Esmeralda
Dedicado à memória do incomparável trotador malhado Kholstomer de Tolstói.
i
O garanhão Esmeralda, cavalo de corrida de compleição americana, de quatro anos e pêlo cinzento, cor de prata e aço, acordou, como de hábito, por volta da meia-noite, no seu estábulo. À esquerda, à direita e em frente, do outro lado do corredor, outros cavalos ruminavam feno de modo cadenciado e acelerado, como se no mesmo ritmo, dando estalidos de prazer com os dentes e fungando de vez em quando para soprar o pó. Em um canto, sobre um monte de palha, roncava o palafreneiro de quarto. Pela alternação dos dias e por certas peculiaridades do ronco, Esmeralda sabia que aquele era o Vassíli, rapaz de quem os cavalos não gostavam porque fumava um tabaco fedorento na estrebaria, vinha muitas vezes bêbado, golpeava-lhes a barriga com o joelho, brandia o punho junto aos olhos, puxava o cabresto com truculência e somente lhes gritava, com a voz grossa, rouca e afetada, em tom de ameaça.
Esmeralda aproximou-se da grade da porta. Na baia fronteira ficava a potrinha murzela Pintassilgo. Esmeralda não lhe via o corpo na escuridão, mas todas as vezes em que ela levantava a cabeça da manjedoura e a voltava para trás, por alguns segundos o seu olho grande brilhava com uma linda luzinha violeta. Alargando as ventas macias, Esmeralda sorveu o ar demoradamente, sentiu o cheiro sutil mas forte e excitante da sua pele e relinchou. Voltando-se rapidamente, a egüinha respondeu com um rincho agudo, tremido, carinhoso e brejeiro.
No mesmo instante, Esmeralda ouviu uma respiração zangada e enciumada ao seu lado. Uma baia pegada à sua era a de Oniéguin, garanhão velho, fogoso e de pêlo castanho-acinzentado, que de quando em quando disputava ainda corridas por prêmio na cidade. Separava-os um tabique leve de tábuas, e um não conseguia ver o outro, mas, encostando a narina à extremidade direita da grade, Esmeralda sentiu claramente o cheiro morno de feno ruminado que saía das ventas de Oniéguin, as quais sorviam o ar a brevíssimos intervalos... Os dois garanhões cheiraram-se algum tempo no escuro, de orelhas bem deitadas para trás e o pescoço rodado, cada vez mais zangados. Ambos soltaram de súbito um bufido raivoso e deram patadas no chão.
— Brinquem, diabos! — gritou o palafreneiro, com sono e a sua costumeira ameaça.
Os cavalos afastaram-se do tabique e ficaram alerta. Havia já muito que os dois não se toleravam mutuamente, mas, depois que colocaram na mesma estrebaria deles, três dias antes, a graciosa égua murzela — o que normalmente não se fazia e só fora feito por causa da falta de lugar, na pressa dos preparativos da corrida —, não passava um único dia sem vários desentendimentos sérios entre os dois. Desafiavam-se na estrebaria, na pista e no bebedouro. Mas o coração de Esmeralda sentia certo temor diante daquele garanhão comprido e seguro de si, diante do seu cheiro forte de cavalo maldoso, do proeminente pomo-de-adão camelino, dos sombrios olhos cavados, e principalmente diante do seu esqueleto sólido, como que de pedra, temperado pelos anos, robustecido pela corrida e pelas contendas anteriores.
Fazendo de conta que não sentia nem um pingo de medo e que não acontecera nada, Esmeralda virou-se, abaixou a cabeça para a manjedoura e pôs-se a remexer o feno com os beiços macios, ágeis e firmes. Inicialmente, apenas mordeu alguns talos de erva, caprichoso, mas o gosto, que o remoalho lhe punha na boca, envolveu-o logo, e ele se entregou verdadeiramente ao ato de comer. Simultaneamente, na sua cabeça, sucediam-se, em lenta procissão, pensamentos indiferentes, prendendo-se a lembranças de imagens, aromas e sons e resvalando para o abismo negro, que havia à frente e atrás de cada momento do presente.
“Feno”, pensava ele, e recordava Názar, o chefe dos palafreneiros, que lhes dera feno à noite.
Názar é um velho bondoso; dele vem sempre um cheiro acolhedor de pão preto e de um pouquinho de vodca; os seus movimentos são vagarosos e suaves; a aveia e o feno, nos seus dias, parecem mais gostosos, e é agradável escutar, quando, a limpar um cavalo, conversa com ele, a meia-voz e em tom de reprimenda carinhosa, e se lamuria. Mas não há nele algo mais importante, algo de cavalo, e, nos exercícios preparativos para alguma competição, sente-se, pelas rédeas, que as suas mãos são inseguras e imperitas.
