Mentira santa

Ivan Ivánovitch Semeniuta está longe de ser má pessoa. É sensato, esforçado, não bebe, não fuma, não sente atração por jogos de azar, nem por mulheres. Mas é o típico pobre coitado. Notam-se, em todo o seu ser, os traços fatídicos de certo acanhamento desconcertado, e é provável que, precisamente por esse seu traço, receba socos na cabeça e pescoções tão constantemente do destino cruel, que, como se sabe, qual mulher caprichosa, gosta somente de pessoas decididas e possessivas e obedece apenas a elas. Ainda nos tempos de escola, Semeniuta era já o bode expiatório da classe inteira. Por vezes, em aula, um diabrete qualquer mascava uma folha grande de papel, fazia dela uma panqueca e, com possante arremesso, emplastava a majestosa calva do francês, no exato momento em que, por azar, Semeniuta afugentava, com um tapa, uma mosca da testa... Vermelho de fúria, o francês gritava:

— Oh! Zemeniut, menino asqueroso! Au mur! Para a parede!

À hora do recreio, era o pobre Semeniuta, sem ter culpa de nada, arrastado à sala do inspetor, que sacudia a branca barba de bode, com um brilho mau nos olhos cinzentos, por trás dos óculos de ouro, e batia-lhe regularmente no cocuruto com um dedo velho e duro qual pedra.

— Aluninho crapuloso! Rufião... Vergonha da escola!... Monstro! Imbecil!...

Ele arrematava em tom sério e frio:

— Depois do almoço, para o cárcere, por três dias. Até ao Natal, nenhuma permissão para ir para casa (os alunos eram internos), e, se vieres com outra, nós te daremos uma surra e expulsaremos da escola.

Em seguida, um piparote sonoro na testa e o ameaçador: “Vai-te! Ovelha tinhosa!”.

E assim, constantemente. Se quebravam a estilingadas os vidros da casa do inspetor, ou se assaltavam uma horta das vizinhanças, então, no momento crítico, os jovens bandoleiros conseguiam sempre dispersar-se e esconder-se, mas, por obra do fatídico destino, o humilde, o manso Semeniuta, que não tomara parte na maroteira, se encontrava sem falta nas proximidades do lugar do crime. E novamente arrastavam-no para o castigo, novamente ouviam-se os brados ritmados:

— Mons-tro! Ru-fi-ão!... Im-be-cil!...

Assim, com dificuldade, chegou ele ao sexto ano. Se não o expulsaram antes com o bilhete de lobo,[56] isso foi mais porque a sua mãe, velhinha sofredora e indigente, atravessava a cidade, arrastando-se, para falar ao inspetor, ao diretor ou ao sacerdote da escola. Ela se atirava aos seus pés e molhava-lhes os joelhos com as suas lágrimas de mãe, a implorar pelo filho:

— Não arruineis a vida do menino. Por Deus, que ele me é muito obediente e carinhoso. O mal é só que tem acanhamento e vive aterrorizado. Aí está por que os outros diabretes lhe fazem malvadezas. Faríeis melhor se o açoitásseis.

Semeniuta era açoitado com certa freqüência e como mandam as regras, mas o tão eficaz remédio pouco efeito tinha sobre ele. Após duas tentativas malogradas de passar para o sétimo ano, acabaram por jubilá-lo, mas, em condescendência pelas lágrimas da mãe, deram-lhe um atestado de conclusão de seis anos de escola.

Com muitos sacrifícios e humilhações, a velhinha conseguiu juntar um pouco de dinheiro para a roupa de servidor público do filho. Os três casacos, o sobretudo verde “de meia estação”, as botas remendadas e o chapéu-coco foram comprados na feira da ladra, aos vendedores de mercadoria na mão. Já a roupa branca, a mãe a fez das suas próprias saias e camisas.

