qual veias, ora subia para longe, ora descia para bem perto, e havia, nas suas oscilações, uma suavidade relaxante e adormentadora.
Algures, no quarto contíguo, tilintavam xícaras; passos apressados, abafados pela passadeira, iam e vinham pelo corredor, e o bulício da rua entrava amplo e vago pela janela. Durante longo tempo, todos esses sons enleavam-se, antecipavam-se uns aos outros, baralhavam-se e, de repente, ao fundirem-se por alguns instantes, alinhavam-se em maravilhosa melodia, tão plena, inesperada e bonita, que alargava o peito de doçura e suscitava vontade de sorrir.
Soerguendo-se na cama, para matar a sede, Arbúzov circunvagou os olhos pelo quarto. Na espessa penumbra lilás do entardecer invernal, a mobília pareceu-lhe de todo diferente da que se acostumara a ver: havia, nela, uma expressão estranha, misteriosa, viva. A cômoda baixinha, achaparrada e séria, o armário alto e estreito, de aparência ativa, mas insensível e zombeteira, a mesa redonda bonachona e o espelho ataviado, garrido — todos eles o espreitavam de modo perscrutador, expectante e ameaçador, em meio àquela modorra de langor e preguiça.
“Quer dizer, estou com febre”, pensou Arbúzov, e repetiu em voz alta: — Estou com febre. — A voz repercutiu, aos seus ouvidos, vinda de um sítio distante, qual som débil, vazio e indiferente.
Sob o balouço da cama, com agradável e sonolenta dor cortante nos olhos, caiu em delírio febril intermitente, agitado. Mas, no desvario, como em plena consciência, provava a mesma mudança alternada de sensações. Ora parecia-lhe que, com esforços medonhos, removia blocos de granito de lados polidos, lisos e duros ao contato mas que, ao mesmo tempo, cediam macios à pressão das mãos, como algodão, e que os amontoava. Depois, esses blocos caíam e rolavam para baixo, ao passo que, no seu lugar, ficava algo uniforme, instável e sinistramente calmo; isso não tinha nome, mas parecia igualmente tanto a superfície lisa de um lago como um fio de arame, que, retesando-se infinitamente, zunia de modo monótono, extenuante e sonolento. Mas o arame desaparecia; Arbúzov outra vez entrava a levantar blocos imensos, outra vez eles caíam com estrondo, e, no mundo inteiro, outra vez restava tão-somente o sinistro, maçante arame. Ao mesmo tempo, Arbúzov não deixava de ver o teto com rachaduras e de ouvir os sons estranhamente entrelaçados, mas tudo isso pertencia a um mundo alheio, que o espreitava com hostilidade, um mundo lastimável e desinteressante, se comparado às alucinações em que ele vivia.
Estava já completamente escuro, quando Arbúzov se ergueu de repente, de um salto, e se sentou na cama, pungido por um medo atroz e uma tristeza física insuportável, a qual começava no coração, então parado, enchia todo o peito, subia à garganta e a apertava. Faltava ar aos pulmões; de dentro, algo o impedia de entrar. Arbúzov abria a boca convulsivamente, tentando respirar, mas não sabia fazê-lo, nem o conseguia, e sufocava. Essas sensações terríveis não duraram nada mais de dois ou três segundos, mas ao atleta parecia que o ataque começara muitos anos antes e que ele envelhecera nesse tempo. “A morte está a caminho!”, passou-lhe de repente pela cabeça, mas, nesse momento, a mão invisível de alguém tocou o coração parado, como se toca um pêndulo imóvel, e ele, após uma sacudida doida, prestes a arrebentar o peito, pôs-se a bater assustado, ávida e atabalhoadamente. Simultaneamente, tépidas ondas de sangue precipitaram-se para o rosto, para as mãos e os pés de Arbúzov e cobriram todo o seu corpo de suor.
