Cambrino
i
Assim se chamava uma cervejaria de agitada cidade portuária do Sul da Rússia. Embora ficasse em uma das ruas mais movimentadas, era difícil encontrá-la, por causa da sua localização subterrânea. Freqüentemente o visitante, até a pessoa já íntima da casa e bem recebida nela, chegava a não notar a entrada desse magnífico estabelecimento, passava duas ou três lojas vizinhas e somente então atinava que ela ficara para trás.
Não havia nenhuma tabuleta. Entrava-se diretamente da calçada por uma porta estreita, sempre aberta. Descia-se por uma escada igualmente estreita, de vinte arrebates de pedra, batidos e entortados por muitos milhões de botas pesadas. No seu fim, a encimar a entrada, resplandecia uma imagem colorida, em alto-relevo, do glorioso protetor da indústria cervejeira, o rei Cambrino, de tamanho aproximadamente duas vezes maior do que o natural. Essa escultura fora provavelmente o primeiro trabalho de um amador e parecia executada toscamente em pedaços petrificados de esponja porosa, mas a camisola rubra, o manto de arminho, a coroa dourada e o caneco, levantado bem alto, com a espuma branca dele escorrente, não deixavam nenhuma dúvida de que, diante do visitante, estava o insigne patrono da fabricação de cerveja, em pessoa.
A cervejaria compunha-se de dois salões abobadados, compridos mas extraordinariamente baixos. A umidade subterrânea filtrava-se em dois filetes rápidos das paredes de pedra e brilhava à luz dos bicos de gás, acesos dia e noite, pois ali não havia janelas. No teto, no entanto, podiam distinguir-se ainda, muito claramente, vestígios de uma pintura mural interessante. Em um dos quadros, banqueteava-se um grupo numeroso de alemães robustos, com casacos verdes de caçador, chapéus com penas de tetraz e espingardas ao ombro. Todos eles, virados para o salão, estendiam canecos em saudação aos fregueses da casa, e dois, além disso, abraçavam, pela cintura, duas donzelas gordotas, criadas de alguma taberna de aldeia ou filhas de algum fazendeiro bonachão. Na outra parede, representava-se um convescote aristocrático da primeira metade do século xviii; condessas e viscondes de peruca empoada brincavam dengosamente com carneirinhos, em um prado verdejante, e, ao lado, sob salgueiros ramosos, via-se um tanque com cisnes, a que cavalheiros e senhoras davam de comer, de um barquinho dourado e frágil. O quadro seguinte apresentava o interior de uma casa camponesa da Ucrânia e uma família feliz, que dançava o gopak[36] com garrafas nas mãos. Mais adiante resplandecia um barril grande, e, sobre ele, envoltos em uma videira e folhas de lúpulo, dois cupidos indecentemente gordos, de lábios grossos e olhos desavergonhadamente melosos, brindavam, batendo as suas taças rasas. No segundo salão, separado do primeiro por um arco semicircular, sucediam-se cenas da vida das rãs: elas bebiam cerveja em um pântano verde, caçavam libélulas em um juncal espesso, tocavam em um quarteto de cordas, batiam-se a espada, e assim por diante. Ao que parece, as paredes haviam sido pintadas por um artista estrangeiro.
Sobre o chão, coberto de serradura em abundância, em vez de mesas dispunham-se pesados barris de carvalho; barriletes serviam de assento. À direita da entrada, havia um estrado, e, sobre ele, um piano. Ali, todas as noites, havia já muitos anos seguidos, para o prazer e o entretenimento dos fregueses, soava o violino do judeu Sachka,[37] pessoa mansa, alegre, amiga de beber, calva, de idade incerta, e parecida a um macaco de pêlo ralo. Passavam os anos, mudavam os empregados de manguitos de couro, mudavam os fornecedores e entregadores de cerveja, mudavam os próprios donos da casa, mas todas as noites, por volta das seis horas, invariavelmente, Sachka estava já sentado no seu estrado, com o violino nas mãos e uma cadelinha branca sobre os joelhos, e deixava o Cambrino lá pela uma hora da madrugada, mal se agüentando nas pernas por causa da bebida, em companhia da mesma cadelinha, Biélotcka.[38]
Aliás, havia, no Cambrino, outra figura permanente: a copeira Ivanova, mulher gorda, pálida e velha, que, pela estada constante naquela cava úmida, parecia um dos peixes preguiçosos e descorados das profundezas das grutas marinhas. Do alto do seu balcão, ela dirigia a criadagem em silêncio, qual capitão de navio da ponte de comando, e fumava o tempo todo, com um cigarro no canto direito da boca e o olho correspondente semicerrado à ardência do fumo. Raramente alguém ouvia a sua voz, e ela respondia aos cumprimentos sempre com o mesmo sorriso inexpressivo.
ii
O porto imenso, um dos maiores portos comerciais do mundo, estava sempre repleto de navios. Viam-se couraçados gigantescos de cor de ferrugem escura. Carregavam-se, a caminho do Extremo Oriente, os barcos amarelos, de chaminé grossa, da Frota Voluntária,[39] que devoravam, diariamente, trens de mercadorias ou milhares de presos. Na primavera e no outono, ali se agitavam bandeiras dos quatro cantos do mundo, e, da manhã à noite, ouviam-se ordens e impropérios em todas as línguas possíveis. Dos navios aos inúmeros depósitos, em vaivém sobre pranchas trêmulas, afanavam-se os carregadores: russos gebos, esfarrapados, com a cara inchada dos bêbados; turcos bronzeados, com turbantes imundos e calças largas nas coxas e justas dos joelhos para baixo; e persas musculosos e atarracados, de cabelos e unhas pintados de uma cor ígnea de cenoura com hena. Eram constantes as visitas de escunas italianas de dois e três mastros, lindas à distância, com os seus andares regulares de velas — limpas, brancas e rijas, como seios de moça; apontando de trás do farol, principalmente nas manhãs límpidas da primavera, essas naves airosas pareciam estupendos espectros alvejantes, que velejavam não pela água, mas pelo ar, acima do horizonte. Sobre a água de um verde sujo do porto, em meio ao lixo, cascas de ovo e de melancia e bandos de alvas gaivotas, balançavam-se, durante meses, lanchões raseiros, de mastro alto, da Anatólia, e faluchos de Trapezunda, com o seu colorido estranho, entalhes e ornamentos extravagantes. De vez em quando apareciam também barcos estreitos e singulares, sob velas alcatroadas, com um trapo em lugar de bandeira; ao dobrar o molhe, sem roçá-lo por um triz com a bordo, um deles, sempre adernando e sem moderar a velocidade, entrava como um pé-de-vento em qualquer ancoradouro e atracava sob um coro de pragas, maldições e ameaças em muitos idiomas, ao primeiro pedaço de cais que encontrava pela frente; a sua tripulação, uns sujeitos baixos, bronzeados e completamente nus, ferravam as velas com rapidez inconcebível, com gritos guturais de aves de rapina, e a nave misteriosa e imunda ficava imediatamente como morta. E do mesmo modo enigmático, sem acender luzes, ela desaparecia silenciosamente do porto, nas trevas da noite. A altas horas, o golfo inteiro fervilhava de embarcações pequenas e leves de contrabandistas. Pescadores de longe e dos arredores levavam peixe à cidade: na primavera, a anchova miúda, que aos milhões enchia as barcaças até à borda; no verão, o linguado disforme; no outono, a cavala, a tainha gorda e ostras; e, no inverno, esturjões de dez e vinte puds, que iam buscar a muitas verstas da costa, freqüentemente com grande risco de morte.