Faltava somente encontrar um emprego. Mas o emprego “não saía” — tal era a eterna sorte de Semeniuta. Mas aqui deve ser dito que durante um ano inteiro, e com extraordinário afã, ele correu todas ruas da cidade imensa, da manhã à noite, em busca até do serviço mais mal pago. Almoçava e jantava no abrigo das viúvas: a mãe, quando voltava do refeitório, trazia-lhe escondida metade da sua parca porção. Já com o pernoite, as coisas eram mais difíceis, pois as viúvas dormiam em camaratas, cinco ou seis em cada. Mas a mãe humilhou-se ao sacristão, humilhou-se também à roupeira, e eles permitiram benevolentemente que Semeniuta dormisse na cozinha, sobre dois escabelos e uma cadeira postos juntos.

Finalmente, um ano e pouco depois, encontrou-se um lugar de amanuense na Casa da Moeda, com um salário de vinte e três rublos e onze copeques por mês. Conseguiu-o para Semeniuta um advogado, Iuvenáli Evpsíkhievitch Antónov, conhecido da velhinha dos tempos de mocidade e vida farta.

Semeniuta meteu o pescoço à canga de um serviço penoso e maçante, com toda a aplicação e infatigabilidade que o caracterizavam. Era o primeiro que chegava à repartição e o último que saía dela, e às vezes até voltava depois da ceia, pois fazia o trabalho urgente dos colegas por verdadeira ninharia. Os outros amanuenses tratavam-no com frieza: um pouco de altivez e um pouco de desprezo. Ele não travava conhecimento com ninguém, não jogava bilhar e não passeava com senhoritas suas conhecidas pela avenida, à hora da música. “É um anacoreta sírio” — assim o definiram.

Semeniuta estava feliz, pois tinha, então, um quartinho modesto em um sótão, almoço por vinte copeques em uma cantina grega, chá e açúcar próprios. Agora, ele podia não somente mimar a mãe de vez em quando, ora com uma maçã, ora com uma dezena de caramelos, ora uma caixa de khalvá, como também comprou, pelo beirar do fim de um ano, um fato até bem decente e umas botas rangentes. Os superiores, aparentemente, haviam-lhe apreciado a aplicação. No ano seguinte foi promovido, com um aumento de cinco rublos no salário, e lá pelo transcurso do segundo ano era já funcionário efetivo e começou a trechos a pôr alguma coisa na caixa econômica. Foi precisamente então, em meio à prosperidade elísia, que o destino lhe mostrou a cara feroz.

Certa feita, Semeniuta trabalhou no escritório até muito tarde da noite. Para além disso, em casa o esperava um serviço urgente de cópia. Deitou-se apenas depois das quatro horas e despertou, como de hábito, às sete, cansado, alquebrado e pálido, com círculos roxos sob os olhos, as pestanas vermelhas e as veias saltadas. Dessa vez ele não foi, como soía, um dos primeiros que chegaram à administração, mas um dos últimos.

Ele não conseguira ainda sentar-se e dispor os papéis sobre a mesa, quando sentiu de súbito algo vago e estranho, uma inquietude de arrepiar. Alguns colegas olhavam-no de esguelha, com hostilidade; outros, com uma curiosidade efêmera; terceiros baixavam os olhos e viravam-se quando os seus olhares se encontravam. Ele não entendia nada, mas uma dor fria congelou-lhe o coração.

A sua inquietação crescia a cada minuto. Às onze horas, como era costume, ressoou forte a campainha anunciadora da chegada do diretor. Semeniuta estremeceu, e desse momento em diante não parou de tiritar. Ele apenas cambaleou, como o boi após a marretada na cabeça, e até nem se admirou quando o secretário, inclinando-se sobre a sua mesa, disse severamente, a meia-voz: “Sua Excelência ordena que vá ao seu gabinete”. Ele se levantou e arrastou-se com pernas de chumbo, como se em um pesadelo, atravessando o escritório, acompanhado pelos longos olhares dos colegas de trabalho.

Ele nunca estivera naquele santuário, e as suas grandes dimensões, a mobília grandiosa, em estilo sóbrio e frio, e os reposteiros maciços de cor carmesim impressionaram-no tanto que ele não notou de imediato o pequeno diretor, sentado a uma luxuosa mesa, como um pardal em uma travessa grande.

— Aproxime-se, Semeniuta — disse o diretor, depois de ele ter-lhe feito uma reverência. — Diga-me: por que fez isso?

— O que, Vossa Excelência?