Pela porta aberta, introduziu-se uma cabeça grande e tosada, com orelhas finas, de abano, como asas de morcego. Era Grichútka,[27] empregadinho da pensão, que queria saber se Arbúzov desejava chá. De trás dele, de maneira alegre e alentadora, esgueirou-se para o quarto a luz da lâmpada do corredor.
— Ordena o samovarzinho, Nikit Iónitch?[28]
Arbúzov ouviu bem essas palavras, e elas se gravaram na sua memória, mas ele não conseguia de modo nenhum compreender o seu significado. Naquele momento, o seu pensamento trabalhava intensamente, na tentativa de captar uma palavra extraordinária, rara e muito importante, que ouvira em meio ao sono, antes de erguer-se da cama em um salto, antes do ataque.
— Nikit Iónitch, é para trazer o samovar, hein? Passa já das seis.
— Espera, Gricha,[29] espera, já-já — respondeu Arbúzov, a ouvir o menino mas ainda sem compreendê-lo, e de repente apanhou a palavra esquecida: “bumerangue”. Isso é um pedaço de madeira recurvado e engraçado, que uns selvagens negros, homenzinhos nus, ágeis e musculosos, lançavam ao ar, no circo de Montmartre. Imediatamente, tal como se libertada de peias, a atenção de Arbúzov transferiu-se para as palavras do menino, que lhe soavam ainda na memória.
— Dizes que passa já das seis? Pois então traze o samovar depressa, Gricha.
Foi-se o menino. Arbúzov ficou largo tempo sentado na cama, com os pés no chão, e, a olhar para os cantos escuros, aplicava o ouvido ao coração, que batia ainda inquieto e agitado. Entrementes, os lábios moviam-se ligeiramente, a repetir distintamente sempre a mesma palavra sonora e elástica que o aturdira:
— Bu-me-ran-gue!
iv
Pelo beirar das nove horas, Arbúzov foi para o circo. Acompanhava-o o menino cabeçudo, ardoroso apreciador da arte circense, levando a sacola de palha com o seu uniforme de lutador. À entrada, iluminada festivamente, havia alegre bulício. Um após outro, ininterruptamente, aproximavam-se cocheiros e, a um sinal de um guarda majestoso qual estátua, afastavam-se, fazendo um semicírculo rumo à escuridão, em que se alinhavam carruagens e trenós, em comprida fila ao longo da rua. Viam-se os cartazes vermelhos do circo e os anúncios verdes da luta em toda parte — em ambos os lados da entrada, ao pé das bilheterias, no vestíbulo e nos corredores; em todos os lugares, Arbúzov via o seu apelido impresso em letras garrafais. Nos passadiços, sentia-se o cheiro das cavalariças, de gás, da areia e da serradura do picadeiro, e o cheiro habitual das salas de espetáculos: misto de luvas de pelica e pó-de-arroz. Tais odores, que, nas noites anteriores, sempre excitavam Arbúzov e o estimulavam, naquela, resvalaram de modo mórbido e desagradável pelos seus nervos.
Nos bastidores, junto à passagem, pela qual os artistas entram em cena, estava afixado o programa da noite, escrito à mão e iluminado por um bico de gás, com os cabeçalhos impressos: “Arbeit. Pferd. Klown”.[30] Arbúzov olhou para ele com a vaga e ingênua esperança de não encontrar ali o seu nome. Na segunda parte, porém, na frente da palavra Kampf,[31] conhecida dele, estavam dois apelidos, escritos com caligrafia grande, em declive, de pessoa semi-analfabeta: Arbouzow e Roeber.
Na arena, gritavam palhaços, com voz inexpressiva, velarizando o “r” e o “l”, e gargalhavam de modo idiota. António Battista e a esposa Henrietta, na passagem, esperavam pelo fim do número. Ambos usavam um traje de tricô, de cor violeta suave, bordado com lantejoulas douradas, que, à contraluz, tinha um brilho cambiante de seda nas dobraduras, e sapatos brancos, de cetim.
