O bracelete de granadas
L. van Beethoven. Son. no 2, op. 2.
Largo Apassionato
i
Na metade de agosto, antes do surgimento da lua nova, fez-se de súbito o tempo horrível, tão característico da costa setentrional do mar Negro. Ora, por dias inteiros, pesava, sobre a terra e o mar, uma névoa densa e, então, a enorme sirena do farol soava, dia e noite, como boi endoidecido. Ora, da manhã à noite, caía sem parar uma chuvinha fina, qual poalha d’água, e transformava as estradas e os caminhos de terra em uma lama grossa só, em que ficavam atoladas, por muito tempo, carroças e carruagens. Ora, de nordeste, das bandas da estepe, soprava um furacão feroz; por causa dele, os cimos das árvores oscilavam, inclinando-se e endireitando-se, como ondas em uma tempestade, os telhados de ferro das datchas[66] faziam um concerto de sons à noite, e parecia que sobre eles corria alguém de botas ferradas, estremeciam os caixilhos das janelas, portas batiam e ouvia-se um uivo selvagem nos tubos dos fornos. Desapareceram várias barcas de pescadores, e duas nunca voltaram; corpos começaram a dar à praia, em diferentes pontos do litoral, somente uma semana depois.
Os veraneantes do balneário suburbano, na sua maioria gregos e judeus, amantes da vida e desconfiados, como todos os meridionais, voltaram apressadamente para a cidade. Pela estrada lamacenta estendiam-se filas intermináveis de carroças, carregadas com os mais diversos móveis e utensílios domésticos: colchões, divãs, baús, cadeiras, lavabos, samovares. Um sentimento de pena, tristeza e enfado apoderava-se de quem olhava, através da musselina turva da chuva, para aqueles trastes lastimáveis que pareciam já tão usados, sujos e miseráveis; para as criadas de quarto e as cozinheiras, sentadas no topo da carga, sobre a lona molhada, com ferros de engomar, latas e cestas nas mãos; para os cavalos suados, esgotados, que paravam aqui e além, com tremor nas pernas, a soltar nuvens de bafo congelado e a olhar, repetidas vezes, de esguelha para os condutores, que praguejavam com voz rouca e se agasalhavam com esteiras. Mais triste ainda era ver as datchas desertas, com o seu súbito espaço, vazio e nudez, com canteiros de flores destruídos, vidros quebrados, cães abandonados e toda a sorte de lixo deixado pelos veranistas: tocos de cigarro, papel, cacos de louça, caixinhas e frascos de remédio.
Mas, pelo beirar de setembro, de repente o tempo mudou de maneira completa e inteiramente inesperada. Vieram imediatamente dias sem vento nem nuvens, tão bonitos, ensolarados e quentes como não fizera nenhum, nem sequer em julho. Nos campos ceifados, agora secos, e nas suas cerdas douradas e picadoras, surgiu o brilho de mica da teia outonal das aranhas. As árvores, serenadas, desfolhavam-se em resignado silêncio.
A princesa Vera Nikoláevna Chêina, esposa do decano da nobreza,[67] não pôde deixar a datcha porque a reforma da sua casa da cidade não terminara ainda. Ela se alegrou muito com aqueles dias encantadores, com o silêncio, o retiro, o ar puro, o trissar das andorinhas, que se agrupavam em cachos nos fios de telégrafo, preparando-se para a migração, e a viração acariciadora.
ii
Para além disso, era dia de santa Vera, 17 de setembro. Por recordações doces, remotas, da infância, ela gostava sempre desse dia e esperava sempre algo maravilhoso dele. Antes de partir de manhã para a cidade, por negócios urgentes, o marido colocou-lhe, sobre a mesinha-de-cabeceira, um estojo com lindos brincos de pérola em forma de pêra, e o presente deixou-a ainda mais alegre.
Ela estava sozinha. O seu irmão solteiro, promotor público adjunto, também se fora para a cidade, para um julgamento. O marido prometera trazer alguns dos conhecidos mais íntimos para o almoço. A coincidência do dia onomástico com a temporada de verão viera a calhar. Em casa, teriam de organizar um almoço pomposo, talvez até um baile, ao passo que ali, na datcha, podiam limitar-se a gastos bem modestos. O príncipe Chêin, não obstante a sua proeminente situação na sociedade, e talvez até por causa dela, mal conseguia equilibrar a receita com a despesa. O imenso patrimônio fora quase totalmente arruinado pelos seus antepassados, e tinha ele de viver acima dos seus meios: realizar recepções, contribuir para obras de caridade, vestir-se bem, criar cavalos etc. A princesa Vera, cujo amor ardente ao marido havia muito já se transformara em um sentimento de sólida, fiel e verdadeira amizade, esforçava-se de todas as maneiras por ajudá-lo a escapar à ruína total. Ela renunciava a muitas coisas, sem que ele o percebesse, e economizava, nos gastos domésticos, tanto quanto possível.
Ela andava agora pelo jardim e cortava delicadamente algumas flores com uma tesoura, para a mesa do almoço. Os canteiros estavam vazios e tinham aspecto desordenado. Davam as últimas flores os cravos de diversas cores e folhas dúplices, bem como o goiveiro — metade flor, metade vagens verdes, que cheiravam a repolho; as roseiras davam ainda, pela terceira vez naquele verão, botões e flores, mas menores e esparsos, como se degenerados. Em contrabalanço, floriam luxuriantes, com uma beleza fria e altiva, as dálias, as peônias e as rainhas-margaridas, a difundir, pelo ar sensível, um aroma outonal, de ervas e tristeza. As demais flores, após o seu amor exuberante e a desmedida maternidade estival, derrubavam em silêncio, sobre a terra, as incontáveis sementes da vida futura.
Da estrada próxima ouviram-se os sons familiares da buzina de três tons de um automóvel. Chegava a irmã da princesa Vera, Anna Nikoláevna Friesse, que prometera de manhã, por telefone, ajudá-la na recepção dos convidados e no trabalho de casa.
O ouvido apurado não enganou Vera. Ela foi ao encontro de Anna. Uns minutos depois, ao pé dos portões da datcha, freou um automóvel elegante, e o motorista, saltando agilmente do assento, abriu uma portinhola.
As irmãs beijaram-se contentes. Desde a infância eram ligadas por uma amizade carinhosa e solícita. Não tinham, estranhamente, nenhuma semelhança física. A mais velha, Vera, saíra à mãe, uma beldade inglesa, na sua figura alta e flexível, no rosto meigo, mas frio e orgulhoso, nas mãos lindas, embora um tanto grandes, e na encantadora declividade dos ombros, que se pode ver nas velhas miniaturas. A mais nova, Anna, ao contrário, herdara o sangue mongol do pai, um príncipe tártaro cujo avô se convertera ao cristianismo apenas no início do século xix, e cujo antigo clã chegava até ao próprio Tamerlão, ou Lang-Temir, como o seu pai chamava, em tártaro, a esse grande assassino sanguinário. Ela era meia cabeça mais baixa do que a irmã, um tanto larga de ombros, vivaz, leviana e trocista. O seu rosto, bem do tipo mongol, de zigomas pronunciados, de olhos amendoados que ela, além disso, entrefechava por ser míope, com uma expressão arrogante na boca pequena e sensual, principalmente no lábio inferior, grosso e levemente distendido para a frente, esse rosto, no entanto, atraía por um encanto imperceptível e incompreensível, que consistia, talvez, no sorriso, talvez na profunda feminilidade de todos os traços ou, quem sabe, na mímica maliciosa, de uma garridice provocante. A sua fealdade atraía a atenção dos homens com mais freqüência e intensidade do que a beleza aristocrática da irmã.
Era ela casada com um homem muito rico e muito tolo, que não fazia absolutamente nada, mas pertencia a certa instituição beneficente e possuía o título de Kammerjunker.[68] Ela não suportava o marido, mas dera-lhe dois filhos, um menino e uma menina; não quis outros e não os teve. Vera, por sua vez, desejava filhos ansiosamente e achava que, quanto mais, tanto melhor, mas, por alguma razão, eles não lhe vinham, e ela votava uma adoração ardente e mórbida aos sobrinhos bonitinhos e anêmicos, sempre decentes e obedientes, de rostos pálidos e cabelos sedosos e anelados de boneca.
Anna toda era uma combinação de desorganização alegre e contradições encantadoras, às vezes estranhas. Atirava-se de bom grado ao namorico mais arriscado em todas as capitais e em todos os balneários da Europa, mas nunca traía o marido, ao qual ridicularizava com desprezo pela frente e pelas costas; era dissipadora, louca por jogos de azar, danças, impressões fortes, espetáculos picantes, e, no exterior, visitava cafés suspeitos, mas, ao mesmo tempo, caracterizava-se por uma bondade generosa e uma religiosidade sincera e profunda, que até a fizera converter-se secretamente ao catolicismo. O seu dorso, o busto e os ombros eram de rara beleza. Quando ia a grandes bailes, mostrava do corpo muito mais do que a decência e a moda permitiam, mas dizia-se que, sob o bem entrado decote, ela trazia um cilício.
Já Vera era de uma simplicidade severa, de uma gentileza um tanto altaneira, fria com todos, independente e de uma serenidade majestosa.
iii
— Deus meu, como é bonito aqui! Que bonito! — dizia Anna a caminhar com passinhos rápidos, ao lado de Vera, pelas ruelas do jardim. — Podemos sentar-nos um pouco no banco ao pé do despenhadeiro? Há muito tempo que não vejo o mar. E que ar maravilhoso: respirar é um sorvo de alegria para o coração. No último verão, na Criméia, em Mskhor, eu descobri uma coisa admirável. Sabes a que cheira a água do mar na ressaca? A resedá, imagina só.
Vera sorriu-se com carinho:
— És uma fantasista.
— Não, não. Eu me lembro até de uma vez, em que todos riram de mim, quando disse que o luar possuía um matiz róseo. Pois, outro dia desses, o pintor Borítski — o que está a pintar o meu retrato — concordou comigo e disse que os pintores sabiam disso havia já muito tempo.
— Esse pintor é a tua nova paixão?
— Sempre inventas alguma coisa! — pôs-se Anna a rir e, chegando rapidamente bem à borda do despenhadeiro, cuja íngreme parede entrava fundo no mar, espiou para baixo e deu de repente um grito de susto e recuou com o rosto pálido.
— Uh, como é alto! — disse ela com voz débil e estremecida. — Quando olho de uma altura dessas, sinto sempre uma coisa doce e repulsiva no peito... e doem-me os dedos dos pés... Mas, apesar de tudo, uma força puxa-me para ali, como puxa...
Quis ela debruçar-se sobre o abismo mais uma vez, mas a irmã segurou-a.
— Anna, minha querida, por favor, não! Eu própria sinto vertigens quando fazes isso. Eu te rogo, senta-te.
— Está bem, está bem, já me sentei... Mas olha só que beleza, que alegria! O olho simplesmente não se farta. Se soubesses como sou grata a Deus por todas as maravilhas que ele fez para nós!
Ambas meditaram um instante. Muito, muito abaixo delas, repousava o mar. Do banco não se via a praia, e, com isso, a sensação do infinito e da grandeza dos espaços marinhos aumentava ainda mais. Estava a água de uma placidez acariciadora, de um azul alegre, com um tom mais claro apenas nas faixas oblíquas e lisas, traçadas pela corrente, e cambiava para um azul carregado, profundo, no horizonte. Longe da praia, sobre o espelho das águas, dormitavam, imóveis, barcos de pesca, que a vista mal conseguia alcançar, de tão pequenos que pareciam. Acolá, como se flutuasse no ar, sem avançar, alvejava um navio de três mastros, vestido de cima a baixo com velas airosas e uniformes, pandas de vento.
— Eu te compreendo — disse, pensativa, a irmã mais velha —, mas, por alguma razão, comigo se passa outra coisa. Quando eu revejo o mar depois de longo tempo, ele me comove, alegra, impressiona. Como se eu visse pela primeira vez uma maravilha ingente e solene. Mas depois, quando me acostumo a ele, o seu vazio liso começa a oprimir-me... Aborreço-o, ao pôr os olhos nele, e tudo faço para não olhar mais. Causa-me tédio.
Anna sorriu.
— Por que sorris?
— No verão passado — disse Anna, com malícia — nós fomos em cavalgada de Ialta ao Utch-Koch.[69] Ele fica além da zona florestal, acima da cascata. Nós entramos primeiro em uma nuvem; a umidade era grande, e a visão, pouca, mas continuamos a subir por uma vereda orlada de pinheiros. De súbito, terminou a floresta, e nós saímos do nevoeiro. Imagina: um pedacinho estreito de terra em um penhasco e, sob os pés, um precipício. As aldeias não pareciam mais do que uma caixa de fósforos, a floresta e os pomares eram como erva rasteira. Todo o sítio descia para o mar, como um mapa de geografia. E, acolá, o mar! Por umas cinqüenta, cem verstas. Parecia-me que estava suspensa no ar e que, de um minuto para outro, poderia sair a voar. Tal era a beleza, tal a leveza! Eu me viro para o guia e digo-lhe, com ardor: “Então? Não é bonito, Seid-ogli?”. Ele apenas deu um estalido com a língua: “Eh, meu senhora, como estou farto de todo esse coisa. Vemos to-dos os dias”.[70]
— Muito obrigada pela comparação — riu-se Vera —; não, eu apenas acho que nós, do Norte, jamais conseguiremos entender o encanto do mar. Eu gosto da floresta. Lembras-te da nossa floresta de Egórovsk?... Pode lá ela um dia aborrecer a alguém? Os pinheiros!... Os tipos de musgo!... E as amanitas mata-moscas,[71] então! Exatamente como se de cetim vermelho e bordadas com miçangas brancas. O silêncio... o frescor.