— O senhor sabe melhor do que eu o quê. Por que arrombou a gaveta do executor e se apropriou das estampilhas e do dinheiro? Não tente negá-lo. Nós sabemos de tudo.

— Eu... Vossa Excelência... Eu... Eu... Eu, pela minha mãe...

O superior, pessoa muito liberal, comedida e humana, professor de direito financeiro na universidade, deu de súbito uma punhada na mesa:

— Não ouse jurar. Na noite passada o senhor ficou sozinho aqui. Até à uma hora da madrugada. Além do senhor, em toda a administração, havia apenas o vigia Ankúdin, mas ele está aqui faz já mais de quarenta anos, e eu antes duvidaria de mim próprio do que dele. Assim, confesse, e eu o despedirei sem causar-lhe nenhum aborrecimento.

As pernas de Semeniuta tremeram tanto, que ele se ajoelhou involuntariamente.

— Vossa... Pela minha mãe... palavra de honra... Vossa... Por tudo que é sagrado... por são Nicolau, eu... Vossa Excelência!

— Levante-se — disse o diretor com aversão, encolhendo as pernas sob a mesa. — Será que não vejo, pelo seu rosto e pelos seus olhos, que o senhor passou a noite em um antro de perdição? Eu sei muito bem que, depois de um desfalque ou de um furto (ele frisou essa palavra com crueldade), a primeira coisa que vós fazeis é ir a uma taberna ou a uma casa de tolerância. Não desejando macular a reputação da minha instituição, eu não darei parte à polícia, mas lembre-se: se vier alguém pedir-me referências do senhor, eu não lhe direi nada que o abone. Pode ir.

Dito isso, carregou no botão da campainha elétrica.

* * *

Faz já três anos que Semeniuta leva uma vida insociável, dolorosa e terrível. Ele se abriga em uma cava semi-escura, onde aluga o canto mais escuro, úmido e frio. Em outro mora Mikhiéevna, vendedeira que compra cestos de peixe miúdo aos pescadores, faz com ele bolinhos e os vende a um copeque cada. No terceiro canto, o mais claro, bate martelo o dia inteiro, sentado em um banquinho, o sapateiro Ivan Nikoláevitch, homem gentil, afável e alegre, nos dias úteis, e altercador e brigão nos feriados, que mora com um rancho de filhos pequenos e a esposa sempre grávida. Por fim, no quarto canto, da manhã à noite a lavadeira Iliínitchna, que é também a senhoria, mulher ranzinza e beberrona, atroa a cava com uma calandra enorme de madeira.

O próprio Semeniuta não saberia dizer direito de que vive. Ele ensina as primeiras letras a dois filhos do sapateiro, Kolka[57] e Viérka,[58] pelo que ganha um desjejum de chá e torrão de açúcar e pão preto. Escreve petições em restaurantes e cervejarias; de manhã, na agência central dos correios, sobrescreve endereços em envelopes e compõe cartas para analfabetos; também dá aulas em casa de um negociante, lá no extremo da cidade, a três rublos por mês. A sua ocupação principal, porém, é correr a cidade em busca de emprego. Só que a sua aparência não inspira confiança a ninguém. Ele não se barbeia, não corta o cabelo, que lhe cobre a cabeça qual meda de feno remexida, o rosto pálido inchou por causa do frio da cava, e as botas pedem graxa. Não é ainda borracho, mas começou já a beber um pouco.

No entanto, há quatro dias no ano nos quais ele se esforça para sacudir de si o aspecto de desleixo. São o Ano Novo, a Páscoa, a Trindade e o 13 de agosto.[59]

Na véspera desses dias, com muitos esforços e humilhações, ele consegue quinze copeques — cinco para um banho, cinco para o barbeiro, que atende na própria cava, sem tabuleta, e cinco para uma barra de chocolate ou uma laranja. Depois, vai à casa de um dos dois antigos colegas que o recebem com um misto de aversão e grande pena, embora se constranjam com as suas visitas. Os seus sobrenomes: de um, Pchónkin, e do outro, Massa. Temendo enfadá-los, Semeniuta alterna as visitas.

Bebe o copo de chá que lhe oferecem, geme, suspira e balança a cabeça de modo triste e senil.