Henrietta não trajava saia; em lugar desta, da cintura pendia-lhe longa e espessa franja, reverberante a cada movimento seu. A camisola de cetim, vestida diretamente sobre o corpo, sem espartilho, era-lhe folgada e não tolhia os movimentos do torso flexível. Sobre a malha, a rapariga pusera um burnus árabe branco e comprido, que lhe realçava levemente a cabecinha bonita, os cabelos negros e a tez morena.
— Et bien, monsieur Arbousoff?[32] — perguntou Henrietta, sorrindo carinhosamente e estendendo-lhe a mão nua e fria, mas forte e bonita, de sob o albornoz. — Que lhe parecem as nossas novas vestimentas? Isso foi idéia do meu António. Irá ao picadeiro assistir à nossa apresentação? Por favor, vá. Tem bom olho e trar-me-á sorte.
António abeirou-se e deu tapinhas amistosos no ombro de Arbúzov.
— Então, como vão as coisas, meu flór? All right![33] Eu apostei uma garrafa de conhaque em você, com o Vincenzo. Olhe lá, hein!
Pelo circo, reboou um riso e estalaram os aplausos. Dois palhaços, com os rostos untados com tintas branca e carmesim, irromperam no corredor. Eles como que esqueceram os sorrisos largos e estúpidos na face, mas, após os exaustivos saltos mortais, os seus peitos respiraram fundo e rápido. Chamaram-nos de volta ao picadeiro e obrigaram-nos a fazer mais alguma coisa, depois, novamente e mais uma vez; apenas quando a orquestra começou a tocar uma valsa e a platéia se aquietou, os dois puderam ir para os camarins, ambos suados, abatidos e derreados de cansaço.
Os artistas não incluídos na função daquela noite, de casaca e calças com bandas douradas, baixaram rápida e agilmente uma rede grande do teto, que haviam atado a mastros com cordas. Em seguida, alinharam-se de ambos os lados da passagem, e alguém descerrou a cortina. Após lançar um olhar carinhoso e faceiro, de sob as sobrancelhas finas e intrépidas, a Arbúzov, Henrietta arrancou de si o burnus e atirou-lho; com o movimento feminino costumeiro, concertou o cabelo e, de mãos dadas com o marido, correu graciosamente para a arena. Arbúzov entregou a veste a um cavalariço e seguiu-os.
Todos os integrantes da companhia gostavam de ver o trabalho do casal. Além da beleza e da leveza dos movimentos, impressionava-os o sentido do ritmo, levado a uma precisão extraordinária — um sexto sentido, especial, dificilmente compreensível em outro lugar que não o balé e o circo, mas indispensável em todos os movimentos difíceis e coordenados sob música. Sem perderem um segundo sequer, António e Henrietta subiram lestamente quase até ao teto, à altura das fileiras superiores da galeria. Dos vários extremos do circo enviavam beijos ao público: ele, sentado em um trapézio; ela, de pé sobre um mocho leve, revestido com o mesmo cetim violeta da sua camisa, com uma franja dourada nas beiradas e as iniciais A e V no centro.
Tudo o que faziam era simultâneo, coordenado e, aparentemente, tão leve e simples que até os outros artistas, de olhos fitos neles, perdiam a noção da dificuldade e do perigo daqueles exercícios. Atirando o corpo para trás, como se fosse cair na rede, António de repente pendurava-se de cabeça para baixo e, preso à barra de aço pelas pernas, começava a balançar-se. Henrietta, de pé sobre a sua eminência violeta, a segurar-se ao trapézio com os braços estendidos, seguia, tensa e expectante, os movimentos do marido e, de repente, ao apanhar-lhes o ritmo, voava do mocho, com um impulso dos pés, ao encontro de António, com o corpo inteiro arqueado e as bonitas pernas bem esticadas para trás. O seu trapézio era duas vezes mais longo e executava oscilações duas vezes maiores; por isso, os movimentos dos dois ora transcorriam paralelamente, ora os aproximavam, ora os afastavam...