Toda essa gente — marinheiros de diversas nações, pescadores, foguistas, grumetes alegres, ladrões do porto, maquinistas, operários, bateleiros, carregadores, escafandristas e contrabandistas — todos eles eram moços, saudáveis e estavam impregnados do cheiro forte do mar e de peixe, conheciam a fadiga do trabalho, gostavam do encanto e do terror do risco diário, apreciavam, acima de tudo, a força, a galhardia, o entusiasmo e a mordacidade dos palavrões e, em terra, entregavam-se com um deleite selvagem à pândega, à bebedeira e às brigas. Ao anoitecer, as luzes da grande cidade, projetando-se para o alto do céu, atraía-os como olhos brilhantes e feiticeiros, sempre a prometer-lhes algo novo, risonho, e sempre a enganá-los.
A cidade ligava-se ao porto por ruas em ziguezague, pelas quais as pessoas respeitáveis evitavam passar após certa hora da noite. A cada passo, havia albergues com janelas imundas, fechadas e gradeadas, e a lúgubre luz de uma lâmpada solitária no interior. Em quantidade ainda maior, achavam-se lojas, em que era possível vender toda a roupa do corpo, inclusive a de baixo, a camiseta de malha dos marinheiros, e vestir-se com qualquer traje de marujo. Havia, também, muitas cervejarias, tabernas, restaurantezinhos baratos e casas de pasto com expressivas tabuletas em todas as línguas e não poucos prostíbulos notórios ou dissimulados, de cujas portas, quando anoitecia, mulheres pintadas sem apuro e de voz roufenha convidavam insistentemente os marinheiros. Havia cafés gregos em que se jogava o dominó e o sessenta-e-seis, e os cafés turcos, com todos os petrechos para o fumo do narguilé e pernoite por uma moeda de cinco copeques; bem como botequins orientais, onde se vendiam caracóis, camarões, chocos grandes e verrugentos e demais bichos asquerosos do mar. Algures, nos sótãos e cavas, atrás de contrafortes falsos, ocultavam-se casas de jogo, em que o bacará e outros carteados muitas vezes terminavam em barrigas abertas e cabeças rachadas, e ali ainda, na esquina, às vezes no cubículo contíguo, era possível vender qualquer coisa roubada, de um bracelete de brilhantes a uma cruz de prata, de uma trouxa de veludo de Lyon a um capote de marinheiro.
Às tantas da noite, essas ruas estreitas e íngremes, negras de pó de carvão, tornavam-se viscosas e fétidas, como se suassem durante um pesadelo. Pareciam as sarjetas e os intestinos imundos, pelos quais a grande cidade cosmopolita expelia para o mar todos os seus dejetos, toda a sua podridão, indecência e vício, infectando corpos robustos e musculosos e almas simples com eles.
Os desenfreados moradores da zona do porto raramente subiam à cidade elegante e sempre festiva, de muita limpeza e aparente comodidade, de vidros de espelho, monumentos altivos, do resplendor da eletricidade, calçadas asfaltadas, alamedas de acácias brancas e guardas imponentes. Mas cada um deles, antes de deitar ao vento os rublos ensebados, rasgados e ganhos com muito suor, visitava sem falta o Cambrino. Isso estava consagrado por um hábito antigo, embora para tal se precisasse abrir caminho sob a cobertura das trevas da noite até ao próprio centro da cidade.
Muitos, é verdade, desconheciam completamente o difícil nome do glorioso rei da cerveja. Alguém propunha simplesmente:
— Vamos ao Sachka?
Os outros respondiam:
— Às ordens! Manter o curso.
Então, diziam todos juntos:
— Para cima!
Não admira nem um pouco que, entre a gente do porto e do mar, Sachka fosse mais conhecido e considerado do que, por exemplo, o bispo e o governador da cidade. Sem dúvida, se não o seu nome, então a sua cara animada de macaco e o seu violino vez ou outra eram lembrados em Sydney e em Plymouth, bem como em Nova York, Vladivostok, Constantinopla e no Ceilão, sem falar já de todos os golfos e baías do mar Negro, onde havia uma batelada de admiradores do seu talento entre os valorosos pescadores.
iii
Normalmente, Sachka chegava ao Cambrino quando ali não havia ainda ninguém, exceto dois ou três fregueses eventuais. A tais horas, nos salões, pairava o cheiro intenso e azedo de cerveja do dia anterior, e era um tanto escuro, pois de dia economizavam gás. Nos dias quentes de julho, quando a cidade de pedra sucumbia ao sol e ficava surda com o bulício das ruas, ali reinavam um silêncio e um frescor agradáveis.
Sachka abeirava-se do balcão, cumprimentava a senhora Ivanova e bebia o seu primeiro caneco de cerveja. Ela lhe pedia, às vezes:
— Sachka, toque alguma coisa!
— Que ordena que eu toque, senhora Ivanova? — procurava gentilmente informar-se Sachka, que era sempre requintadamente amável com ela.
— Alguma coisa do seu povo...
Ele se sentava no lugar habitual, à esquerda do piano, e tocava peças estranhas, longas, tristes. Um quê de modorra e calma difundia-se pela cava; apenas o barulho abafado da cidade chegava da rua, e de quando em quando se ouvia o manusear cuidadoso da louça pelos empregados, do outro lado da parede, na cozinha. Nas cordas do violino de Sachka, chorava toda a mágoa judaica, antiga como o mundo, toda entretecida e envolta pelas flores tristes das melodias nacionais. Àquela hora crepuscular, o rosto de Sachka, com o maxilar contraído e a fronte bem baixa, com aqueles olhos que miravam severos sob as pesadas pálpebras, não se parecia nem um pouco ao rosto de dentes arreganhados, olhos piscantes e movimentos dançantes, familiar a todos os freqüentadores do Cambrino. Biélotchka ficava sentada no seu colo. Ela havia muito já se acostumara a não acompanhar a música com uivos, mas sons assaz tristes, soluçantes e amaldiçoadores irritavam-na: entre bocejos convulsivos, escancarava a boca, frisando para trás a lingüinha rósea e fina e, além disso, tremia por um minuto com todo o corpinho e a meiga carinha de olhos negros.
A pouco e pouco juntava-se público; chegava o acompanhante de Sachka, depois de terminar a sua ocupação diurna em alguma alfaiataria ou relojoaria; na cantina, expunham-se salsichas em água quente e sanduíches de queijo, e, finalmente, acendiam-se todos os bicos de gás restantes. Sachka bebia o seu segundo caneco e comandava ao companheiro: “‘A Parada de Maio’, êin, tsviéi, driéi!”, e iniciava-se uma marcha frenética. A partir desse instante, ele mal conseguia saudar, com uma inclinação de cabeça, os que ali tornavam mais uma vez; destes, cada um se julgava seu conhecido íntimo e lançava um olhar orgulhoso aos demais fregueses, após o seu cumprimento. Ao mesmo tempo, Sachka entrefechava ora um olho, ora o outro, alinhava as rugas compridas para o alto do seu crânio escalvado e inclinado para trás, movia comicamente os lábios e sorria para todos os lados.