— Para mim, tanto faz. Eu gosto de tudo — respondeu Anna. — Mas, mais do que qualquer outra coisa, eu gosto da minha irmãzinha, da minha sensata Viérenka.[72] Pois somos só nós duas no mundo.
Ela abraçou a irmã e apertou-se a ela, encostando o rosto ao seu. Nisso, lembrou-se subitamente de algo.
— Não, como sou boba! Ficamos aqui a falar, como nos romances, sobre a natureza, e eu me esqueci completamente do meu presente. Cá está ele, olha. Temo apenas que não te agrade.
Ela tirou, do seu saquitel de mão, um canhenho esplendidamente encadernado: sobre um veludo azul velho, gasto e acinzentado pelo tempo, enrolava-se uma ramagem delicada, de um amarelo baço e rara complexidade, delicadeza e beleza — certamente, obra de amor das mãos de um artista habilidoso e paciente. Ao livrinho estava presa uma correntinha de ouro, fina como linha, e, no meio, as folhas haviam sido substituídas por tabuinhas de marfim.
— Que coisa linda! Um encanto! — exclamou Vera, e beijou a irmã. — Eu te agradeço. Onde conseguiste este tesouro?
— Em uma loja de antiguidades. Conheces bem a minha mania de remexer trastes antigos. Foi então que eu dei com este breviário. Olha como o ornamento faz a figura de uma cruz, vês? É bem verdade, eu encontrei só a capa, eu tive de inventar o resto — as folhas, os fechos, o lápis. Mas o Mollinet não queria entender-me de jeito algum, por mais que eu lhe explicasse. Os fechos deviam ser do mesmo estilo que o do desenho todo, opacos, de ouro velho, de gravura fina, mas só Deus sabe o que ele fez. Em compensação, a correntinha é autêntica, veneziana, muito antiga.
Vera alisou com carinho a bela capa.
— Que remota antiguidade!... Quantos anos pode ter este livrinho? — perguntou ela.
— Não me atreveria a tentar determiná-lo com exatidão. Aproximadamente, fim do século dezessete, início do dezoito...
— Que estranho — disse Vera, com um sorriso meditativo. — Eu cá tenho em mãos uma coisa que talvez hajam tocado as mãos da marquesa de Pompadour ou da própria rainha Antonieta... Mas sabes, Anna, somente tu poderias ter a idéia louca de transformar um livro de orações em carnet[73] de mulher. No entanto, vamos para casa a ver o que se faz por ali.
Elas atravessaram o grande terraço de pedra, fechado de todos os lados por espaldeiras de uva isabel. Os copiosos cachos negros, que exalavam um aroma suave de morango, pendiam pesados, cá e lá, em meio à folhagem dourada pelo sol. Pelo terraço derramava-se uma meia-luz verde, que tornou imediatamente pálidos os rostos das duas mulheres.
— Mandarás pôr cá a mesa? — perguntou Anna.
— Sim, pensei nisso no início... Mas já estão tão frios os entardeceres. Talvez seja melhor comermos dentro de casa. Os homens que venham fumar para aqui.
— Haverá alguém interessante?
— Não sei ainda. Sei apenas que virá o vovô.
— Ah, vovô querido. Que alegria! — exclamou Anna e ergueu os braços. — Parece que faz cem anos que não o vejo.
— Virá a irmã de Vássia,[74] e parece que o professor Spiéchnikov. Ontem eu perdi a cabeça, Ánnenka. Como sabes, os dois adoram comer, vovô e o professor. Mas nem aqui nem na cidade é possível comprar alguma coisa, com o dinheiro que seja. O Luká conseguiu umas codornizes — pediu-as a um caçador, conhecido seu — e está a preparar algo com elas. Conseguimos um rosbife até não de todo mau, o inevitável rosbife, infelizmente. Já os caranguejos são muito bons.
— Pois então, até que não está mau. Não te preocupes. Por outro lado, cá entre nós, tu própria gostas de comer bem.
— Mas haverá, também, uma coisa rara. Hoje de manhã um pescador trouxe um dragão-marinho. Eu própria o vi. Um monstro, verdadeiramente. Dá medo olhá-lo.
Anna, sofregamente curiosa por tudo que tivesse que ver com ela e também por tudo que não tivesse, exigiu que lhe trouxessem imediatamente o dragão-marinho.
Veio o cozinheiro Luká, alto, de rosto amarelo e escanhoado, com uma selha branca e oblonga, que segurava com esforço pelas asas e com cuidado, temendo derramar água sobre o assoalho.
— Doze funts[75] e meio, Vossa Alteza — disse ele, com um orgulho especial de cozinheiro. — Pesamo-lo há pouco.
O peixe era grande demais para a selha e jazia no fundo, de rabo dobrado. A sua escama tinha um reflexo de ouro, as barbatanas eram de cor vermelho-viva, e da carona medonha saíam, para os lados, duas asas compridas de um azul suave, pregueadas como leques. Ele estava ainda vivo, e as brânquias trabalhavam redobradamente.
A menor das irmãs tocou-lhe a cabeça com o mindinho. Ele agitou de súbito a cauda e Anna tirou a mão com um guincho.
— Não vos preocupeis, Vossa Alteza, ajeitaremos as coisas da melhor forma — disse o cozinheiro, tendo aparentemente compreendido a preocupação de Anna. — Um búlgaro acaba de trazer dois melões. Parece que cantalupos, mas muito mais cheirosos. Também me atrevo a perguntar, Vossa Alteza, com que molho ordenais servir o peixe: tártaro ou polaco, ou, quem sabe, simplesmente com torradas e manteiga?
— Faze como souberes. Podes ir! — ordenou a princesa.
iv
Os convidados começaram a chegar depois das cinco horas. O príncipe Vassíli Lvóvitch trouxe a irmã viúva, Liudmila Lvóvna, gorda, bonachona e extraordinariamente calada; Vássiutchka,[76] jovem mundano e ocioso, rico e conhecido por toda a cidade por esse nome familiar, e companheiro agradável nas reuniões porque sabia cantar e declamar, além de organizar quadros vivos, espetáculos e bazares beneficentes; a famosa pianista Genny Reuter, amiga da princesa Vera dos tempos do Instituto Smolny,[77] e o irmão da esposa, Nikolai Nikoláevitch. Depois deles, chegou de automóvel o marido de Anna, com o professor Spiéchnikov, gordo, indecentemente grande e bem barbeado, e o vice-governador local, Von Sekk. Por último chegou o general Anóssov, em belo landau alugado, em companhia de dois oficiais: o coronel Ponomarióv, prematuramente envelhecido, magro, bilioso e macilento por causa do excessivo e extenuante serviço burocrático, e o tenente Bakhtínski, dos hussardos da guarda, que granjeara fama em Petersburgo como o melhor dos dançarinos e incomparável condutor de bailes.
O general Anóssov, obeso, alto e todo encanecido, desceu pesadamente do estribo, segurando-se com uma mão ao corrimão das boléias e, com a outra, à traseira da carruagem. Segurava, na sinistra, a trombeta acústica, e, na destra, um bastão com ponteira de borracha. Tinha rosto grande, vermelho, de pessoa rústica, nariz carnudo e, nos círculos inchados e radiantes dos olhos semicerrados, a expressão bonachona e imponente característica das pessoas simples e corajosas que já viram muitas vezes, e bem de perto, o perigo e a morte. Ambas as irmãs, ao reconhecerem-no de longe, correram à caleça, para, meio a sério, meio na troça, ampará-lo de ambos os lados.
— Exatamente como... um prelado! — disse o general, com voz carinhosa e rouca de baixo.
— Vovô, querido! — dizia Vera, em tom de leve reproche. — Nós o esperamos esses dias todos, e o senhor nem deu as caras.
— O vovô, aqui, no Sul, perdeu completamente os escrúpulos — começou Anna a rir. — Podia ao menos lembrar-se da afilhada, mas nada! Comporta-se como um dom-joão desavergonhado e esqueceu-se completamente da nossa existência...
O general, descobrindo a majestosa cabeça, beijou as mãos às irmãs, a uma de cada vez, depois beijou-lhes as faces, e novamente as mãos.
— Meninas... esperai... não me injurieis — disse ele, tendo as palavras entrecortadas com suspiros pela dispnéia antiga. — Palavra de honra... os doutorzinhos infelizes... o verão inteiro trataram o meu reumatismo... com um creme... imundo... cheirava que era uma... desgraça... E não me deixavam... sair... Sois as primeiras... pessoas, que visito... Estou contentíssimo... de ver-vos... Como ides?... Tu, Vera... estás realmente uma lady... ficaste muito parecida... à falecida mãe... Quando me chamarás... para o batizado?
— Oh, temo que nunca, vovô...
— Não te desesperes... tens tudo ainda pela frente... Ora a Deus... E tu, Anna, não mudaste nem um pouco... Ainda com sessenta anos... continuarás a ser a mesma libélula inquieta. Mas esperai um pouco. Deixai-me apresentar-lhes os senhores oficiais.
— Eu tenho já a honra de conhecê-las há muito tempo! — disse o coronel Ponomariov, com um gesto de saudação.
— Eu fui apresentado à princesa em Petersburgo — secundou-o o hussardo.
— Bem, apresento-te, então, Anna, o tenente Bakhtínski. Dançarino e desordeiro, mas bom cavaleiro. Tira lá, Bakhtínski, querido, da carruagem... Vamos, meninas... Que tens para nós, Vera? Olha, depois do tal regime... estou com o apetite... de um sargento... em licença.
O general Anóssov fora companheiro de armas e amigo fiel do príncipe Mirza-Bulat-Tuganóvski. Após a morte deste, ele transferiu toda a sua amizade e o seu afeto às filhas. Conhecera-as ainda pequeninas e até batizara a menor, Anna. À época, como até àquele dia, era ele o comandante de uma fortaleza grande, mas quase já desativada, na cidade de K., e visitava diariamente a casa dos Tuganóvski. As crianças simplesmente adoravam-no pelas traquinadas, pelos presentes, pelos bilhetes para o circo e o teatro e porque ninguém sabia brincar com elas com tanto gosto como Anóssov. Mas o que mais as encantava, e com mais força do que qualquer outra coisa acabaria por ficar-lhes na lembrança, eram os seus relatos de campanhas militares, batalhas e acampamentos em bivaques, vitórias e recuos, de casos de morte, ferimento e frio feroz; histórias vagarosas, cândidas, de uma serenidade épica, contadas entre o chá da noite e a hora aborrecida, a que mandam as crianças irem dormir.
Segundo os costumes hodiernos, esse pedaço de eras muito recuadas representava uma figura gigantesca e extraordinariamente pitoresca. Nele se reuniam precisamente os traços singelos, mas comoventes e profundos, encontrados, já na sua época, com muito mais freqüência entre os soldados do que entre os oficiais; os traços puramente russos, os traços do mujique, os quais, na sua união, compõem o vulto elevado, que às vezes tornava o nosso soldado não somente invencível, como também um mártir, quase um santo; traços constituídos de uma crença cândida, ingênua, de uma maneira bonachona, alegre e clara de encarar a vida, uma bravura fria e prática, resignação em face da morte, piedade do vencido, paciência infinita e uma resistência física e moral impressionante.
Da guerra da Polônia[78] em diante, Anóssov participara em todas as campanhas, exceto na contra o Japão. Ele teria ido para aquela sem hesitação, mas não foi convocado, e resignou-se, na grandeza da modéstia da sua regra de sempre: “Não procures a morte, enquanto não te chamarem”. Em toda a sua vida, ele não somente jamais açoitara um soldado, como também nem sequer golpeara algum deles.[79] Na insurreição dos polacos, ele se recusou, certa vez, a fuzilar prisioneiros, apesar da ordem do comandante do regimento. “Um espião, eu não apenas o fuzilaria” — disse ele —, “como também, se mandásseis, o mataria eu próprio. Agora, estes são prisioneiros, e eu não posso fazer tal coisa.” Disse isso de maneira tão simples e respeitosa, sem nenhuma sombra de desafio ou afetação, a mirar com os olhos claros e firmes bem nos do superior, que, em lugar de fuzilarem a ele próprio, deixaram-no em paz.
Na guerra de 1877-79,[80] ele chegou rapidamente ao posto de coronel, não obstante tivesse pouca instrução ou, como dizia, houvesse concluído apenas a “academia de urso”. Participou na travessia do Danúbio, cruzou os Bálcãs, passou um tempo encurralado no passo Chipka,[81] esteve no último ataque a Pliéven;[82] foi ferido gravemente uma vez, três levemente, e, além disso, um estilhaço de granada causou-lhe um ferimento atroz na cabeça. Radiétski e Skóbelev[83] conheciam-no pessoalmente e tratavam-no com excepcional respeito. Foi dele que Skóbelev disse, certa vez: “Eu conheço um oficial mais corajoso do que eu: o major Anóssov”.
Ele voltou da guerra quase surdo por causa dessa contusão, com uma perna doente, de que haviam sido amputados três dedos, congelados na campanha dos Bálcãs, e um reumatismo terrível, apanhado no Chipka. Queriam reformá-lo ao cabo de dois anos de vida pacífica, mas Anóssov obstinou-se. Teve nisso a ajuda muito oportuna da influência do comandante da região, testemunha ocular da sua coragem serena na travessia do Danúbio. Então, em Petersburgo, resolveu-se não desgostar o valoroso coronel, e foi-lhe dada a função vitalícia de comandante na cidade de K., posto mais honorífico do que necessário, sob o aspecto da defesa nacional.