Isso também não existe em Vaska; ele pode gritar e bater, mas todos os cavalos sabem que é covarde e não lhe têm medo. Também não sabe cavalgar; dá puxões e fica agitado. O terceiro cavalariço, o torto de olho, é melhor do que ambos, mas não gosta de cavalos e é cruel e impaciente, de mãos inflexíveis, como se de pau. Já o quarto, Andriiáchka, é ainda menino de tudo; brinca com os cavalos como um potrinho de leite e dá-lhes, às escondidas, beijos no belfo de cima e entre as ventas, e isso é ridículo e não muito agradável.
O alto, magro, corcunda, de rosto barbeado e relógio de ouro, ah, esse é bem diferente. Ele todo é como que um cavalo extraordinário — sábio, forte e destemido. Nunca se zanga, nunca usa o chicote, até nem faz ameaças, entretanto, é uma alegria, um orgulho, e dá um medo gostoso obedecer a cada indicação dos seus dedos fortes, inteligentes e compreensivos, quando ele está sentado na americana.[51] Somente ele sabe levar Esmeralda a um estado feliz de harmonia, quando todas as forças do corpo estão tensas na rapidez da carreira, e isso é tão prazeroso e tão fácil.
Nesse mesmo instante, a imaginação pintou a Esmeralda o curto caminho do hipódromo e quase todas as casas e cada fradépio dele, bem como a areia da raia, a tribuna, cavalos galopantes, a verdura do relvado e o amarelo de uma fitinha. Lembrou-se de um baio escuro de três anos, que, dias antes, destroncara uma perna em um passeio e ficara doente. A pensar nele, o próprio Esmeralda tentou imaginar-se doente por alguns minutos.
Um bocado do feno distinguiu-se por um sabor especial, extraordinariamente suave. O garanhão mastigou-o longamente, e, quando o engoliu, sentiu ainda, por algum tempo, na boca, o aroma sutil de umas flores fenecidas e de erva seca. Uma recordação vaga, inteiramente indefinida, longínqua, resvalou na mente de Esmeralda. Foi algo parecido ao que acontece às vezes aos fumantes, a quem uma baforada fortuita do cigarro na rua ressuscita de repente, por um instante irreprimível, um corredor semi-escuro, de paredes forradas de papel antigo e com solitária vela sobre um aparador, ou longo caminho noturno, o tilintar regular de guizos e a sonolência lânguida, ou uma floresta azul não muito longe, a neve, que ofusca a vista, o alarido de cães em perseguição da caça e a impaciência ingente, que faz as pernas tremerem, e então, por um momento, perpassam velozmente pela alma, impossíveis de reter, depois de tocá-la de maneira suave, triste e vaga, os sentimentos esquecidos e comoventes de então.
Entrementes, a janelinha escura, sobranceira às manjedouras, invisível até então, começara a ficar cinzenta e a distinguir-se tenuemente na escuridão. Os cavalos mastigavam mais devagar e suspiravam, um após o outro, de modo profundo e suave. No pátio, um galo largou o seu canto conhecido, estrepitoso, entusiasmado e estrídulo como um cornetim. Por longo tempo, e em vários sítios em redor, derramou-se em trilos, sem parar, o habitual canto de outros galos.
Baixando a cabeça para a manjedoura, Esmeralda tentou de todos os modos reter aquele estranho gosto na boca, suscitar novamente aquele sabor que despertara nele aquele eco agudo, quase físico, e aumentá-lo. Mas não foi possível ressuscitá-lo, e Esmeralda adormeceu sem perceber.
ii
As suas pernas e o seu corpo eram impecáveis, de formas perfeitas, por isso ele dormia sempre de pé, balançando-se um pouquinho para a frente e para trás. Às vezes ele estremecia, e então o sono pesado era substituído, por alguns segundos, por uma modorra leve, mas os poucos minutos de sono eram tão profundos que bastavam para que todos os músculos, os nervos e a pele repousassem e se refocilassem.
Quase ao raiar do dia, ele sonhou com uma manhã de primavera, um crepúsculo vermelho sobre a terra e um prado baixo e fragrante. A erva era tão espessa e seivosa, reverdecia de modo tão vivo e encantador e recebia um reflexo tão róseo da alba, como o vêem as pessoas e os animais apenas na tenra infância, e por toda parte faiscava na orvalhada. No ar leve e rarefeito, todos os aromas imagináveis espalhavam-se com extraordinária nitidez. Na frescura da manhã, sentia-se o cheiro do fumo, que se enovelava azul e diáfano sobre uma chaminé da aldeia, cada flor do prado tinha o seu próprio aroma e, na estrada úmida e de carris profundos, além da sebe, misturava-se uma cópia de cheiros: de gente, de alcatrão, de excremento de cavalo, de pó, de leite fresco das vacas do rebanho passante e da resina das varas de pinheiro da cerca.