Pelas dez, onze horas, o Cambrino, em cujos salões cabiam até duzentas pessoas ou mais, ficava repleto. Muitos, quase a metade deles, vinha com mulheres de xale; ninguém se queixava do aperto, do pé pisado, do chapéu amassado ou das calças molhadas pela cerveja alheia; se alguém reclamava, era só porque estava bêbado, por graça. A umidade da cava escorria ainda mais abundante, com um brilho opaco, das paredes pintadas a óleo, ao passo que as exalações da multidão caíam do teto qual chuva esparsa, em gotas pesadas e mornas. Ali bebia-se para valer. Pelos costumes da casa, considerava-se especialmente bonito dois ou três cobrirem o barril de garrafas de modo que o interlocutor não pudesse ser visto, como se além de uma floresta de vidro verde.
Na barafunda da noite, os fregueses ficavam vermelhos, roucos e molhados. O fumo do tabaco fazia os olhos arderem. As pessoas precisavam gritar e curvar-se sobre o barril para se fazerem ouvir e entenderem umas às outras, em meio ao vozerio geral. Apenas o violino infatigável de Sachka, do alto do estrado, triunfava sobre o bochorno, o calor, o cheiro de tabaco, de gás e de cerveja e sobre a gritaria do público turbulento.
Os visitantes, porém, logo se embriagavam com a cerveja, a proximidade das mulheres e o ar abafado. Cada um queria as canções que conhecia, e as suas preferidas. Ao pé de Sachka sempre se postavam, a puxar-lhe a manga da camisa e a atrapalhá-lo, dois ou três sujeitos de olhar estúpido e movimentos vacilantes.
— Sachch!... A so-fri-da... Ate... — gaguejava o solicitante — Ate-e-nde-me!
—Já, já — repetia Sachka, a inclinar rapidamente a cabeça, e deitava uma moeda de prata em um bolso lateral com a agilidade de um médico, sem ruído. — Já, já.
— Sachka, isso é uma infâmia. Eu dei dinheiro, e já é a vigésima vez que peço: “Eu fui a Odessa pelo mar”.
— Já, já...
— Sachka, “O rouxinol”!
— Sachka, a “Marússia”!
— O “Ziets-Ziets”, Sachka, o “Ziets-Ziets”!
— Já, já...
— “O o-ve-lhei-ro”! — berrava, da outra extremidade do salão, uma voz não de gente, mas de cavalo.
Em meio à gargalhada geral, respondia-lhe Sachka, à moda de galo:
— Já-já-já-já-já-já-já-á-á-á-á-á...
Ele tocava sem descanso todas as músicas solicitadas. Parecia não haver nenhuma que não soubesse de cor. De todos os cantos choviam moedas de prata para os seus bolsos, e de todas as mesas mandavam-lhe canecos de cerveja. Quando descia do estrado para ir ao balcão, não tinha sossego.
— Sáchenka... Queridinho... Uma canequinha.
— Sacha, à tua saúde. Baços, braços, calhamaços! Vem cá, diabo, quando te chamam.
— Sachka-a, vem be-ber cerveja! — berrava a voz de potro.
As mulheres, inclinadas, como todas as mulheres a admirar os artistas, a namoriscá-los, a querer distinguir-se perante eles e a tratá-los servilmente, chamavam-no com voz arrulhante e uma risota brejeira, faceira:
— Sáchetchka, deve beber pra eu sem falta... Não, não, não, eu lhe pécio. E, depois, toque um kuku-vok.[40]
Sachka sorria, fazia momices e vênias em todas as direções, mandava beijinhos, bebia em todas as mesas e, de volta ao piano, sobre o qual o esperava novo caneco, punha-se a tocar uma “Separação” qualquer.
Às vezes, para distrair os ouvintes, fazia o violino imitar o ganido de um cachorrinho e o cuincho de um leitão e rouquejar com sons lancinantes de baixo. O público acolhia essas brincadeiras com benévola aprovação:
— Ho-ho-ho-ho-o-o-o!
O calor aumentava. Continuava a pingar do teto; já alguns choravam, a bater no peito com os punhos; outros, com os olhos injetados de sangue, discutiam por causa de alguma mulher e ofensas passadas e engalfinhavam-se, sendo contidos pelas pessoas mais próximas, quase sempre seus parasitas, que estavam mais sóbrias. Os atendentes conseguiam enfiar-se milagrosamente por entre os barris, barriletes, pernas e troncos, com as bandejas repletas de canecos de cerveja e levantadas bem alto, acima da cabeça dos fregueses sentados. De trás do balcão, a senhora Ivanova, ainda mais descorada, impassível e calada do que nunca, dirigia as ações dos empregados da casa como o capitão de um navio em meio a uma tormenta.
O desejo de cantar apoderava-se de todos. Sachka, enternecido pela cerveja, pela própria bondade e pela alegria rude que a sua música proporcionava aos outros, dispunha-se a tocar o que quer que pedissem. Aos sons do seu violino, algumas pessoas, já roucas, berravam em uníssono, com vozes inexpressivas e desafinadas, olhando-se nos olhos, com disparatada seriedade:
Para que nos se-epararmos?
Para que vivermos em sepa-arado?
Não é melhor casarmos,
O nosso amor mantermos inflamado?
Ao lado, outro grupo, esforçando-se por gritar mais alto do que o primeiro, do qual, pelo visto, era inimigo, esganiçava desordenadamente:
Pelo jeito de andar, eu vejo
Que as calças são por demais vistosas.
É a chantret[41] o seu cabelo,
E de meia-sola as botas.
O Cambrino recebia a visita freqüente de gregos da Ásia Menor, chamados “dopgoláqui”, que arribavam aos portos russos para atividades pesqueiras. Eles também encomendavam a Sachka as suas canções orientais, que consistiam em um uivo monótono, fanhoso e desalentado de duas ou três notas, e eram capazes de entoá-las por horas inteiras, de rosto sombrio e olhos brilhantes. Sachka tocava cançonetas populares italianas, bem como dumkas ucranianas, marchas nupciais judaicas e muitas coisas mais. Certa ocasião, passou por ali um grupo de marinheiros negros, os quais, a olharem para os outros, também sentiram muita vontade de cantar. Sachka aprendeu rápido de ouvido a sua galopante melodia, encontrou-lhe imediatamente um acompanhamento no piano, e eis que, para o grande entusiasmo e divertimento dos freqüentadores da casa, esta se encheu dos sons estranhos, extravagantes e guturais de uma canção africana.
Um repórter de um jornal local, conhecido de Sachka, certa vez, convenceu um catedrático de uma escola de música a ir ao Cambrino escutar o famoso violinista. Sachka, porém, descobriu a história e arrancou ao instrumento mais miados, balidos e mugidos do que de costume. Os fregueses estalaram de rir, ao passo que o professor disse, com desprezo:
— Isto é uma palhaçada.
E foi-se, sem terminar de beber o caneco.[42]
iv
As marquesas delicadas e os caçadores alemães risonhos, os cupidos gorduchos e as rãs das paredes do Cambrino, amiúde, eram testemunhas de pândegas desenfreadas, que só muito raramente podiam ver-se em outro sítio.