No lugar, todos o conheciam, dos velhos às crianças, e riam-se sem maldade das suas fraquezas, hábitos e maneira de vestir-se. Andava sempre desarmado, com uma sobrecasaca antiquada, de quepe de abas grandes e uma pala reta enorme, com um bastão na mão direita e a corneta acústica na esquerda, e sempre na companhia de dois pequineses gordos, preguiçosos e roucos, cuja ponta da língua estava sempre para fora e com marca de mordida. Quando, nos seus passeios matinais, ele encontrava algum conhecido, então os passantes a vários quarteirões do local ouviam os gritos do comandante, seguidos dos latidos uníssonos dos cães.
Como muitos surdos, tinha paixão pela ópera, e, às vezes, em meio a um dueto langoroso, de súbito a sua decidida voz de baixo atroava o teatro inteiro: “Pois o maroto pegou um dó perfeito, com os diabos! Como quem parte uma castanha nos dentes”. Um riso contido percorria a platéia, mas o general nem o percebia; na sua ingenuidade, pensava que apenas cochichara uma impressão do momento ao vizinho de poltrona.
Pelas suas obrigações de comandante, ia regularmente, com os dois cãezinhos, à casa de guarda principal, onde, no ambiente bem acolhedor do uíste, do chá e das anedotas, alguns oficiais descansavam do peso do serviço militar. Ele interrogava atentamente cada um: “Apelido? Preso por quem? Por quanto tempo? Motivo?”. Às vezes, de modo inesperado, elogiava o preso pelo ato galhardo, embora contrário ao regulamento; em outras, passava uma ensinadela, gritando tanto que era ouvido até na rua. Mas, ao fartar-se de berrar, passava sem transição ou pausa a perguntas sobre de onde o oficial recebia comida e quanto pagava por ela. Acontecia que um alferes transviado qualquer ou outro, mandado para reclusão longa de um fim de mundo, onde não havia cárcere próprio, reconhecia que, por falta de dinheiro, tinha de contentar-se com o rancho dos soldados. Anóssov dava ordens imediatas para que o pobretão recebesse comida da casa do comandante, que ficava a não mais de duzentos passos dali.
Foi na cidade de K. que ele se tornou íntimo da família Tuganóvski, e apegou-se às crianças por laços tão fortes, que não conseguia passar uma noite sequer sem vê-las. Quando as meninas iam a algum lugar, ou o serviço retinha o próprio general, ele amargava saudades sinceras e vagava pela sua enorme casa como alma penada. Todos os verões tirava férias e passava um mês inteiro em Egórovsk, herdade dos Tuganóvski, distante cinqüenta verstas de K.
Ele transferiu para as crianças, especialmente para as meninas, toda a ternura oculta na alma e a sua necessidade de amor. Fora casado, mas havia tanto tempo, que até se esquecera disso. Ainda antes da guerra, a esposa fugira com um ator itinerante, encantada com a japona de veludo deste e com os punhos rendados da sua camisa. O general enviou-lhe dinheiro até a morte, mas não lhe permitia pôr os pés em casa, apesar das cenas de arrependimento e das cartas suplicantes. Não tiveram filhos.
v
Contrariamente às expectativas, o fim da tarde e o começo da noite foram tão calmos e amenos, que as velas do terraço e do refeitório ardiam com uma lingüeta imóvel. Durante o almoço, todos se divertiram muito com o príncipe Vassíli Lvóvitch, dotado de uma capacidade extraordinária e muito original de contar casos. Como base da história, ele tomava um episódio real, em que a personagem principal era um dos presentes ou um amigo comum, mas carregava tanto nas tintas e falava, ademais, com ar tão sério e em tom de conhecedor tão profundo do acontecimento, que os ouvintes estalavam de rir. Naquele dia, ele contou do malogrado casamento de Nikolai Nikoláevitch com uma senhora rica e bela. De verdadeiro, na sua história, havia tão-somente o fato de que o marido da dama lhe recusara o divórcio. Na boca do príncipe, porém, verdade e fantasia misturaram-se maravilhosamente. Ele fez o sério e um tanto afetado Nikolai correr pelas ruas, tendo sobre o corpo apenas as meias e os sapatos enfiados nos sovacos. Em uma esquina, um guarda parou o moço, e, somente depois de uma explicação longa e veemente, Nikolai conseguiu provar-lhe que era promotor adjunto e não um assaltante noturno. Segundo disse o príncipe, faltava um cisco para o casamento realizar-se, mas, no momento mais crucial, o temerário bando das falsas testemunhas, arregimentadas por Nikolai para o negócio, declarou greve de repente, exigindo maior paga pelo serviço. Por avareza (Nikolai era realmente um tanto sovina) e pelo fato de ser contra greves por princípio, Nikolai recusou-se terminantemente a pagar-lhes mais, invocando determinado artigo de lei, aprovado por parecer do Tribunal de Recursos. As falsas testemunhas, então, à pergunta do juiz: “Conhece alguém dos presentes algum fato que impeça a realização deste casamento?”, responderam em coro: “Sim, conhecemos. Todas as declarações, que fizemos sob juramento nesta corte, são mentiras, às quais nos obrigou o senhor promotor adjunto com ameaças e violências. Acerca do marido dessa dama, nós, como pessoas competentes, podemos asseverar que é o homem mais respeitável do mundo, casto como José e bondoso como um anjo”.
Puxando o fio da meada das histórias matrimoniais, o príncipe Vassíli não poupou nem Gustav Ivánovitch Friesse, marido de Anna. Contou que, no dia seguinte ao das bodas, Friesse voltou com a polícia à casa dos sogros, para exigir o despejo da recém-casada, já que esta não possuía passaporte próprio, e a sua instalação no domicílio do seu marido perante a Lei. Essa anedota continha, de verdadeiro, somente o fato de que, nos primeiros dias de casada, Anna não pôde arredar os pés da cama da mãe, que adoecera; Vera voltara já para casa, para o Sul, e o pobre Gustav Ivánovitch estava entregue à tristeza e ao desespero.
Riam-se todos. Anna também sorria, com os olhos semicerrados. Gustav Ivánovitch soltava gargalhadas altas e entusiásticas, e o seu rosto magro, de pele lisa e brilhante, com o cabelo louro e ralo todo alisado e os olhos fundos, parecia uma caveira, que, ao rir, mostrasse os dentes horríveis. Ele adorava ainda Anna como no primeiro dia de vida matrimonial, tentava sempre sentar-se ao pé dela e tocá-la imperceptivelmente, e cortejava-a com ar tão apaixonado e tão satisfeito, que suscitava lástima e embaraço nos outros.
Antes de levantar-se da mesa, Vera Nikoláevna contou maquinalmente os hóspedes. Treze. Era supersticiosa e pensou consigo: “Isso é mau! Como não me ocorreu contá-los antes? Vássia também tem culpa, não me disse nada por telefone”.
Quando na casa dos Chêin ou dos Friesse se reuniam os seus conhecidos mais chegados, após o almoço sempre jogavam pôquer, já que as duas irmãs tinham um gosto por jogos de azar que raiava com o absurdo. A esse respeito, até se haviam criado algumas regras em ambas as casas: todos os jogadores recebiam o mesmo número de fichas de osso de determinado valor, e jogava-se até uma pessoa ficar com todas elas; o jogo, então, acabava por aquele dia, por mais que alguém insistisse pela sua continuação. Era rigorosamente proibido tirar de novo as fichas da caixa. Essas severas leis foram ditadas pela prática, para o refreamento da princesa Vera e de Anna Nikoláevna, as quais não conheciam freios quando se entusiasmavam. As perdas totais raramente chegavam a cem, duzentos rublos.
Também daquela vez se jogou pôquer. Vera, que não jogava, ia para o terraço, onde estavam a pôr a mesa para o chá quando Dacha,[84] a criada de quarto, a chamou da copa com ar um tanto misterioso.
— Que foi, Dacha? — perguntou, contrariada, a princesa Vera, encaminhando-se para o seu pequeno gabinete pegado ao quarto. — Que cara estúpida é essa? E que tem aí nas mãos?
Dacha colocou sobre a mesa um objeto quadrado não muito grande, embrulhado com esmero em papel branco e atado cuidadosamente com uma fitinha cor-de-rosa.
— Eu juro, eu não sou culpada, Vossa Alteza — balbuciou ela, com as faces afogueadas de ofensa. — Ele veio e disse...
— Ele quem?
— De boné vermelho, Vossa Alteza, o mensageiro.
— E então?
— Veio à cozinha e colocou isso aí sobre a mesa. “Entregue, disse ele, à senhora. Mas só nas mãos dela.” Eu pergunto: de quem é? E ele responde: “Aí está tudo escrito”. Disse isso e saiu correndo.
— Tente alcançá-lo.
— Ninguém alcança, Vossa Alteza. Ele veio no meio do almoço, mas eu não me resolvi a incomodar-vos. Faz já uma meia hora.
— Está bem, pode ir.
Ela cortou a fita com uma tesoura e atirou-a ao cesto de lixo, junto com o papel, no qual se lia o seu endereço. Sob o embrulho estava um estojo de pelúcia encarnada para jóias, aparentemente recém-comprado. Vera levantou a tampa, forrada de seda azul-clara, e viu um bracelete oval de ouro, encravado em veludo negro, e, junto, um bilhete dobrado cuidadosamente em belo triângulo. Ela desdobrou rapidamente o papel. A letra pareceu-lhe familiar, mas, como uma verdadeira mulher, ela imediatamente pôs de lado a missiva para olhar o bracelete.
Ele era de ouro, baixo, muito grosso mas oco, e tinha a parte externa inteiramente coberta de granadas antigas e mal lapidadas, não grandes. Em contrabalanço, no meio do bracelete alteava-se uma pedrinha verde estranha e cinco belas granadas, cada uma do tamanho de um grão de ervilha. Quando Vera, com um movimento involuntário, virou o bracelete de determinado jeito diante da luz da lâmpada elétrica, então, nas pedras, bem abaixo da sua lisa superfície ovóide, ardeu de súbito um fogo magnífico, de um carmesim carregado.
“Como se fossem de sangue! ”, pensou ela, com uma inquietação inesperada.
Lembrou-se da carta. Ela leu as seguintes linhas, escritas em letra miúda, com uma caligrafia magnífica:
“Vossa Alteza,
A Excelentíssima Princesa
Vera Nikoláevna!
Felicitando-vos respeitosamente pelo luminoso e feliz dia do vosso anjo, ouso enviar-vos esta oferenda de criado fiel.”
“Ah, é aquele!”, pensou Vera, com desprazer. No entanto, leu a carta até ao fim...
“Eu jamais me permitiria oferecer-vos alguma coisa escolhida por mim: para tal, eu não teria nem direito, nem bom gosto, nem, reconheço, dinheiro. Aliás, suponho que no mundo inteiro não se possa encontrar tesouro digno de ornar-vos.
Este bracelete, porém, pertenceu à minha bisavó, e a última pessoa que o usou foi a minha falecida mãezinha. No meio, entre as pedras grandes, vereis uma verde. É uma variedade raríssima de granada, a de cor verde. Segundo uma tradição muito antiga, que se conserva na minha família, ela tem a propriedade de comunicar o dom de prever o futuro às mulheres que a usarem, e afugenta delas os pensamentos penosos; já aos homens, protege-os de morte violenta.
Todas as pedras foram transferidas com precisão de um velho bracelete de prata, e podeis ter certeza de que o que tendes em mãos não foi ainda usado por ninguém.
Podeis deitar fora imediatamente este brinquedo ridículo ou presenteá-lo a alguém, mas eu já me sentirei feliz pelo fato de que ele foi tocado pelas vossas mãos.
Eu imploro que não vos zangueis comigo. Enrubesço à lembrança da minha ousadia, sete anos atrás, quando éreis ainda senhorita, em escrever cartas estúpidas e insensatas e até esperar resposta a elas. Restam agora, em mim, apenas a adoração, a veneração eterna e uma fidelidade de escravo. Hoje, sou capaz somente de desejar-vos felicidade a cada minuto e alegrar-me, se vós sois felizes. Em pensamento, eu me prostro em reverência ao móvel, em que vos sentais, ao tapete, sobre o qual andais, às árvores, que tocais de passagem, à criada, a quem falais. Eu até não tenho invídia nem das pessoas nem das coisas.
Peço perdão mais uma vez por haver-vos incomodado com esta longa, desnecessária carta.
Vosso humilde servo até à morte e depois da morte.
G. S. J.”
“Devo mostrar isto a Vássia ou não? Se sim, então quando? Agora ou quando os outros se forem? Não, é melhor depois — agora, não somente este infeliz pareceria ridículo, como também eu.”
Assim ficou a princesa Vera a meditar, e não conseguia tirar os olhos das cinco chamas rubras de sangue que tremiam dentro das cinco granadas.
vi
A muito custo conseguiram que o coronel Ponomariov jogasse pôquer. Ele dizia que não conhecia o jogo, que, em geral, nem de brincadeira reconhecia entusiasmos ou arrebatamentos, que gostava apenas de uíste e que o conhecia relativamente bem. No entanto, cedeu aos pedidos e, por fim, concordou.
No início, tiveram de ensiná-lo e corrigi-lo, mas ele rapidamente assimilou as regras do pôquer, e eis que, nem bem meia hora depois, todas as fichas se amontoaram diante dele.
— Assim não tem graça! — disse Anna, com uma suscetibilidade cômica. — Não me deixaram nem sentir a emoção de jogar.
Três dos hóspedes — Spiéchnikov, o coronel e o vice-governador, um alemão atoleimado, decente e aborrecido — eram pessoas tais, que Vera positivamente não sabia como distraí-los e que fazer com eles. Ela organizou uma roda de uíste para eles, convidando Gustav Ivánovitch a completar o grupo. De longe, Anna, em sinal de gratidão, fechou os olhos, e Vera entendeu-a. Todos sabiam que, se não entretivessem Gustav Ivánovitch com as cartas, ele andaria a noite inteira à roda da esposa, como se atado a ela, com os dentes podres arreganhados na cara de caveira, e estragar-lhe-ia a disposição.