— Que é? Vai mal a vida, irmão Semeniuta? — pergunta Massa.

— Queixar-se de Deus é pecado, mas ela vai mal, mal, Nikolai Stepánovitch.

— Eis no que resultou fazeres o que não devias.

— Nikolai Stepánovitch... Deus tem olhos... não fui eu... por tudo que é sagrado... não fui eu.

— Ora, vamos, não chores. Eu apenas brinquei. Eu acredito em ti. Ninguém está livre da desgraça. Mas, Semeniuta, não precisas de dinheiro? Um tchetvertachók[60] não me fará falta.

— Não, não, Nikolai Stepánovitch, eu não preciso de dinheiro, não aceitarei. Mas, já que é tão bondoso, empreste-me um casaquinho por duas horinhas. O pior que o senhor tiver. Não me negue isso, meu querido, por favor, meu caro. Não se preocupe, ontem eu fui aos banhos. Eu estou limpo.

— És estranho, Semeniuta. Para que queres o fato? Faz já três anos que pedes emprestados os meus casacos. Para quê?

— Para um negócio, Nikolai Stepánovitch. Tenho uma tia... já bem velhinha. Pode morrer de repente, e eu sou o único herdeiro. Pois então, eu preciso apresentar-me, felicitá-la. Lá muito dinheiro não é, mas, ainda assim, são quinhentos rublos...

— Está bem, está bem, toma, toma, Deus te ajude.

Depois de dar brilho de espelho às botas, disfarçar-lhes os buracos com tinta de escrever, cortar cuidadosamente a franja formada nas fímbrias das calças e pôr um colarinho com peitilho e uma gravata vermelha, que ele guarda o ano inteiro embrulhados em papel de jornal, então Semeniuta arrasta-se por toda a cidade para visitar a mãe no abrigo das viúvas. Na ante-sala aquecida e majestosa, impõe-se qual monumento o gordo e encanecido porteiro Nikita, com o seu uniforme com águias negras. Ele conhece Semeniuta desde que este tinha cinco anos. Porém olha para ele por cima dos ombros e até não lhe responde à saudação.

— Salve, Nikituchka. Então, como vai a saúde?

O orgulhoso Nikita cala, como se de pedra.

— Como está a saúde da minha mãezinha? — pergunta Semeniuta, intimidado com a recepção, pendurando o sobretudo no cabide.

O porteiro responde:

— Que pode ela fazer? A velha é forte. Agüentará mais um pouco.

Semeniuta sempre faz tudo para chegar ali pelo beirar da noite, quando não aparecem tanto os senões do seu traje. Caminha com passos silenciosos pela sucessão de camaratas abobadadas, de paredes pintadas com uma tinta verde inspiradora de calma, por entre as filas de camas brancas como neve, com edredões afofados e montes de almofadas, e as velhinhas, que o acompanham com um olhar de curiosidade por sobre os óculos. Os cheiros familiares da infância — de patchuli, de incenso de hortelã, da cera do assoalho e, ainda, certo cheiro estranho e indefinido, a mofo, de velhice limpa e asseada, o cheiro da terra — todos esses cheiros lançam-se à cabeça de Semeniuta e confrangem o seu coração com uma piedade sutil e aguda.

Chega finalmente à camarata da mãe. Seis camas altas, de cabeceira encostada à parede, e, ao pé de cada uma delas, um armariozinho enfeitado de retratos velhos, com molduras de conchas. No meio do aposento, a baixa altura, pende do teto uma lâmpada enorme, que ilumina a mesa, à qual duas velhinhas jogam uma interminável paciência e duas outras, intrometendo-se aqui e ali na análise do jogo feito, tricotam alguma coisa. Oh, como Semeniuta conhece tudo isso tão bem!

— Konkórdia Serguiéevna, visita para a senhora.

— Será o Vánetchka?[61]

A mãe levanta-se rapidamente, arredando os óculos para a testa. O novelo de lã cai ao chão e rola, desfazendo os laços do tricô.

—Vaniótchek![62] Meu querido! Eu esperei, esperei, achando até que não agüentaria esperar o meu falcãozinho bonito. Vamos, vamos. Eu sonhei contigo hoje.