A um sinal imperceptível aos outros, ela largava a barra do seu trapézio, voava para baixo, não segura por nada, e, quando as suas mãos tocavam as de António, eles se agarravam pelos pulsos. Durante alguns segundos, os seus corpos, unidos em um único corpo flexível e forte, balouçavam-se no ar, em movimento suave e largo, e os sapatinhos de cetim de Henrietta roçavam a rede, de bordas levantadas; em seguida, António virava-a e atirava-a aos ares, bem no momento em que, sobre a cabeça dela, passava o outro trapézio, a cuja barra ela se agarrava rapidamente, para, com um único impulso, transladar-se ao outro extremo do circo, ao mocho violeta.
O último exercício da sua apresentação era o salto de grande altura. Com auxílio das roldanas, os estribeiros elevaram o trapézio, com Henrietta sentada nele, até quase à cúpula do circo. Ali, a sete braças do solo, a artista passou cuidadosamente para a barra fixa, quase a tocar os vidros da clarabóia com a cabeça. Arbúzov olhava para ela, mantendo com esforço o queixo levantado, e pensava que, visto lá de cima, António devia parecer bem pequenininho à esposa, e tal pensamento provocava-lhe tontura.
Ao ver Henrietta devidamente instalada na barra, António pendurou-se novamente de cabeça para baixo e começou a balouçar-se. A orquestra, que até então tocara uma valsa melancólica, interrompeu-a abruptamente. Ouvia-se apenas o monótono e queixoso sibilo do carvão nos lampiões elétricos. Sentia-se lúgubre tensão no silêncio, baixado de súbito sobre os milhares de pessoas, que seguiam, com avidez e temor, cada movimento dos artistas...
— Pronto![34] — gritou António de modo cortante, resoluto e alegre, e atirou para baixo, para a rede, o lenço branco, com o qual até então, sem parar de balouçar-se para a frente e para trás, estivera a esfregar as mãos. Arbúzov viu o modo nervoso, rápido e expectante, como, a essa exclamação, Henrietta, de pé, sob a cúpula do circo, segura aos cabos com ambas as mãos, foi com todo o corpo para a frente.
— Attenti![35] — novamente gritou António.
Nos lampiões, o carvão puxava a mesma nota queixosa e monótona, ao passo que, no circo, o silêncio se tornava penoso e ameaçador.
— Allez! — soou, entrecortada e imperiosa, a voz de António.
Esse grito imperioso pareceu abater Henrietta da barra fixa. Arbúzov viu algo grande e violeta, reverberante de faíscas douradas, cair de ponta-cabeça e girar, riscando o ar como um raio. Com o coração gelado e a sensação de súbito enfraquecimento nas pernas, a qual o irritava, o atleta fechou os olhos e abriu-os somente quando, em seguida ao grito alegre, agudo e gutural de Henrietta, o circo inteiro soltou um suspiro ruidoso e profundo, como gigante que houvesse arriado pesada carga das costas. A orquestra rompeu um galope frenético, e Henrietta, a balançar-se ao seu ritmo, segura pelas mãos de António, agitava alegremente as pernas, uma de cada vez, e batia um pé no outro. Lançada pelo marido à rede, afundou muito e maciamente nela, mas, ao ser atirada de rijo de volta para o ar, pôs-se de pé imediatamente e, equilibrando-se no tremedal de fios, enrubescida, encantadora e toda radiante em um sorriso sincero, fazia reverências ao público, que gritava... Pondo o burnus sobre ela, nos bastidores, Arbúzov notou-lhe o arfar intenso do peito e o latejar forte de duas vênulas azuis nas têmporas...
v
A sineta deu o sinal do entreato, e Arbúzov foi vestir-se. Roeber mudava de roupa no camarim contíguo. As largas frestas do tabique, feito às pressas, permitiam ver cada movimento seu. O estadunidense ora cantarolava com voz de baixo em falsete, ora assobiava, e a trechos trocava, com o treinador, palavras breves, entrecortadas, as quais soavam de modo tão estranho e surdo, que pareciam sair das profundezas do seu estômago. Arbúzov não sabia inglês, mas sempre que Roeber se ria ou quando a entonação das palavras se tornava zangada, tinha a impressão de que a conversa era sobre ele e a luta, e, aos sons daquela voz segura e coaxante, tomava-se por um medo e uma sensação de debilidade física cada vez mais fortes.