A partir de então, o serão correu lhano, sem constrangimento, animado. Vassiutchok cantava a meia-voz, sob o acompanhamento de Genny Reuter, cançonetas populares italianas e canções orientais de Rubinstein.[85] A sua vozinha era débil mas de um timbre agradável, além de dúctil e segura. Genny Reuter, música muito exigente, acompanhava-o sempre de bom grado. Diziam, aliás, que Vassiutchok a cortejava.
Em um canto, em um canapé, Anna sustinha leviana e ardorosa palestra com o hussardo. Vera abeirou-se e, com um sorriso, pôs-se à escuta.
— Não, não, por favor, não ria — dizia Anna alegre, a mirar o oficial com os olhos tártaros provocantes e semicerrados. — Acha que é muita coisa voar à frente de um esquadrão, com o risco de quebrar o pescoço, e saltar obstáculos. Mas dê cá só uma olhada ao nosso trabalho. Nós acabamos de fazer uma rifa. E pensa o senhor que aquilo foi fácil? Fffu! Uma gentarada, ar empestado de cigarro, uns varredores, cocheiros, e sei lá eu como se chamam... E todos vêm com queixas, com ressentimentos... E o dia inteiro, inteirinho, de pé. E teremos ainda um concerto em favor das trabalhadoras intelectuais pobres, e, depois, um baile...
— No qual, eu espero, não me negará uma mazurca — disse Bakhtínski e, com leve inclinação, fez estalar as esporas sob o assento.
— Agradeço-lhe... Mas o que mais, o que mais me dói é o nosso orfanato. Compreenda, o nosso abrigo para crianças pervertidas...
— Oh, compreendo perfeitamente. Isso deve ser uma coisa muito engraçada, não?
— Pare, como não se envergonha de rir de tais coisas? Mas compreende qual é a nossa desgraça? Nós queremos abrigar essas crianças infelizes, de almas cheias de vícios hereditários e maus exemplos, queremos agasalhá-las, dar-lhes carinho...
— Hum!...
— ... elevar a sua moral, despertar a consciência do dever nos seus corações... Compreende-me? Então, trazem-nos centenas, milhares de crianças todos os dias, mas não há nem uma única pervertida entre elas! Se pergunta alguém aos pais se a criança é pervertida, pois imagine o senhor, eles se ofendem! Está lá o abrigo aberto, iluminado, está tudo pronto, mas sem nenhum educando, sem nenhuma educanda! Nem que ofereçam um prêmio por criança pervertida entregue.
— Anna Nikoláevna — interrompeu-a o hussardo, de modo sério e insinuante. — Para que o prêmio? Leve-me de graça. Palavra de honra, não encontrará em lugar nenhum criança mais pervertida.
— Pare! Com o senhor é impossível conversar a sério — desatou ela em gargalhadas, recostando-se no canapé, com os olhos brilhantes.
O príncipe Vassíli Lvóvitch, sentado a uma mesa redonda grande, mostrava um álbum humorístico com desenhos do próprio punho à irmã, a Anóssov e ao cunhado. Os quatro riam-se com gosto, e isso, aos poucos, atraiu para ali todos os hóspedes não entretidos com as cartas.
O álbum servia como que de complemento, ilustração dos contos satíricos do príncipe Vassíli. Com a sua serenidade inabalável, mostrava, por exemplo, a “História das aventuras amorosas do bravo general Anóssov na Turquia, na Bulgária e outros países”; “A aventura de um petit-maître,[86] o príncipe Nikolai Bulat-Tuganóvski, em Monte Carlo”, e assim por diante.
— Agora vereis, senhores, uma breve biografia da nossa querida irmã Liudmila Ivánovna — disse ele, a lançar a ela um olhar rápido e trocista. — Primeira parte: Infância. “Crescia a criança, e deram-lhe o nome de Lima”.
Em uma folha do álbum, resplandecia a figura de uma menina, em desenho premeditadamente infantil, com o rosto em perfil, mas com os dois olhos, com traços quebrados, que saíam de sob a saia em lugar das pernas, as mãos abertas, com os dedos espaçados entre si.
— Ora, jamais alguém me chamou Lima — riu-se Liudmila Ivánovna.
— Segunda parte. O primeiro amor. Um cadete da cavalaria oferece, de joelhos, um poema da sua própria lavra à donzela. Há ali linhas de verdadeira beleza de pérola.
O teu lindo pé é expressão
De uma celestial paixão!
E eis a representação autêntica de um pé.
Em seguida, o cadete induz a inocente Lima a fugir da casa dos pais. Mostra-se a fuga. E, depois, a situação crítica: o pai enfurecido alcança os fugitivos. O noivo deita covardemente toda a culpa na doce Lima.
Gastaste lá com o pó-de-arroz um tempão,
E eis que a nós começou a terrível perseguição...
Resolver a situação, agora, é problema teu,
Que o amigo cá para o mato já se escafedeu.
Depois da história da donzela Lima, vinha outra história: “A princesa Vera e o telegrafista apaixonado”.
— Este comovente poema está ainda apenas ilustrado a caneta e a lápis de cor — informou em tom sério o príncipe Vassíli. — Ainda está a preparar-se o texto.
— Isso é coisa nova — observou Anóssov —; não vi ainda essa história.
— É o nosso último lançamento. Uma novidade do mercado editorial.
Vera tocou levemente o ombro do marido.
— Talvez seja melhor não falar disso — disse ela.
Mas Vassíli Lvóvitch ou não ouviu bem as suas palavras ou não lhes deu a necessária importância.
— O início data dos tempos pré-históricos. Em belo dia de maio, uma donzela chamada Vera recebe pelo correio uma carta, no cabeçalho da qual havia dois pombinhos de bicos unidos em terno beijo. Eis a carta e os pombos. A carta contém uma declaração ardente de amor, escrita com total desprezo a todas as regras da ortografia. Ela começa assim: “Bela Loura, tu, que... és o mar revolto da chama, que estua no meu peito. O teu olhar, qual serpente venenosa, cravou-se na minha alma torturada”, e assim por diante. No fim, a modesta assinatura: “Pelo gênero da arma, eu sou um pobre telegrafista, mas os meus sentimentos são dignos do milord George. Não ouso revelar o meu apelido completo — ele é indecente demais. Assino-me só com as iniciais: P. P. J. Peço que me respondas para a agência central dos correios, posta-restante”. Aqui, senhores, podeis ver o retrato do próprio telegrafista, muito bem desenhado a lápis de cor. O coração de Vera foi atravessado, eis o coração, eis a flecha. Mas, como donzela educada e de bons costumes, ela mostra a carta aos respeitáveis genitores, bem como ao seu amigo de infância e noivo, um belo rapaz de nome Vássia Chêin. Eis também a ilustração. Claro, com o tempo, os desenhos serão acompanhados por versos explicativos. Vássia Chêin, em soluços, devolve o anel de noivado a Vera. “Eu não ouso empecer a tua felicidade”, diz ele, “mas eu te imploro, não tomes nenhuma decisão apressada. Pensa um pouco, medita um bocado, põe-te à prova e a ele também. Minha criança, tu não conheces a vida e voas como uma mariposa para a luz brilhante. Mas eu, ai, eu conheço essa luz fria e hipócrita. Pois fica a saber que os telegrafistas são atraentes, mas traiçoeiros. Eles encontram inexplicável delícia em enganar com a sua beleza altiva e os seu falsos sentimentos a vítima inexperiente e zombar cruelmente dela!” Transcorre meio ano. No turbilhão da valsa da vida, Vera esquece o seu admirador e casa-se com o jovem e bonito Vássia, mas o telegrafista não a olvida. Eis que ele se disfarça de limpador de chaminés e, untando-se de fuligem, penetra no toucador da princesa Vera. Como vedes, há marcas de cinco dedos e de dois lábios em toda parte: nos tapetes, nos travesseiros, no papel da parede e até no assoalho. Depois, vestido de camponesa, ele se emprega na nossa cozinha como lavadora de pratos. No entanto, a excessiva benevolência do cozinheiro Luká obriga-o a fugir correndo da casa. Ei-lo, agora, em um hospício. Ei-lo, aqui, com o cabelo cortado à moda dos monges. Todos os dias, porém, ele manda religiosamente cartas apaixonadas a Vera. Nos pontos do papel, em que caem as suas lágrimas, a tinta está borrada. Finalmente, ele morre, mas, antes da morte, roga, em testamento, que enviem a Vera dois botões do uniforme de telegrafista e um frasco de perfume, cheio das suas lágrimas...
— Senhores, quem deseja chá? — perguntou Vera Nikoláevna.
vii
Extinguiram-se as labaredas do prolongado pôr-do-sol outonal. Apagou-se a última fímbria vermelha e estreita qual fresta, que vermelhejava bem no limite do horizonte, entre uma nuvem cor de chumbo e a terra. Não se viam mais a terra, as árvores, nem o céu. Apenas, acima da cabeça, grandes estrelas tremeluziam como círios em meio à noite negra, e o facho azul do farol elevava-se verticalmente qual fina coluna e como que se esbatia lá, na cúpula celeste, como um círculo líquido, enevoado e claro. Falenas batiam nas redomas das velas. Com a escuridão e o frescor, as flores estreladas do tabaco branco, no jardim da frente da casa, começaram a exalar um perfume mais forte.
Spiéchnikov, o vice-governador e o coronel Ponomariov partiram havia já muito, prometendo enviar de volta os cavalos da estação dos bondes para o comandante. Os hóspedes restantes estavam sentados no terraço. Apesar dos protestos do general Anóssov, as irmãs obrigaram-no a vestir o sobretudo e agasalharam-lhe as pernas com uma manta grossa. À sua frente havia uma garrafa de Pommard, o seu vinho tinto preferido, e junto dele estavam sentadas Vera e Anna, uma de cada lado. Elas cuidavam solicitamente dele, enchiam o seu fino copo do vinho pesado e espesso, riscavam-lhe fósforos, cortavam queijo, e assim por diante. O velho comandante tinha os olhos semicerrados de beatitude.
— Pois... Outono, outono, outono — disse o velho, a olhar para a luz da vela e a balançar pensativamente a cabeça. — Outono. É já hora de eu também partir. Ah, que pena! Acabam de chegar os diazinhos vermelhos. Seria bom poder viver sempre aqui, ao pé do mar, neste silêncio, sossegadamente...
— Moraria na nossa casa, vovô — disse Vera.
— Impossível, querida, impossível. O serviço no Exército... Terminou a minha licença. Mas seria bom, não é preciso dizer! Sente só como cheiram as rosas... Eu o sinto daqui. No calor do verão, nenhuma flor exalava perfume, somente a acácia branca... e, ainda assim, é um cheiro a rebuçados.
Vera tirou de um vasinho duas rosas pequenas, uma cor-de-rosa e outra carmim, e prendeu-as no galão do sobretudo do general.
— Obrigado, Viérotchka. — Anóssov inclinou a cabeça para a lapela, cheirou as flores, e um sorriso embelezou-lhe de súbito o rosto.
— Certa vez, eu me lembro, chegamos nós a Bucareste e nos aboletamos em várias casas. Lá ia eu um dia pela rua. De repente, senti um perfume forte de rosas; parei e vi que havia um frasco de óleo de rosas entre dois soldados. Já eles o haviam passado nas botas e nos ferrolhos das armas. “Que é isso aí?”, perguntei-lhes. “Um óleo qualquer, Vossa Alta Nobreza. Pusemos no mingau, mas não serve, de tanto que pica a boca, mas cheira bem.” Eu lhes dei um rublo, e eles mo cederam com prazer. Não restava mais do que a metade do óleo, mas, a julgar pelo seu alto preço, havia ainda ali umas vinte moedas de ouro dele, no mínimo. Os soldados, satisfeitos, acrescentaram: “Há também uma ervilha turca, Vossa Alta Nobreza, nós cansamos de cozinhar, mas a amaldiçoada não amolece”. Era café; eu lhes disse: “Isso só presta para os turcos, para soldados, não”. Felizmente, eles não abusaram do ópio. Em vários lugares, eu vi pastilhas dele calcadas na lama.
— Vovô, seja franco — pediu Anna —, diga: sentiu medo algum dia na guerra? Sentiu?
— Como é estranho isso, Ánnotchka: sentir medo, não sentir medo. Claro, senti. Por favor, não acredites em quem disser que não sentiu medo na guerra e que o silvo das balas era doce música para ele. Esse é um doido ou um gabola. Todos igualmente sentem medo. Só que uns esmorecem de medo, outros têm mão firme sobre si. E vês: o medo continua o mesmo, mas a capacidade de controlá-lo vai aumentando com a prática; daí vêm os heróis e os bravos. Pois é. Uma vez, eu quase morri de medo.
— Conte, vovô — pediram as irmãs a uma só voz.
Elas escutavam ainda as histórias de Anóssov com o mesmo entusiasmo da infância. Anna, involuntariamente, até de modo inteiramente infantil, abriu os cotovelos sobre a mesa e apoiou o queixo nas palmas das mãos unidas. Havia um encanto aconchegante no relato lento e ingênuo do velho. As próprias construções das frases, com que transmitia as suas reminiscências militares, adquiriam involuntariamente, nele, um caráter estranho, canhestro e um tanto livresco. Exatamente como se ele seguisse um estereótipo antigo e gracioso.
— A história é muito curta — disse Anóssov. — Foi no Chipka, num inverno, já depois de eu haver recebido o ferimento na cabeça. Vivíamos quatro pessoas em uma zemlianka.[87] Foi aí que se deu comigo um caso terrível. Certa vez, de manhã, quando me levantei da cama, pareceu-me que eu era não Iákov, mas Nikolai, e de modo nenhum eu conseguia convencer-me do contrário. Ao notar que aquilo era o início de um obnubilamento da mente, eu me pus a gritar, a pedir água, molhei a cabeça, e o meu juízo retornou.