Ela o conduz, com mão trêmula, à sua cama, ao lado da qual, bem à janela, fica a sua mesinha; ela a cobre com uma toalha, acende um coto de círio, tira o bule, xícaras, uma lata de chá e o açucareiro do armarinho, e agita-se o tempo todo, fazendo uma coisa, fazendo outra, ao passo que as suas mãos velhas, mirradas e nodosas tremem.

Passa em frente a eles a criada de quarto, grave e velha, “moça de quarto”, de uns cinqüenta anos, com o seu vestido de funcionária e avental branco.

— Dómnuchka! — diz Konkórdia Serguiéevna, de modo um tanto rebuscado. — Traze cá, mãezinha, um pouquinho de água quente. Vês, o Vániuchka veio visitar-me.

Domna faz uma mesura profunda a Semeniuta, uma reverência cheia de dignidade, à moda antiga, de Moscou.

— Salve, bátiuchka[63] Ivan Ivánovitch. Fazia um tempinho que não vinha. A mamãezinha aí vive com saudades. Trarei já, minha senhora, imediatamente-s.

Enquanto esperam por Domna, mãe e filho ficam em silêncio e, com olhares rápidos, penetrantes, como que tateiam a alma um do outro. Sim, apenas após uma separação longa as pessoas vêem, em um rosto amado, as marcas de destruição e envelhecimento que o tempo lhe imprime ininterruptamente e que não são notados na convivência diária.

— Estás com ar abatido, Vaniok — diz a velhinha e acaricia com a mão seca e áspera a do filho, pousada sobre a mesa. — Estás pálido, pareces cansado.

— Que fazer, maman! É o trabalho. Agora, pode dizer-se, comecei a dar nas vistas. Uma pessoa insignificante, mas carrego o escritório nas costas. Trabalho literalmente da manhã à noite. Como um boi. Concorde, maman, é preciso fazer carreira.

— Mas não te fatigues tanto, Vaniucha.

— Não importa, maman, eu tenho sete fôlegos. Em compensação, na Páscoa, eu receberei o colegiado,[64] aumento e gratificações. A tua vida vegetativa por cá, então, terminará. Alugarei uma casinha e a levarei comigo. E teremos não uma vida, mas um paraíso. Eu irei para o serviço, e a senhora será a dona da casa.

Dos olhos da velhinha surgem lágrimas de enternecimento e alastram-se pelas rugas mais cavadas.

— Queira Deus, queira Deus, Vanitchok. Só não te faltem saúde e paciência. Estás com uma aparência...

— Não é nada. Agüentaremos, maman!

Esse homem tímido e maltratado pela vida, nas raras e breves visitas à mãe, mantém um tom desenvolto, independente, imitando inconscientemente os vagabundos mundanos “enviados para serviço” que ele via no escritório. Daí a idiota palavra “maman”. Ele sempre chamou sua mãe e continua a chamar-lhe, em pensamento, “mama”, “mamússenka” e “mámotchka”,[65] e sempre a tuteou. Mas, na forma de tratamento “maman”, há um quê de despreocupado e aristocrático. Nesses minutos, a olhar para o rosto atribulado, chupado e desgostoso da mãe, ele sente simultaneamente medo, ternura, vergonha e pena.

Chega Domna com a água, coloca-a com fervorosa reverência sobre a mesa e afasta-se suavemente.

Konkórdia Serguiéevna faz chá. Volta e meia, à frente da sua mesinha, passam apressadas para cá e para lá, por necessidade ou sem precisão, velhotas curiosas, com toda a eternidade na cacunda e olhinhos de rato, parecidas elas próprias a ratos cinzentos. Todas elas conhecem Semeniuta desde que ele tinha cinco anos. Elas param, levantam os braços, balançam a cabeça e admiram-se:

— Mas ora vejam! Vánetchka! Impossível reconhecer, tão grande ficou. E eu me lembro do senhor assim, assim, olhe. Era um menino levado da breca, um herói. Todos lhe chamavam “General Skóbelev”. A mim ele me chamava “Perpétua Izmegúevna”, e à falecida Gololóbova, “Nadiejda Fiódorovna”, “vovó cinzenta de rabinho”. Lembro-me como se fosse hoje.