Ao despir-se, sentiu frio e começou a tremer intensamente, com calafrios febris, que lhe provocavam o estremecimento das pernas, do ventre e dos ombros, e fazia os maxilares baterem ruidosamente. Para aquecer-se, mandou Grichútka ir à cantina comprar conhaque. A bebida acalmou-o e aqueceu-o um pouco, mas, depois ela, tal qual de manhã, leve e sonolento cansaço espalhou-se-lhe pelo corpo inteiro.
A cada minuto, batiam à porta e entravam. Eram oficiais de cavalaria, com calções de montar colantes, como que de meia; ginasianos grandalhudos, com gorros estreitos e engraçados, e todos, por alguma razão, com nasóculos e cigarros nos lábios; estudantes tafuis, que falavam muito alto e se tratavam por diminutivos. Todos eles tocavam os braços, o peito e o pescoço de Arbúzov, a admirar o aspecto dos seus músculos tensos. Alguns davam-lhe palmadinhas carinhosas e aprobativas nas costas, como a um cavalo vencedor de prêmio, e conselhos sobre como conduzir a luta. A Arbúzov as suas palavras ora soavam de um sítio distante, subterrâneo, ora avançavam de súbito para ele e batiam-lhe na cabeça, provocando-lhe dor insuportável. Entrementes, ele se vestia, com movimentos maquinais, costumeiros, ajeitando a fina roupa de meia sobre o corpo e esticando-a com apuro, e arrochava fortemente o largo cinto de couro na barriga.
A orquestra começou a tocar, e os incômodos visitantes foram-se, um a um. Ficou apenas o doutor Lukhovítski. Ele pegou a mão de Arbúzov, tateou-lhe o pulso e meneou a cabeça:
— Lutar será verdadeira insânia. O pulso está como um martelo, e as mãos, completamente frias. Dê uma espiada ao espelho e veja quão dilatadas estão as pupilas.
Arbúzov olhou-se em pequeno espelho inclinado, que havia sobre a mesa do camarim, e viu um rosto grande, pálido e indiferente, que lhe pareceu desconhecido.
— Bem, não faz diferença, doutor — disse, com preguiça, e, com o pé sobre uma cadeira, pôs-se a enrolar as correias do calçado na panturrilha.
Alguém, passando à carreira pelo corredor, chamou um de cada vez:
— Monsieur Roeber! Monsieur Arbúzov! Ao picadeiro!
Um langor invencível apoderou-se do corpo de Arbúzov, e veio-lhe a vontade de espreguiçar-se doce e longamente, como antes de deitar-se. Em um canto do camarim estavam amontoados, em desordem, trajes circassianos para a pantomima da terceira parte do programa. Ao olhar para os trastes, Arbúzov pensou que não haveria coisa melhor no mundo do que enfiar-se entre eles, estender-se comodamente e afundar a cabeça naquelas roupas quentes, macias.
— É preciso ir — disse, levantando-se, e suspirou. — Doutor, sabe o que é bumerangue?
— Bumerangue? — perguntou-lhe, por sua vez, o médico, admirado. — Parece que é um instrumento especial, com que os australianos caçam papagaios. Mas, pensando bem, talvez até nem papagaios... Mas qual é o problema?
— Isso apenas me veio à lembrança... Bem, vamos, doutor.