— Eu imagino, Iákov Mikháilovitch, quantas vitórias experimentou lá sobre as mulheres — disse a pianista Genny Reuter. — Na mocidade, o senhor deve ter sido muito bonito.
— Oh, o nosso vovô é belo até hoje! — exclamou Anna.
— Belo, belo, não o fui — disse Anóssov, a sorrir placidamente. — Mas as mulheres também não torciam o nariz de aversão a mim. Pois, nessa mesma Bucareste, aconteceu-me um caso comovente. Quando nós entramos nela, os habitantes receberam-nos na praça central com uma salva de tiros de canhão, que estilhaçou muitas vidraças; no entanto, as das janelas, em cujo peitoril foram colocados copos com água, ficaram intactas. E como eu soube disso? Eis lá. Ao chegar à casa a mim designada, vi uma gaiolinha baixa no peitoril de uma janela; na tal gaiola havia uma garrafa enorme, de cristal, com água translúcida, na qual nadavam peixinhos dourados, e, entre eles, via-se um canário no poleiro. Um canário na água! Aquilo me deixou estupefato. Depois, quando olhei bem para ele, vi que o largo fundo da garrafa era bem levantado, em forma de bolha, de modo que o pássaro podia voar para ali e ficar no poleiro. Depois disso, tomei consciência de que eu era muito pouco perspicaz. Entro eu na casa e vejo uma bulgarazinha linda. Apresentei-lhe o recibo de alojamento e perguntei-lhe logo, a propósito, por que o canhoneio não lhe danificara as vidraças, e ela me explicou que fora por causa da água. Explicou-me também aquilo do canário: como eu era parvo!... E então, no meio da conversa, os nossos olhares se encontraram, correu entre nós uma faísca semelhante à elétrica, e eu senti que já estava apaixonado, de modo ardente e irrevocável.
O velho calou-se e sorveu delicadamente o vinho escuro.
— E confessou-se a ela, depois? — perguntou a pianista.
— Hum... sim, certamente... Mas só que sem palavras. Foi assim...
— Vovô, não nos fará corar, eu espero — observou Anna, com um sorriso malicioso.
— Não, não, o nosso romance foi o mais decente do mundo. Para o vosso conhecimento, em todas as cidades em que nos alojávamos, os moradores viviam segundo as suas tradições, com os prós e os contras, mas, em Bucareste, eles se entenderam conosco tão depressa, que quando eu, certa vez, comecei a tocar violino, as moças vestiram roupa de festa e vieram dançar, e assim todos os dias. Uma vez, à hora das danças, à luz da lua, eu fui ao saguão, onde se escondera a minha bulgarazinha. Ao ver-me, ela fingiu que estava a escolher pétalas secas de rosa, das quais, devo dizer, a gente de lá junta sacos inteiros. Mas eu a abracei, apertei ao peito e beijei várias vezes. A partir desse dia, quando aparecia a lua no céu, com as estrelas, eu corria para a minha amada e, na sua companhia, esquecia por algum tempo todos os problemas. Quando o regimento recebeu ordem de partir dali, nós dois juramos amor eterno e nos despedimos para sempre.
— Isso é tudo? — perguntou Liudmila Ivánovna, decepcionada.
— Que mais esperava? — retorquiu-lhe o comandante.
— Não, Iákov Mikháilovitch, desculpe-me, isso não é amor, mas simplesmente uma aventura de oficial de bivaque.
— Não sei, minha querida, com a breca, não sei se aquilo foi amor ou outra coisa...
— Não... diga... será que realmente não provou um amor de verdade? Saiba, um amor, que... bem, que... em suma... haja sido santo, puro, eterno... um amor celestial... Será que não amou assim?
— Palavra, eu não saberia responder-lhe — disse com hesitação o velho, levantando-se da poltrona. — Provavelmente, não amei. No início, nunca sobrava tempo: a juventude, as patuscadas, as cartas, a guerra... Parecia que a vida, a juventude e a saúde nunca teriam fim. E, quando olhei para trás, vi que eu já era uma ruína... Bem, agora, Viérotchka, não me retenhas mais. Eu me despeço... Hussardo — dirigiu-se ele a Bakhtínski —, a noite está quente, vamos ao encontro da nossa carruagem.
— Eu também irei convosco, vovô — disse Vera.
— Eu também — ajuntou Anna.
Antes de afastar-se, Vera aproximou-se do marido e disse-lhe baixinho:
— Vai olhar... sobre a mesa do quarto, em uma gavetinha, há um estojo e uma carta dentro dele. Lê-a.
viii
Anna e Bakhtínski seguiam à frente, e, a uns vinte passos atrás deles, o comandante e Vera, de braços dados. A noite estava tão escura, que nos primeiros minutos, até os olhos se acostumarem ao seu negrume depois das luzes da casa, era preciso tatear o chão com os pés para encontrar o caminho. Anóssov, que, não obstante a idade, conservava uma agudeza de vista admirável, tinha de ajudar a sua acompanhante. Aqui e acolá, ele acariciava com a grande mão fria a de Vera, pousada levemente na dobra da manga do seu sobretudo.
— Engraçada essa Liudmila Lvóvna — disse de súbito o general, como se continuasse em voz alta os seus pensamentos. — Quantas vezes na vida eu já observei o seguinte: quando uma dama chega perto dos cinqüenta anos, e principalmente se ela é viúva ou ficou solteirona, então não resiste à tentação de intrometer-se no namoro dos outros. Ou espiona, alegra-se com a desgraça alheia e faz mexericos, ou mete-se a ajudar a realização do sonho alheio de felicidade, ou faz a ladainha do amor sublime. Mas eu quero dizer que as pessoas do nosso tempo desaprenderam de amar. Não vejo nenhum amor de verdade. Nem na minha época o vi!
— Mas como é isso, vovô? — retorquiu-lhe brandamente Vera, apertando-lhe de leve o braço. — Por que falar com tanta severidade? O senhor próprio foi casado. Quer dizer, amou alguém, um dia.
— Isso não quer dizer absolutamente nada, querida Viérotchka. Sabes por que me casei? Lá estou eu e vejo uma mocinha bonitinha, sentada ao pé de mim. Quando respira, o busto arfa sob a sua blusinha. Baixa as pestanas, compridas-compridas, e de repente fica toda corada. E a pele das faces é suave, o pescocinho, tão branco, inocente, e as mãozinhas, maciazinhas, quentinhas. Eh, diabo! Depois, ficam o pai e a mãe à roda, para lá e para cá, colam as orelhas às portas, deitam em ti aqueles olhares tristes, caninos, devotados. Quando sais, ouves uns beijinhos rápidos atrás da porta... Ao chá, toca-te um pezinho sob a mesa, como se fosse sem querer... Aí está pronta a coisa. “Caro Nikita Antónitch,[88] eu vim pedir a mão da vossa filha. Podeis crer em mim, ela é um anjo...” O pai tem já os olhos molhados e vem para cima de ti com beijos... “Querido! Eu já adivinhava havia muito tempo... Bem, que Deus vos... Só me toma bem cuidado desse tesouro...” Aí, três meses depois, o anjo e tesouro anda de roupão roto, calça sapatos sem meias, os cabelinhos estão ralinhos, despenteados, metidos em papelotes, vive às turras com os ordenanças como se fosse uma cozinheira, derrenga-se para o lado dos oficiais jovens, cicia, dá gritinhos, revira os olhos. Em presença de outras pessoas, por alguma razão, inventa de chamar “Jacques” ao marido. Sabes, assim, de um jeito fanhoso, arrastado, langoroso: “Ja-a-a-acques”. Isso mais o esbanjamento de dinheiro, os fingimentos, o desmazelo, a cupidez. E os olhos sempre falsos-falsos... Agora, tudo isso passou, acabou, está enterrado. Eu até sou muito grato ao tal atorzinho... Não tínhamos filhos, ainda bem...
— Perdoou-os, vovô?
— Perdoar não é bem a palavra, Viérotchka. No início, fiquei como um louco. Se os houvesse visto, haveria matado a ambos. Mas, depois, as coisas foram passando, passando, e não ficou nada, além do desprezo. E foi bom. Evitou-se um derramamento de sangue desnecessário. E, para além disso, escapei à sorte da maioria dos maridos. Que haveria sido de mim, se não houvesse ocorrido aquela infâmia? Um camelo de carga, um conivente ignominioso, um acobertador, uma vaca leiteira, um biombo, um objeto doméstico necessário... Não! Foi melhor assim, Viérotchka.
— Não, não, vovô, no senhor fala ainda a mágoa antiga, apesar de tudo... Estende a sua experiência infeliz à humanidade inteira. Considere, agora, Vássia e a mim. Será que se pode chamar infeliz o nosso casamento?
Anóssov permaneceu um tempo um tanto longo em silêncio. Depois, respondeu a contragosto, a arrastar a voz:
— Está bem, que seja... digamos, uma exceção... Mas, agora, na maioria dos casos, por que se casam as pessoas? Uma mulher, por exemplo. Tem vergonha de ficar solteirona, principalmente quando muitas das amigas, se não todas, puseram já o véu de noiva. É penoso ser uma boca a mais na família. O desejo de ser dona de algo, comandar uma casa, de ser uma dama, independente... Para além disso, a necessidade, até física, de ser mãe, e para começar a fazer o seu próprio ninho. Já lá os homens, por sua vez, têm outros motivos. Em primeiro lugar, a fadiga da vida de solteiro, da desordem da casa, dos almoços de taberna, da sujeira, das pontas de cigarro, das peças de roupa branca rasgadas e desirmanadas, das dívidas, dos camaradas sem-cerimoniosos, mais isso e aquilo. Em segundo, sentes que viver em família é mais vantajoso, mais saudável e mais econômico. Em terceiro, pensas assim: bem, virão os filhinhos; eu cá morrerei um dia, mas uma parte minha ficará no mundo... certa ilusão de imortalidade. Em quarto, a tentação da virgindade, como no meu caso. Ademais, há às vezes até pensamentos no dote. Mas onde é que está o amor? O amor desinteressado, abnegado, que não espera recompensa? O amor de que se disse: “tão forte como a morte”? Compreendes-me? O amor, para o qual realizar qualquer façanha, entregar a vida, ir para o martírio, não é absolutamente trabalho, mas só alegria. Espera, espera, Viérotchka, outra vez queres falar-me do teu Vássia? Palavra, eu gosto muito dele. É um moço excelente. Lá se sabe, talvez o futuro até mostre ainda o seu amor à luz de uma grande beleza. Mas tenta compreender o amor de que te falo. O amor deve ser uma tragédia. O mistério maior do mundo! Não deve ter nada que ver com comodidades mundanas, cálculos e compromissos.
— Viu algum dia um amor desses, vovô? — perguntou Vera em voz baixa.
— Não — respondeu o velho, em tom convicto. — Eu, é bem verdade, conheço dois casos parecidos. Mas um foi ditado pela estupidez; o outro... pois sim... foi de causar pena. Se quiseres, contarei... Não tomará muito tempo.
— Peço-lhe, vovô.
— Ora, pois. Em um regimento da nossa divisão, apenas não no nosso, havia a esposa do nosso comandante. O focinho dela, digo-te eu, Vera, era medonho. Ossuda, ruiva, comprida, magricela, bocuda... O reboco caía dela como de qualquer casa velha de Moscou. Mas, compreende, era a Madalena do regimento: ardor de temperamento, despotismo, desprezo às pessoas, paixão pela variedade. Por cima, viciada em morfina. Eis, então, que no outono nos enviam um alferes, um verdadeiro pardal ainda de biquinho amarelo, da última fornada da Academia. Um mês depois, a égua velha tinha-o já sob o seu poder. Ele era pajem, era servo, era escravo, era o seu eterno acompanhante nas danças, carregava-lhe o leque e o lenço, saía ao frio de rachar, sem agasalho, só de uniforme, para chamar a carruagem dela. É uma coisa terrível quando um menino fresco e puro depõe o seu primeiro amor aos pés de uma libertina velha, experiente e despótica. Se ele escapa ileso, ainda assim podes considerá-lo destruído no futuro. É uma marca que se imprime para o resto da vida. Pelo beirar do Natal, ela se fartou dele. Ela voltou a uma das suas paixões antigas, resistentes a toda prova. Mas ele não conseguiu ficar sem ela. Seguia-a como um fantasma. Esgotou-se completamente, emagreceu, enegreceu no fogo do sofrimento. Em estilo elevado: “a morte cobria-lhe já a fronte”. Tinha dela um ciúme terrível. Dizia-se que passava noites inteiras sob a sua janela. Eis que, então, na primavera, organizou-se um passeio ao campo. Eu conhecia pessoalmente a ambos, mas não presenciei tal acontecimento. Como sempre, nesses casos, bebeu-se muito. Voltaram tarde, a pé, pelo caminho de ferro. Avistaram, então, um trem de carga, que lhes ia ao encontro, devagar, em uma subida acentuada. Aqui e acolá, apitava. Quando as luzes da locomotiva passaram por eles, ela murmurou de súbito ao ouvido do alferes: “Diz o tempo todo que me ama. Mas não se jogaria sob o comboio, se eu lho mandasse”. E ele, sem responder palavra, vivamente, correu a fazê-lo. Ele calculou bem, dizem lá, para cair entre as rodas dianteiras e as de trás de um vagão: assim, seria cortado rigorosamente em dois, pelo meio. Mas um idiota qualquer achou de tentar segurá-lo e afastá-lo. Mas não o conseguiu, tal a forma como o alferes se aferrara ao carril. De modo que a roda lhe cortou ambas as mãos.