Konkórdia Serguiéevna acenou para a mulher com a mão, a mostrar-lhe, sem a menor cerimônia, o seu enfado.

— Está bem, obrigada... Conversamos cá sobre uma coisa muito importante, meu filho e eu. Obrigada. Vá, vá.

— Como vão as nossas coisas, maman? — pergunta Semeniuta, a beber chá aos golinhos.

— Pois então. Eu já estou velha. Já está mais do que na hora de partir... As filhinhas é que estão mal. Lá tu, graças a Deus, tens a vida encaminhada, mas elas estão em dificuldades. O marido da Kátia abandonou completamente a casa. Joga, bebe, volta bêbado para casa todos os dias. Bate-lhe. Da estrada de ferro, pelo visto, logo será enxotado, e a Kátia está de novo grávida. Só isso sabe fazer, o infame.

— Pois é, maman, tem razão, é um infame.

Tss... mais baixo... Não fales assim, alto... — murmura a mãe. — Aqui, todos esticam bem as orelhas, para depois fazerem mexericos. É. Quanto à Zoika... palavra, não sei já se ela está pior, se está melhor. O Stácenka dela é bondoso, é amoroso... Bem, todos eles, polacos, são carinhosos, mas, quando o negócio é rabo-de-saia, ele é um verdadeiro cão, Deus que me perdoe. Torra todo o dinheiro com elas, o desavergonhado. Passeios em carruagens de luxo, presentinhos diversos... E a tonta da Zóia continua apaixonada até hoje, como uma gata! Eu não consigo entender, que idiotice! Outro dia ainda, ela pegou a chave da escrivaninha dele e encontrou, numa gaveta, fotografias dele com as suas Dulcinéias, daquele jeito... tu sabes... sem nada. Bem, a Zóia tentou matar-se com ópio... Foi a muito custo que a reanimaram com respiração artificial. Mas por que falar só de coisas desagradáveis? Vamos, conta-me algo de ti. Só que tss... bem baixinho — aqui, até as paredes têm ouvidos.

Semeniuta recorre a toda a sua inspiração e põe-se a mentir com desenvoltura e sem cuidado. Às vezes, contradiz o que dissera na visita anterior. De qualquer modo, ele não o nota. Mas a mãe, sim. Ela, porém, cala. Apenas os seus olhos de velha ficam cada vez mais tristes e mais escrutadores.

O trabalho vai às mil maravilhas. Os superiores têm muita consideração por Semeniuta, os colegas querem-lhe bem. É bem verdade que Traktátov e Preobrajénski lhe têm inveja e fazem intrigas, mas que podem eles? Eles não têm nem conhecimentos nem capacidade de pensar. Eis o seu tipo de instrução: um fora expulso do seminário, e o outro era simplesmente um arruaceiro. Mas Semeniuta era irrepreensível. Ele estudou a fundo todos os segredos do trabalho burocrático. O chefe da seção anda de braço dado com ele. Dias antes, convidara-o a jantar em casa. Houve danças. A filha do chefe, Líubotchka, aproximou-se dele com outra senhorita. “Que deseja: uma rosa ou um lírio branco do vale?”. “O lírio!” Ela ficou toda vermelha como uma cereja. E depois perguntou: “Como soube que o lírio era eu?”. “O meu coração adivinhou-o.”

— Deverias casar-te, Vánetchka.

— Espere um pouco. É cedo ainda, maman. Deixe as minhas penas crescerem. Mas ela é bonita. Muito bonita.

— Ah, seu estróina!

— Irra, irra, vamos afastar o mau-olhado. As coisas vão em ordem, não posso queixar-me. Dias atrás, o chefe, ao passar por mim, bateu-me no ombro e disse em tom de aprovação: “Isso, esforce-se, meu jovem, esforce-se. Eu acompanho sempre o seu trabalho e lhe darei sempre o meu apoio. De modo geral, tenho-o sempre em mente”.