Ao pé da cortina, na larga passagem de tábuas, amontoavam-se artistas, funcionários e cavalariços; quando Arbúzov surgiu, começaram a murmurar entre si e cederam-lhe lugar diante da cortina. Em seguida, aproximou-se Roeber. Evitando olhar-se, os lutadores postaram-se lado a lado, e, nesse instante, a Arbúzov ocorreu, com extraordinária clareza, o pensamento de quão absurdo, inútil, disparatado e cruel era o que ele pretendia fazer dali a poucos minutos. Mas também sabia e sentia que era mantido ali e obrigado a agir daquela maneira por uma força inclemente, sem nome. E ele continuou imóvel, de pé, a olhar para as pesadas pregas da cortina, em uma submissão apática e triste.
— Pronto? — perguntou uma voz de cima, do tablado dos músicos.
— Pronto, podem começar! — responderam de baixo.
Ouviu-se a batida inquieta da batuta do regente, e os primeiros compassos de uma marcha espalharam-se pelo circo, em sons alegres e estimulantes de cobre. Alguém abriu rapidamente a cortina, outro bateu palmadinhas no ombro de Arbúzov e ordenou-lhe: “Allez!”. Ombro a ombro, pisando com graça pesada e sobranceira e, como antes, sem olhar um para o outro, os lutadores passaram por entre duas fileiras de artistas, e, do centro da arena, foram para cantos opostos.
Um dos estribeiros também entrou nela e, colocando-se entre os atletas, anunciou a luta, lendo um papelinho com forte sotaque estrangeiro e muitos erros.
— Teremos, agora, um combate de luta greco-romana entre dois famosos atletas e lutadores, o senhor John Roeber e o senhor Arbúzov. As regras da luta são que cada contendor pode agarrar o adversário de qualquer modo, da cintura para cima. Será considerado derrotado o que tocar o chão com as espáduas. Não é permitido arranhar o adversário, agarrar-lhe as pernas, puxar os cabelos e apertar a garganta. Esta é a terceira, decisiva e última luta. O vencedor recebe um prêmio de cem rublos... Antes do início do combate, os lutadores apertam-se as mãos, como em promessa solene de que a luta será limpa e em conformidade com as regras.
Os expectadores escutavam-no em silêncio tão tenso, atento, que parecia que cada qual segurava a respiração. Aquele foi, provavelmente, o momento mais cruciante de toda a noite, o momento de uma espera ansiosa. Os rostos estavam pálidos; as bocas, entreabertas; as cabeças, projetadas para a frente; e os olhos, fitos, com ávida curiosidade, nas figuras dos atletas. Estes estavam de pé e em posição imóvel sobre a lona, que cobria o picadeiro.
Ambos trajavam roupa de meia preta, graças à qual os seus troncos e pernas pareciam mais finos e mais bem-proporcionados do que o eram na realidade, ao passo que os braços descobertos e os pescoços nus afiguravam-se mais maciços e mais fortes. Roeber, com uma perna ligeiramente à frente e uma mão na cintura, em postura negligente e confiante, tinha a cabeça derreada para trás e circunvagava os olhos pelas galerias superiores. Sabia, por experiência, que a simpatia do público estaria do lado do adversário, como lutador mais jovem, bonito, elegante e, principalmente, de apelido russo, e, com aquele olhar negligente e tranqüilo, parecia lançar um desafio à multidão, que o examinava. Era de estatura mediana, largo nos ombros e ainda mais na direção da pelve, de pernas curtas, grossas e tortas, como raízes de árvore possante, de braços longos, e arqueado como um macaco grande e forte. Tinha a cabeça escalvada e pequena, com nuca de touro, que, começando do cocuruto, se transformava, regular e plana, em pescoço, sem quaisquer arqueamentos, do mesmo modo como o pescoço, alargando-se para baixo, se fundia diretamente aos ombros. Essa nuca medonha suscitava, nos expectadores, um pensamento vago e temeroso em uma força sobre-humana, cruel.