— Oh, que horror! — exclamou Vera.
— Ele teve de pedir baixa. Os camaradas juntaram-lhe um dinheirinho para a partida. Permanecer na cidade seria inconveniente para ele: ficaria como uma exprobração viva diante dos olhos tanto dela como do regimento. Foi assim que se perdeu o rapaz... da maneira mais infame... tornou-se mendigo... morreu de frio no porto, em Petersburgo. O outro caso foi inteiramente lastimável. A mulher era igual à primeira, só que jovem e bela. Comportava-se muito, muito mal. Olha que fazíamos vista grossa aos seus romancinhos domésticos, mas aquilo escandalizava até a nós. E o marido, nada. Sabia de tudo, via tudo, e não dizia nada. Os amigos faziam-lhe alusões indiretas, mas ele se esquivava logo do assunto com um gesto das mãos. “Deixai, deixai... Não é problema meu, não é problema meu... Eu quero apenas que a Liénotchka[89] seja feliz!...” Tal era o imbecil. No final das contas, ela se enleou para valer com o tenente Vichniákov, da companhia deles. Assim viviam os três em um casamento com dois maridos, como se essa fosse a forma mais legítima de união conjugal. Foi então que enviaram o nosso regimento para a guerra. As nossas damas foram à cerimônia de despedida, e também a tal mulher, e, palavra, até causava repugnância olhar para ela, que nem para constar lançava uma olhadela ao marido; não, pendurara-se no pescoço do tenente, como o Diabo num galho de salgueiro seco, e não o largava. Na despedida, quando todos embarcáramos já nos vagões e o trem se pôs em marcha, aí então ela, a desavergonhada, gritou ao marido: “Lembra-te, cuida bem do Volódia![90] Se lhe acontecer alguma coisa, eu sumirei de casa e nunca mais voltarei. E levarei as crianças comigo”. E pensas tu que esse capitão era um trapo qualquer? Um palerma? Uma alma de libélula? Nem de longe. Era um soldado destemido. Ao pé de Zeliónye Góri, ele levou seis vezes a sua companhia em ataque ao reduto turco, e dos seus duzentos homens restaram somente catorze. Duas vezes ferido, recusou-se a ir para a enfermaria. Eis como ele era. Os soldados adoravam-no como a um deus. Mas ela mandara... A sua Liénotchka mandara! E ele cuidava do covarde e mandrião Vichniákov, um completo imprestável, um zangão sem mel, como uma ama-seca, uma mãe. Nos pernoites, sob a chuva, sobre a lama, ele o embrulhava no seu capote. Ia no lugar dele aos trabalhos de sapa, ao passo que o outro ficava deitado na zemlianka ou jogava cartas. Também fazia a ronda noturna por ele. E isso, observa bem, Verúnia, em uma época em que os bachibuzukes[91] ceifavam os destacamentos dos nossos postos de guarda com a mesma facilidade com que as mulheres de Iaroslavl[92] cortam repolhos na horta. Palavra, é até pecado dizer uma coisa como esta, mas todos nós exultamos ao saber que Vichniákov morrera de tifo no hospital...
— Mas... e mulheres que amassem de verdade, vovô, ocorreu-lhe encontrar?
— Oh, certamente, Viérotchka. Eu até direi mais: eu estou convicto de que quase todas as mulheres são capazes do mais sublime heroísmo no amor. Vê só: ela beija, abraça, entrega-se — e já é mãe. Para ela, se ama, o amor encerra todo o sentido da vida, o universo inteiro! Mas ela não é absolutamente culpada de o amor, nas pessoas, haver adotado formas tão torpes e descido ao ponto de tornar-se uma comodidade da vida, uma pequena distração. Os culpados são os homens, que aos vinte anos estão já fartos de tudo, com corpos de frango e almas de coelho, incapazes de desejos fortes, de atos heróicos, de ternura e adoração diante do amor. Dizem que, antigamente, acontecia tudo isso. E, até se não foi assim, então, será que isso não foi o sonho e o anelo das melhores mentes e corações da Humanidade — poetas, romancistas, músicos, pintores? Faz alguns dias, eu li a história de Marie Lescaut e do Cavalheiro de Grieux...[93] Acredita em mim, Vera, desfiz-me em lágrimas... A ver, minha querida, dize-me com toda a sinceridade, será que toda mulher, no fundo do coração, não sonha com um amor desses, único, que perdoa tudo, disposto a tudo, recatado e abnegado?
— Oh, certamente, certamente, vovô...
— E uma vez que não há tal amor, as mulheres vingam-se. Talvez mais uns trinta anos... eu não o verei, mas tu talvez o veja, Viérotchka. Guarda bem as minhas palavras... daqui a uns trinta anos, as mulheres ocuparão um poder inaudito no mundo. Elas se vestirão como os ídolos indianos. Elas espezinharão a nós, homens, como escravos desprezíveis e aduladores. Os seus caprichos extravagantes tornar-se-ão para nós leis pungentes. E tudo porque gerações inteiras nossas não soubemos reverenciar o amor e venerá-lo. Será uma vingança delas. Conheces a lei: a cada ação corresponde uma reação de força igual.
Depois de calar por um instante, ele perguntou de súbito:
— Dize-me, Viérotchka, se não te for penoso, que história é essa do telegrafista, de quem falou o príncipe Vassíli? Que há nela de verdade e de fantasia?
— Pode lá isso ter interesse para o senhor, vovô?
— Como quiseres, como quiseres, Vera. Se por alguma razão te é desagradável...
— Não, em absoluto. De bom grado.
Ela contou ao comandante, em todos os pormenores, de um louco que começara a persegui-la com o seu amor ainda dois anos antes de ela casar-se.
Ela não o vira nem uma única vez e não sabia o seu nome. Ele apenas lhe escrevia e assinava-se G. S. J. Certa feita, ele deixou escapar que ocupava um cargo modesto no serviço público; sobre telégrafo, nunca dissera palavra. Ele devia segui-la permanentemente, já que, nas cartas, indicava com grande exatidão aonde ela fora para esta ou aquela festa, em companhia de quem e como estava vestida. No início, as cartas eram de caráter vulgar e estranhamente ardente, embora de todo castas. Mas Vera, uma vez (“A propósito, não dê com a língua nos dentes, vovô, sobre isto aos nossos: nenhum deles sabe nada”), pediu-lhe, em uma missiva, que não tornasse a importuná-la com as expansões do seu sentimento. Desde então, ele parou de falar de amor e passou a escrever apenas de longe em longe: na Páscoa, no Ano-Novo, e no dia da santa onomástica dela, santa Vera. A princesa Vera contou também da encomenda postal chegada pouco antes do almoço e transmitiu a Anóssov quase textualmente o conteúdo da estranha carta do seu misterioso adorador...
— Po-ois — disse o general, por fim. — Talvez seja apenas um rapaz louco, um maníaco, mas, quem sabe? Ao caminho, Viérotchka, pode ser que te haja saído precisamente o amor com que sonham as mulheres e do qual não são já capazes os homens. Espera. Vês aquelas luzes lá à frente? Deve ser a minha carruagem.
Nesse mesmo instante, atrás deles ouviram-se os estampidos retumbantes de um automóvel, e a estrada, escavada pelas rodas de veículos, resplandeceu com a luz branca de acetileno. Era Gustav Ivánovitch.
— Ánnotchka, eu peguei as tuas coisas. Sobe — disse ele. — Vossa Excelência, não permitireis que vos leve?
— Não, obrigado, meu querido — respondeu-lhe o general. — Eu não gosto dessas máquinas. Apenas tremem e fedem, e prazer nenhum. Bem, adeus, Viérotchka. Virei cá, agora, com freqüência — disse ele, beijando-lhe a fronte e as mãos.
Todos se despediram. Friesse levou Vera Nikoláevna até aos portões da datcha e, após fazer uma volta rápida, desapareceu na escuridão com o seu automóvel barulhento e resfolegante.
ix
Foi com um sentimento desagradável que a princesa Vera subiu para o terraço e entrou em casa. Ela ouvira ainda de longe a voz exaltada do irmão Nikolai e vira a sua figura alta e magra, que ia rápida de um canto a outro. Vassíli Lvóvitch estava sentado ao pé da mesa de jogo e, com a grande cabeça de cabelos louros e bem cortados bastante inclinada, fazia desenhos com giz sobre o feltro verde.
— Havia muito tempo que eu insistia! — dizia Nikolai em tom irritado e fazia com a mão direita o gesto de quem atirava ao chão um peso invisível. — Havia muito tempo que eu insistia para que parassem com essas cartas idiotas. Não se casara Vera ainda contigo, quando eu passei a acreditar que tu e Vera vos divertíeis com elas, como criancinhas, vendo nelas apenas uma coisa ridícula... Eis, a propósito, a própria Vera... Nós dois, Viérotchka, estamos a falar desse teu louco, o teu Pe-Pe-Jota. Considero essa correspondência atrevida e torpe.
— Não houve em absoluto correspondência — interrompeu-o friamente Chêin. — O único que escreveu foi ele...
Vera corou a essas palavras e sentou-se em um divã, à sombra de uma latânia grande.
— Peço desculpas pela expressão — disse Nikolai Nikoláevitch, e atirou ao chão o pesado objeto invisível, como se o houvesse arrancado do peito.
— E eu não entendo por que tu lhe chamas meu — disse Vera, alegrada pelo apoio do marido. — Ele é tão meu quanto teu...
— Muito bem, peço desculpas mais uma vez. Numa palavra, eu quero tão-somente dizer que é necessário pôr cobro às tolices dele. O caso, para mim, passa já dos limites em que se pode rir e fazer desenhinhos engraçados... Crede, se há uma coisa aqui com que eu me inquieto e preocupo, pois ela é apenas o bom nome de Vera e o teu, Vassíli Lvóvitch.
— Bem, lá me parece que exageras, Kólia — objetou-lhe Chêin.
— Pode ser, pode ser... Mas vos arriscais a ficar em uma situação ridícula.
— Não vejo como — disse o príncipe.
— Imagina, então, que este bracelete idiota... — Nikolai levantou da mesa o estojo vermelho e, ato contínuo, atirou-o ao mesmo lugar, com desprezo — ... que esta coisinha monstruosa fique conosco ou que nós a deitemos fora, ou que a demos de presente à Dacha. Então, primeiro, o Pe-Pe-Jota poderá gabar-se de que a princesa Vera Nikoláevna Chêina aceita os seus presentes, e, segundo, a primeira vez estimula-lo-á a novos feitos. Amanhã, ele enviará um anel com brilhantes, depois de amanhã, um colar de pérolas, posteriormente, vamos lá a saber, estará sentado no banco dos réus por um desfalque ou uma fraude, e o príncipe Chêin e esposa serão convocados na qualidade de testemunhas... Adorável situação!
— Não, não, o bracelete deve ser mandado de volta, sem falta! — exclamou Vassíli Lvóvitch.
— Eu também acho — concordou Vera —, e o quanto antes. Mas... como fazê-lo? Nós não lhe sabemos o nome, o apelido e a morada.
— Oh, isso será coisa simples! — objetou Nikolai Nikoláevitch, com desdém. — Nós conhecemos as iniciais desse Pe-Pe-Jota... Como é, Vera?
— Ge-Esse-Jota.
— Pois ótimo. Além disso, sabemos também que ele serve em algum lugar. Isso basta inteiramente. Amanhã ainda eu pegarei o indicador da cidade e encontrarei o funcionário ou o servidor público com tais iniciais. Se por alguma razão eu não o encontrar, então simplesmente chamarei um detetive da polícia e lhe ordenarei que o encontre. Em caso de dificuldade, terei em mãos este papel com a sua letra. Numa palavra, amanhã, por volta das duas horas, eu saberei com exatidão o nome e o sobrenome desse maroto, e até as horas a que ele costuma estar em casa. E, uma vez que eu souber disso, amanhã ainda nós não somente lhe devolveremos o seu tesouro, como também tomaremos medidas para que ele nunca mais nos lembre da sua existência.
— Que pretendes fazer? — perguntou o príncipe Vassíli.
— Que pretendo fazer? Eu irei ao governador e lhe pedirei...
— Não, a qualquer um, menos ao governador. Tu bem sabes quais são as nossas relações... Aqui, há o perigo direto de ficarmos em situação ridícula.
— Não faz diferença. Irei ao coronel da polícia. Nós freqüentamos o mesmo clube. Ele que chame esse Romeu e o ameace com o dedo sob o nariz. Sabes como ele faz? Encosta o dedo no nariz do sujeito e não mexe a mão, mexe só o dedo, como um ponteiro, e grita: “Isso, meu senhor, eu não tolerare-e-ei!”.
— Fu! Meter a polícia na história! — Vera fez uma careta.
— Tens razão, Vera — concordou o príncipe. — É melhor não pôr nenhum estranho no caso. Começarão boatos, mexericos. Nós todos conhecemos bem a nossa cidade. Todos parecem viver em frascos de vidro... Melhor que eu próprio vá a esse... jovem..., embora ele talvez até tenha sessenta anos, quem sabe?... Entregar-lhe-ei o bracelete e pregar-lhe-ei um sermão bem bom, severo.
— Então, eu irei contigo — interrompeu-o vivamente Nikolai Nikoláevitch. — Tu és brando demais. Deixa, eu conversarei com ele... Mas agora, meus amigos — ele tirou o relógio de bolso e olhou para ele —, peço licença para ir para o meu quarto. Mal me agüento nas pernas, e tenho ainda de examinar dois processos.
— Não sei por que, mas fiquei com pena desse infeliz — disse Vera, com hesitação.