Ele fala, fala sem fim, arrebatado pela própria fantasia, a torcer os bigodes, de pernas cruzadas e com os olhos semifechados, e a mãe olha para a sua boca, enfeitiçada pelo relato daquelas maravilhas todas. Mas eis que soa ao longe, depois, cada vez mais perto, um retintim. Entra Domna com a sineta: “Senhoras, jantar ”.

— Espera-me — murmura a mãe. — Quero olhar-te mais um pouco.

Ela retorna vinte minutos depois. Segura um pires, na qual há um pedaço de carne de esturjão salgada ou uma porção de galantina, ou uma salada com arenque e alguns pedaços de um pão preto delicioso.

— Come, Vánetchka, come — insta carinhosamente a mãe. — Não tenhas nojo da nossa comida de viúvas! Quando eras pequeno, gostavas muito de carne de esturjão.

Maman, tem dó de mim, estou cheio até ao pescoço, não cabe mais nada na barriga. Nós almoçamos hoje no “Praga”, era uma homenagem a um superior nosso. A propósito, trouxe-lhe dali uma laranjinha. Tome...

No entanto, ele come com apetite de lobo o que a mãe lhe dá, e não nota como duas lágrimas silenciosas se espalham pelas faces enrugadas dela, como arroios estreitos de montanha.

Chega o momento da despedida. A mãe quer acompanhar o filho até o vestíbulo, mas ele se lembra do seu casaco puído e recusa a gentileza.

— Não, realmente, maman. Acompanhar-me é só para chorar mais. E apanhará ainda um resfriado, para piorar. Olhe bem, cuide da saúde!

No vestíbulo, o orgulhoso Nikita olha, com uma majestade opressiva indescritível, como Semeniuta veste o sobretudinho imprestável e enfia a cabeça no gorro quase já desfeito em pedaços.

— Pois é, Nikituchka — diz Semeniuta amistosamente. — Ainda se pode viver... Só é preciso não se desesperar... Eh, deveria uma moedinha de dez copeques, mas não tenho trocado.

— Ora, chega — deixa o porteiro escapar com desdém. — Bem sei eu que o senhor anda só com dinheiro grande. Vá, apresse-se. Ou me deixará a portaria igual ao pólo norte.

* * *

Quando mostrará a Fortuna a Semeniuta não o seu rosto feroz, mas o benevolente? E mostra-lo-á? Eu acho que sim.

Que custa a ela, a essa beldade estouvada e volúvel, pegar o último dos seus escravos e acarinhá-lo, para contrariar os seus prediletos?

Então, o honesto vigia Ankúdin, gravemente doente e com o sentimento da morte próxima, enviará o neto Grichka ao diretor da Casa da Moeda.

— Pois dize a Sua Excelência: o Ankúdin está para morrer, mas, antes, quer contar um segredo muito importante a Sua Excelência.

Chega o general aos aposentos ocupados por Ankúdin na cava do prédio. Então, juntando as derradeiras forças, Ankúdin desce arrastando-se da cama e prostra-se diante do general:

— Vossa Excelência, a consciência matou-me... Estou a morrer... Quero desobrigar-me de um pecado... O dinheiro, aquele, e os selos... Fui eu que os peguei... Foi tentação do Tinhoso... Perdoai-me, por amor de Cristo, por eu ter envolvido um inocente... O dinheiro e os selos estão ali... Na cômoda, na primeira gavetinha da direita.

No dia seguinte já, o diretor mandará Pchónkov ou Massa buscar Semeniuta, entrará abraçado com ele na seção e contará a história de Ankúdin, do dinheiro e dos selos roubados, do sofrimento do infeliz Semeniuta, pedirá desculpas a ele na frente de todos, apertará a sua mão e, comovido até às lágrimas, o beijará.

Viverá então Semeniuta com a mãe muitos anos ainda, em um cantinho sossegado, modesto e aquecido. Mas a velhinha jamais o deixará suspeitar que ela sabia que ele a enganava, e ele, por sua vez, que sabia que ela conhecia a verdade. Esse ponto nevrálgico será sempre cuidadosamente contornado. A mentira santa é uma flor palpitante e envergonhada, que murcha a qualquer toque.

Como não, na vida acontecem milagres!

Ou será que somente nos contos de Páscoa?