Aparecia, por exemplo, um bando de ladrões em patuscada após um negócio rendoso, cada qual com a sua namorada, um boné atrevidamente tombado de banda e botas de verniz, com os modos requintados dos freqüentadores de tabernas e ar desdenhoso. Sachka tocava-lhes músicas especiais, de gatunos: “Eu sou um menino perdido”, “Não chores, Marússia”, “Passou a primavera” e outras. Achavam dançar indigno deles, mas as suas companheiras, todas nada feias e muito jovens, algumas quase ainda meninas, dançavam “O ovelheiro”, a cantar com voz esganiçada e a sapatear. Tanto os homens como as mulheres bebiam muito; o mau era apenas que os ladrões terminavam sempre a sua pândega com as velhas discussões sobre a conta e gostavam de sumir sem pagar.
Em grandes grupos, de umas quarenta pessoas, vinham pescadores depois de um trabalho bem-sucedido. No alto outono havia umas semanas felizes, quando em cada fábrica entravam diariamente quarenta mil cavalas ou tainhas. Então, até o menor sócio ganhava mais de duzentos rublos. O que mais enriquecia os pescadores, porém, era uma pesca boa de esturjão no inverno, que, em contrabalanço, se caracterizava por grandes riscos. O trabalho era árduo, a trinta, quarenta verstas em mar alto, em meio à escuridão e, às vezes, sob mau tempo; então, a água inundava as barcas e congelava-se imediatamente sobre a roupa e os remos, ao passo que a intempérie retinha as embarcações por dois, três dias e as atirava algures, a mais de duzentas verstas, para as bandas de Anapa e Trapezunda. A cada inverno, quase uma dezena de barcas desaparecia sem vestígios e apenas na primavera as ondas lançavam os corpos dos bravos pescadores a praias estrangeiras.
Em compensação, quando eles regressavam do mar sem transtornos e com bom lanço, eram acometidos, em terra, por uma ânsia violenta de viver. Gastavam-se milhares de rublos na pândega mais sórdida e ruidosa de bêbados. Os pescadores metiam-se em uma taberna ou outro sítio alegre, escorraçavam todos os fregueses, trancavam bem as portas e contraventos e, por dias inteiros seguidos, entregavam-se ao amor, cantavam aos berros, escacavam espelhos e louça, batiam nas mulheres e brigavam entre si, até o sono derrubá-los em qualquer lugar: sobre as mesas, sobre o chão, de atravessado sobre a cama, em meio a escarros, tocos de cigarro, vidro quebrado, vinho derramado e manchas de sangue. Assim pandegavam eles, vários dias a fio, mudando de lugar às vezes ou permanecendo em um mesmo. Após gastarem o último centavo, com um zumbido na cabeça e marcas de combate no rosto, a tremerem da ressaca, calados, deprimidos e contritos, seguiam para a praia, para as chalupas, para retomarem o ofício querido e amaldiçoado, penoso e fascinante.
Nunca se esqueciam de visitar o Cambrino. Irrompiam ali enormes, enrouquecidos, de cara vermelha e crestada pelo violento nordeste de inverno, de japonas impermeáveis, calças de couro e botas, cujos canos lhes chegavam às coxas, as mesmas botas de couro de boi com que os seus amigos afundavam como pedras nas noites tempestuosas.
Por respeito a Sachka, não expulsavam as outras pessoas, embora se sentissem donos da cervejaria e quebrassem copos no chão. Sachka tocava-lhes canções de pescadores, arrastadas, simples e terríveis como o marulho das ondas, e eles cantavam em uníssono, forçando ao máximo os pulmões saudáveis e as gargantas enrijecidas. Sachka agia sobre eles como Orfeu, que serenava as ondas, e um arrais qualquer de chalupa, homenzarrão de quarenta anos, barbudo, todo crestado de sol e parecido a um bicho feroz, soía debulhar-se em lágrimas, entoando, com empenho e voz aguda, uma canção queixosa:
Ah, que pobre, pobre menino eu sou,
Por ter nascido pescador...
Às vezes dançavam, a marcar passo, com rostos pétreos, e atroavam o Cambrino com os ruídos das suas botas de um pud, a espalhar pela casa o cheiro forte e salgado de peixe, de que estavam impregnados os seus corpos e a roupa. Eram muito generosos com Sachka e retinham-no muito tempo às suas mesas. Ele conhecia bem o seu modo penoso e temerário de vida e, por isso, a tanger o violino para eles, sentia certa tristeza respeitosa.
Sachka, porém, tinha especial gosto em tocar para os marinheiros ingleses de navios mercantes. Vinham em rancho, de braços dados, todos igualmente de peitos salientes, ombros largos, jovens, de dentes brancos, com um corado sadio nas faces e olhos azuis alegres e intrépidos. Os fortes músculos enfunavam-lhes as japonas, e das golas bastante decotadas elevavam-se pescoços retos, robustos e bem-proporcionados. Alguns conheciam já Sachka de paragens anteriores naquele porto. Reconheciam-no e, a exibir os brancos dentes em saudação, cumprimentavam-no em russo:
— Zdráist, zdráist.[43]
Sachka, espontaneamente, atacava logo o “Rule Britania”. A consciência de que eles se encontravam em um país oprimido pela escravidão eterna devia comunicar uma solenidade especialmente altaneira àquele hino da liberdade inglesa. Quando eles cantavam, de pé e com a cabeça descoberta, as magníficas palavras finais:
Jamais, jamais, jamais
Um inglês será escravo!,
até os seus vizinhos de mesa mais desenfreados involuntariamente tiravam o boné.
Um mestre atarracado, de arrecada na orelha e com uma barba que lhe caía do pescoço qual franja, abeirava-se de Sachka com dois canecos de cerveja, batia-lhe amigavelmente nas costas e pedia-lhe um jig. Aos primeiros sons dessa fogosa dança, os ingleses saltavam e limpavam o lugar, afastando os barriletes para a parede. Pediam a colaboração dos outros com gestos e sorrisos amáveis, mas não faziam cerimônia com quem não se apressasse e tiravam-lhe o assento de sob os fundilhos com uma pezada. A isso, porém, tinham de recorrer raramente, pois no Cambrino todos eram apreciadores de danças e gostavam particularmente do jig inglês. O próprio Sachka, sem parar de tocar, subia na cadeira para ver melhor.
Os marinheiros formavam um círculo e, ao ritmo da rápida dança, batiam palmas, ao passo que dois faziam uma encenação no meio. A dança representava a vida de um marujo em viagem. Um barco preparava-se para a partida, sob um tempo maravilhoso, e, nele, estava tudo em ordem. Os dançarinos armavam os braços em cruz sobre o peito, derreavam a cabeça para trás e mantinham o corpo quieto, embora os pés executassem um sapateado doido. Soprava, então, uma brisa, e começava pequeno balanço. Para os marinheiros, aquilo era uma alegria só, mas, a cada vez, as figuras da dança tornavam-se mais complexas. Punha-se a soprar um vento forte; caminhar pelo convés não era já tão fácil; os dançarinos balançavam-se levemente de um lado para outro. Por fim, sobrevinha verdadeira tempestade; os marujos eram arremessados de um bordo a outro, e a situação ficava dramática. “Todos para cima! Ferrar velas!”. Os movimentos dos dançarinos mostravam com cômica clareza como eles trepavam pelas enxárcias, com ajuda das mãos e dos pés, como tendiam as velas e prendiam as escotas, ao mesmo tempo em que a tormenta agitava o barco com força cada vez maior. “Parar! Homem ao mar!” Baixava-se um escaler. Os dançarinos, de cabeça baixa, com os fortes pescoços nus retesados, remavam aceleradamente, ora a dobrar o tronco, ora a aprumá-lo. Passava, porém, a procela, a pouco e pouco cessava o balanço, escampava o céu, de novo o barco velejava suavemente, com vento propício, e os dançarinos, novamente com os braços em cruz sobre o peito e os corpos hirtos, arrematavam o alegre e rápido jig com os pés.