— Não há por que lhe ter pena! — retrucou-lhe asperamente Nikolai, voltando-se da porta. — Se esse desatino do bracelete e da carta houvesse partido de uma pessoa do nosso círculo, então o príncipe Vassíli o desafiaria a duelo. Se ele não o fizesse, então o faria eu. No tempo antigo, eu simplesmente mandaria que o levassem a uma estrebaria e o açoitassem. Amanhã, Vassíli Lvóvitch, espera-me no teu gabinete, eu te comunicarei tudo por telefone.
x
A escada, cheia de cuspidas, cheirava a ratos, gatos, querosene e a lavagem de roupa. Antes do sexto andar, o príncipe Vassíli parou.
— Espera um pouco — disse ele ao cunhado. — Deixa-me retomar o fôlego. Ah, Kólia, nós não devíamos fazer isto...
Eles subiram mais dois lanços. Estava tão escuro na plataforma, que Nikolai Nikoláevitch teve duas vezes de riscar um fósforo para enxergar os números dos apartamentos.
Ele tocou a campainha. A porta foi aberta por uma mulher gorda, de cabelos brancos e olhos cinzentos, que, por causa de alguma doença, inclinava um pouco o tórax para a frente.
— Encontra-se em casa o senhor Jeltkov?
Os olhos da mulher corriam inquietos dos olhos de um para os do outro. A aparência decente de ambos deve tê-la tranqüilizado.
— Está, entrem — disse ela, abrindo a porta. — Primeira porta à esquerda.
Bulat-Tuganóvski deu três pancadinhas breves e resolutas. Ouviu-se um rumor dentro. Ele bateu novamente.
— Entre — disse uma voz débil.
O aposento era muito baixo, mas muito largo e comprido, da forma quase de um quadrado. Duas janelas redondas, bem parecidas a vigias de navio, iluminavam-na precariamente. Todo o aposento, aliás, semelhava a sala de refeições e de estar de um barco da marinha mercante. Ao longo de uma parede, havia uma cama estreitinha; ao comprido de outra, um divã muito grande e largo, coberto por um tapete turcomano bonito e muito coçado e, no meio, uma mesa recoberta por uma toalha ucraniana colorida.
No início, não se podia ver o rosto do anfitrião: ele estava de costas para a luz e esfregava as mãos, desconcertado. Era alto, um tanto magro, de cabelos longos, vaporosos e macios.
— Se não me equivoco, é o senhor Jeltkov? — perguntou Nikolai Nikoláevitch com altivez.
— Jeltkov. Muito prazer. Permitam que me apresente.
Ele deu dois passos na direção de Tuganóvski, com a mão estendida. Mas, nesse mesmo instante, como se não houvesse notado a sua saudação, Nikolai Nikoláevitch deu-lhe as costas, virando-se para Chêin.
— Bem te dizia eu que não nos enganáramos.
Os dedos magros de Jeltkov reviravam nervosamente os botões do casaquinho, abotoando-o e desabotoando-o. Por fim, articulou com dificuldade, a indicar-lhes o divã e a fazer-lhes uma mesura desajeitada:
— Peço-lhes encarecidamente. Sentem-se.
Agora, ele podia ser visto bem: muito pálido, rosto de traços suaves, femininos, olhos azuis e queixo infantil, de pessoa obstinada, com uma covinha no meio; devia ter trinta, trinta e cinco anos.
— Eu lhe agradeço — disse o príncipe Chêin com simplicidade, ao mesmo tempo em que o examinava atentamente.
— Merci[94] — respondeu-lhe brevemente Nikolai Nikoláevitch. E ambos continuaram de pé. — Nós viemos só por um instante. Este é o príncipe Vassíli Chêin, o decano da nobreza da província. O meu sobrenome é Mirza-Bulat-Tuganóvski. Sou promotor adjunto. O assunto, que temos a honra de tratar com o senhor, refere-se igualmente ao príncipe e a mim, ou, mais exatamente, à esposa do príncipe, minha irmã.
Jeltkov, completamente perturbado, deixou-se de súbito cair no divã e balbuciou de lábios hirtos: “Peço-lhes, senhores, que se sentem”. Porém deve ter-se lembrado de que já o sugerira antes, e inutilmente, pois levantou-se de ímpeto, correu para a janela, a revolver os cabelos, e voltou ao antigo lugar. E, novamente, agitaram-se as suas mãos, a revirar os botões do casaco, a dar puxõezinhos aos cabelos, a tocar sem necessidade o rosto.
— Eu estou às vossas ordens, Alteza — disse com voz surda, a olhar para Vassíli Lvóvitch com olhos implorantes.
Chêin, porém, manteve-se calado. Foi Nikolai Nikoláevitch quem começou a falar.
— Em primeiro lugar, permita-nos devolver este seu objeto — disse ele, e, tirando do bolso o estojo vermelho, colocou-o cuidadosamente sobre a mesa. — Ele certamente honra o seu gosto, mas nós lhe pediríamos muito que tais surpresas não tornassem a repetir-se.
— Desculpe-me... Eu próprio sei que sou muito culpado — murmurou Jeltkov, a olhar para baixo, para o chão, enrubescido. — Talvez aceitem um copo de chá?
— Veja, senhor Jeltkov — prosseguiu Nikolai Nikoláevitch, como se não houvesse ouvido bem as últimas palavras de Jeltkov —, fico muito contente em haver encontrado no senhor uma pessoa digna, um cavalheiro capaz de entender tudo com meias palavras. E acho que chegaremos a um acordo imediatamente. Pois, se não me equivoco, há já sete ou oito anos que persegue a princesa Vera Nikoláevna, não?
— Sim — respondeu Jeltkov de modo quase inaudível, e baixou as pálpebras com veneração.
— E nós até hoje não tomamos nenhuma medida contra o senhor, embora, concorde conosco, não só pudéssemos fazê-lo como também até devíamos tê-lo feito. Não é verdade?
— Sim.
— Sim. Mas com o seu último ato, precisamente o envio desse bracelete de granadas, ultrapassou os limites da nossa paciência. Compreende? Ultrapassou. Não lhe escondo que o nosso primeiro pensamento foi recorrer às autoridades, mas não o fizemos, e eu estou muito contente de não o termos feito, pois, repito, eu reconheci imediatamente no senhor uma pessoa nobre.
— Perdão. Como disse? — perguntou de súbito Jeltkov, redobrando de atenção, e desatou a rir. — Queríeis recorrer às autoridades?... Foi o que disse?
Ele pôs as mãos nos bolsos, sentou-se comodamente em um canto do divã, pegou a cigarreira e fósforos e começou a fumar.
— Pois bem, falou o senhor em recorrer às autoridades?... Príncipe, não vos importa com que eu fique sentado? — dirigiu-se ele a Chêin. — Bem-s, prossiga.
O príncipe puxou uma cadeira para a mesa e sentou-se. Ele estava atônito e olhava fixamente para o rosto daquele homem estranho, com uma curiosidade ávida e séria.
— Veja, meu caro, nós podemos sempre tomar essa medida contra o senhor — continuou Nikolai Nikoláevitch, com leve insolência. — Irromper assim na família dos outros...
— Perdão, eu o interromperei...
— Não, perdão, agora sou eu que o interromperei... — quase gritou o promotor.
— Como quiser. Fale. Eu escuto. Mas eu tenho umas palavras para o príncipe Vassíli Lvóvitch.
E, sem prestar atenção a Tuganóvski, disse:
— Chegou o momento mais difícil da minha vida. E eu devo, Alteza, falar-vos sem obedecer aos convencionalismos... Podeis escutar-me?
— Fale — disse Chêin. — Ah, Kólia, cala-te — disse, com impaciência, ao notar o gesto irado de Tuganóvski. — Fale.
Jeltkov sorveu o ar com a boca durante alguns segundos, como se sufocasse, e deitou a falar como se rolasse de um despenhadeiro. Falava só com os maxilares; os seus lábios estavam brancos e não se moviam, parecendo os de um morto.
— É difícil dizer tal... coisa..., que eu amo a vossa esposa. Mas sete anos de amor cortês e sem esperança dão-me direito a isso. Eu concordo que, no início, quando Vera Nikoláevna era ainda solteira, eu lhe escrevia cartas tolas e até esperava resposta a elas. Eu concordo que o meu último ato foi uma tolice ainda maior. Mas... eu vos miro bem nos olhos e sinto que me compreendereis. Eu sei que não conseguirei jamais deixar de amá-la... Dizei, Alteza... suponhamos que isso vos seja desagradável... dizei, que faríeis para calar este meu sentimento? Desterrar-me para outra cidade, como disse Nikolai Nikoláevitch? De qualquer modo, também ali, como cá, eu continuaria a amar Vera Nikoláevna. Encerrar-me em uma prisão? Também ali eu encontraria uma maneira de lembrá-la da minha existência. Só me resta uma coisa, a morte... Se quiserdes, eu a aceitarei sob qualquer forma.
— Em vez de resolver o assunto, nós fazemos um melodrama — disse Nikolai Nikoláevitch, a pôr o chapéu. — A questão é breve, e nós lhe propomos escolher entre duas coisas: ou se abstém inteiramente de perseguir a princesa Vera Nikoláevna, ou, se não concordar, tomaremos as medidas que nos permitirem a nossa posição, as nossas relações, e assim por diante.
Jeltkov, porém, nem olhou para ele, embora ouvisse as suas palavras. Perguntou ao príncipe Vassíli Lvóvitch:
— Permitis que me ausente por dez minutos? Não escondo de vós que telefonarei à princesa Vera Nikoláevna. Asseguro-vos que tudo o que for possível contar-vos, eu contarei.
— Vá — disse Chêin.
Quando Vassíli Lvóvitch e Tuganóvski ficaram a sós, Nikolai Nikoláevitch lançou-se imediatamente sobre o cunhado.
— Assim não pode ser — gritava ele, fazendo com a mão direita o gesto de quem atirava do peito ao chão um objeto invisível. — Assim, definitivamente, não pode ser. Eu te avisei de que me incumbiria da parte prática da conversa. Mas tu esmoreceste e o deixaste fazer arenga dos seus sentimentos. Eu o haveria feito com duas palavras.
— Espera — disse o príncipe Vassíli Lvóvitch —, tudo estará esclarecido daqui a instantes. O mais importante é que eu vejo o seu rosto e sinto que essa é uma pessoa incapaz de enganar e de mentir abertamente. E, realmente, pensa um pouco, Kólia, tem lá ele culpa desse amor, e pode lá alguém governar um sentimento como o amor, sentimento que até hoje não encontrou o seu intérprete? — Depois de breve meditação, continuou o príncipe: — Eu tenho pena desse homem. E não somente tenho pena, como também sinto que presencio uma tragédia espiritual enorme, e não posso bufonear aqui.
— Isso é decadência — disse Nikolai Nikoláevitch.
Dez minutos depois, Jeltkov retornou. Os seus olhos brilhavam e estavam profundos, como se cheios de lágrimas não vertidas. Podia ver-se que ele esquecera completamente as boas maneiras e quem devia sentar-se onde, e ele deixou de comportar-se como cavalheiro. E o príncipe Chêin compreendeu isso novamente, com uma sensibilidade dolorosa, nervosa.
— Eu estou pronto — disse ele —, e amanhã não ouvireis nada sobre mim. Será como se eu houvesse morrido para vós. Mas, uma condição; eu digo isso a vós, príncipe Vassíli Lvóvitch: eu desfalquei dinheiro do erário e, queira ou não, preciso fugir desta cidade. Permitiríeis que eu escrevesse mais uma última carta à princesa Vera Nikoláevna?
— Não. Se terminou, então terminou. Nada de cartas — pôs-se Nikolai Nikoláevitch a gritar.
— Muito bem, escreva — disse Chêin.
— Pois é tudo — disse Jeltkov, a sorrir com desdém. — Não tornareis a ouvir falar de mim e, evidentemente, não tornareis a ver-me. A princesa Vera Nikoláevna nem quis ouvir-me. Quando lhe perguntei se podia ficar na cidade para poder vê-la, ainda que de vez em quando, e, claro, sem dar-lhe nas vistas, ela respondeu: “Ah, se o senhor soubesse como estou farta de toda essa história. Por favor, acabe com ela o mais depressa possível”. Pois, então, eu ponho fim a toda essa história. Parece que fiz tudo que era possível, creio.
À noite, ao chegar à datcha, Vassíli Lvóvitch contou à esposa todos os pormenores do encontro com Jeltkov. Ele sentia como que a obrigação de fazê-lo.
Vera, embora estivesse agitada, não se admirou e não ficou perturbada. Tarde, quando o marido se deitou ao seu lado, ela lhe disse de súbito, depois de virar-se para a parede:
— Deixa-me. Eu sei que aquele homem se matará.
xi
A princesa Vera Nikoláevna nunca lia jornais, porque, primeiro, eles lhe sujavam as mãos e, segundo, ela nunca conseguia entender a linguagem em que hoje se escreve.
Mas quis o destino que ela abrisse o jornal precisamente em determinada página e dar com a coluna em que estava impresso:
“Morte misteriosa. Ontem à noite, por volta das sete horas, cometeu suicídio um funcionário da Câmara de Controlo, G. S. Jeltkov. A julgar pelos dados da perícia, a morte do falecido ocorreu por causa de um desfalque de dinheiro do erário. Assim, pelo menos, é o que o suicida aponta na sua carta. Visto que os depoimentos de testemunhas permitiram verificar a sua vontade pessoal de cometer tal ato, foi decidido não enviar o cadáver para o Anfiteatro de Anatomia.”
Vera pensou consigo: “Por que eu pressenti isso? Precisamente esse desfecho fatal? E que era aquilo: amor ou loucura?”.
Ela andou o dia todo pelos canteiros de flores e pelo pomar. A inquietação, que crescia nela a cada minuto, como que não a deixava ficar parada. E todos os seus pensamentos estavam presos àquele desconhecido, a quem jamais vira e dificilmente veria um dia, o engraçado Pe-Pe-Jota.