Esmeralda, potro de sete meses, corre sem rumo pelo campo, de cabeça baixa, aqui e além escoiceando os ares. Ele parece ser todo de ar e não sentir nem um pouco o peso do corpo. Sob os seus pés, correm para trás, para trás, as flores cheirosas e brancas das margaridas. Ele galopa bem na direção do Sol. A erva molhada açoita-lhe as quartelas e os joelhos, refresca-os e escurece-os. O céu azul, a erva verdejante, o sol dourado, o ar maravilhoso, o embriagante entusiasmo da juventude, da força e da corrida livre!
Ele ouve, então, um relincho breve, inquieto e carinhoso de chamado, tão familiar, que o reconhece sempre, até de longe, em meio a um milhar de outras vozes. Ele detém a carreira, apura o ouvido um segundo, com a cabeça bem levantada e o rabo curto e felpudo afastado qual espanador, e dá de orelhas; depois, responde com um grito longo e aflautado, do qual estremece todo o seu corpo esbelto e elegante de pernas compridas, e arremete na direção da mãe.
Ela, uma égua velha, sossegada e ossuda, levanta da erva o focinho molhado, cheira o potro rapidamente, com atenção, e torna imediatamente a comer, como se se apressasse a fazer algo inadiável. Com o pescoço flexível metido sob a barriga dela e o focinho virado para cima, o potro, acostumado, procura com os lábios, entre as suas pernas traseiras, o úbere morno e pojado do leite doce e um tantinho azedo, que lhe esguicha para a boca em finos jatos quentes, e bebe, sem saciar-se. A própria mãe afasta dele o traseiro e faz de conta que quer morder o potro na virilha.
Na estrebaria, está já completamente claro. O bode barbudo, velho e fedorento, que vivia entre os cavalos, aproximou-se da porta, trancada por dentro com uma trave, e pôs-se a bezoar, olhando para trás, para o cavalariço. Vaska, descalço, a coçar a cabeça hirsuta, deixou-o sair. Era uma rija manhã de outono, azul e um tanto fria. O quadrilátero perfeito da porta aberta cobriu-se imediatamente do vapor, que saía em baforadas da estrebaria. O cheiro da orvalhada e da folhagem caída percorreu sutilmente as baias.
Os cavalos sabiam bem que dali a pouco receberiam aveia, e, de impaciência, gemicaram brevemente, junto às grades. O faminto e caprichoso Oniéguin pateava no assoalho de madeira e, a morder, por mau costume, com os dentes de cima a borda revestida de ferro e mastigada da manjedoura, estendeu o pescoço, sorveu ar e arrotou. Esmeralda coçava o focinho, esfregando-o na grade. Chegaram os outros palafreneiros — ao todo, eram quatro — e puseram-se a levar aveia em medidas de ferro às baias. Enquanto Názar despejava a aveia pesada e farfalhante na manjedoura de Esmeralda, o garanhão tentava agitadamente alcançar o alimento, ora por sobre o ombro do velho, ora por sob as suas mãos, e as suas ventas mornas palpitavam. O palafreneiro, a quem agradava essa impaciência do cavalo dócil, não se apressava adrede, cobria a manjedoura com os cotovelos e resmungava com rudeza bonachona:
— Ah, bicho sôfrego... Espera, não te afobes... Ora, vai... Cutuca-me só mais uma vez com o focinho, para veres. Eu também sei cutucar, já verás.
Da janelinha, por sobre as manjedouras, estendia-se obliquamente uma alegre coluna quadrilátera de sol, e, nela, turbilhonavam milhões de grãos dourados de pó, separados pelas sombras compridas dos caixilhos da janela.
iii
Esmeralda apenas acabara de comer a aveia quando vieram levá-lo para o pátio. Estava mais quente e a terra amolecera um pouco, mas as paredes da cavalariça estavam ainda brancas de geada. Dos montes de estrume recém-tirado da cavalariça subia um vapor denso, e os pardais, que neles pululavam, chilreavam com excitação, como se brigassem entre si. Após transpor cuidadosamente a soleira, de pescoço dobrado, Esmeralda inspirou longamente e com alegria o ar picante, depois sacudiu o pescoço e o corpo todo e pôs-se a bufar sonoramente. “Saúde!”, disse com seriedade Názar. Esmeralda não conseguia ficar parado. Queria movimentos fortes, a sensação excitante do ar, que entra veloz nos olhos e nas ventas, os abalos ardentes do coração, a respiração profunda. Atado a uma estaca, ele relinchava, dançava com as pernas traseiras e, com o pescoço inclinado de viés, olhava de esguelha para a égua murzela, com o grande olho negro, de vênulas vermelhas na esclerótica, arregalado.
Arquejante do esforço, Názar ergueu o balde de água acima da cabeça e despejou-o nas costas do garanhão, da crina à cauda. Essa era uma sensação estimulante e familiar a ele, agradável e horrenda pelo seu caráter inesperado. Názar trouxe mais água e jogou-a nos seus flancos, no peito, nas pernas e sob a cauda encurtada. E todas as vezes ele corria a mão calosa pela pelagem, com força, a tirar dela a água. Quando olhava para trás, Esmeralda via as suas ancas caídas, a um tempo escurecidas e lustrosas ao sol.