Às vezes, Sachka tocava lesguinkas para os georgianos, que fabricavam vinho nos arredores da cidade. Não havia danças que não conhecesse. Quando um dançarino, de gorro alto de pele e tcherkéska,[44] voava por entre os barris, a colocar na nuca ora uma mão, ora a outra, ao passo que os amigos o acompanhavam com palmas e gritos, Sachka também não se continha e gritava, animado, com eles: “Khás! Khás! Khás! Khás!”. Executava o djok moldávio e a tarantella italiana, bem como valsas para marinheiros alemães.
No Cambrino ocorriam algumas rixas realmente medonhas. Os fregueses antigos gostavam de contar uma briga lendária entre marinheiros russos, que haviam dado baixa de um cruzador, e ingleses. Bateram-se com os punhos, cassetetes, canecos de cerveja e até atiraram uns nos outros os barriletes de assento. Em desabono dos nossos militares, necessário é dizer que foram eles os iniciadores do escândalo e os primeiros que puxaram facas, além de haverem conseguido desalojar os ingleses da cervejaria somente após um combate de meia hora, embora os excedessem na proporção de três para um.
Amiúde, a intervenção de Sachka acabava com a altercação, ainda que estivesse já à beira do derramamento de sangue. Acercava-se, gracejava, sorria, fazia caretas, e imediatamente eram-lhe estendidas taças de todos os lados.
— Sachka, um canequinho!... Sachka, comigo!... Crença, lei, fígado, caixão...
Nos modos simples e bárbaros dos fregueses quem sabe influísse aquela bondade mansa e engraçada, que se irradiava dos seus olhos, ocultos sob a testa fugidia? Talvez fosse respeito ao talento e uma espécie de gratidão? Era possível, também, que aquilo se devesse em parte ao fato de que a maioria dos freqüentadores do Cambrino era constituída de eternos devedores de Sachka. Nos duros momentos de “derrota”, que no jargão dos marujos e portuários significa a mais completa penúria, eles recorriam sem acanhamento ao sempre magnânimo Sachka por alguns trocados ou pequeno crédito na cantina.
Ninguém lhe pagava, claro, e não por desonestidade, mas por esquecimento. Todos esses devedores, porém, na hora de nova pândega, saldavam as dívidas em décuplo pelas canções de Sachka.
A copeira repreendia-o às vezes:
— Fico admirada, Sacha. Por que não guarda o seu dinheiro?
Ele retorquia, em tom convicto:
— Ora, senhora Ivanova. Eu não vou poder levar o dinheiro comigo para o túmulo. Ele chega para mim e para a Biélotchka. Biélinka, cadelinha minha, vem cá.
v
Apareciam também, no Cambrino, canções da moda e de temporada.
Aquando da guerra dos ingleses com os bôeres, esteve muito em voga a “Marcha dos bôeres” (ao que parece, a famosa briga entre marinheiros russos e ingleses datava precisamente dessa época). Obrigavam Sachka a tocar essa heróica peça umas vinte vezes e, no seu fim, invariavelmente agitavam os bonés e gritavam “hurra”, a olhar para os indiferentes de esguelha e com hostilidade, o que, naquela casa, nem sempre era bom presságio.
Vieram, depois, as festividades franco-russas.[45] O governador da cidade permitiu, de cara feia, que se tocasse “ A Marselhesa”. Pediam-na todas as noites, mas já não com tanta freqüência como a “Marcha dos bôeres”; ademais, os gritos de “hurra” eram mais frouxos e absolutamente ninguém agitava o boné. Tal ocorria porque, em primeiro lugar, não havia motivos para expansão dos sentimentos da alma; em segundo, os freqüentadores do Cambrino não compreendiam lá muito bem a importância política da aliança e, em terceiro, já se notara que, todas as noites, eram sempre as mesmas pessoas que solicitavam o hino e gritavam “hurra”.
Teve breve popularidade o ritmo kek uok, e até um comerciante jovem, que aparecera ali para pandegar, dançou-o entre os barris, sem tirar o grosso casaco de pele de guaxinim, as galochas de cano alto e o gorro de pele de raposa. Essa dança africana, no entanto, foi logo esquecida.
Veio, então, a grande guerra japonesa.[46] Os fregueses do Cambrino entraram em uma vida acelerada. Sobre os barriletes, apareceram jornais; à noite, discutia-se sobre a guerra. As pessoas mais pacíficas e mais simples tornavam-se políticos e estrategistas, mas, no fundo do coração, cada um tremia, se não por si, então por um irmão ou, o que era mais provável, por um camarada íntimo: naqueles dias, refletia-se claramente o laço imperceptível e forte de ligação entre as pessoas, que durante muito tempo compartilharam trabalho, perigo e a proximidade diária da morte.
Inicialmente, ninguém duvidava da nossa vitória. Sachka conseguiu, algures, a “Marcha de Kuropátkin”,[47] e tocou-a umas vinte noites seguidas, com algum êxito. Mas, certa vez, ela foi desbancada para sempre por uma canção trazida por pescadores de Balaklava, os “gregos salgados”, como eram chamados:
Ah, para que nos fizeram soldados
E nos mandam para o Oriente Extremo?
Será que somos culpados
De um pouco mais de altura termos?
Daí em diante, no Cambrino, não quiseram escutar outra coisa. A noite toda só se ouvia o pedido:
— Sacha, a sofrida! De Balaklava! Dos reservistas!
Cantavam, choravam e bebiam duas vezes mais do que habitualmente, como, aliás, bebia toda a Rússia então, sem exceção. Todas as noites, aparecia alguém para despedir-se; tentava aparentar coragem, caminhava como galo de rinha, atirava o gorro ao chão, prometia arrebentar sozinho todos os japas e perorava em lágrimas, com a canção sofrida.
Certa feita, Sachka chegou à cervejaria antes do habitual. A copeira, depois de encher-lhe o primeiro caneco, disse-lhe, como de hábito:
— Sachka, toque alguma coisa sua...
Os lábios deste crisparam-se de repente, e o caneco girou-lhe nas mãos.
— Sabe de uma coisa, senhora Ivanova? — disse ele, como que perplexo. — Pois eu fui convocado. Para a guerra.
A mulher levantou os braços, de espanto.
— Não pode ser, Sacha! Está a mangar?
— Não — balançou ele a cabeça, com desalento e resignação —, não, não estou a mangar.
— Mas não passou já da idade, Sacha? Quantos anos tem?
Até então, por algum motivo, ninguém se interessara por essa questão. Todos acreditavam que Sachka tivesse a idade das paredes da cervejaria, das marquesas, dos ucranianos, das rãs e do próprio rei Cambrino, o garrido guardião da entrada.
— Quarenta e seis. — Sachka pensou um pouco. — Ou, talvez, quarenta e nove. Eu sou órfão — acrescentou, com tristeza.
— Pois então, vá, explique isso a quem for preciso.
— Eu já fui, senhora Ivanova, já expliquei lá.
— E... E então?