“Quem sabe? Talvez te haja saído ao caminho o amor verdadeiro, abnegado” — vieram-lhe à lembrança as palavras de Anóssov.
Às seis horas chegou o carteiro. Dessa vez, Vera Nikoláevna reconheceu a caligrafia de Jeltkov e abriu o sobrescrito com uma ternura que ela não supunha em si.
Assim escrevia Jeltkov:
“Eu não tenho culpa, Vera Nikoláevna, de Deus haver-me enviado, como uma felicidade imensa, este amor a vós. E tudo aconteceu de modo que nada me interessa na vida: nem a política, a ciência, a filosofia, nem a preocupação com a futura felicidade das pessoas — para mim, a vida toda consiste somente em vós. Eu agora sinto que o meu destino se cravou como uma cunha incômoda na vossa vida. Se puderdes, perdoai-me por isso. Parto hoje e não retornarei jamais, e nada me lembrará a vós.
Eu vos sou infinitamente grato já só pelo fato de existirdes. Eu examinei os meus sentimentos — isto não é doença, nem idéia de um maníaco, isto é um amor, com que os Céus acharam de recompensar-me por alguma coisa.
Eu posso ter sido ridículo aos vossos olhos e aos olhos do vosso irmão. Na partida, eu digo, ditoso: ‘Louvado seja o Teu nome’.
Oito anos atrás, eu vos vi em um camarote de circo, e naquele mesmo instante eu disse comigo: eu a amo porque não há, no mundo, nada parecido a ela, não há nem animal, planta, estrela nem pessoa mais bela do que vós, nem mais meiga. Como se em vós se houvesse concentrado toda a beleza da Terra...
Pensai, que devia eu fazer? Fugir para outra cidade? De qualquer maneira, o meu coração permaneceria sempre junto de vós, aos vossos pés, e cada instante do dia seria preenchido por vós, pelo pensamento em vós, por sonhos convosco... por doce delírio. Coro da muita vergonha do tolo bracelete; pois, pois, foi um erro. Imagino a impressão que ele causou aos vossos hóspedes.
Partirei dentro de dez minutos, e conseguirei apenas selar a carta e deitá-la na caixa do correio, para não encarregar disto outra pessoa. Queimai esta carta. Neste momento, eu acendi o fogão e estou a queimar tudo o que de mais caro tive na vida: o vosso lenço, que, reconheço, eu roubei. Vós o esquecestes sobre uma cadeira, em um baile do Círculo dos Nobres. O vosso bilhete — oh, como eu o beijei —, com ele me proibistes escrever-vos. O programa da exposição de artes, que uma vez segurastes na mão e depois esquecestes sobre uma cadeira, ao sair... Terminou tudo. Eu cortei tudo, mas ainda assim acho e estou até convicto de que vos lembrareis de mim. Se vos lembrardes de mim, então... eu sei que apreciais muito a música, eu vos vi, na maioria das vezes, em quartetos de Beethoven — pois então, se vos lembrardes de mim, tocai ou mandai que toquem a sonata D-dur no 2, op. 2.
Eu não sei como terminar esta carta. Do fundo do coração, eu vos agradeço por haverdes sido a minha única alegria na vida, o meu único consolo, o meu único pensamento. Deus vos dê felicidade, e que nada de transitório e mundano perturbe a vossa bela alma. Beijo as vossas mãos.
G. S. J.”
Ela foi ao encontro do marido com os olhos vermelhos de chorar e os lábios intumescidos e, depois de mostrar-lhe a carta, disse:
— Eu não quero esconder nada de ti, mas sinto que na nossa vida interveio algo terrível. Provavelmente, tu e Nikolai Nikoláevitch fizestes algo não como deviam.
O príncipe Chêin leu atentamente a carta, dobrou-a cuidadosamente e, após um longo silêncio, disse:
— Eu não duvido da sinceridade desta pessoa, e até mais, não ouso tentar compreender o seu sentimento por ti.
— Ele morreu? — perguntou Vera.
— Sim, morreu. Digo-te que ele te amava, e não era louco em absoluto. Eu não tirei os olhos dele e vi cada movimento seu, cada mudança do seu rosto. Para ele, não existia vida sem ti. Parecia-me presenciar um sofrimento ingente, do qual morrem pessoas, e eu até quase compreendi que à minha frente estava um homem morto. Vera, eu não sabia como comportar-me, o que devia fazer...
— Ouve lá, Vássenka — interrompeu-o Vera Nikoláevna —, não te magoarias se eu fosse à cidade, para vê-lo?
— Não, não, Vera, por favor, vai. Eu próprio iria, só que o Nikolai me estragou tudo. Eu temo que me sentiria constrangido.
xii
Vera Nikoláevna deixou a sua carruagem a dois quarteirões da rua dos Luteranos. Ela encontrou sem dificuldade a casa de Jeltkov. Atendeu-a uma mulher idosa, de olhos cinzentos, muito gorda, de óculos com aros de prata, e perguntou, como no dia anterior:
— A quem procura?
— O senhor Jeltkov — disse a princesa.
O seu traje — o chapéu, as luvas — e o tom um tanto imperioso devem ter causado grande impressão na senhoria. Ela pôs-se a falar.
— Por favor, por favor, é a primeira porta à esquerda, mas lá... agora... Ele nos deixou tão cedo. Pois que fosse, digamos, um desfalque. Ele devia ter-me dito. A senhora sabe qual é o nosso capital, quando se aluga uma casa a pessoas solteiras. Mas lá uns seiscentos, setecentos rublos, por aí, eu conseguiria juntar e repor por ele. Se a senhora soubesse que pessoa esplêndida era essa, páni.[95] Eu o tive em casa oito anos, e ele me parecia não um inquilino, mas um filho meu.
Na sala, havia uma cadeira, e Vera deixou-se cair nela.
— Eu sou amiga do seu antigo inquilino — disse ela, a escolher bem as palavras. — Fale-me dos derradeiros minutos da sua vida, do que fez e disse.
— Páni, ontem estiveram cá dois senhores e conversaram durante muito tempo. Ele, depois, explicou que lhe ofereceram o lugar de administrador de uma herdade. Depois, pan Ióji correu ao telefone e voltou muito contente. Em seguida, aqueles dois senhores saíram, e ele sentou-se e começou a escrever uma carta. Depois, foi pô-la na caixa do correio, e depois nós ouvimos, parecia que havia disparado um revólver de criança. Nós não prestamos nenhuma atenção. Às sete horas, ele sempre tomava chá. Luquiéria, a empregada, foi e bateu, ele não atendeu, depois ela bateu de novo, e mais uma vez. Foi então preciso arrombar a porta, mas ele já estava morto.
— Conte-me alguma coisa do bracelete — ordenou Vera Nikoláevna.
— Ah, ah, ah, o bracelete, pois eu me esqueci. Como sabe dele? Antes de terminar de escrever a carta, ele veio a mim e disse: “É católica?”. Eu digo: “Católica”. Então ele diz: “Vocês têm um costume adorável” — foi assim que ele disse: adorável — “de pendurar na imagem da Virgem Maria anéis, colares e presentes. Pois então, eu lhe peço: pode pendurar este bracelete em um ícone?”. Eu lhe prometi que poria.
— Pode mostrá-lo a mim? — perguntou Vera.
— Façá o favor, façá o favor,[96] páni. A sua porta é a primeira da esquerda. Queriam levá-lo para o anfiteatro de anatomia, mas ele tem um irmão; pois ele tanto pediu, que conseguiu: vai enterrá-lo como cristão. Façá o favor, façá o favor.
Vera reuniu as forças e abriu a porta. No quarto pairava um cheiro de incenso e ardiam três velas de cera. Jeltkov jazia sobre uma mesa, de través para as paredes. A cabeça repousava muito baixa, como se de propósito para ele, um cadáver, ao qual, apesar de tudo, colocaram uma almofadinha macia sob ela. Nos olhos fechados havia uma imponência profunda, e os lábios sorriam com uma expressão de beatitude e placidez como se ele, a apartar-se da vida, houvesse penetrado um mistério profundo e doce, portador da solução de toda a sua vida humana. Ela se lembrou de ter visto a mesma expressão serenada nas máscaras de dois grandes sofredores, Púchkin[97] e Napoleão.
— Ordena que eu saia, páni? — perguntou a velha mulher, e no seu tom ouviu-se algo extremamente íntimo.
— Pode ir, eu a chamarei depois — disse Vera, e tirou imediatamente uma rosa vermelha grande de um bolso lateral da blusinha, soergueu a cabeça do morto com a mão esquerda e, com a direita, colocou-lhe a flor sob o pescoço. Nesse instante, ela compreendeu que por ela perpassara o amor com o qual sonham todas as mulheres. Ela se recordou das palavras do general Anóssov sobre um amor excepcional e eterno, palavras quase proféticas. E, apartando para os lados os cabelos da fronte do morto, apertou-lhe com força as têmporas e pousou um beijo longo, de amiga, na sua testa fria e úmida.
Quando saía, a dona da casa dirigiu-se a ela com um tom polaco adulador:
— Páni, eu vejo que não é como todos os outros, que não veio só por curiosidade. O falecido pan Jeltkov, antes de morrer, disse-me: “Se eu morrer e alguma dama vier ver-me, diga-lhe, então, que a melhor composição de Beethoven é...”, ele até me escreveu isso, de propósito. Cá está, olhe...
— Mostre-me — disse Vera Nikoláevna, e prorrompeu em lágrimas. — Desculpe-me, esta impressão da morte é tão penosa que eu não consigo conter-me.
E ela leu estas palavras, escritas em caligrafia familiar: “L. van Beethoven. Son. no 2, op. 2. Largo Apassionato”.
xiii
Vera Nikoláevna voltou tarde para casa e alegrou-se de não encontrar ali nem o marido, nem o irmão.
Mas, em contrabalanço, esperava por ela a pianista Genny Reuter, e a princesa, comovida ainda por tudo que vira e ouvira, correu a abraçá-la e a beijar-lhe as belas mãos, e pediu-lhe aos brados:
— Genny, querida, por favor, toca alguma coisa para mim — e saiu imediatamente da sala e foi para o jardim, onde se sentou em um banco.
Ela nem por um segundo teve dúvida de que Genny tocaria aquele mesmo trecho da segunda sinfonia, pedido por aquele morto de engraçado nome Jeltkov.
Foi realmente assim. Já nos primeiros acordes, ela reconheceu essa obra excepcional, única, com tanta profundeza. E a sua alma como que se partiu em duas. Simultaneamente, ela pensava em que por ela perpassara um grande amor, que se repete uma única vez a cada mil anos. Recordou-se das palavras do general Anóssov e perguntou-se por que aquela pessoa a obrigara a escutar precisamente aquela composição de Beethoven e ainda assim contra a sua vontade. Na sua mente, as palavras começaram a ligar-se. No seu pensamento, elas coincidiam tanto com a música, que era como se fossem estrofes, que terminavam com estas palavras: “Louvado seja o Teu nome”.
“Agora, eu vos mostrarei em suaves sons a vida, que se condenou aos tormentos, aos sofrimentos e à morte. Nem queixa, nem a recriminação, nem a dor do amor-próprio eu conheci. Diante de ti, eu sou todo uma prece: ‘Louvado seja o Teu nome’.
Sim, eu prevejo sofrimento, sangue e morte. E penso que para o corpo é difícil apartar-se da alma, mas, Bela, glória a ti, glória ardente e amor sereno. ‘Louvado seja o Teu nome.’
Recordo cada passo teu, cada sorriso, olhar, o rumor do teu caminhar. Doce tristeza, uma tristeza serena, linda, bafeja as minhas derradeiras recordações. Mas eu não te causarei dor. Eu parto sozinho, em silêncio, como desejaram os Céus e o destino. ‘Louvado seja o Teu nome.’
Nesta dolorosa hora da morte, é a ti que dirijo a minha prece. A vida podia haver sido bela também para mim. Não te lamentes, pobre coração, não te lamentes. Na alma, eu reclamo a morte, mas, no coração, eu transbordo de glória a ti: ‘Louvado seja o Teu nome’.
Tu, tu e as pessoas que te cercavam, vós todos não sabíeis quão bela eras. Soa o relógio. É chegada a hora. E, a morrer, no momento amargo de apartar-me da vida, ainda assim eu canto: glória a ti.
Eis que vem ela, a morte, que tudo apazigua, mas eu digo: glória a ti!...”
A princesa Vera abraçou o tronco de uma acácia, apertou-se a ele e chorou. A árvore agitou-se suavemente. Principiou de repente uma brisa e, como se compartilhasse dos seus sentimentos, fez as folhas farfalharem. Um aroma mais intenso exalaram as estrelas do tabaco... Nesse entrementes, a admirável música, como que a amoldar-se à sua dor, prosseguia:
“Acalma-te, querida, acalma-te, acalma-te. Lembras-te de mim? Lembras-te? Tu és o meu único e derradeiro amor. Acalma-te, eu estou contigo. Pensa em mim, e eu estarei contigo, porque nós dois nos amamos por um único instante, mas para sempre. Lembras-te de mim? Lembras-te? Lembras-te? Eu bem sinto as tuas lágrimas. Acalma-te. Doce, doce, doce é o meu dormir.”
Genny Reuter saiu da sala ao terminar de tocar, e viu a princesa Vera sentada ainda no banco, desfeita em lágrimas.
— Que há contigo? — perguntou a pianista.
Vera, com os olhos brilhantes das lágrimas, pôs-se a beijar-lhe, agitada e comovida, o seu rosto, os lábios e os olhos, e repetia:
— Não, não; ele me perdoou agora. Está tudo bem.
(1910)