Era dia de corridas. Esmeralda sabia-o pela pressa nervosa com que os palafreneiros andavam atarefados em torno dos cavalos; a alguns, que, pela curteza do tronco, costumavam ferir-se com as ferraduras, vestiam caneleiras de couro nas quartelas; em outros enrolavam faixas de linho até aos joelhos ou punham sob o peito, atrás das pernas dianteiras, suadores largos, guarnecidos de pele. Do telheiro saíam americanas leves de duas rodas e assentos altos; os seus aros metálicos reluziam quando em movimento, ao passo que as cambas vermelhas e os varais também vermelhos brilhavam do esmalte novo.
Esmeralda estava já completamente seco, escovado e esfregado com luva de lã, quando chegou o cavaleiro principal da estrebaria, um inglês. Esse homem alto e magro, um pouco corcunda e de braços compridos, era igualmente respeitado e temido tanto pelos cavalos como pelas pessoas. Tinha um rosto bronzeado escanhoado e lábios duros, finos e recurvados de desenho zombeteiro. Usava óculos com armação de ouro; através deles os seus olhos azuis, límpidos, miravam de um modo duro e obstinadamente tranqüilo. Ele prestava atenção à limpeza, com as pernas compridas e metidas em botas de cano alto bem afastadas e as mãos enfiadas fundo nos bolsos das calças, a mascar um charuto ora num canto da boca, ora no outro. Vestia uma japona cinzenta com colarinho de pele e uma espécie de quepe negro de abas estreitas e comprida pala quadrangular. Às vezes, fazia breves observações em tom entrecortado e descuidado, e então todos os palafreneiros e operários imediatamente viravam-se para ele e os cavalos apuravam o ouvido na sua direção.
Ele acompanhava com especial atenção a atrelagem de Esmeralda, a examinar o corpo inteiro do cavalo, do topete às patas, e Esmeralda, a sentir sobre si esse olhar acurado, atento, levantava a cabeça com orgulho, virava de leve o pescoço flexível e espetava as orelhas finas, translúcidas. O cavaleiro verificou ele próprio a firmeza da barrigueira, enfiando um dedo entre ela e o corpo de Esmeralda. Em seguida, puseram gualdrapas de linho cinzentas, de franjas vermelhas, de círculos vermelhos perto dos olhos e monogramas da mesma cor embaixo, perto das pernas traseiras. Dois palafreneiros, Názar e o de olho torto, pegaram Esmeralda de ambos os lados, sob a rédea, e levaram-no para o hipódromo pela bem conhecida calçada, entre duas filas de raros edifícios grandes de pedra. Até ao círculo de corrida a distância era de menos de um quarto de versta.
No pátio do hipódromo, havia já muitos cavalos; passeavam-nos em círculo, todos no mesmo sentido — naquele em que correm na raia, isto é, em sentido anti-horário. Ali estavam também cavalos de sob o arco,[52] pequenos, de pernas fortes e caudas curtas de pêlo aparado. Esmeralda reconheceu imediatamente o garanhãozinho branco que sempre galopava ao seu lado, e os dois relincharam baixo e carinhosamente em sinal de saudação.
iv
No hipódromo, pôs-se a bater o sino. Os cavalariços tiraram a gualdrapa de Esmeralda. O inglês, com os olhos entrefechados sob os óculos, por causa do sol, e os compridos dentes amarelos, de cavalo, arreganhados, aproximou-se, abotoando as luvas enquanto caminhava, com o chicote no sovaco. Um dos palafreneiros apanhou a magnífica cauda de Esmeralda, que chegava até às quartelas, e colocou-a cuidadosamente sobre o assento da americana, de modo que a sua ponta clara ficou pendente para trás. Os flexíveis varais oscilaram rijamente com o peso de um corpo. Esmeralda olhou de esguelha para trás e viu o cavaleiro, que estava sentado quase colado à sua anca, com as pernas esticadas para a frente e abertas ao longo dos varais. O cavaleiro pegou sem pressa a rédea, deu um grito monossilábico aos cavalariços, e estes tiraram as mãos a uma só vez. Contente pela corrida próxima, Esmeralda tentou arremeter, mas, contido por mãos fortes, apenas levantou-se um pouco nas patas traseiras, sacudiu o pescoço e correu dos portões para o hipódromo a trote largo, espaçado.
Ao longo de uma cerca de madeira, em forma de elipse de uma versta, estendia-se a larga raia de areia amarela, que estava um pouco úmida e compacta e, por isso, elástica sob os pés, devolvendo a estes a pressão. As marcas aguçadas das patas e as linhas retas, uniformes, deixadas pela borracha dos pneus, sulcavam uma faixazinha.
Em paralelo ficava a tribuna, um edifício alto, de madeira, de duzentos corpos de cavalo de comprimento, onde, às vezes, da terra até ao próprio telhado, sustentado por finas colunas, movia-se e rugia uma multidão negra. Por leve, quase imperceptível movimento das rédeas, Esmeralda compreendeu que era para ir mais rápido e bufou de gratidão.