Arbúzov, também de pé, assumira a postura habitual, em que os lutadores profissionais sempre saem nas fotografias, isto é, com os braços cruzados sobre o peito e o queixo puxado sobre este. O seu corpo era mais branco do que o de Roeber, e a compleição, quase impecável: o pescoço sobressaía do decote da roupa de meia como tronco possante, redondo e regular de árvore, e, sobre ele, com desenvoltura e leveza, repousava uma cabeça bonita e arruivascada, com cabelos bem aparados, fronte baixa e rosto com traços indiferentes. Os músculos do peito, contraídos pelos braços cruzados, delineavam-se, sob a roupa, como dois montículos salientes, e os ombros abaulados cobriam-se de um lustro de cetim róseo, sob o resplendor azul dos lampiões elétricos.
Arbúzov olhava fixamente para o estribeiro. Desviou os olhos dele apenas uma vez, deitando-os na platéia. O circo inteiro, cheio de cima a baixo, estava como que coberto por densa onda negra, sobre a qual, amontoando-se uma sobre outra, distinguiam-se, em filas regulares, as manchas brancas dos rostos. Arbúzov sentiu o hálito frio, inclemente e fatal daquela massa negra, informe. Com todo o seu ser, compreendeu que, para ele, não haveria saída daquele círculo fatídico intensamente iluminado, que a vontade imensa de alguém o levara até ali e que força nenhuma conseguiria tirá-lo dali. Por causa desse pensamento, sentiu-se, de repente, desamparado, desconcertado e fraco, qual criança perdida, e, na sua alma, revolveu-se verdadeiro medo animal, o obscuro, o instintivo terror que deve apossar-se do jovem touro, quando o levam ao abatedouro pelo asfalto coberto de sangue.
O estribeiro concluiu a leitura e foi para a saída. A música recomeçou nítida, alegre e cautelosa, e, nos sons estrídulos dos cornetins de chaves, ouvia-se um triunfo malicioso, oculto e cruel. Houve um momento terrível, no qual a Arbúzov pareceu que esses sons insinuantes da marcha, o sibilo triste do carvão e a mudez lúgubre dos expectadores serviam de continuação do seu delírio de depois do almoço, no qual vira o longo e monótono fio de arame estendido diante dele. No seu espírito, novamente, alguém gritou o nome do instrumento australiano.
Arbúzov afagava ainda a esperança de que, no último momento, antes da luta, como sempre soía acontecer, nele de repente se desencadeasse a raiva e, com ela, a confiança na vitória e rápido afluxo de força física. Mas, quando os dois se voltaram um para o outro e Arbúzov encontrou, pela primeira vez, a mirada fria e penetrante dos pequenos olhos azuis do adversário, ele compreendeu que a luta estava já decidida.
Caminharam um em direção ao outro. Roeber aproximou-se a passos rápidos, macios e leves, com a terrível nuca inclinada para a frente, a dobrar levemente as pernas, à semelhança de um animal predador que pretendesse dar um bote. Ao encontrarem-se no meio da arena, trocaram rápido e forte aperto de mão, apartaram-se e imediatamente puseram-se de frente um para o outro, com saltos simultâneos. No toque descontínuo da mão quente, forte e calejada de Roeber, Arbúzov sentiu a mesma certeza da vitória que lhe vira nos olhos espetantes.
No início, tentaram agarrar-se pelas mãos, cotovelos e ombros, a escapar dos agarrões e a esquivar-se destes. Os seus movimentos eram lentos, suaves, cautelosos e calculados, como os de dois gatos grandes que houvessem começado a brincar. Com as têmporas encostadas, a soltarem o bafo quente da respiração um sobre o ombro do outro, trocavam constantemente de lugar e deram uma volta à arena. Arbúzov, aproveitando-se da sua maior estatura, envolveu a nuca de Roeber com a palma da mão e tentou fazê-lo arquear-se, mas a cabeça do estadunidense, rápida como a da tartaruga, que se esconde, encravou-se entre os ombros, o pescoço ficou duro, como se fosse de aço, ao passo que as pernas, bem abertas, se firmaram rijamente no chão. Ao mesmo tempo, Arbúzov sentiu que Roeber apertava com toda a força os seus bíceps, para causar-lhes dor e tirar-lhes rapidamente a força.