— Bem, responderam-me: seu judeu escrofuloso, fuça judia, dize só mais uma palavrinha e irás conhecer o nosso criadouro de percevejos... E golpearam-me aqui.
À noite, a notícia era já sabida por todos do Cambrino, e, por compaixão, deixaram-no bêbado de cair. Ele tentava fazer trejeitos e caretas, entrefechar os olhos, mas estes, meigos e engraçados, irradiavam tristeza e terror. Um operário grandalhudo, caldeireiro de profissão, ofereceu-se a ir para a guerra no lugar de Sachka. Todos viam claramente a estupidez de tal oferecimento, mas Sachka ficou comovido, chorou, abraçou o homem e, no mesmo instante, presenteou-lhe o violino. Biélotchka ficou com a copeira.
— Senhora Ivanova, olhe a cadelinha. Talvez eu não volte, e, assim, terá uma lembrancinha minha. Biélotchka, cadelinha minha! Olhe, lambe-se... Ah, tu, minha pobrezinha... E peço-lhe também, senhora Ivanova. Há um dinheiro meu com o patrão; pois o receba e mande... Eu lhe escreverei os endereços. Em Gómel, tenho um primo com família, e, em Jmérink, vive a viúva de um sobrinho. Todos os meses, envio-lhes alguma coisa... Nós, judeus, somos assim... gostamos dos parentes. Já eu sou órfão, não tenho ninguém. Adeus, então, senhora Ivanova.
— Adeus, Sachka! Vamos beijar-nos na despedida. Tantos anos... E não se zangue, eu o benzerei para a viagem.
Os olhos de Sachka estavam profundamente tristes, mas ele não conseguiu conter uma bufonaria final:
— Olhe lá, senhora Ivanova! Será que eu não vou bater as botas por causa dessa cruz russa?
vi
O Cambrino esvaziou-se e entrou em decadência, como se desamparado sem Sachka e o seu violino. O proprietário até que experimentou convidar, como chamariz, um quarteto de bandolinistas ambulantes, um dos quais, vestido qual inglês de opereta, de suíças ruivas e nariz de colar, calças xadrezes e colarinho acima das orelhas, interpretava cançonetas cômicas e fazia gestos obscenos no palco. O grupo não teve o mínimo êxito: os fregueses vaiavam os músicos com assobios e atiravam restos de salsicha neles; certa vez, alguns pescadores até bateram no cômico principal por uma referência desrespeitosa a Sachka.
No entanto, o Cambrino, como dantes, era visitado pelos bravos homens do porto e do mar, que a guerra não arrastara para a morte e para os sofrimentos. No início, recordavam Sachka todas as noites:
— Eh, o Sachka aqui, agora, hein?! Que falta faz ele...
— É-é-é... Por onde andas, queridíssimo amigo Sachka?
“Longe, nos campos da Manchúria...”, começava alguém uma nova canção da época e calava-se, acanhado; outro dizia inesperadamente:
— Há vários tipos de ferimento: os que varam o corpo, os feitos por armas perfurantes, e os que mutilam. Há também os que despedaçam o corpo...
Eu felicito a mim pela vitória,
A ti pelo braço arrancado...
— Pára de ganir... Senhora Ivanova, não há nenhuma notícia do Sachka? Alguma carta ou bilhetinho postal?
Naqueles tempos, Ivanova lia jornais o tempo todo, a segurá-los à distância dos braços estendidos, de cabeça inclinada para trás, e a remexer os lábios. Biélotchka deitava-se no seu regaço e roncava serenamente. No seu posto de comando, a copeira não parecia já um capitão animado, e os seus subordinados moviam-se indolentes e modorrentos.
À pergunta sobre o paradeiro de Sachka, meneava lentamente a cabeça.
— Não sei nada... Nem carta nem notícia nos jornais.
Depois, tirava os óculos devagar, colocava-os sobre os jornais, ao lado de Biélotchka, virava-se e soluçava baixinho.
Inclinando-se, às vezes, sobre a cadelinha, dizia, com voz queixosa, comovente:
— E então, Biélinka? E então, cadelinha? Onde está o nosso Sacha? Onde está o nosso dono?
Biélotchka levantava a carinha delicada, piscava os olhos negros e úmidos e entrava a uivar baixinho, no tom da copeira:
— A-ú-ú-ú... Au-f... A-ú-ú...
O tempo, porém, a tudo abranda e apaga. Os bandolinistas foram substituídos por tocadores de balalaica, estes, por um coro russo-ucraniano de moças, e, finalmente, mais do que os outros, no Cambrino firmou-se o famoso Liéchka-sanfoneiro, ladrão de profissão que, depois de casar-se, decidira tomar o bom caminho. Conheciam-no já de muito, de outras tabernas, e por isso toleravam-no ali, o que, aliás, era necessário, pois os negócios da casa iam mal.
Passaram-se meses, passou-se um ano. Ninguém se lembrava de Sachka, exceto a senhora Ivanova, mas ela não chorava já ao ouvir seu nome. Quiçá até a cadelinha branca houvesse já esquecido o amigo.
Ao contrário, porém, dos temores de Sachka, ele não apenas não morreu por causa da cruz russa, como também não foi ferido nem uma única vez, embora houvesse participado em três grandes batalhas e uma vez se houvesse lançado ao ataque à frente do batalhão, no pelotão dos músicos, em que fora alistado como flautista. Perto de Van Fan Gou foi feito prisioneiro, e, ao fim da guerra, um navio alemão deixou-o no mesmo porto, onde trabalhavam e promoviam desordens os seus amigos.
A notícia da sua chegada propagou-se por todos os cais, molhes, embarcadouros e oficinas com a velocidade da corrente elétrica... À noite, havia tanta gente no Cambrino, que a maioria teve de ficar em pé; os canecos de cerveja passavam de mão em mão, por cima das cabeças, e, embora muitas pessoas tenham saído sem pagar, a casa registrou a maior féria da sua história. O mestre caldeireiro trouxe o violino, cuidadosamente embrulhado em um lenço da esposa, que ele trocou imediatamente por bebida. De algum sítio trouxeram o último dos acompanhantes de Sachka. Liéchka-sanfoneiro, sujeito cheio de amor-próprio e presunção, quis dar-se por ofendido: “Eu recebo por dia e tenho um contrato!”, repetia ele, teimosamente. Atiraram-no simplesmente à rua, e ter-lhe-iam certamente batido se não tivesse havido a intercessão de Sachka.
Seguramente, nenhum dos heróis nacionais da guerra com o Japão teve recepção tão calorosa e esfuziante como a feita a Sachka! Mãos fortes e grossas agarravam-no, levantavam-no e atiravam-no para cima com tanta força, que ele por pouco não se feria, batendo no teto. Gritavam tão alto que as lingüetas dos bicos de gás apagavam e um guarda entrou várias vezes para pedir encarecidamente que “as pessoas se contivessem um pouco mais, porque à rua chegava um barulho medonho”.
Naquela noite, Sachka executou todas as canções preferidas do Cambrino. Tocou até umas japonesas, aprendidas por ele no cativeiro, mas elas não agradaram aos ouvintes. A senhora Ivanova, como que renascida, estava novamente animada na sua ponte de comando, ao passo que Biélinka gania de alegria no colo de Sachka. Quando ele parava de tocar, um pescador mais simplório ou outro, que só então acabara de compreender cabalmente o milagre do retorno de Sachka, gritava com espanto ingênuo e alegre:
— Gente, mas esse é o Sachka!