Ele passou para um trote de grande envergadura, regular, quase sem oscilar com o dorso, com o pescoço estendido para a frente e um pouco virado para o varal esquerdo, o focinho levantado. Por causa do passo picado, embora extraordinariamente largo, de longe a sua corrida não causava a impressão de velocidade; parecia que o trotão media o caminho sem pressa, com as pernas dianteiras direitas como compasso, e tocava levemente a terra com a ponta das patas. Essa era a verdadeira domação estadunidense, em que tudo se reduz a aliviar ao cavalo a respiração e diminuir ao máximo a resistência do ar, em que se eliminam todos os movimentos desnecessários à corrida, inutilmente solapadores da força, e em que se sacrifica a beleza aparente das formas em favor da leveza, da secura e energia da carreira, transformando o cavalo em uma máquina viva irrepreensível.
Agora, no entreato entre duas corridas, transcorria o passeio dos cavalos, que se faz sempre para abrir a respiração aos trotadores. Muitos deles corriam no círculo externo, no mesmo sentido de Esmeralda, e, no círculo interno, de encontro a ele. Um trotador cinzento, rodado, de manchas escuras, grande e de focinho branco, da pura linhagem de Oriol,[53] de proeminente pescoço e cauda em forma de tubo, parecido a um cavalo de feira, ultrapassou Esmeralda. Ele fazia tremer o peito largo, gordo, já escurecido pelo suor, e as virilhas úmidas, atirava a parte inferior aos joelhos das pernas dianteiras para um lado, e, a cada passo, saltava-lhe sonoramente o baço.
Depois, aproximou-se, por trás, uma égua mestiça bem-proporcionada, de corpo comprido e crina escura rala. Ela fora magnificamente domada pelo mesmo sistema estadunidense, como Esmeralda. O pêlo curto bem cuidado brilhava, a cambiar de cor com o movimento dos músculos sob a pele. Enquanto os cavaleiros falavam de alguma coisa, os dois cavalos seguiram lado a lado durante certo tempo. Esmeralda cheirou a égua e quis brincar, mas o inglês não lho permitiu, e ele obedeceu.
Em pleno galope, em sentido oposto, passou por eles um enorme garanhão murzelo, todo envolto em faixas, joelheiras e suadores. O varal esquerdo projetava-se para a frente dele meio archin[54] a mais do que o direito, e pelo círculo fixado acima da sua cabeça passava a correia do over-chek[55] de aço, que abarcava cruelmente, de cima e de ambos os lados, o nariz do cavalo. Esmeralda e a égua olharam ao mesmo tempo para ele, e ambos viram nele imediatamente um trotão de força, velocidade e resistência extraordinárias, mas também terrivelmente obstinado, maldoso, cheio de amor-próprio e melindroso. Depois do murzelo, passou correndo um garanhãozinho ataviado ridiculamente, pequeno e cinza-claro. A quem o olhasse podia parecer que ele passava a grande velocidade, tal a freqüência com que pateava o chão, tal a altura a que atirava as patas nos joelhos, e a expressão de esforço e aplicação que havia no seu airoso pescoço com a cabecinha bonita. Esmeralda olhou-o de viés apenas, com desprezo, e virou uma orelha na sua direção.
O outro cavaleiro findou a conversa, soltou curto e sonoro riso, como se houvesse relinchado, e deixou a égua em trote livre. Ela se afastou de Esmeralda sem nenhum esforço, tranqüilamente, como se a velocidade da sua carreira não dependesse dela, e foi em frente, levando suavemente o dorso reto, brilhante, com uma quase imperceptível correinha escura ao longo da espinha dorsal.
Nesse instante, no entanto, tanto Esmeralda como ela foram ultrapassados por um trotão cor de canela afogueada, com uma grande mancha branca no nariz. Ele corria a grandes saltos, ora estendendo-se e curvando-se para a terra, ora quase unindo as pernas dianteiras às traseiras no ar. O seu cavaleiro, que tinha o corpo totalmente atirado para trás, não estava sentado no assento, mas deitado, com as rédeas puxadas. Esmeralda ficou inquieto e saltou para o lado, mas o inglês retesou imperceptivelmente as rédeas, e as suas mãos, tão flexíveis e sensíveis a cada movimento do cavalo, tornaram-se de súbito como que de ferro. Perto da tribuna, o garanhão alazão, que completava mais uma volta, ultrapassou novamente Esmeralda. Ele continuava a galopar, mas estava já espumado, com os olhos injetados de sangue e respirava com rouquidão. O cavaleiro, inclinando-se para a frente, açoitava-o com toda a força nas costas. Finalmente, os palafreneiros conseguiram cortar-lhe o caminho perto dos portões e agarrar as rédeas e a cabeçada perto do focinho. Levaram-no do hipódromo molhado, ofegante, com tremores e mais magro.