Percorreram a arena toda assim, a mover-se com dificuldade e sem se largarem, com movimentos lentos, como se preguiçosos e hesitantes. De repente, Roeber, agarrando um braço de Arbúzov com ambas as mãos, puxou-o para si com força. Arbúzov, que não previra a investida, deu dois passos à frente e, no mesmo segundo, sentiu que por trás o cingiram e levantaram do chão dois braços fortes, cruzados sobre o seu peito. Instintivamente, inclinou o tronco para a frente, para aumentar o peso, e abriu bem os braços e as pernas, para o caso de um ataque. Roeber fez vários esforços para trazer as costas de Arbúzov para o seu peito; vendo que não conseguiria levantá-lo, obrigou-o, com um tranco, a pôr-se de gatas e, agarrando-o pelo pescoço e pelas costas, ajoelhou-se ao lado dele.
Durante algum tempo, pareceu meditar e ajeitar-se. Depois, com hábil movimento, enfiou um braço por trás, pelo sovaco de Arbúzov, dobrou aquele para cima, deitou a mão áspera e fria no seu pescoço e pôs-se a arquear este para baixo; com o outro braço, apertava-lhe a barriga e tentava fazer o seu corpo girar sobre a cabeça. Arbúzov resistia, a retesar o pescoço, a abrir mais os braços e a agachar-se mais ainda. Os lutadores não se moviam do lugar, como que inteiriçados naquela posição, e outra pessoa poderia pensar que estavam a brincar ou a descansar, se não fosse possível ver como os seus rostos e pescoços iam ficando vermelhos e como os seus músculos tensos sobressaíam cada vez mais de sob a roupa de tricô. A sua respiração era ruidosa e difícil, e o cheiro forte do seu suor chegava às primeiras filas da platéia.
De repente, a conhecida tristeza física de antes cresceu perto do coração de Arbúzov, encheu-lhe todo o peito, apertou-lhe convulsivamente a garganta e tudo se tornou imediatamente tedioso, vazio e indiferente para ele: os sons de cobre da música, o sibilo triste dos lampiões, o circo, Roeber e a própria luta. Algo do tipo de um hábito antigo obrigava-o ainda a resistir, mas, na respiração entrecortada do adversário, a qual sentia na nuca, ouvia já sons roucos, semelhantes aos rugidos triunfantes de uma fera, e uma das suas mãos, arrancada do chão, procurava já, inutilmente, apoio no ar. Em seguida, todo o seu corpo também perdeu o equilíbrio, e ele, inesperada e fortemente apertado à lona fria, viu, acima de si, o rosto suado de Roeber, de bigodes emaranhados, os dentes arreganhados, os olhos deformados pela loucura e pelo ódio...
Quando se pôs em pé, Arbúzov viu Roeber como que através de uma névoa; o outro fazia reverências ao público em várias direções. Os expectadores, que haviam saltado dos lugares, gritavam freneticamente, moviam-se, agitavam lenços, mas tudo aquilo pareceu a Arbúzov um sonho já conhecido de muito — um sonho absurdo, fantástico e, ao mesmo tempo, mesquinho e tedioso, em comparação com a tristeza que lhe despedaçava o peito. A cambalear, chegou a custo ao camarim. O aspecto dos trastes amontoados recordou-lhe algo vago, em que pensara pouco tempo antes, e ele se deixou cair sobre o monte de roupas, com as mãos apertadas ao peito, sobre o coração, a respirar de boca aberta.
Subitamente, junto com a tristeza e a perda da respiração, dele se apoderaram a náusea e a fraqueza. Enverdeceu tudo aos seus olhos; depois, começou a escurecer e a sumir-se em fundo precipício negro. No seu cérebro, à moda de um som alto e cortante — como se ali se houvesse rompido uma corda fina —, alguém gritou clara e distintamente: bu-me-ran-gue! Depois, sumiu tudo: o pensamento, a consciência, a dor, a tristeza. E isso foi tão simples e tão rápido como se alguém houvesse soprado uma vela em quarto escuro...
(1902)