Os salões do Cambrino enchiam-se de uma rinchavelhada grossa e de uma linguagem desbragada e divertida, e os fregueses agarravam Sachka novamente, arremessavam-no ao teto, gritavam, bebiam, entrechocavam os canecos e derramavam cerveja uns sobre os outros.
Sachka parecia não haver mudado nem um pouquinho, nem envelhecido durante a sua ausência: o tempo e as desgraças imprimiram-lhe na aparência tão poucas marcas, quantas no Cambrino da escultura, guardião e protetor da casa. Ivanova, porém, com a sensibilidade de pessoa bondosa, notou que a expressão de terror e tristeza, vista por ela nos olhos de Sachka no dia da despedida, não somente não desaparecera deles, como também se tornara mais profunda e maior. Como antes, ele chocarreava, piscava e enrugava a testa, mas Ivanova sentia que aquilo era fingimento.
vii
As coisas retomaram o seu curso, como se não houvessem acontecido uma guerra e o cativeiro de Sachka em Nagasáki. Os pescadores de botas gigantes continuaram da mesma maneira a comemorar os bons lanços de esturjão e cabeçuda, e as companheiras dos ladrões do mesmo modo a dançar, e Sachka, como dantes, tocava canções de marinheiros, trazidas de todos os portos do globo terrestre.
Aproximavam-se já, no entanto, tempos variados, instáveis, agitados. Certa vez, à noite, a cidade toda levantou burburinho e alvoroçou-se, como se alarmada por um toque a rebate, e as ruas ficaram pretas de gente a uma hora inusual. Pequenas folhas volantes iam de mão em mão com a maravilhosa palavra “liberdade”, que naquela noite foi repetida por todo o imenso e crédulo país.
Vieram dias luminosos, festivos e jubilosos, e o seu resplendor iluminou até a cava do Cambrino. Ali iam estudantes, operários, bem como moças jovens e bonitas. Pessoas de olhos brilhantes discursavam de cima dos barris, que tanto haviam visto na sua existência. Nem tudo era compreensível naquelas palavras, mas o coração estremecia e abria-se ao seu encontro, pela ardente esperança e pelo grande amor que soavam nelas.
— Sachka! “A Marselhesa”! Vamos! “A Marselhesa”!
Não, essa não parecia “A Marselhesa”, que o governador da cidade permitira a contragosto que tocassem na semana das comemorações franco-russas. Passavam procissões sem-fim nas ruas, com bandeiras rubras e cantos. Viam-se fitas e flores encarnadas nas mulheres. Pessoas completamente estranhas umas às outras, após um sorriso radioso, apertavam-se as mãos...
Mas toda essa alegria desapareceu em um instante, tal qual se apagam as marcas dos pezinhos das crianças na praia. Certa vez, no Cambrino irrompeu um ajudante de comissário de polícia, homenzinho gordo, ofegante, de olhos esbugalhados e rubicundo como um tomate muito maduro.
— Quê?! Quem é o dono disto aqui? — rouquejou. — Tragam o dono!
Viu Sachka em pé, com o violino.
— És o dono? Cala-te! Quê? Tocam-se hinos, é? Pois nada de hinos aqui!
— Não haverá hinos daqui por diante, Vossa Excelência — respondeu calmamente Sachka.
O outro chegou-lhe o dedo indicador virado para cima bem ao nariz e mexeu-o em tom de ameaça para a esquerda e para a direita.
— Nenhum!
— Obedeço, Vossa Excelência, nenhum.
— Eu lhes mostrarei só o que é fazer revolução, eu lhes mostra-re-e-e-ei!
Ele saiu como uma bomba, e a tristeza, em seguida, abateu a todos.
Baixaram as trevas sobre toda a cidade. Corriam rumores obscuros, alarmantes, infames. As pessoas falavam com prudência, receavam denunciar-se pelo olhar, assustavam-se da própria sombra e tinham medo dos próprios pensamentos. Pela primeira vez, a cidade pensou na cloaca, que se remexia surdamente a seus pés, lá embaixo, junto ao mar, e na qual lançava os seus excrementos venenosos. A cidade tapava com escudos as janelas espelhadas das suas lojas magníficas, guardava com patrulhas os monumentos imponentes e, para qualquer eventualidade, colocava peças de artilharia nos pátios dos prédios bonitos. Entrementes, em cubículos fétidos e águas-furtadas esburacadas da periferia, tremia, orava e chorava, aterrorizado, o povo escolhido de Deus, havia muito desamparado pelo colérico Jeová da Bíblia, mas ainda crente de que o destino lhe reservava novas e duras provações.
Embaixo, ao pé do mar, em ruas parecidas com intestinos pegajosos, transcorria uma atividade secreta. As portas das tabernas, das casas de chá e dos albergues permaneciam escancaradas a noite toda.
Em uma manhã, começou o pogrom. As pessoas, que um dia comovidas com a pura alegria geral e enternecidas com a luz da fraternidade futura, seguiam pelas ruas, a cantar sob os signos da liberdade conquistada, essas mesmas pessoas seguiam agora para matar, e faziam-no não porque isso lhes fora ordenado, porque nutrissem alguma hostilidade contra os judeus, com quem muitas vezes tinham amizade estreita, ou por cobiça, mas porque o diabo imundo e astuto, que existe em toda a gente, lhes murmurava ao ouvido: “Ide. Tudo ficará impune: a curiosidade proibida do homicídio, a voluptuosidade da violência, o poder sobre a vida alheia”.[48]
Aquando dos pogroms, Sachka andava livremente pelas ruas, com a sua cara engraçada de macaco, bem judia. Não buliam com ele. Tinha uma bravura inabalável de espírito, o destemor do temor, que protege até os fracos melhor do que quaisquer Brownings. Mas uma vez, quando, apertado à parede de um prédio, se desviou de uma multidão, que fluía qual furacão, um pedreiro, de camisa vermelha e avental branco, brandiu o escopro sobre ele e pôs-se a rugir:
— Ju-deu! Batei neste judeu! Arrancai o seu san-n-ngue!
Mas alguém lhe segurou o braço por trás.
— Pára, diabo. Este é o Sachka. Deixa-o em paz, seu filho de uma rameira imunda...
O pedreiro deteve-se. Naquele absurdo instante de loucura e embriaguez estava disposto a matar quem quer que fosse — o pai, a irmã, o padre, e até o deus mais ortodoxo —, mas também estava disposto a obedecer a qualquer vontade firme.
Deu um sorriso largo, como um idiota, cuspiu e limpou o nariz com as costas de uma mão. De repente, porém, os seus olhos caíram sobre um cãozinho branco e agitado, que, a tremer, se esfregava na parede, ao pé de Sachka. Agachando-se agilmente, ele o agarrou pelas pernas traseiras, levantou-o alto, bateu-lhe com a cabeça na laje da calçada e saiu a correr. Sachka olhou para ele em silêncio. O homem corria inclinado para a frente, com os braços estendidos, sem gorro, de boca aberta e com os olhos redondos e brancos de loucura.