Esmeralda fez mais meia-volta a pleno galope, depois tomou o caminho que cortava transversalmente a praça de corrida, e pelos portões entrou no pátio.
v
O sino do hipódromo tocou várias vezes. Em frente aos portões abertos, de vez em quando passavam, com a velocidade de um raio, os trotões, e as pessoas de repente pegavam a gritar e a bater palmas. Na linha dos outros trotadores, Esmeralda caminhava ao lado de Názar, a abanar a cabeça abaixada e a mexer as orelhas nas bainhas de linho. Do passeio, o sangue fluía alegre e ardente nas veias, a respiração tornava-se a cada vez mais profunda e livre à medida que o seu corpo descansava e arrefecia — em todos os músculos, sentia-se o desejo impaciente de correr mais.
Transcorreu meia hora, aproximadamente. No hipódromo, novamente soou o sino. Agora, o cavaleiro sentou-se na americana, sem luvas. Ele tinha mãos brancas, largas, mágicas, que infundiam a Esmeralda afeição e medo.
O inglês entrou sem pressa no hipódromo, de onde os cavalos que haviam terminado o passeio iam para o pátio, um após o outro. Na raia ficaram apenas Esmeralda e o enorme garanhão murzelo, com quem se encontrara no passeio. As tribunas negrejavam, de cima a baixo, com a compacta multidão humana, e nessa massa negra, em quantidade inumerável, com alegria e em desordem, brilhavam rostos e mãos, pululavam sombrinhas e chapéus, e agitavam-se no ar os folhetos dos programas. Aumentando gradualmente a velocidade e correndo ao longo da tribuna, Esmeralda sentia como um milhar de olhos o acompanhava insistentemente, e ele compreendia perfeitamente que aqueles olhos esperavam dele movimentos rápidos, a mobilização de todos os esforços, o batimento forte do coração, e essa compreensão comunicava aos seus músculos uma leveza feliz e uma compressão garrida. O garanhão branco conhecido, em que estava montado um menino, seguia a galope curto do lado, à direita.
Em trote regular, cadenciado, com o corpo um pouco inclinado para a direita, Esmeralda fez uma viragem brusca e começou a aproximar-se de um poste com um círculo vermelho. No hipódromo, ouviu-se a batida curta do sino. O inglês ajeitou-se quase imperceptivelmente no assento, e as suas mãos ficaram de repente mais fortes. “Agora, vai, mas poupa forças. Ainda é cedo”, entendeu Esmeralda, e, em sinal de que o entendera, virou-se momentaneamente e espetou novamente as suas orelhas sensíveis, finas. O garanhão branco galopava regularmente ao lado, um pouco mais atrás. Esmeralda sentia perto da cerviz a sua respiração fresca, regular.
O poste vermelho ficou para trás, mais uma viragem brusca, o caminho endireita-se, a segunda tribuna, ao aproximar-se, negreja e pulula de longe com a multidão rugiente e cresce depressa, com cada passo. “Mais!”, permite-lhe o cavaleiro, “mais, mais!” Esmeralda exalta-se um pouco e quer pôr todas as forças na corrida de uma vez. “Posso?”, pensa ele. “Não, ainda é cedo, não te preocupes”, respondem, acalmando-o, as mãos mágicas. “Depois.”
Ambos os garanhões passam pelos postes de chegada simultaneamente, mas de lados opostos do diâmetro que une as duas tribunas. A leve resistência da linha retesada e o seu rápido rompimento, durante um instante, fazem Esmeralda começar a mover as orelhas, mas ele imediatamente esquece isso, totalmente absorvido na atenção às maravilhosas mãos. “Mais um pouco! Não te exaltes! Continuar assim! Manter esta velocidade!”, ordena o cavaleiro. A tribuna negra passa, oscilante. Mais algumas dezenas de braças, e todos os quatro — Esmeralda, o garanhão branco, o inglês e o menino de sob o arco, apertado à crina do cavalo e em pé nos curtos estribos — fundem-se felizes em um corpo maciço em célere movimento, inspirado por uma única vontade, pela única beleza dos movimentos possantes, por um único ritmo, que soa como música. Tá-tá-tá-tá! — é a batida regular e cadenciada de Esmeralda. Tra-tá, tra-tá! — em batidas breves e nítidas acompanha-o o cavalo de sob o arco. Mais uma volta, e corre-lhes ao encontro a segunda tribuna. “Acelero?”, pergunta Esmeralda. “Sim”, respondem as mãos, “mas com calma.”
A segunda tribuna passa voando aos seus olhos, para trás. As pessoas gritam algo. Isso distrai Esmeralda, ele se exalta, perde a sensibilidade às rédeas e, saindo por um segundo da cadência geral, seguida até àquele momento, dá três saltos caprichosos com a perna direita. Mas as rédeas tornam-se imediatamente rijas e, rasgando-lhe a boca, encurvam o pescoço para baixo e viram a cabeça para a direita. Agora, é incômodo saltar a partir da perna direita. Esmeralda zanga-se e não quer trocar de pé, mas o cavaleiro, de modo imperioso e tranqüilo, põe o cavalo a trote. A tribuna ficou para trás, longe. Esmeralda entra novamente no ritmo, e as mãos tornam-se de novo brandas. Esmeralda sente a sua culpa e quer dobrar a força do galope. “Não, não, é cedo ainda”, observa com bonacheirice o cavaleiro. “Nós conseguiremos corrigir isso. Não te preocupes.”
Assim eles perfazem mais uma volta e meia em perfeito entendimento, sem intermitência. Mas também o murzelo se encontra em excelente forma. No instante de desconcerto de Esmeralda, ele conquistou uma dianteira de seis corpos, mas agora Esmeralda consegue diminuir essa distância e, no penúltimo poste, está três segundos e um quarto à frente. “Agora pode. Vai!”, ordena o cavaleiro. Esmeralda abaixa as orelhas e lança apenas um olhar para trás. O rosto do inglês flameja da expressão penetrante, decidida, de quem faz pontaria, enquanto os lábios escanhoados estão encarquilhados num trejeito de impaciência e põem à mostra os dentes grandes, amarelos, fortemente cerrados. “Vamos, o máximo que puderes!”, ordenam as rédeas nas mãos bastante levantadas. “Mais, mais!” E o inglês grita de repente, com uma voz vibrante, que se alteia como o som de uma sereia:
— Ó-é-é-é-éi!
— Assim, assim, assim, assim!... — é o grito estridente e sonoro do menino de sob o arco, na cadência da corrida.
Agora, o sentido do ritmo atinge o mais alto nível de tensão e mantém-se por tênue fio, que a cada momento pode romper-se. Tá-tá-tá-tá! — marcam com regularidade as patas de Esmeralda no chão. Trrá-trrá-trrá! — ouve-se à frente o galope do garanhão branco, que arrasta Esmeralda atrás de si. Na cadência da corrida, oscilam os flexíveis varais, e, na cadência do galope, sobe e desce o menino, quase deitado sobre o pescoço do cavalo.
O ar, que vem de encontro, assobia nos ouvidos e faz cócegas nas ventas, de que a curtos intervalos saem jatos de vapor. Está mais difícil respirar, e a pele sente calor. Esmeralda faz a última curva, inclinando para dentro dela todo o corpo. A tribuna começa a crescer, como se viva, e dela voa ao seu encontro o bramido de mil vozes, que assusta, comove e alegra Esmeralda. Falta-lhe já trote e ele quer saltar, mas as admiráveis mãos atrás imploram, ordenam, acalmam: “Meu querido, não saltes, não saltes!... Só não saltes!... Assim, assim, assim”. E Esmeralda, a passar como uma flecha pelo poste de chegada, rompe a fita sem sequer o notar. Gritos, risos, aplausos precipitam-se em cascatas da tribuna. Entre rostos e mãos, que se movem de um lugar a outro, redemoinham e cintilam momentaneamente as brancas folhas dos cartazes, bengalas e chapéus. O inglês solta suavemente as rédeas. “Acabou. Obrigado, amigo!”, diz a Esmeralda esse movimento, e ele, a conter a custo a inércia da corrida, põe-se a andar. Nesse instante, o garanhão murzelo aproxima-se do seu poste, do lado oposto, sete segundos depois de Esmeralda.
O inglês, levantando com esforço as pernas entorpecidas, salta pesadamente da americana e, apanhando o assento de veludo, encaminha-se com ele para a balança. Chegam às carreiras alguns palafreneiros e cobrem o dorso quente de Esmeralda com a gualdrapa e levam-no para o pátio. Acompanha-os o bramido da multidão e o prolongado toque da sineta do pavilhão dos sócios. Leve espuma amarelada cai da boca do cavalo ao chão e nas mãos dos palafreneiros.
Alguns minutos depois, Esmeralda, já desatrelado, é levado novamente para a tribuna. Um homem alto, de sobretudo longo e chapéu brilhante e novo, a quem Esmeralda vê freqüentemente na sua estrebaria, dá-lhe palmadas no pescoço e estende-lhe na palma da mão um torrão de açúcar. O inglês está ao pé deles, na multidão, e sorri, de cenho franzido e dentes arreganhados. Tiram a gualdrapa de Esmeralda e colocam-no diante de uma caixa de três pés e coberta com um pano preto, sob a qual se esconde um homem de roupa cinzenta para ali fazer algo.