Os miolos de Biélotchka respingaram as botas de Sachka. Ele limpou a mancha com um lenço.
viii
Sobreveio, em seguida, um tempo estranho, semelhante ao sono de uma pessoa paralisada. À noite, não se via luz em nenhuma janela de toda a cidade, mas, em contrabalanço, resplandeciam as tabuletas rubras dos cafés-concerto e as janelas dos botequins. Os vencedores estavam a avaliar o seu poder, ainda insatisfeitos com a impunidade. Libertinos de papapkha,[49] com as fitas de são Jorge[50] nos galões das japonas, andavam pelos restaurantes e exigiam, com insistente atrevimento, que se tocasse o hino nacional, cuidando em que todos se levantassem. Irrompiam até em residências, vasculhavam camas e cômodas, exigiam vodca, dinheiro e o hino, e enchiam o ar com arrotos de bêbado.
Certa feita, dez deles foram ao Cambrino e ocuparam duas mesas. Comportavam-se do modo mais provocador, falavam em tom imperioso aos empregados, cuspiam por cima dos ombros dos desconhecidos das mesas vizinhas, punham os pés sobre os assentos dos outros, despejavam a cerveja no chão sob o pretexto de que estava estragada. Ninguém bulia com eles. Todos sabiam que eram agentes secretos, e olhavam-nos com o terror oculto e a curiosidade enojada, com as quais a gente simples mira os carrascos. Um dava todas as mostras de ser o chefe. Era um tal Motka Fuinha, judeu convertido, sujeito ruivo, fanhoso, de nariz quebrado e, dizia-se, enorme força física, antigo ladrão, em seguida, leão-de-chácara de um prostíbulo, depois, cáften e agente secreto.
Sachka tocava “O torvelinho”. De repente, o Fuinha abeirou-se dele, segurou-lhe com força o braço direito e, virando-se para trás, para os expectadores, gritou:
— O hino! O hino nacional! Irmãos, em honra do nosso monarca adorado... O hino!
— O hino! O hino! — puseram-se a berrar os infames de papakha.
— O hino! — gritou uma voz vacilante e solitária do fundo do salão.
Mas Sachka libertou o braço com um repelão e disse calmamente:
— Hino nenhum.
— Quê?! — entrou o Fuinha a berrar. — Tu não obedecer?! Ah, judeu fedorento!
Sachka inclinou-se para a frente, quase a encostar no outro, e, com o rosto todo enrugado, a segurar o violino pelo braço, perguntou-lhe:
— E tu?
— Eu o quê?
— Eu sou um judeu fedorento. Pois bem. E tu?
— Eu sou ortodoxo.
— Ortodoxo? E por quanto?
Todo o Cambrino prorrompeu em gargalhada, ao passo que o Fuinha, branco de raiva, virou-se para os companheiros.
— Irmãos! — disse, com voz trêmula e chorosa, palavras aprendidas de boca alheia. — Irmãos, até quando teremos de aturar a profanação do trono e da Santa Igreja pelos judeus?...
Mas Sachka, de pé no seu tablado, com um som o obrigou a novamente voltar-se para ele, e nenhum dos freqüentadores do Cambrino jamais acreditara que aquele engraçado Sachka das caretas pudesse falar de maneira tão persuasiva e imperiosa.
— Tu! — gritou ele. — Tu, seu filho de uma cadela! Mostra-me a tua cara, assassino... Olha para mim!... Vamos!...
Tudo aconteceu em um piscar de olhos. O violino subiu, fendeu o ar qual faísca, e trás! — o homem alto de papakha cambaleou após o sonoro golpe na têmpora. O instrumento espatifou-se. Na mão de Sachka ficou só o braço, que ele erguia vitoriosamente sobre a multidão.
— Irmãos, acuda-am! — largou o Fuinha a berrar.
Mas era já tarde para o acudirem. Uma parede poderosa cercou Sachka e cobriu-o, e essa mesma parede empurrou os homens de papakha para a rua.
Uma hora depois, porém, quando Sachka, ao término do expediente, pôs os pés na calçada, sobre ele se atiraram várias pessoas. Uma deu-lhe um soco no olho, soprou um apito e disse ao guarda, que acorrera ao chamado:
— Para o posto policial da alameda. Caso político. Eis a minha insígnia.
ix
Sachka foi novamente dado como morto e, dessa vez, definitivamente.
Vira alguém toda a cena, ocorrida à entrada da cervejaria, e contou-a aos outros. No Cambrino reunia-se gente vivida, que sabia muito bem que instituição era aquele posto policial da alameda e que coisa era a vingança dos polícias.
Mas preocuparam-se com o destino de Sachka muito menos do que na primeira vez e esqueceram-no muito mais depressa. Dois meses depois, no seu lugar, tocava outro violinista (a propósito, aluno de Sachka), encontrado pelo acompanhador.
Eis que um dia, uns três meses depois, em serena noite de primavera, no instante em que se tocava a valsa “A espera”, uma voz aguda exclamou assustada:
— Gente, o Sachka!
Todos se viraram e levantaram. Era realmente ele, o duas vezes ressuscitado Sachka, só que barbudo, emagrecido e pálido. Correram para ele, apertaram-no, moeram-no de abraços e passaram-lhe canecos de cerveja. De repente, a mesma voz gritou:
— Irmãos, o braço dele!...
Todos emudeceram imediatamente. O braço esquerdo de Sachka, torcido e como que amassado, tinha o cotovelo pegado à ilharga. Ele não dobrava nem se estendia, de modo que os dedos ficavam sempre perto do queixo.
— Que foi isso, camarada? — perguntou, por fim, um mestre peludo de navio.
— Eh, nada... algum tendão ou qualquer outra coisa — respondeu Sachka, despreocupadamente.
— É-é...
Todos ficaram de novo em silêncio.
— Quer dizer, “O ovelheiro”, agora, nunca mais? — perguntou o mestre, compadecido.
— “O ovelheiro”? — replicou-lhe Sachka, e os seus olhos brilharam. — Ei, tu! — ordenou ao acompanhador, com a segurança habitual. — Toca “O ovelheiro”! Êin, tsviêi, driêi!...
O pianista iniciou a alegre dança em ritmo acelerado, a olhar para trás, incrédulo. Com a mão boa, Sachka tirou do bolso um instrumento pequeno, oblongo, do tamanho da palma, negro e dotado de um apêndice, que pôs na boca, e, inclinando-se todo para a esquerda, tanto quanto lho permitia o braço mutilado e paralisado, tirou de repente da ocarina um “O ovelheiro” ensurdecedoramente alegre.
— Ho-ho-ho! — atroava o recinto o riso contente dos expectadores.
— Ó, diabo! — exclamou o mestre e, numa gaiatice inteiramente inesperada para ele próprio, deu um salto ágil e iniciou um sapateado frenético, entremeado de pulos.
Contagiados pelo seu arrebatamento, entraram na dança os fregueses, mulheres e homens. Até os empregados, tentando manter a dignidade, mexiam os pés no lugar e sorriam. Até a senhora Ivanova, esquecida dos seus deveres de capitão em funções, balançava a cabeça ao ritmo da fogosa dança e dava estalinhos com os dedos. Talvez até o próprio Cambrino, velho, poroso e carcomido pelo tempo, agitasse as pestanas, a olhar alegremente para a rua, e parecia que, nas mãos do aleijado e contorcido Sachka, o humilde e ingênuo apito cantava, em uma língua infelizmente ainda incompreensível tanto aos amigos do Cambrino como ao próprio Sachka:
— Não faz mal! Podem aleijar uma pessoa, mas a arte resiste a tudo e triunfa sobre tudo.