Mas eis que das bancadas se precipitam as pessoas como uma massa negra em cascata. Elas rodeiam o cavalo num círculo apertado, gritam e gesticulam, a inclinar uma para a outra os rostos vermelhos, acalorados, de olhos brilhantes. Estão descontentes com alguma coisa, apontam com os dedos as pernas, a cabeça e os flancos de Esmeralda, eriçam-lhe o pêlo do lado esquerdo da anca, onde está a marca de ferro, e tornam todas a gritar juntas. “Cavalo falsificado, trotador falsificado, engodo, falcatrua, o dinheiro de volta!”, ouve Esmeralda, não compreende essas palavras e mexe as orelhas. “De que falam?”, pensa, espantado. “Eu corri tão bem!” Por um instante, vê o rosto do inglês. Sempre calmo, levemente zombeteiro e duro, ele agora arde de fúria. E de repente o inglês grita algo com voz gutural e aguda, braceja vivamente, e o som de uma bofetada corta secamente a gralhada geral.
vi
Esmeralda foi levado para casa; três horas depois, deram-lhe aveia, e, à noite, quando o levaram ao poço para beber, ele viu surgir de trás da cerca uma lua amarela enorme, a infundir-lhe obscuro medo.
Depois disso, vieram dias de tédio.
Nem a exercícios, passeios e corridas tornaram a levá-lo. Mas vinham diariamente desconhecidos, muitas pessoas, e para elas levavam Esmeralda ao pátio, onde o examinavam e tateavam de todos os modos, enfiavam-lhe a mão na boca, esfregavam-lhe uma pedra-pomes no pêlo e falavam-se o tempo todo aos gritos.
Depois, ele se lembrou de como certa vez, tarde da noite, o tiraram da estrebaria e o levaram longamente por ruas compridas, de pedra e desertas, passando por casas de janelas iluminadas. Depois, a estação, a carruagem escura, sacolejante, a fadiga e o tremor nas pernas da longa viagem, os apitos das locomotivas, o estrépito dos trilhos, o cheiro sufocante de fumo, a luz entediante de um lampião oscilante. Em uma estação, desembarcaram-no da carruagem e conduziram-no longamente por um caminho desconhecido, em meio aos campos nus e espaçosos do outono, por aldeias, até chegarem a uma estrebaria desconhecida, em que o trancaram isolado, longe dos outros cavalos.
Nos primeiros tempos, ele recordava o tempo todo as corridas, o seu inglês, Vaska, Názar e Oniéguin, e sonhava com eles freqüentemente, mas, com o tempo, esqueceu tudo. Escondiam-no de alguém, e o seu jovem e belo corpo sofria, sentia saudade e decaía com a inatividade. Vez ou outra, apareciam novas pessoas, também desconhecidas, e aglomeravam-se de novo em torno de Esmeralda, tateavam-no e sacudiam-no, trocando imprecações entre si.
De quando em quando, casualmente, Esmeralda via pela porta aberta os outros cavalos, que caminhavam ou corriam em liberdade, e então ele gritava para eles, indignado e queixoso. Mas imediatamente fechavam a porta, e novamente o tempo se arrastava no tédio e na solidão.
O encarregado da estrebaria era um homem de cabeça grande, sonolento, de olhos pretos pequenos e bigodes pretos e finos no rosto gordo. Ele parecia ser totalmente indiferente a Esmeralda, mas este lhe tinha um medo inexplicável.
E eis que uma vez, bem cedo, quando todos os palafreneiros dormiam, esse homem veio quietinho, sem o menor barulho, em bicos de pés, pôs-lhe aveia na manjedoura e saiu. Esmeralda admirou-se um pouco disso, mas pôs-se docilmente a comer. A aveia era doce, de gosto levemente amargo e ácido. “Estranho”, pensou Esmeralda, “eu nunca provei desta aveia.”
E de repente ele sentiu leve dor cortante na barriga. Ela veio, depois parou, e voltou mais forte do que antes e foi aumentando a cada minuto. Por fim a dor tornou-se insuportável. Esmeralda começou a soltar gemidos surdos. Rodas de fogo começaram a girar diante dos seus olhos; da repentina fraqueza todo o seu corpo ficou molhado e frouxo, as pernas começaram a tremer, dobraram-se, e o garanhão desabou ao solo. Ele tentou ainda levantar-se, mas conseguiu ficar em pé apenas nas pernas dianteiras, e novamente caiu de lado. Uivante redemoinho pôs-se a girar na sua cabeça, passou o inglês com os compridos dentes cerrados como os de um cavalo, passou Oniéguin à carreira, com o pomo-de-adão de camelo ainda mais em relevo, a relinchar alto. Uma força levava Esmeralda sem clemência e impetuosamente para um lugar bem fundo, para um fosso escuro e frio. Ele não conseguia mais mover-se.
Os estremecimentos ataram as suas pernas e o pescoço e curvaram-lhe a espinha. Toda a pele do cavalo cobriu-se de tremores superficiais e rápidos e de uma espuma de cheiro forte.
A luz amarela e móvel de um lampião feriu-lhe os olhos por um instante e apagou-se com a sua visão. O seu ouvido captou ainda um grito áspero de gente, mas ele nem sentiu o toque de um tacão no flanco. Depois, desapareceu tudo — para sempre.